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Ingo Schulze
Handy
dreizehn geschichten in alter manier
Berlin Verlag
Berlin 2007
ISBN 978-3-8270-0720-9
pp. 13-23

Ingo Schulze
Celular
treze histórias à moda antiga
Traduzido por Marcelo Backes

© 2007 Litrix
Celular

Eles vieram na noite de 20 para 21 de julho, entre meia-noite e meia-noite e meia.
Muitos não terão sido, cinco, talvez seis caras. Eu apenas ouvi as vozes e a barulheira.
Provavelmente eles nem sequer tenham percebido que a luz estava acesa no bangalô. O quarto
tem uma saída que dá para os fundos e as cortinas estavam fechadas. A primeira noite de calor
depois de muito tempo e o princípio de nossa última semana de férias. Eu ainda estava lendo:
Stifter, Da pasta de meu bisavô.
Constanze havia sido chamada por telegrama ao jornal, em Berlim, e teria de estar lá
terça-feira de manhã às oito. Ao que tudo indica, sua secretária havia conseguido nosso
endereço. A série sobre os lugares preferidos de Fontane ameaçava ser suspensa, porque os
artigos prometidos não chegaram pontualmente. Que fazer, essa é a desvantagem de não
viajar para longe. Nós dois – eu trabalho na redação de esportes, Constanze no segundo
caderno – viajamos praticamente o ano inteiro, e não temos vontade de ficar sentados por aí
em aeroportos também nas férias. No último verão, alugamos este bangalô pela primeira vez,
vinte marcos por dia, cinco por cinco metros de área, em Prieros, a sudeste de Berlim,
exatamente 46 quilômetros distante da porta de nossa casa, um terreno de esquina, pinheiros
por tudo, ideal no calor.
Era esquisito ficar sozinho ali. Não que eu tivesse medo, mas ouvia cada galho que
caía, cada pássaro que saltitava sobre o telhado, cada ruído.
O estrondo foi como o de um tiro quando eles derrubaram as travessas da cerca a
chutes. E aquela algazarra! Eu desliguei a luz, vesti as calças, fui para a frente; a persiana fica
sempre aberta, inclusive à noite. E mesmo assim não vi nada. De repente ouvi um ruído surdo.
Alguma coisa pesada caíra ao chão. Eles berravam. Primeiro eu quis acender a luz externa
para mostrar que havia alguém ali, e esses idiotas não acreditassem que ninguém os estava
percebendo. Os estrondos se repetiram ainda algumas vezes – depois os caras seguiram
adiante.
Eu percebia suor até mesmo em minhas pernas. Lavei o rosto. Da cama, abri a
janela. Lá fora havia refrescado. Os caras quase não podiam mais ser ouvidos.
Pontualmente as sete horas meu celular tocou. Tocar na verdade é uma expressão
incorreta, pois o ruído se assemelhava mais a um “tililitit, tililitit” que ficava cada vez mais
alto, e que me era querido e familiar porque anunciava Constanze. Só ela sabia meu número.
1
Enquanto Constanze contava como estava insuportavelmente quente em Berlim, e
perguntava porque eu a deixara viajar àquela cidade intratável, fui com o celular para fora, à
manhã tranqüila e ensolarada, e examinei o estrago. Três quadrados da cerca jaziam no
caminho. Um poste de concreto havia sido quebrado pouco acima do chão. Do toco saíam
duas hastes espirais. Junto ao portão os arruaceiros haviam torcido verticalmente o tubo em
que era colocado o jornal. Exatamente embaixo dele, descobri o telhado e a parede dos fundos
da casa de passarinhos. Contei sete travessas derrubadas a coices e quatro arrancadas.
Constanze disse que só agora toda a baixaria do telegrama se tornava clara para ela. Eu
realmente não deveria tê-la deixado viajar.
Para não sobrecarregar Constanze – seja como for, ela logo é tomada pela sensação
de que isto ou aquilo é um mau sinal –, me calei sobre a visita noturna. Também teria sido
difícil interrompê-la. Sobraria até mesmo para nossos antecessores no bangalô, já que haviam
desligado o disjuntor sem lembrar da geladeira cheia pela metade. De repente, Constanze
gritou que tinha de ir embora, que sentia falta de mim, mandou um beijo e desligou.
Eu me meti na cama mais uma vez. Naturalmente aquele vandalismo não era algo
que eu deveria encarar como pessoal, e a explicação também era relativamente simples. Os
pouco menos de dois mil metros quadrados de terra que pertenciam ao bangalô, estão sendo
arrendados. Em 2001 ou mais tardar em 2004 estará tudo terminado, e então nossos
conhecidos terão de sair daqui, o tempo de transição terá chegado ao fim. Por isso já há anos
eles não investem mais. Em alguns lugares, nos quais a madeira está demasiado podre para
pregos, é o arame que mantém a cerca em pé.
No outono passado, Constanze havia escrito um artigo sobre a polícia de Nova
Iorque, sobre sua nova filosofia. Me lembrei do exemplo do carro que fica durante semanas à
beira da estrada sem ser usado. O lixo se ajunta em volta dele, sob os limpadores de pára-brisa
se acumulam folhetos de propaganda amarelados. Certa manhã falta uma roda, dois dias mais
tarde as placas desaparecem, em pouco as rodas restantes. Um vidro é quebrado, e já não há
mais como parar. Botam fogo no carro. Conclusão: é preciso cortar o mal pela raiz e evitar
que a sujeira apareça.
Pelo menos Constanze havia sido poupada daquele incidente. Juntos, nós
provavelmente teríamos cometido uma imprudência, ou Constanze ficaria deprimida durante
dias porque nós teríamos nos acovardado, porque nos teríamos escondido. Agora, porém, eu
precisava fazer alguma coisa, pois do contrário hoje ou amanhã quebrariam nossos vidros.

2
Eu me levantei para tirar os quadrados da cerca do meio do caminho. Quando ergui
o primeiro, ele se despedaçou. Com os pregos expostos, as travessas me lembravam o arsenal
de Thomas Müntzer. Primeiro joguei todas elas num monte. Depois comecei a carregá-las ao
galpão. Deixar as travessas deitadas, ao alcance de qualquer um, era demasiado perigoso.
Talvez eu estivesse exagerando. Fato era, porém, que agora nem mesmo uma barreira
simbólica protegia o bangalô.
Nessa situação, achei bom ter um celular. Eu havia trazido a Prieros comigo o
envelope, guardado por Constanze, no qual estavam todos os papéis do celular, e por fim
aprendera como se ativa a caixa de correspondência – para fazer uma surpresa a Constanze.
O “Alô!” de uma voz masculina me assustou. De altura mediana, em chinelas de
banho e pulôver, ele estava parado junto ao portão e perguntou quais os danos que os
arruaceiros haviam causado em nossa casa.
Na sua cerca faltavam duas travessas. “Uma cerca de caçador”, ele disse. “Sabe a
força necessária pra derrubar uma cerca dessas?” Mas o pior era o amassado na capota de seu
Fiat Punto. Por muito tempo ele disse ter procurado algo para jogar neles, mas nada
encontrara. Seu penteado de ouriço parava sobre sua testa como um capuz de lã.
“Isso sempre acontece nas férias”, disse ele. “E é essa juventude. Sempre nas férias.”
Caminhei com ele em volta da casa. Ele levou sua inspeção a sério, chegou a ficar de
cócoras mais de uma vez como se procurasse rastros. Ainda encontrou pedaços da casa de
passarinhos, voltou a colocar o tubo do jornal em sua posição horizontal e me ajudou com os
restos da cerca. Já durante a noite passada ele havia comunicado tudo à polícia e, ao que
parece, não tinha desistido até que lhe prometeram mandar alguém.
“Uma coisa você precisa saber”, disse ele. “Pra eles isso são bagatelas. Do jeito que
lhes falta pessoal, e como falta pessoal.”
Ele manifestou interesse por aquilo que contei acerca da polícia de Nova Iorque, e
prometi lhe mandar o artigo de Constanze.
“Me dá o número de seu celular?”, ele perguntou de repente.
“O número do meu celular? Eu nem sei qual é.”
Sua testa franzida fez os cabelos cerdosos descerem tanto, que os que estavam mais
à frente apontaram para mim.

3
“Tenho de verificar”, eu disse, e perguntei o que ele estava planejando para o caso
de os caras voltarem.
“Primeiro avisar a polícia”, disse ele.
“Mal não vai fazer”, eu disse.
No bangalô, eu me sentei sobre a cama com o envelope nas mãos. Todos os meus
colegas tinham celular. Eu não entendia porque eles faziam uma coisa dessas consigo
mesmos. Jamais quis ter um celular, até que Constanze chegou com a idéia do celular oneway. Fazer ligações, sim... Recebê-las, não, com exceção dela, naturalmente...
Quando copiei o número percebi que ele terminava em 007.
“Aliás, meu nome é Neumann”, disse ele e me estendeu um tíquete de caixa, no qual
havia rabiscado seu número. No mesmo instante, o telefone tocou. Me cumprimentando às
pressas, ele se afastou.
Na redação tudo havia dado errado, por assim dizer. Constanze teria de ficar em
Berlim pelo menos mais dois dias. Ela disse que devido às deportações havia rixas internas,
inclusive no segundo caderno. Eu não tinha a menor idéia de que deportações ela estava
falando. Nós não ouvíamos rádio porque o botão de ondas curtas estava faltando.
Constanze continuava furiosa e observou que os senhores seus colegas simplesmente
ainda não haviam conseguido superar a derrota contra os croatas na Copa do Mundo, e por
isso estavam bancando os tais.
Eu lhe disse o que acontecera na última noite. Ela falou apenas: “Então vem pra cá.”
“Sim”, eu respondi, “amanhã”. Eu não queria parecer covarde. Além do mais, o
calor era bem mais suportável por ali.
Deixei tudo em ordem. Caso a polícia de fato aparecesse, eu não queria que
pensassem que pelo jeito pouco importava se algo havia sido arrombado ou não. Eu também
diria que nossos locatários apenas haviam arrendado o chão, pois se tratava de um terreno
ocidental. Para terminar, varri o terraço.
À tarde conversei ainda com outros vizinhos. Nós combinamos que deixaríamos
todas as lâmpadas disponíveis ligadas à noite. Posicionamos nossos carros de tal modo que os
faróis apontassem para a cerca e pudéssemos ofuscar os olhos dos caras de repente, e talvez
até fotografá-los. Agíamos seguindo o lema: multidão, barulhão, iluminação. Entre nós, os

4
moradores dos bangalôs, havia se formado uma espécie de solidariedade de oeste selvagem. A
polícia não deu as caras, e ninguém mais disse uma única palavra sobre o assunto.
Por uma espécie de gratidão, disquei o número de Neumann. A idéia de estar ligado
a alguém por satélite, ou seja, através do cosmos, já havia me embriagado antes. O fato de
sermos vizinhos, distantes um do outro menos de trezentos metros, apenas tornava a coisa
ainda mais fantástica. Em vez de Neumann, uma mulher disse: “Esse é o telefone de”, seguiuse uma pausa, e então ouvi, a uma distância galáctica, as palavras, “Harald Neumann”. Senti
meus pelos se arrepiarem até a nuca. É natural que inclusive amigos íntimos muitas vezes
pareçam perturbados ou abatidos ao falarem em suas secretárias eletrônicas. A voz de
Neumann, porém, não apenas soou deprimida, mas sim como se ele sentisse vergonha até
mesmo de ter um nome.
Pouco mais tarde houve um breve temporal. Eu vi Neumann saindo da floresta com
um cesto cheio de cogumelos. Já de longe, ele gritou: “Como nabos!” Ele por certo queria
dizer que com um tempo assim se podia apanhar cogumelos como se estivéssemos colhendo
nabos, ou que ele eram tão grandes como nabos. E me convidou para comer com ele.
Em comparação com nossa biboca, o bangalô dele era um palacete, com televisão e
som estéreo, poltronas de couro e dois tamboretes de bar. Neumann serviu vinho tinto e pão
branco para acompanhar os cogumelos. Depois jogamos xadrez e fumamos um maço inteiro
de Club. Entre o Neumann à minha frente e aquele que disse seu nome na secretária eletrônica
parecia não existir o menor nexo. Ainda assim receei perguntar por sua família ou sua
profissão.
Por volta do anoitecer as nuvens se coloriram de rosa sobre o lago. Eu coloquei a
grande lanterna de mão a meu alcance e o número de Neumann.
Depois das dez os raios passaram a cintilar tão regularmente como a luz de alerta de
uma ambulância. Uma chuvarada se seguiu. Mais tardar nessa hora tive certeza de que
naquela noite não viria ninguém.
Na manhã seguinte juntei as coisas, limpei tudo mais uma vez e me despedi dos
vizinhos. Neumann eu não cheguei a encontrar. Provavelmente tivesse ido mais uma vez à
floresta. Não acredito que as pessoas teriam a impressão de que eu seja um covarde. Elas
viam muito bem que Constanze não estava mais ali. Difícil, contudo, foi o telefonema a
nossos locatários. Eu deveria dar um jeito na cerca, no galpão ainda havia estacas novas, eles
disseram. Mas só com a geladeira eu já gastara uma manhã inteira, e isso bastava.

5
No fim de setembro o celular tocou no meio da noite. Num primeiro momento
pensei que fosse o pipilar anunciando que a bateria estava acabando. Mas o “tililitit” ficava
mais alto a cada vez que soava. No escuro, apalpei procurando em meu criado-mudo. Com a
ponta do indicador perpassei as teclas; eu precisava da intermediária, na segunda fila, de cima
para baixo. O toque estava insuportavelmente alto.
“Os caras estão aqui de novo. E põe barulheira nisso!” E, depois de uma breve
pausa: “Alô! Aqui é Neumann! Estão fazendo a maior barulheira de novo! Está ouvindo?”
“Mas eu nem estou mais aí!”, disse eu, por fim.
“Estão fazendo a maior barulheira!”
Do lado de Constanze, a luz acendeu. Ela estava sentada à borda da cama e sacudia a
cabeça. Com a mão livre, eu tampei o fone. “Um vizinho de Prieros.” Senti como o suor
brotava em mim. Eu jamais havia mencionado a troca de números, até porque jamais
voltaríamos a Prieros.
“Está sozinho aí?”
“Ora, mas alguém tem de guardar posição!”, gritou Neumann.
“Está sozinho?”
“Estão quebrando minha cerca, os caras de pau!”
“Já chamou a polícia?”
Neumann deu uma gargalhada e teve de tossir. “Eles são mesmo muito bons...” Soou
como se ele estivesse bebendo. Eu jamais havia lhe mandado o artigo de Constanze sobre
Nova Iorque.
“O que você está querendo?”, eu perguntei.
“Ouça só a barulheira!”
Eu apertei o fone no ouvido, mas em vão.
“Agora eles estão na caixa de correio”, ele gritou e pareceu tomar mais um gole.
“Ali eles vão ter de fazer um bocado de força. Nem entre dois esses paspalhos conseguem
arrancá-la. Mas agora chega, basta...”
“Fique onde está!”, eu gritei.

6
Constanze estava parada à porta e fez um sinal para mostrar que eu estava variando.
Já no corredor, ela falou algo que não entendi.
“Alô?”, gritou Neumann.
“Sim”, eu respondi. Ou será que ele estava falando com os caras na cerca? “Fique
dentro de casa!”, eu gritei. “Não vá bancar o herói!”
“Eles foram embora”, disse ele e riu. “Não vejo mais ninguém, se foram, estão se
cagando de medo!” Ouvi com nitidez como Neumann bebeu e em seguida pôs a garrafa de
lado. “Paspalhos”, arquejou ele.
“Você não pode se meter sozinho...”
“Mas e você, como está?”, ele me interrompeu, em tom quase sereno.
“Fique dentro de casa”, eu disse. “Não saia sozinho daí, talvez no final de semana,
mas não num dia útil!”
“E quando você vai aparecer por aqui outra vez? Nós ainda temos uma partida em
aberto. Ou prefere jogar xadrez à distância? Me dá seu endereço? Eu coloquei cogumelos pra
secar, um saco cheio.”
“Meu caro Neumann”, eu disse e não soube como continuar.
“O tonel de lixo”, ele berrou de repente. “Meu tonel de lixo!”
“Deixe o tonel de lado”, eu disse. “Ele não tem a menor importância!” Chamei
“Alô?” e “Alô, Neumann?” um punhado de vezes. Depois só ouvi mais um tu-tu-tu e no
display apareceu: ligação encerrada.
Constanze voltou ao quarto, deitou em seu lado da cama, com o rosto voltado para a
parede e puxou a coberta sobre seus ombros. Tentei esclarecer aquilo tudo a ela; que eu no
princípio havia hesitado, mas por fim até ficara contente em poder pedir a ajuda de um
vizinho em caso de necessidade. Constanze não se mexeu. Eu disse que estava preocupado
com Neumann.
“Quem sabe se ele não liga de novo”, ela respondeu. “Isso por certo vai se repetir a
partir de agora. Mas é assim, tu não dás teu número a ninguém.”
Acho que em tais momentos nós estamos de tal modo desiludidos um com o outro
que nos odiamos.
Fui até meu escritório para buscar o carregador da bateria.
7
“E se ele passar teu número adiante?” Constanze se virou e se apoiou, levantando o
corpo.
“E por que ele faria isso?”
“Imagina só o que pode acontecer!”
“Constanze”, disse eu. “Isso é bobagem.”
“Só quero que imagines o que pode acontecer!” Ela voltou a puxar para cima a alça
de sua camisola, que havia escorregado de seu ombro esquerdo. Mas ela caiu de novo.
“As pessoas que não poderiam ligar pra nós”, ela disse, “sempre esses vizinhos!”
“Nosso número está no catálogo telefônico, um número como qualquer outro.
Qualquer um pode ligar pra nós.”
“Não é isso que estou querendo dizer. Se por acaso uma casa pega fogo ou é
bombardeada e alguém corre pra fora com nada a não ser seu celular, porque o tem no bolso
por acaso... Então vais poder falar com ele.”
Eu enfiei o rabicho do carregador na tomada ao lado da cama.
“Isso pode muito bem acontecer”, disse Constanze. E voltou a seu tom de
governanta. “Alguém te liga do Kosovo ou da Repúplica Tcheca ou daquele lugar em que
teve a tsunami. Ou um desses que estão morrendo congelados em cima do Monte Everest.
Então vais poder falar com ele até o fim, até o fim derradeiro.”
Ela continuou falando, apoiada aos cotovelos, com o ombro esquerdo nu, de olhos
fixos na ponta do travesseiro, que apontava diagonalmente para cima. “Imagina com quem
terás de te meter nesses casos! Ninguém precisa mais ficar sozinho.”
Seria absurdo ligar para o serviço de informações, porque seria absurdo ligar para
Neumann. Não sei o que teria sido mais desagradável, conseguir falar com ele ou ter de ouvir
mais uma vez como ele dizia seu nome na secretária eletrônica.
No display apareceu o sinal que indicava o carregamento: os contornos de uma
pequena bateria, sobre a qual uma barra inclinada passeava em três diferentes fases. Foi a
última coisa que vi antes de apagar a luz. No escuro, Constanze disse: “Eu acho que vou pedir
o divórcio.”
Eu ouvia sua respiração e seus movimentos e esperei pelo tililitit.

8
A persiana da banca de jornais já havia matraqueado, fechando, quando nossas mãos
se tocaram por acaso. Foi necessária mais uma eternidade até que ousássemos nos aproximar.
Quando isso aconteceu, porém, caímos um sobre o outro como há tempo não havíamos feito,
como se a insônia nos tivesse tornado loucos.
Em algum momento o tililitit soou. Vinha de bem longe, como o sinal de uma nave
espacial chamando, silencioso e vago; só aos poucos é que ele ficou mais próximo, mais alto,
cada vez mais alto, para ao fim superar qualquer outra coisa, de tal modo que me pareceu que
Constanze e eu nos movíamos sem fazer o menor ruído. Só aquele “tililitit” podia ser ouvido;
até de repente parar e deixar tudo em paz e silenciar, assim como nós.

9
GLOSSÁRIO

CLUB – Conhecida marca de cigarros de filtro da Alemanha oriental, um pouco mais cara do que as demais
vendidas no país.
DA PASTA DE MEU BISAVÔ – Referência ao romance A pasta de meu bisavô, de Adalbert Stifter (VER), oobra
de quatro versões que mostram bem o desenvolvimento desse grande autor, admirado por Nietzsche,
Karl Kraus e Thomas Bernhard, entre outros.
FIAT PUNTO – Carro compacto, equivalente ao Fiat Palio no Brasil em termos físicos, ao Fiat Uno em termos
metafísicos, por assim dizer.
FONTANE – Referência a Theodor Fontane (1819-1898), escritor do realismo alemão, de ascendência
huguenote.
STIFTER – Referência a Adalbert Stifter (1805-1868), escritor realista austríaco.
TEMPO DE TRANSIÇÃO – Tempo estipulado para a devolução de propriedades da DDR a seus antigos
proprietários “ocidentais”.
TERRENO OCIDENTAL – Propriedades de ocidentais que foram “ocupadas” por cidadãos da DDR. Elas não
podiam ser compradas, mas tinham, sim, um contrato de “arrendamento”. Depois da queda do muro,
muitos antigos proprietários exigiram que lhes fosse devolvido o que um dia lhes pertenceu; e, como
muitas vezes havia grandes benfeitorias, era estipulado um tempo de transição. Ver TEMPO DE
TRANSIÇÃO.
THOMAS MÜNTZER – Referência ao teólogo evangélico (1489-1525), líder revolucionário da Guerra dos
Camponeses.

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Celular treze histórias à moda antiga

  • 1. Excerto traduzido do livro Ingo Schulze Handy dreizehn geschichten in alter manier Berlin Verlag Berlin 2007 ISBN 978-3-8270-0720-9 pp. 13-23 Ingo Schulze Celular treze histórias à moda antiga Traduzido por Marcelo Backes © 2007 Litrix
  • 2. Celular Eles vieram na noite de 20 para 21 de julho, entre meia-noite e meia-noite e meia. Muitos não terão sido, cinco, talvez seis caras. Eu apenas ouvi as vozes e a barulheira. Provavelmente eles nem sequer tenham percebido que a luz estava acesa no bangalô. O quarto tem uma saída que dá para os fundos e as cortinas estavam fechadas. A primeira noite de calor depois de muito tempo e o princípio de nossa última semana de férias. Eu ainda estava lendo: Stifter, Da pasta de meu bisavô. Constanze havia sido chamada por telegrama ao jornal, em Berlim, e teria de estar lá terça-feira de manhã às oito. Ao que tudo indica, sua secretária havia conseguido nosso endereço. A série sobre os lugares preferidos de Fontane ameaçava ser suspensa, porque os artigos prometidos não chegaram pontualmente. Que fazer, essa é a desvantagem de não viajar para longe. Nós dois – eu trabalho na redação de esportes, Constanze no segundo caderno – viajamos praticamente o ano inteiro, e não temos vontade de ficar sentados por aí em aeroportos também nas férias. No último verão, alugamos este bangalô pela primeira vez, vinte marcos por dia, cinco por cinco metros de área, em Prieros, a sudeste de Berlim, exatamente 46 quilômetros distante da porta de nossa casa, um terreno de esquina, pinheiros por tudo, ideal no calor. Era esquisito ficar sozinho ali. Não que eu tivesse medo, mas ouvia cada galho que caía, cada pássaro que saltitava sobre o telhado, cada ruído. O estrondo foi como o de um tiro quando eles derrubaram as travessas da cerca a chutes. E aquela algazarra! Eu desliguei a luz, vesti as calças, fui para a frente; a persiana fica sempre aberta, inclusive à noite. E mesmo assim não vi nada. De repente ouvi um ruído surdo. Alguma coisa pesada caíra ao chão. Eles berravam. Primeiro eu quis acender a luz externa para mostrar que havia alguém ali, e esses idiotas não acreditassem que ninguém os estava percebendo. Os estrondos se repetiram ainda algumas vezes – depois os caras seguiram adiante. Eu percebia suor até mesmo em minhas pernas. Lavei o rosto. Da cama, abri a janela. Lá fora havia refrescado. Os caras quase não podiam mais ser ouvidos. Pontualmente as sete horas meu celular tocou. Tocar na verdade é uma expressão incorreta, pois o ruído se assemelhava mais a um “tililitit, tililitit” que ficava cada vez mais alto, e que me era querido e familiar porque anunciava Constanze. Só ela sabia meu número. 1
  • 3. Enquanto Constanze contava como estava insuportavelmente quente em Berlim, e perguntava porque eu a deixara viajar àquela cidade intratável, fui com o celular para fora, à manhã tranqüila e ensolarada, e examinei o estrago. Três quadrados da cerca jaziam no caminho. Um poste de concreto havia sido quebrado pouco acima do chão. Do toco saíam duas hastes espirais. Junto ao portão os arruaceiros haviam torcido verticalmente o tubo em que era colocado o jornal. Exatamente embaixo dele, descobri o telhado e a parede dos fundos da casa de passarinhos. Contei sete travessas derrubadas a coices e quatro arrancadas. Constanze disse que só agora toda a baixaria do telegrama se tornava clara para ela. Eu realmente não deveria tê-la deixado viajar. Para não sobrecarregar Constanze – seja como for, ela logo é tomada pela sensação de que isto ou aquilo é um mau sinal –, me calei sobre a visita noturna. Também teria sido difícil interrompê-la. Sobraria até mesmo para nossos antecessores no bangalô, já que haviam desligado o disjuntor sem lembrar da geladeira cheia pela metade. De repente, Constanze gritou que tinha de ir embora, que sentia falta de mim, mandou um beijo e desligou. Eu me meti na cama mais uma vez. Naturalmente aquele vandalismo não era algo que eu deveria encarar como pessoal, e a explicação também era relativamente simples. Os pouco menos de dois mil metros quadrados de terra que pertenciam ao bangalô, estão sendo arrendados. Em 2001 ou mais tardar em 2004 estará tudo terminado, e então nossos conhecidos terão de sair daqui, o tempo de transição terá chegado ao fim. Por isso já há anos eles não investem mais. Em alguns lugares, nos quais a madeira está demasiado podre para pregos, é o arame que mantém a cerca em pé. No outono passado, Constanze havia escrito um artigo sobre a polícia de Nova Iorque, sobre sua nova filosofia. Me lembrei do exemplo do carro que fica durante semanas à beira da estrada sem ser usado. O lixo se ajunta em volta dele, sob os limpadores de pára-brisa se acumulam folhetos de propaganda amarelados. Certa manhã falta uma roda, dois dias mais tarde as placas desaparecem, em pouco as rodas restantes. Um vidro é quebrado, e já não há mais como parar. Botam fogo no carro. Conclusão: é preciso cortar o mal pela raiz e evitar que a sujeira apareça. Pelo menos Constanze havia sido poupada daquele incidente. Juntos, nós provavelmente teríamos cometido uma imprudência, ou Constanze ficaria deprimida durante dias porque nós teríamos nos acovardado, porque nos teríamos escondido. Agora, porém, eu precisava fazer alguma coisa, pois do contrário hoje ou amanhã quebrariam nossos vidros. 2
  • 4. Eu me levantei para tirar os quadrados da cerca do meio do caminho. Quando ergui o primeiro, ele se despedaçou. Com os pregos expostos, as travessas me lembravam o arsenal de Thomas Müntzer. Primeiro joguei todas elas num monte. Depois comecei a carregá-las ao galpão. Deixar as travessas deitadas, ao alcance de qualquer um, era demasiado perigoso. Talvez eu estivesse exagerando. Fato era, porém, que agora nem mesmo uma barreira simbólica protegia o bangalô. Nessa situação, achei bom ter um celular. Eu havia trazido a Prieros comigo o envelope, guardado por Constanze, no qual estavam todos os papéis do celular, e por fim aprendera como se ativa a caixa de correspondência – para fazer uma surpresa a Constanze. O “Alô!” de uma voz masculina me assustou. De altura mediana, em chinelas de banho e pulôver, ele estava parado junto ao portão e perguntou quais os danos que os arruaceiros haviam causado em nossa casa. Na sua cerca faltavam duas travessas. “Uma cerca de caçador”, ele disse. “Sabe a força necessária pra derrubar uma cerca dessas?” Mas o pior era o amassado na capota de seu Fiat Punto. Por muito tempo ele disse ter procurado algo para jogar neles, mas nada encontrara. Seu penteado de ouriço parava sobre sua testa como um capuz de lã. “Isso sempre acontece nas férias”, disse ele. “E é essa juventude. Sempre nas férias.” Caminhei com ele em volta da casa. Ele levou sua inspeção a sério, chegou a ficar de cócoras mais de uma vez como se procurasse rastros. Ainda encontrou pedaços da casa de passarinhos, voltou a colocar o tubo do jornal em sua posição horizontal e me ajudou com os restos da cerca. Já durante a noite passada ele havia comunicado tudo à polícia e, ao que parece, não tinha desistido até que lhe prometeram mandar alguém. “Uma coisa você precisa saber”, disse ele. “Pra eles isso são bagatelas. Do jeito que lhes falta pessoal, e como falta pessoal.” Ele manifestou interesse por aquilo que contei acerca da polícia de Nova Iorque, e prometi lhe mandar o artigo de Constanze. “Me dá o número de seu celular?”, ele perguntou de repente. “O número do meu celular? Eu nem sei qual é.” Sua testa franzida fez os cabelos cerdosos descerem tanto, que os que estavam mais à frente apontaram para mim. 3
  • 5. “Tenho de verificar”, eu disse, e perguntei o que ele estava planejando para o caso de os caras voltarem. “Primeiro avisar a polícia”, disse ele. “Mal não vai fazer”, eu disse. No bangalô, eu me sentei sobre a cama com o envelope nas mãos. Todos os meus colegas tinham celular. Eu não entendia porque eles faziam uma coisa dessas consigo mesmos. Jamais quis ter um celular, até que Constanze chegou com a idéia do celular oneway. Fazer ligações, sim... Recebê-las, não, com exceção dela, naturalmente... Quando copiei o número percebi que ele terminava em 007. “Aliás, meu nome é Neumann”, disse ele e me estendeu um tíquete de caixa, no qual havia rabiscado seu número. No mesmo instante, o telefone tocou. Me cumprimentando às pressas, ele se afastou. Na redação tudo havia dado errado, por assim dizer. Constanze teria de ficar em Berlim pelo menos mais dois dias. Ela disse que devido às deportações havia rixas internas, inclusive no segundo caderno. Eu não tinha a menor idéia de que deportações ela estava falando. Nós não ouvíamos rádio porque o botão de ondas curtas estava faltando. Constanze continuava furiosa e observou que os senhores seus colegas simplesmente ainda não haviam conseguido superar a derrota contra os croatas na Copa do Mundo, e por isso estavam bancando os tais. Eu lhe disse o que acontecera na última noite. Ela falou apenas: “Então vem pra cá.” “Sim”, eu respondi, “amanhã”. Eu não queria parecer covarde. Além do mais, o calor era bem mais suportável por ali. Deixei tudo em ordem. Caso a polícia de fato aparecesse, eu não queria que pensassem que pelo jeito pouco importava se algo havia sido arrombado ou não. Eu também diria que nossos locatários apenas haviam arrendado o chão, pois se tratava de um terreno ocidental. Para terminar, varri o terraço. À tarde conversei ainda com outros vizinhos. Nós combinamos que deixaríamos todas as lâmpadas disponíveis ligadas à noite. Posicionamos nossos carros de tal modo que os faróis apontassem para a cerca e pudéssemos ofuscar os olhos dos caras de repente, e talvez até fotografá-los. Agíamos seguindo o lema: multidão, barulhão, iluminação. Entre nós, os 4
  • 6. moradores dos bangalôs, havia se formado uma espécie de solidariedade de oeste selvagem. A polícia não deu as caras, e ninguém mais disse uma única palavra sobre o assunto. Por uma espécie de gratidão, disquei o número de Neumann. A idéia de estar ligado a alguém por satélite, ou seja, através do cosmos, já havia me embriagado antes. O fato de sermos vizinhos, distantes um do outro menos de trezentos metros, apenas tornava a coisa ainda mais fantástica. Em vez de Neumann, uma mulher disse: “Esse é o telefone de”, seguiuse uma pausa, e então ouvi, a uma distância galáctica, as palavras, “Harald Neumann”. Senti meus pelos se arrepiarem até a nuca. É natural que inclusive amigos íntimos muitas vezes pareçam perturbados ou abatidos ao falarem em suas secretárias eletrônicas. A voz de Neumann, porém, não apenas soou deprimida, mas sim como se ele sentisse vergonha até mesmo de ter um nome. Pouco mais tarde houve um breve temporal. Eu vi Neumann saindo da floresta com um cesto cheio de cogumelos. Já de longe, ele gritou: “Como nabos!” Ele por certo queria dizer que com um tempo assim se podia apanhar cogumelos como se estivéssemos colhendo nabos, ou que ele eram tão grandes como nabos. E me convidou para comer com ele. Em comparação com nossa biboca, o bangalô dele era um palacete, com televisão e som estéreo, poltronas de couro e dois tamboretes de bar. Neumann serviu vinho tinto e pão branco para acompanhar os cogumelos. Depois jogamos xadrez e fumamos um maço inteiro de Club. Entre o Neumann à minha frente e aquele que disse seu nome na secretária eletrônica parecia não existir o menor nexo. Ainda assim receei perguntar por sua família ou sua profissão. Por volta do anoitecer as nuvens se coloriram de rosa sobre o lago. Eu coloquei a grande lanterna de mão a meu alcance e o número de Neumann. Depois das dez os raios passaram a cintilar tão regularmente como a luz de alerta de uma ambulância. Uma chuvarada se seguiu. Mais tardar nessa hora tive certeza de que naquela noite não viria ninguém. Na manhã seguinte juntei as coisas, limpei tudo mais uma vez e me despedi dos vizinhos. Neumann eu não cheguei a encontrar. Provavelmente tivesse ido mais uma vez à floresta. Não acredito que as pessoas teriam a impressão de que eu seja um covarde. Elas viam muito bem que Constanze não estava mais ali. Difícil, contudo, foi o telefonema a nossos locatários. Eu deveria dar um jeito na cerca, no galpão ainda havia estacas novas, eles disseram. Mas só com a geladeira eu já gastara uma manhã inteira, e isso bastava. 5
  • 7. No fim de setembro o celular tocou no meio da noite. Num primeiro momento pensei que fosse o pipilar anunciando que a bateria estava acabando. Mas o “tililitit” ficava mais alto a cada vez que soava. No escuro, apalpei procurando em meu criado-mudo. Com a ponta do indicador perpassei as teclas; eu precisava da intermediária, na segunda fila, de cima para baixo. O toque estava insuportavelmente alto. “Os caras estão aqui de novo. E põe barulheira nisso!” E, depois de uma breve pausa: “Alô! Aqui é Neumann! Estão fazendo a maior barulheira de novo! Está ouvindo?” “Mas eu nem estou mais aí!”, disse eu, por fim. “Estão fazendo a maior barulheira!” Do lado de Constanze, a luz acendeu. Ela estava sentada à borda da cama e sacudia a cabeça. Com a mão livre, eu tampei o fone. “Um vizinho de Prieros.” Senti como o suor brotava em mim. Eu jamais havia mencionado a troca de números, até porque jamais voltaríamos a Prieros. “Está sozinho aí?” “Ora, mas alguém tem de guardar posição!”, gritou Neumann. “Está sozinho?” “Estão quebrando minha cerca, os caras de pau!” “Já chamou a polícia?” Neumann deu uma gargalhada e teve de tossir. “Eles são mesmo muito bons...” Soou como se ele estivesse bebendo. Eu jamais havia lhe mandado o artigo de Constanze sobre Nova Iorque. “O que você está querendo?”, eu perguntei. “Ouça só a barulheira!” Eu apertei o fone no ouvido, mas em vão. “Agora eles estão na caixa de correio”, ele gritou e pareceu tomar mais um gole. “Ali eles vão ter de fazer um bocado de força. Nem entre dois esses paspalhos conseguem arrancá-la. Mas agora chega, basta...” “Fique onde está!”, eu gritei. 6
  • 8. Constanze estava parada à porta e fez um sinal para mostrar que eu estava variando. Já no corredor, ela falou algo que não entendi. “Alô?”, gritou Neumann. “Sim”, eu respondi. Ou será que ele estava falando com os caras na cerca? “Fique dentro de casa!”, eu gritei. “Não vá bancar o herói!” “Eles foram embora”, disse ele e riu. “Não vejo mais ninguém, se foram, estão se cagando de medo!” Ouvi com nitidez como Neumann bebeu e em seguida pôs a garrafa de lado. “Paspalhos”, arquejou ele. “Você não pode se meter sozinho...” “Mas e você, como está?”, ele me interrompeu, em tom quase sereno. “Fique dentro de casa”, eu disse. “Não saia sozinho daí, talvez no final de semana, mas não num dia útil!” “E quando você vai aparecer por aqui outra vez? Nós ainda temos uma partida em aberto. Ou prefere jogar xadrez à distância? Me dá seu endereço? Eu coloquei cogumelos pra secar, um saco cheio.” “Meu caro Neumann”, eu disse e não soube como continuar. “O tonel de lixo”, ele berrou de repente. “Meu tonel de lixo!” “Deixe o tonel de lado”, eu disse. “Ele não tem a menor importância!” Chamei “Alô?” e “Alô, Neumann?” um punhado de vezes. Depois só ouvi mais um tu-tu-tu e no display apareceu: ligação encerrada. Constanze voltou ao quarto, deitou em seu lado da cama, com o rosto voltado para a parede e puxou a coberta sobre seus ombros. Tentei esclarecer aquilo tudo a ela; que eu no princípio havia hesitado, mas por fim até ficara contente em poder pedir a ajuda de um vizinho em caso de necessidade. Constanze não se mexeu. Eu disse que estava preocupado com Neumann. “Quem sabe se ele não liga de novo”, ela respondeu. “Isso por certo vai se repetir a partir de agora. Mas é assim, tu não dás teu número a ninguém.” Acho que em tais momentos nós estamos de tal modo desiludidos um com o outro que nos odiamos. Fui até meu escritório para buscar o carregador da bateria. 7
  • 9. “E se ele passar teu número adiante?” Constanze se virou e se apoiou, levantando o corpo. “E por que ele faria isso?” “Imagina só o que pode acontecer!” “Constanze”, disse eu. “Isso é bobagem.” “Só quero que imagines o que pode acontecer!” Ela voltou a puxar para cima a alça de sua camisola, que havia escorregado de seu ombro esquerdo. Mas ela caiu de novo. “As pessoas que não poderiam ligar pra nós”, ela disse, “sempre esses vizinhos!” “Nosso número está no catálogo telefônico, um número como qualquer outro. Qualquer um pode ligar pra nós.” “Não é isso que estou querendo dizer. Se por acaso uma casa pega fogo ou é bombardeada e alguém corre pra fora com nada a não ser seu celular, porque o tem no bolso por acaso... Então vais poder falar com ele.” Eu enfiei o rabicho do carregador na tomada ao lado da cama. “Isso pode muito bem acontecer”, disse Constanze. E voltou a seu tom de governanta. “Alguém te liga do Kosovo ou da Repúplica Tcheca ou daquele lugar em que teve a tsunami. Ou um desses que estão morrendo congelados em cima do Monte Everest. Então vais poder falar com ele até o fim, até o fim derradeiro.” Ela continuou falando, apoiada aos cotovelos, com o ombro esquerdo nu, de olhos fixos na ponta do travesseiro, que apontava diagonalmente para cima. “Imagina com quem terás de te meter nesses casos! Ninguém precisa mais ficar sozinho.” Seria absurdo ligar para o serviço de informações, porque seria absurdo ligar para Neumann. Não sei o que teria sido mais desagradável, conseguir falar com ele ou ter de ouvir mais uma vez como ele dizia seu nome na secretária eletrônica. No display apareceu o sinal que indicava o carregamento: os contornos de uma pequena bateria, sobre a qual uma barra inclinada passeava em três diferentes fases. Foi a última coisa que vi antes de apagar a luz. No escuro, Constanze disse: “Eu acho que vou pedir o divórcio.” Eu ouvia sua respiração e seus movimentos e esperei pelo tililitit. 8
  • 10. A persiana da banca de jornais já havia matraqueado, fechando, quando nossas mãos se tocaram por acaso. Foi necessária mais uma eternidade até que ousássemos nos aproximar. Quando isso aconteceu, porém, caímos um sobre o outro como há tempo não havíamos feito, como se a insônia nos tivesse tornado loucos. Em algum momento o tililitit soou. Vinha de bem longe, como o sinal de uma nave espacial chamando, silencioso e vago; só aos poucos é que ele ficou mais próximo, mais alto, cada vez mais alto, para ao fim superar qualquer outra coisa, de tal modo que me pareceu que Constanze e eu nos movíamos sem fazer o menor ruído. Só aquele “tililitit” podia ser ouvido; até de repente parar e deixar tudo em paz e silenciar, assim como nós. 9
  • 11. GLOSSÁRIO CLUB – Conhecida marca de cigarros de filtro da Alemanha oriental, um pouco mais cara do que as demais vendidas no país. DA PASTA DE MEU BISAVÔ – Referência ao romance A pasta de meu bisavô, de Adalbert Stifter (VER), oobra de quatro versões que mostram bem o desenvolvimento desse grande autor, admirado por Nietzsche, Karl Kraus e Thomas Bernhard, entre outros. FIAT PUNTO – Carro compacto, equivalente ao Fiat Palio no Brasil em termos físicos, ao Fiat Uno em termos metafísicos, por assim dizer. FONTANE – Referência a Theodor Fontane (1819-1898), escritor do realismo alemão, de ascendência huguenote. STIFTER – Referência a Adalbert Stifter (1805-1868), escritor realista austríaco. TEMPO DE TRANSIÇÃO – Tempo estipulado para a devolução de propriedades da DDR a seus antigos proprietários “ocidentais”. TERRENO OCIDENTAL – Propriedades de ocidentais que foram “ocupadas” por cidadãos da DDR. Elas não podiam ser compradas, mas tinham, sim, um contrato de “arrendamento”. Depois da queda do muro, muitos antigos proprietários exigiram que lhes fosse devolvido o que um dia lhes pertenceu; e, como muitas vezes havia grandes benfeitorias, era estipulado um tempo de transição. Ver TEMPO DE TRANSIÇÃO. THOMAS MÜNTZER – Referência ao teólogo evangélico (1489-1525), líder revolucionário da Guerra dos Camponeses. 10