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Döhler na Revista Veja
Texto na integra:
Nacionalismo populista e escassez de dólares levam o governo
da Argentina a restringir as importações, principalmente as
brasileiras

O Mercosul foi criado para reduzir as barreiras alfandegárias e estimular o comércio entre

Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, com vistas a uma integração econômica total. Vinte e

um anos depois, não há evidências claras de que o maior parceiro brasileiro dentro do bloco,

a Argentina, esteja comprometido com esse fim. Inebriados por um antiquado sentimento

nacionalista, os vizinhos sistematicamente estabeleceram instrumentos para barrar as

importações e aumentar o próprio isolamento. A presidente Cristina Kirchner definiu assim a

lógica, em reunião com empresários argentinos em novembro: “Queremos gerar trabalho na

Argentina e não ter de importar um prego sequer”. Em fevereiro, o governo cristinista tomou

sua iniciativa mais radical, ao obrigar que todos os produtos estrangeiros só possam entrar

no país com autorização prévia. A exigência ignora não apenas os acordos do Mercosul, mas

também os da Organização Mundial do Comércio (OMC). As consequências para os

empresários do Brasil, que tem na Argentina o seu terceiro maior parceiro comercial, foram

dramáticas. Em abril, a redução nas exportações brasileiras foi de 23%. Televisões,

geladeiras, freezers, liquidificadores, ventiladores e lâmpadas não cruzam mais a fronteira.

"Os argentinos estão matando o Mercosul, se é que já não o fizeram”, diz o empresário

Aguinaldo Diniz Filho, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção

(Abit).


As regras impostas pela Argentina são armadilhas burocráticas. Elevam ao absurdo os

trâmites necessários para, na prática, congelar as importações. Empresários argentinos que
queiram revender produtos vindos de fora precisam se cadastrar na Afip, o equivalente à

Receita Federal. Uma a uma, mais de 3000 solicitações diárias são avaliadas por uma equipe

de quinze pessoas. Paradoxalmente, os pedidos de comércio exterior são encaminhados para

a Secretaria de Comércio Interior. O órgão é presidido por Guillermo Moreno. Conhecido por

atacar o jornal Clarín, por comandar a manipulação da inflação e por deixar uma pistola em

cima da mesa de seu gabinete, ele barra nove em cada dez solicitações. O empresário

argentino ainda é obrigado a assinar um documento comprometendo-se a exportar bens com

o mesmo valor que precisa importar. “É uma prática totalmente fora da lei, tanto que

nenhum funcionário do governo assina os papéis”, afirma o advogado argentino Alejandro

Perotti, especialista em direito aduaneiro, que foi consultor jurídico da Secretaria do Mercosul

entre 2003 e 2006. Nos últimos meses, donos de lojas de celulares compraram queijo,

batata congelada e vinho argentinos para conseguir crédito com o governo. Como o Brasil é

o principal parceiro da Argentina, a maior parte dos produtos prejudicados é de origem

brasileira. É uma tragédia para nós. Há meses não consigo embarcar uma carreta sequer”,
diz Noemir Capoani, diretor-presidente da Ditália, fabricante de móveis em Monte Belo do

Sul. no Rio Grande do Sul. Nas contas de Capoani. o volume que está parado vale 8 milhões

de dólares e caberia em 200 caminhões. Alguns pedidos demoram um ano para ser

respondidos.


Os entraves ameaçam ter repercussões ainda piores por aqui. “Podemos ter de tomar

medidas drásticas por causa da queda da demanda argentina principalmente entre junho e

agosto, quando o mercado brasileiro está mais fraco”, diz Eduardo Smaniotto, diretor da

Priority, fabricante de calçados gaúcha detentora da marca West Coast. Desde março, a

empresa não consegue licenças para exportar sapatos acabados para o país. A diretoria já

estuda dar férias coletivas aos funcionários e reduzir o ritmo das linhas de montagem para

evitar demissões. Uma alternativa para ganhar a liberação é exportar sapatos sem sola, que

só é colada do outro lado da fronteira. Como em tese isso dá empregos na Argentina, a

autorização é mais rápida. Estratégia semelhante foi adotada pela tecelagem Döhler,

de Joinville. Em vez de vender toalhas, a companhia exporta o pano tingido e

estampado, para ser confeccionado lá. "Se não fosse assim, demoraríamos três

meses para conseguir um aval”, diz Carlos Döhler, diretor comercial da empresa.


O governo argentino argumenta que as medidas são cruciais para reduzir seus problemas

econômicos, notadamente a escassez de dólares. Em razão de decisões arbitrárias e

contrárias à iniciativa privada, como o confisco da petrolífera YPF em abril, investidores

estrangeiros fugiram do país e levaram dólares consigo. Para tentar conter essa evasão de

capitais, o governo dificultou a compra da moeda americana, que no paralelo já custa 37% a

mais do que na cotação oficial. Frear as importações brasileiras também é uma forma de

esconder as fragilidades da indústria argentina, menos competitiva. "As fábricas de sapatos

deles são quase artesanais. Nós somos muito mais modernos”, diz Marcelo Paludetto,

gerente comercial da Democrata, de Franca, no interior de São Paulo. No começo de maio, o

Brasil dificultou a entrada de maçã, batata congelada, farinha de trigo e vinhos argentinos.

Foi uma tentativa de pressionar o governo vizinho a dar meia-volta. "O Brasil tem sido

tolerante com a Argentina há muito tempo. Estamos pagando o preço por isso”, diz

Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica

(Abinee). A população argentina também sofre. O fechamento das fronteiras com o Brasil e

com o resto do mundo já faz com que faltem remédios para combater o câncer e a aids,

vacinas infantis, salmão, ferros de passar, computadores e macarrão. Na sexta-feira 25, a

União Europeia entrou na OMC questionando as normas argentinas. Até agora o

nacionalismo cristinista não deu mostras de que vai ceder.

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  • 6. diz Noemir Capoani, diretor-presidente da Ditália, fabricante de móveis em Monte Belo do Sul. no Rio Grande do Sul. Nas contas de Capoani. o volume que está parado vale 8 milhões de dólares e caberia em 200 caminhões. Alguns pedidos demoram um ano para ser respondidos. Os entraves ameaçam ter repercussões ainda piores por aqui. “Podemos ter de tomar medidas drásticas por causa da queda da demanda argentina principalmente entre junho e agosto, quando o mercado brasileiro está mais fraco”, diz Eduardo Smaniotto, diretor da Priority, fabricante de calçados gaúcha detentora da marca West Coast. Desde março, a empresa não consegue licenças para exportar sapatos acabados para o país. A diretoria já estuda dar férias coletivas aos funcionários e reduzir o ritmo das linhas de montagem para evitar demissões. Uma alternativa para ganhar a liberação é exportar sapatos sem sola, que só é colada do outro lado da fronteira. Como em tese isso dá empregos na Argentina, a autorização é mais rápida. Estratégia semelhante foi adotada pela tecelagem Döhler, de Joinville. Em vez de vender toalhas, a companhia exporta o pano tingido e estampado, para ser confeccionado lá. "Se não fosse assim, demoraríamos três meses para conseguir um aval”, diz Carlos Döhler, diretor comercial da empresa. O governo argentino argumenta que as medidas são cruciais para reduzir seus problemas econômicos, notadamente a escassez de dólares. Em razão de decisões arbitrárias e contrárias à iniciativa privada, como o confisco da petrolífera YPF em abril, investidores estrangeiros fugiram do país e levaram dólares consigo. Para tentar conter essa evasão de capitais, o governo dificultou a compra da moeda americana, que no paralelo já custa 37% a mais do que na cotação oficial. Frear as importações brasileiras também é uma forma de esconder as fragilidades da indústria argentina, menos competitiva. "As fábricas de sapatos deles são quase artesanais. Nós somos muito mais modernos”, diz Marcelo Paludetto, gerente comercial da Democrata, de Franca, no interior de São Paulo. No começo de maio, o Brasil dificultou a entrada de maçã, batata congelada, farinha de trigo e vinhos argentinos. Foi uma tentativa de pressionar o governo vizinho a dar meia-volta. "O Brasil tem sido tolerante com a Argentina há muito tempo. Estamos pagando o preço por isso”, diz Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). A população argentina também sofre. O fechamento das fronteiras com o Brasil e com o resto do mundo já faz com que faltem remédios para combater o câncer e a aids, vacinas infantis, salmão, ferros de passar, computadores e macarrão. Na sexta-feira 25, a União Europeia entrou na OMC questionando as normas argentinas. Até agora o nacionalismo cristinista não deu mostras de que vai ceder.