2. Pelos olhos de um cavalo consegue-se alcançar a
transparência. Um cavalo olha como quem
simplesmente é, sem os simulacros e encenações da
vida ímpia.
3. Dos olhos dos cavalos caem misericórdias e
alentos. Sem que se saiba, estão salvando o
mundo.
4. Quando estão esfalfados deitam-se e sondam as
entrelinhas da paisagem como quem não tem
avareza, só o peso das horas sobre o lombo.
5.
6. Com as patas, imprimem no chão de terra batida,
seus dias breves, um a um desenhados.
7. Em dias de tempo bom e bastante sol, as borboletas costumam
brincar nas marcas das patas dos cavalos. Cheiram as marcas e
vão pros voos contentes por haverem capturado do chão certa
força que só ali encontram.
8.
9. Os cavalos acostumaram-se tanto consigo mesmos que
fitam os horizontes sem despeito. Os arremessos dos
cavalos alados não lhes causam gastura.
13. Os canalhas e os cínicos da terra têm tudo a
aprender com a inteireza de um cavalo.
14. Com a noite imensa a
alma dos cavalos se
funde a tudo que
mergulha no sem fim
dos relentos. Diz que
é aí que capturam a
luz do vaga-lume
cata-sonho, o que só
é concedido aos
cavalos e, de século
em século, a um ou
outro ser humano.
15. É sabido que o cavalo de Tróia não se interessava por açúcar
mascavo; porém, os outros cavalos em geral se esganam diante de
um recipiente com a morena porção - nessa hora o mundo estaria
completo não fossem os cabrestos e as cercas de arame farpado.
16. Ao morrerem de
velhice perdem os
dentes e são
atacados pela febre
puxadeira, que os
leva a procurar uma
poça d'água que lhes
alivie a sede final e
lhes receba a alma;
nem assim os cavalos
perdem a elegância e
o aprumo.
17.
18. Da primeira à última hora do dia são puro charme e crina.
Pastam a campina como as crianças brincam, sem ciência do
quanto o presente vai ficando antigo nos embustes das
estradas.
19.
20. PS. Dedico estas linhas ao cavalo Pangaré, morto em
10.5.1969, do qual guardo um retrato em preto e branco, já
bem desbotado.
-Eloí Bocheco-