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203670 – Multilinguismo no Ciberespaço
Aula de 13 de abril de 2015
1. Elaboração de recursos linguísticos
“Uma inscrição de hieróglifos
apresenta o aspecto de um
verdadeiro caos; nada está no
seu lugar; falta lógica em tudo;
os objetos os mais opostos na
natureza se encontram em
contato imediato e produzem
alianças monstruosas: no
entanto, regras invariáveis,
combinações bem pensadas,
uma marcha calculada e
sistemática incontestavelmente
dirigiram a mão que traçou esse
quadro, aparentemente tão
desordenado; esses caracteres
tão diversificados nas suas
formas, frequentemente tão
contrários na sua expressão
material, são nada menos que os
sinais que servem para anotar
um sentido regular de idéias,
exprimem um sentido fixo,
seguido, e constituem assim um
verdadeiro sistema de escrita”
2
(J. F. Champollion, Precisões do
sistema hieróglifo dos antigos
Egípcios, 1824).
5. 1.1.5. Elaboração de uma ortografia
A noção de ortografia está intimamente ligada ao conceito
de sistema de escrita (“writing systems”, “écriture”).
De acordo com o dicionário francês “Le Petit Robert”, um
sistema de escrita é uma “representação da palavra e do
pensamento por meio de sinais”, definição que se pode considerar
particularmente geral.
Uma definição um pouco mais abrangente nos é dada por
“representação visual da linguagem por um sistema de sinais
gráficos”, conforme figura no livro “L´Aventure des écritures:
naissances”, publicado pela Biblioteca Nacional da França, em
1997. Essa definição tem o mérito de não limitar os sistemas de
escrita, como ocorre muito frequentemente, aos sistemas a base
de letras ou de figuras (“pictogramas”). E introduz uma noção que
será encontrada frequentemente, a noção de “sinal gráfico”, e da
sua materialização em suportes os mais variados: pedra, terra seca
ou cozida, papiro, papel, microfilme e mais recentemente suportes
óticos ou magnéticos.
É a invenção dos sistemas de escrita que marca a passagem
da pré-história à história. Desnecessário sublinhar a importância
cultural dessa invenção fundamental.
3
A título de cultura geral, vale observar que os primeiros
sistemas de escrita nasceram quase que simultâneamente na
Mesopotâmia (em torno de 3400 A. C.) e no Egito (em torno de
3200 A. C.). Os habitantes da Mesopotâmia adotaram uma
escritura cuneiforme e os egípcios estabeleceram um complexo
sistema de hieróglifos (os mais usuais comportando mais de 700
símbolos), que será decifrado somente no início do século XIX
por Jean-François Champollion. Há, na literatura, textos muito
interessantes sobre a história e os distintos sistemas de escritura.
De uma forma esquemática, podemos considerar que há 3 tipos de
sistemas de escritura: os sistemas ideográficos, os sistemas
silábicos e os sistemas alfabéticos. Na prática, são encontrados
muitos exemplos de combinação desses 3 sistemas.
Nos sistemas ideográficos, “cada sinal representa um objeto
(pictograma) ou uma idéia (ideograma)”. Em teoria (e pela sua
própria função), um pictograma ou um ideograma pode ser
compreendido por pessoas que não falem a mesma língua e que
“traduzirão” cada sinal na sua própria língua. No entanto, essa
afirmação supõe que haja pelo menos uma parte da cultura em
comum.
É por isso que os hieróglifos puderam ser utilizados por
outras civilizações além da egípcia e os chineses “impuseram”
uma parte do seu sistema de escrita a outros povos por eles
colonizados. Para tomar em conta a necessidade de transcrever
cada vez mais palavras, esses sistemas de escrita evoluiram em
4
um sentido fonético: utilizam-se ideogramas de palavras
existentes para exprimir sons (e não mais a significação) das
novas palavras.
Nos sistemas silábicos, “cada sinal representa um som”. Um
sistema de escrita silábica compreende em média 80 a 120 sinais.
Os sistemas puramente silábicos são raros: podemos citar nessa
categoria o inuit ou cherokee, mas também os kana, um dos
sistemas de escrita do japonês.
Um alfabeto é uma coleção de sinais gráficos que
representam sons vocais em uma língua ou grupo de línguas. Dito
de outra forma, “cada sinal representa um som decomposto” e
vários sinais (letras ou caracteres) são necessários para
representar um som. Os principais alfabetos compreendem uma
trentena de sinais, o que representa um desempenho incrível
quando se imagina a diversidade de línguas e, além disso, das
idéias e emoções que podem ser expressas a partir deles.
Mesmo que não tenhamos muita consciência, os sistemas de
escrita alfabéticos necessitam também de uma representação
visual quando se quer distinguir, por exemplo, os homônimos
(palavras de pronúncia idêntica, mas de sentido diferente); desse
modo, em francês “vers, vert, verre, vair” não se distinguem pela
grafia – que não é portanto simplesmente a ‘representação de um
som composto”, mas também um meio de distinção de
significado.
5
Embora certo número de línguas possa partilhar o mesmo
alfabeto, elas podem utilizar certos sinais de forma diferente, por
exemplo, através de pronúncia diferente (“u” em francês ou em
inglês), sem falar das inúmeras variantes permitidas pelo
acréscimo de sinais específicos (diacríticos) que modificam a
pronúncia de uma letra ou grupo de letras. Não devemos também
esquecer - por ser evidente demais – que um bom número de
palavras não é escrito como elas são pronunciadas.
Para muitos, os sistemas de escrita alfabéticos são
considerados o ápice da evolução da escrita: em se “liberando” da
escrita por pictogramas ou ideogramas, as civilizações indo-
européias aparecem como civilizações do conceito, em oposição
às civilizações simbólicas ou emblemáticas do Extremo Oriente.
Jean-Jacques Rousseau escreveu que “estas três maneiras de
escrever respondem exatamente aos três diversos estados sob os
quais se podem considerar os homens reunidos em uma nação. A
pintura de objetos conviria aos povos selvagens; os sinais de
palavras e de preposições aos povos bárbaros e o alfabeto aos
povos policiados”. Pode-se discordar de Rousseau, é claro.
1. 1.1.5.1. Unidades fundamentais de um sistema de escrita
Os grafemas são a unidade fundamental de um
dado sistema de escrita. Segundo o tipo de sistema, o grafema se
realiza visualmente ou foneticamente de diversas maneiras que
podem ser resumidas como segue:
6
Alfabeticos: um grafema = uma letra.
Silábicos: um grafema = uma sílaba
Ideogramas: um grafema = um caracter = uma idéia, uma
palavra, um composto ideo-fonético, etc.
5. 1.1.6. Características dos sistemas de escrita
1. 1.1.6.1. Sentido
Mesmo que nos pareça incongruente, habituados que
estamos a escrever da esquerda para a direita e horizontalmente,
todos os sistemas de escritura não operam dessa maneira. O árabe,
por exemplo, se escreve da direita para a esquerda e o chinês pode
ser escrito horizontal ou verticalmente. No entanto, a linha reta,
horizontal ou vertical, é a norma, o que simplifica muito o
trabalho dos programadores, tanto para a saída de dados como
para a sua exibição em tela.
1. 1.1.6.2. Presença de diacríticos
De acordo com o “Petit Robert”, define-se
diacrítico como “um sinal gráfico (ponto, acento, cedilha) atuando
sobre uma letra ou sinal fonético, e destinado a modificar seu
valor ou a impedir a confusão entre homógrafos”. Em francês, os
acentos das palavras “à”, “dû”, “où” são os sinais diacríticos nos
quais se pensa, mas há muitos outros diacríticos de outros
sistemas de escrita. Se, no alfabeto latino, os sinais diacriticos são
frequentemente colocados sobre a letra que eles qualificam, pode-
7
se também, noutros sistemas de escrita, encontrá-los embaixo ou
ao lado da letra, havendo casos em que pode ter diversos
diacríticos ao mesmo tempo embaixo e acima do caracter.
Nos jogos de caracteres, os diacríticos serão definidos “com
ou sem espaço”, dependendo do seu uso em combinação com
outro caractere (geralmente digitado depois) ou não. Noutros
termos, deve-se representar separadamente os diacríticos e os
caracteres aos quais eles se aplicam ou deve-se representar o
conjunto caracter + diacrítico? Não há uma resposta única, e
certas normas interditam frequentemente a utilização combinada
de caracteres “com espaço” (ou seja, a tendência é pela
representação do conjunto caracter + diacrítico). De aparência
menor, este problema não deve ser subestimado. Unicode por
exemplo, jogo de caracteres universal, não quis disciplinar os
códigos separados dos diacríticos de um lado, de caracteres de
outro e aqueles que preferem codificar as letras com o(s) seu(s)
diacrítico(s) que podem ser acrescentados, e oferecer várias
soluções e vários níveis de utilização segundo escolhas feitas em
uma implementação. Dito isto, a razão histórica para esse “não
engajamento” (assegurar a compatibilidade entre Unicode e certos
jogos de caracteres que o precederam) não tem mais sentido hoje.
1. 1.1.6.3. Ligaduras e outras características
Embora possamos deixar aos puristas de
tipografia o cuidado de dissertar sobre a ausência de pequenas
maiúsculas acentuadas ou de meio-espaço na maioria dos jogos
8
de caracteres, o problema de ligaduras não deve ser subestimado.
A ligadura consiste por ocasião da impressão de certos caracteres,
em fazer uma ligação entre tais caracteres. Em francês, por
exemplo, pode-se usar a ligadura em “fi”, em “ffi” ou em “ct”. No
entanto, as ligaduras não podem ser consideradas como caracteres
integrais. É preciso simplesmente que o software que manipula
caracteres possa associar duas letras sucessivas de modo a que o
glyphe dessa associação seja único (e não a simples combinação
de dois glyphes correspondendo às letras indicadas).
Enfim, certos sistemas de escrita compreendem letras maiúsculas
e minúsculas (como no alfabeto latino) enquanto que outros –
ditos monocamerais – ignoram essa noção, como de certa
maneira, o alfabeto árabe.
1. 1.1.6.4. Características de transcrição das línguas
A transcrição de linguas é um ponto
particularmente espinhoso, porque torna a utilização dos jogos de
caracteres ainda mais complexa. Em certas línguas, não se
imprime vogais, ou quando se faz isso serve para dar um sentido
específico ao texto transcrito (um valor poético no caso do
hebreu, por exemplo). Em outros sistemas, o sentido de um
ideograma varia de acordo com a língua (como ocorre com o tripé
chinês-japonês-coreano), o que causa problemas os mais diversos.
De fato, esquecemos frequentemente que a transcrição de
uma língua não é uma simples operação fonética, mas também
9
um processo intelectual (que explica, por exemplo. a existência de
homônimos). Depois do surgimento da etimologia, ciência que se
interessa às origens e à evolução das palavras, numerosas
tentativas foram feitas para fabricar alfabetos fonéticos
internacionais, que se apoiariam unicamente sobre os sons
fisicamente emitidos para transcrever os sistemas de escrita. Mas
essas transcrições puramente fonéticas são reservadas aos
especialistas, mesmo se algumas são codificadas e representadas
por jogos de caracteres específicos! Voltaremos a esse assunto em
outro momento.
Os estudos fonológicos e tonológicos conduzem a um
sistema de transcrição da língua que representa correctamente os
sons úteis, e isto da maneira mais econômica possível. Permite
escrever até 90 % o que se pronuncia, sem refinamento fonético,
o suficiente para ter a tentação de se privilegiar apenas a notação
fonológica, passando-se assim por cima de estudos ortográficos.
No entanto, estes últimos tornam-se verdadeiramente
indispensáveis para dotar uma lígua de um sistema convencional,
capaz de ter em conta o conjunto das necessidades de expressão
escrita dos falantes. Com efeito, contrariamente à notação
fonológica (que reflete apenas os sons úteis da língua) uma
ortografia bem concebida deverá também incluir as notações das
relações gramaticais e das idéias. Consideremos, para o francês,
os seguintes exemplos:
a) /ɛǀ ʃăt/
b) elle chante (ela canta)
10
c) elles chantent (elas cantam)
A frase (a) apresenta a notação fonológica que corresponde
tanto à frase (b) como à frase (c). Se o francês se escrevesse
unicamente com uma notação fonológica, não haveria nenhuma
maneira de distinguir aqui o singular do plural, tal como o permite
a convenção ortográfica.
Consideremos outro exemplo em sango, uma língua que
distingue um tom alto, um tom médio e um tom baixo. Numa
notação fonológica, estes tons são respectivamente notados com
um acento agudo [á], um mácron [ā] e um acento grave [à], mas
estes acentos não se encontram nos equipamentos correntes na
África Central. Uma ortografia destina-se, no entanto, ao uso de
um vasto público, e a língua deve poder ser escrita tanto à mão
como à máquina, ou no computador. É por esta razão que é
necessário elaborar uma convenção ortográfica que comporte um
conjunto de regras que permitam escrever a língua de maneira
mais prátiica.
O quadro seguinte mostra as diferentes etapas necessárias à
elaboração de uma ortografia otimizada e estável para uma língua,
neste caso para o sango:
É de notar que a transcrição fonética reflete a pronúncia das
palavras tal como elas são registradas no gravador. Ela é,
11
portanto, própria à investigação linguística, mas demasiado
minuciosa para servir de base a uma ortografia corrente, destinada
ao grande público. A notação fonológica da segunda coluna só
retém os sons úteis, os fonemas e, desta forma, torna-se mais
propícia para servir de base a uma ortografia corrente. Mas, a
marcação de todos os tons constitui um obstáculo para uma
escrita prática e uma leitura rápida. Além disso, os símbolos
diacríticos utilizados para diferenciar os tons (acento agudo,
mácron e acento grave) não estão disponíveis em todas as
máquinas e só podem ser correctamente escritos no computador,
fato que não está ao alcance de todos os utilizadores de uma
língua menos favorecida. A convenção ortográfica da terceira
coluna permite economizar 47% da freqüência dos tons e escrevê-
los com o trema e o acento circunflexo, dois símbolos que
figuram na tecla livre na maioria dos teclados ocidentais das
máquinas de escrever e dos computadores utilizados na África
Central. Apesar disto, com esta convenção subsistem 53 % da
frequência dos tons para transcrever com acentos. Para reduzir
ainda mais a taxa de frequência, efetuamos uma reforma
ortográfica cujos resultados se encontram na quarta coluna.
12
O quadro seguinte mostra as diferentes etapas necessárias à
elaboração de uma ortografia otimizada e estável para uma língua,
neste caso para o sango:
Esta nova convenção permite economizar 53% da
frequência dos tons num texto. Nessa fase, podemos dizer que o
sango (ou sahngo) está finalmente dotado de uma ortografia
otimizada e estável.

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  • 1. 1 203670 – Multilinguismo no Ciberespaço Aula de 13 de abril de 2015 1. Elaboração de recursos linguísticos “Uma inscrição de hieróglifos apresenta o aspecto de um verdadeiro caos; nada está no seu lugar; falta lógica em tudo; os objetos os mais opostos na natureza se encontram em contato imediato e produzem alianças monstruosas: no entanto, regras invariáveis, combinações bem pensadas, uma marcha calculada e sistemática incontestavelmente dirigiram a mão que traçou esse quadro, aparentemente tão desordenado; esses caracteres tão diversificados nas suas formas, frequentemente tão contrários na sua expressão material, são nada menos que os sinais que servem para anotar um sentido regular de idéias, exprimem um sentido fixo, seguido, e constituem assim um verdadeiro sistema de escrita”
  • 2. 2 (J. F. Champollion, Precisões do sistema hieróglifo dos antigos Egípcios, 1824). 5. 1.1.5. Elaboração de uma ortografia A noção de ortografia está intimamente ligada ao conceito de sistema de escrita (“writing systems”, “écriture”). De acordo com o dicionário francês “Le Petit Robert”, um sistema de escrita é uma “representação da palavra e do pensamento por meio de sinais”, definição que se pode considerar particularmente geral. Uma definição um pouco mais abrangente nos é dada por “representação visual da linguagem por um sistema de sinais gráficos”, conforme figura no livro “L´Aventure des écritures: naissances”, publicado pela Biblioteca Nacional da França, em 1997. Essa definição tem o mérito de não limitar os sistemas de escrita, como ocorre muito frequentemente, aos sistemas a base de letras ou de figuras (“pictogramas”). E introduz uma noção que será encontrada frequentemente, a noção de “sinal gráfico”, e da sua materialização em suportes os mais variados: pedra, terra seca ou cozida, papiro, papel, microfilme e mais recentemente suportes óticos ou magnéticos. É a invenção dos sistemas de escrita que marca a passagem da pré-história à história. Desnecessário sublinhar a importância cultural dessa invenção fundamental.
  • 3. 3 A título de cultura geral, vale observar que os primeiros sistemas de escrita nasceram quase que simultâneamente na Mesopotâmia (em torno de 3400 A. C.) e no Egito (em torno de 3200 A. C.). Os habitantes da Mesopotâmia adotaram uma escritura cuneiforme e os egípcios estabeleceram um complexo sistema de hieróglifos (os mais usuais comportando mais de 700 símbolos), que será decifrado somente no início do século XIX por Jean-François Champollion. Há, na literatura, textos muito interessantes sobre a história e os distintos sistemas de escritura. De uma forma esquemática, podemos considerar que há 3 tipos de sistemas de escritura: os sistemas ideográficos, os sistemas silábicos e os sistemas alfabéticos. Na prática, são encontrados muitos exemplos de combinação desses 3 sistemas. Nos sistemas ideográficos, “cada sinal representa um objeto (pictograma) ou uma idéia (ideograma)”. Em teoria (e pela sua própria função), um pictograma ou um ideograma pode ser compreendido por pessoas que não falem a mesma língua e que “traduzirão” cada sinal na sua própria língua. No entanto, essa afirmação supõe que haja pelo menos uma parte da cultura em comum. É por isso que os hieróglifos puderam ser utilizados por outras civilizações além da egípcia e os chineses “impuseram” uma parte do seu sistema de escrita a outros povos por eles colonizados. Para tomar em conta a necessidade de transcrever cada vez mais palavras, esses sistemas de escrita evoluiram em
  • 4. 4 um sentido fonético: utilizam-se ideogramas de palavras existentes para exprimir sons (e não mais a significação) das novas palavras. Nos sistemas silábicos, “cada sinal representa um som”. Um sistema de escrita silábica compreende em média 80 a 120 sinais. Os sistemas puramente silábicos são raros: podemos citar nessa categoria o inuit ou cherokee, mas também os kana, um dos sistemas de escrita do japonês. Um alfabeto é uma coleção de sinais gráficos que representam sons vocais em uma língua ou grupo de línguas. Dito de outra forma, “cada sinal representa um som decomposto” e vários sinais (letras ou caracteres) são necessários para representar um som. Os principais alfabetos compreendem uma trentena de sinais, o que representa um desempenho incrível quando se imagina a diversidade de línguas e, além disso, das idéias e emoções que podem ser expressas a partir deles. Mesmo que não tenhamos muita consciência, os sistemas de escrita alfabéticos necessitam também de uma representação visual quando se quer distinguir, por exemplo, os homônimos (palavras de pronúncia idêntica, mas de sentido diferente); desse modo, em francês “vers, vert, verre, vair” não se distinguem pela grafia – que não é portanto simplesmente a ‘representação de um som composto”, mas também um meio de distinção de significado.
  • 5. 5 Embora certo número de línguas possa partilhar o mesmo alfabeto, elas podem utilizar certos sinais de forma diferente, por exemplo, através de pronúncia diferente (“u” em francês ou em inglês), sem falar das inúmeras variantes permitidas pelo acréscimo de sinais específicos (diacríticos) que modificam a pronúncia de uma letra ou grupo de letras. Não devemos também esquecer - por ser evidente demais – que um bom número de palavras não é escrito como elas são pronunciadas. Para muitos, os sistemas de escrita alfabéticos são considerados o ápice da evolução da escrita: em se “liberando” da escrita por pictogramas ou ideogramas, as civilizações indo- européias aparecem como civilizações do conceito, em oposição às civilizações simbólicas ou emblemáticas do Extremo Oriente. Jean-Jacques Rousseau escreveu que “estas três maneiras de escrever respondem exatamente aos três diversos estados sob os quais se podem considerar os homens reunidos em uma nação. A pintura de objetos conviria aos povos selvagens; os sinais de palavras e de preposições aos povos bárbaros e o alfabeto aos povos policiados”. Pode-se discordar de Rousseau, é claro. 1. 1.1.5.1. Unidades fundamentais de um sistema de escrita Os grafemas são a unidade fundamental de um dado sistema de escrita. Segundo o tipo de sistema, o grafema se realiza visualmente ou foneticamente de diversas maneiras que podem ser resumidas como segue:
  • 6. 6 Alfabeticos: um grafema = uma letra. Silábicos: um grafema = uma sílaba Ideogramas: um grafema = um caracter = uma idéia, uma palavra, um composto ideo-fonético, etc. 5. 1.1.6. Características dos sistemas de escrita 1. 1.1.6.1. Sentido Mesmo que nos pareça incongruente, habituados que estamos a escrever da esquerda para a direita e horizontalmente, todos os sistemas de escritura não operam dessa maneira. O árabe, por exemplo, se escreve da direita para a esquerda e o chinês pode ser escrito horizontal ou verticalmente. No entanto, a linha reta, horizontal ou vertical, é a norma, o que simplifica muito o trabalho dos programadores, tanto para a saída de dados como para a sua exibição em tela. 1. 1.1.6.2. Presença de diacríticos De acordo com o “Petit Robert”, define-se diacrítico como “um sinal gráfico (ponto, acento, cedilha) atuando sobre uma letra ou sinal fonético, e destinado a modificar seu valor ou a impedir a confusão entre homógrafos”. Em francês, os acentos das palavras “à”, “dû”, “où” são os sinais diacríticos nos quais se pensa, mas há muitos outros diacríticos de outros sistemas de escrita. Se, no alfabeto latino, os sinais diacriticos são frequentemente colocados sobre a letra que eles qualificam, pode-
  • 7. 7 se também, noutros sistemas de escrita, encontrá-los embaixo ou ao lado da letra, havendo casos em que pode ter diversos diacríticos ao mesmo tempo embaixo e acima do caracter. Nos jogos de caracteres, os diacríticos serão definidos “com ou sem espaço”, dependendo do seu uso em combinação com outro caractere (geralmente digitado depois) ou não. Noutros termos, deve-se representar separadamente os diacríticos e os caracteres aos quais eles se aplicam ou deve-se representar o conjunto caracter + diacrítico? Não há uma resposta única, e certas normas interditam frequentemente a utilização combinada de caracteres “com espaço” (ou seja, a tendência é pela representação do conjunto caracter + diacrítico). De aparência menor, este problema não deve ser subestimado. Unicode por exemplo, jogo de caracteres universal, não quis disciplinar os códigos separados dos diacríticos de um lado, de caracteres de outro e aqueles que preferem codificar as letras com o(s) seu(s) diacrítico(s) que podem ser acrescentados, e oferecer várias soluções e vários níveis de utilização segundo escolhas feitas em uma implementação. Dito isto, a razão histórica para esse “não engajamento” (assegurar a compatibilidade entre Unicode e certos jogos de caracteres que o precederam) não tem mais sentido hoje. 1. 1.1.6.3. Ligaduras e outras características Embora possamos deixar aos puristas de tipografia o cuidado de dissertar sobre a ausência de pequenas maiúsculas acentuadas ou de meio-espaço na maioria dos jogos
  • 8. 8 de caracteres, o problema de ligaduras não deve ser subestimado. A ligadura consiste por ocasião da impressão de certos caracteres, em fazer uma ligação entre tais caracteres. Em francês, por exemplo, pode-se usar a ligadura em “fi”, em “ffi” ou em “ct”. No entanto, as ligaduras não podem ser consideradas como caracteres integrais. É preciso simplesmente que o software que manipula caracteres possa associar duas letras sucessivas de modo a que o glyphe dessa associação seja único (e não a simples combinação de dois glyphes correspondendo às letras indicadas). Enfim, certos sistemas de escrita compreendem letras maiúsculas e minúsculas (como no alfabeto latino) enquanto que outros – ditos monocamerais – ignoram essa noção, como de certa maneira, o alfabeto árabe. 1. 1.1.6.4. Características de transcrição das línguas A transcrição de linguas é um ponto particularmente espinhoso, porque torna a utilização dos jogos de caracteres ainda mais complexa. Em certas línguas, não se imprime vogais, ou quando se faz isso serve para dar um sentido específico ao texto transcrito (um valor poético no caso do hebreu, por exemplo). Em outros sistemas, o sentido de um ideograma varia de acordo com a língua (como ocorre com o tripé chinês-japonês-coreano), o que causa problemas os mais diversos. De fato, esquecemos frequentemente que a transcrição de uma língua não é uma simples operação fonética, mas também
  • 9. 9 um processo intelectual (que explica, por exemplo. a existência de homônimos). Depois do surgimento da etimologia, ciência que se interessa às origens e à evolução das palavras, numerosas tentativas foram feitas para fabricar alfabetos fonéticos internacionais, que se apoiariam unicamente sobre os sons fisicamente emitidos para transcrever os sistemas de escrita. Mas essas transcrições puramente fonéticas são reservadas aos especialistas, mesmo se algumas são codificadas e representadas por jogos de caracteres específicos! Voltaremos a esse assunto em outro momento. Os estudos fonológicos e tonológicos conduzem a um sistema de transcrição da língua que representa correctamente os sons úteis, e isto da maneira mais econômica possível. Permite escrever até 90 % o que se pronuncia, sem refinamento fonético, o suficiente para ter a tentação de se privilegiar apenas a notação fonológica, passando-se assim por cima de estudos ortográficos. No entanto, estes últimos tornam-se verdadeiramente indispensáveis para dotar uma lígua de um sistema convencional, capaz de ter em conta o conjunto das necessidades de expressão escrita dos falantes. Com efeito, contrariamente à notação fonológica (que reflete apenas os sons úteis da língua) uma ortografia bem concebida deverá também incluir as notações das relações gramaticais e das idéias. Consideremos, para o francês, os seguintes exemplos: a) /ɛǀ ʃăt/ b) elle chante (ela canta)
  • 10. 10 c) elles chantent (elas cantam) A frase (a) apresenta a notação fonológica que corresponde tanto à frase (b) como à frase (c). Se o francês se escrevesse unicamente com uma notação fonológica, não haveria nenhuma maneira de distinguir aqui o singular do plural, tal como o permite a convenção ortográfica. Consideremos outro exemplo em sango, uma língua que distingue um tom alto, um tom médio e um tom baixo. Numa notação fonológica, estes tons são respectivamente notados com um acento agudo [á], um mácron [ā] e um acento grave [à], mas estes acentos não se encontram nos equipamentos correntes na África Central. Uma ortografia destina-se, no entanto, ao uso de um vasto público, e a língua deve poder ser escrita tanto à mão como à máquina, ou no computador. É por esta razão que é necessário elaborar uma convenção ortográfica que comporte um conjunto de regras que permitam escrever a língua de maneira mais prátiica. O quadro seguinte mostra as diferentes etapas necessárias à elaboração de uma ortografia otimizada e estável para uma língua, neste caso para o sango: É de notar que a transcrição fonética reflete a pronúncia das palavras tal como elas são registradas no gravador. Ela é,
  • 11. 11 portanto, própria à investigação linguística, mas demasiado minuciosa para servir de base a uma ortografia corrente, destinada ao grande público. A notação fonológica da segunda coluna só retém os sons úteis, os fonemas e, desta forma, torna-se mais propícia para servir de base a uma ortografia corrente. Mas, a marcação de todos os tons constitui um obstáculo para uma escrita prática e uma leitura rápida. Além disso, os símbolos diacríticos utilizados para diferenciar os tons (acento agudo, mácron e acento grave) não estão disponíveis em todas as máquinas e só podem ser correctamente escritos no computador, fato que não está ao alcance de todos os utilizadores de uma língua menos favorecida. A convenção ortográfica da terceira coluna permite economizar 47% da freqüência dos tons e escrevê- los com o trema e o acento circunflexo, dois símbolos que figuram na tecla livre na maioria dos teclados ocidentais das máquinas de escrever e dos computadores utilizados na África Central. Apesar disto, com esta convenção subsistem 53 % da frequência dos tons para transcrever com acentos. Para reduzir ainda mais a taxa de frequência, efetuamos uma reforma ortográfica cujos resultados se encontram na quarta coluna.
  • 12. 12 O quadro seguinte mostra as diferentes etapas necessárias à elaboração de uma ortografia otimizada e estável para uma língua, neste caso para o sango: Esta nova convenção permite economizar 53% da frequência dos tons num texto. Nessa fase, podemos dizer que o sango (ou sahngo) está finalmente dotado de uma ortografia otimizada e estável.