O documento discute os desafios da "memória perfeita" na era digital, onde informações são armazenadas quase que irrevogavelmente na internet. Isso traz preocupações como a perda do controle sobre informações online e como elas podem ser usadas no futuro, afetando a vida das pessoas e até mesmo suas chances de emprego. O autor defende que esquecer faz parte do processo natural e importante de aprendizado, e que a capacidade de esquecer está sendo ameaçada pela permanência das informações na internet.
1. A Memória na Era Digital e o Fim do Esquecimento
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE
O fenômeno da memória perfeita é uma dessas surpresas que a tecnologia digital tem
propiciado à humanidade. Não obstante seus enormes benefícios, a capacidade de armazenar
quase que irrevogavelmente o passado não deixa de trazer sérias preocupações, além de
conseqüências nunca dantes imaginadas. Veja-se o problema com o qual se confrontam
milhões de pessoas em todo o mundo nos dias de hoje: como viver da melhor forma possível
num mundo onde a internet registra tudo e não se esquece de nada.
Segundo uma pesquisa recente da Microsoft, 75 por cento dos agentes de recrutamento de
pessoal e profissionais de recursos humanos nos EUA declaram que suas empresas lhes exigem
que façam pesquisa online sobre os candidatos, e muitos utilizam uma ampla variedade de
sítios no escrutínio dos aspirantes aos postos de trabalho, incluindo engenhos de busca, redes
sociais, portais de compartilhamento de fotos e vídeos, blogs e sítios pessoais, Twitter, e
portais de jogos online. Cerca de 70 por cento dos recrutadores dizem que já rejeitaram
candidatos devido a informações encontradas na internet, tais como fotos e conversações em
salas de chat e de discussão, além de participação em grupos controversos.
Um tanto emblemático é o caso de Andrew Feldmar, um psicoterapeuta canadense de 66 anos
de idade, residente em Vancouver. Em 2006, a caminho do aeroporto de Seattle para buscar
um amigo, Feldmar tentou atravessar a fronteira com os Estados Unidos tal qual havia feito
mais de uma centena de vezes. Dessa vez um guarda de fronteira fez uma busca por seu nome
no Google, e encontrou um artigo que Feldmar havia escrito em 2001 para uma revista
interdisciplinar, no qual mencionava que tinha tomado LSD nos anos 1960’s. Resultado: após
ser detido, interrogado e obrigado a assinar uma declaração de que havia usado drogas 40
anos atrás, foi impedido de entrar nos Estados Unidos.
Não menos constrangedor é o caso de Stacy Snyder, professora secundária americana de 25
anos de idade, atuando numa cidade da Pennsylvania. A simples disponibilização em sua
página na rede social MySpace de uma foto sua com um copo de bebida nas mãos e usando
um boné com a inscrição “Pirata Bêbada”, levou Stacy a ser advertida por seu diretor por “falta
de profissionalismo”, além de impedida de receber o diploma de graduação que estava prestes
a receber de sua Universidade, sob a alegação de que ela estava promovendo a bebida
alcoólica e dando um mau exemplo às crianças da escola em que ensinava. Reivindicando seus
direitos à liberdade de expressão, Stacy acionou judicialmente a Universidade, mas em 2008
uma corte federal rejeitou seu pedido dizendo que, em razão do fato de que Stacy era uma
pessoa pública cuja foto não dizia respeito a questões de interesse público, sua auto-
denominação “Pirata Bêbada” não estaria protegida pelo direito de livre expressão.
É fato que a escrita tornou possível ao ser humano a memorização através de gerações e à
revelia do tempo. E, curiosamente, o advento da memória digital e das telecomunicações em
escala global tem exercido uma pressão inusitada sobre nossa capacidade natural de esquecer,
pois o passado está sempre presente e acessível a um clique de mouse. Se, por um lado, é cada
2. vez mais fácil e mais barato coletar e armazenar informações sobre todos nós e nosso
comportamento, por outro lado, aos indivíduos cabe a perda galopante e assustadora do
controle sobre aquelas informações: uma vez que se disponibiliza algo na internet, perde-se
completamente o controle sobre onde e quando tais informações vão reaparecer, quem terá
acesso a elas, e em que contexto serão utilizadas. E para piorar ainda mais, nem sempre o que
está na internet foi deliberadamente disponibilizado pelo sujeito associado àquela informação.
Em seu livro recentemente publicado pela Princeton University Press, “Delete: The Virtue of
Forgetting in the Digital Age” (Setembro 2009), Viktor Mayer-Schönberger, diretor do
“Information + Innovation Policy Research Centre” da National University of Singapore, explora
como a incapacidade de esquecer o passado já está mudando a sociedade, podendo vir a
modificar irrevogavelmente uma das características humanas de maior poder no crescimento
pessoal e social: o poder do esquecer. Mayer-Schönberger faz um histórico dos esforços da
humanidade para preservar informações, e a correspondente importância do fazer com que
algumas dessas informações sejam esquecidas, alertando para a necessidade de
contrabalançar essa tendência para o desequilíbrio entre o lembrar e o esquecer antes que
conseqüências desagradáveis se materializem. O esquecer, conta ele, tem tido fundamental
importância para a humanidade, desde a capacidade de tomarmos decisões não
sobrecarregadas por lembranças do passado, até a possibilidade de segundas chances.
Entre as repercussões de tal desequilíbrio está o fato de que os registros digitais abrangentes,
duráveis, e acessíveis de nosso passado podem impactar diretamente a forma como nos
conduzimos e tomamos decisões no presente. Sabendo que o que está na internet não se
pode apagar, a tendência é de um comportamento guiado pela permanente autocensura: o
comportamento hoje será guiado pelos possíveis futuros usos e interpretações do que ficará
registrado. E a mera existência desses rastros digitais, por assim dizer, pode fazer da internet
um verdadeiro “pan-óptico” de vigilância digital levando a efeitos inibidores do
comportamento humano. O pan-óptico é essencialmente uma idéia antiga, inventada pelo
sociólogo britânico Jeremy Bentham em 1785: uma prisão na qual os prisioneiros não sabem
quando os guardas os estão observando, por isso têm que assumir que estão sendo
observados o tempo todo. Igualmente, dado que não sabemos quem está nos observando na
internet, temos que nos comportar o tempo todo com base no menor denominador comum.
Como diz Mayer-Schönberger, a natureza sabiamente nos impõe limites à capacidade de
memorização, de modo que o esquecimento serve no mínimo ao propósito de limpeza, de
reciclagem de nossos pensamentos e do nosso raciocínio. A bem da verdade, insiste o autor,
desde o início dos tempos que o esquecer tem sido a norma, enquanto que o lembrar faz parte
da exceção. Com a tecnologia digital e as redes globais esses papéis parecem ter se invertido:
com a ajuda da tecnologia de armazenamento de informações, o esquecer tem se tornado
cada vez mais a exceção enquanto que o lembrar tem sido a norma. Para melhor ilustrar o
valor do esquecer, Mayer-Schönberger faz referência (e reverência) a um conto do escritor
argentino Jorge Luiz Borges intitulado “Funes El Memorioso” (1944), no qual um jovem
detentor de uma memória pródiga, mas que perdeu sua capacidade de esquecer após um
acidente, se torna incapaz de converter as informações em conhecimento, e portanto incapaz
de crescer em sabedoria. “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado
mundo de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos”, escreveu Borges.
3. O fato é que a tecnologia que está facilitando o fim do esquecimento, desde a digitalização,
passando pela queda no custo de memória e de recuperação da informação, pelo acesso
global, até o contínuo aumento do poder do software, representa o perigo da memória digital
perpétua, seja ela constituída de informação “expirada”, seja informação desatualizada e
removida do contexto, ou até mesmo fotos comprometedoras que a Web não nos deixa
esquecer. Com toda a sua autoridade e experiência de jurista, Mayer-Schönberger se esforça
para demonstrar que os direitos à privacidade da informação não são suficientes para resolver
esse problema, e aí propõe uma solução simples e um tanto quanto inusitada: associar uma
data de expiração a toda informação digital.
Como diz Jeffrey Rosen em resenha do livro de Mayer-Schönberger publicada recentemente
no New York Times (“The Web Means the End of Forgetting”, 19/07/10), supõe-se que
vivemos numa época por demais permissiva, com intermináveis segundas chances. Porém o
fato é que para muita gente o banco de memória permanente da Web cada vez significa que
não existe a segunda chance: não há como escapar de um deslize cometido num passado
digital distante. Nos dias de hoje, o que fizemos de pior é muito frequentemente a primeira
coisa que todo mundo sabe sobre nós.