Este documento comemora os 50 números da Revista Traços, agradecendo a todos os parceiros e colaboradores que ajudaram a construir essa história ao longo dos anos. Além disso, reafirma o compromisso da publicação em continuar retratando a rica cultura produzida em Brasília em edições futuras.
2. Chegamos até aqui porque não caminhamos
sozinhos. Em cada passo do caminho, havia um
parceiro. Pessoas e instituições que nos
ajudaram a colocar no lugar cada peça
deste projeto social chamado Revista
Traços. Chegamos até aqui porque muitos
acreditaram e vieram conosco. E é assim
que queremos continuar, juntos!
Foram
50 edicoes!
Souza Cruz
BAT Brasil
Griô Produções
Bancorbrás Cultural
Digital SIGN
MNS Soluções Gráficas
SASSE Produtos Promocionais
Coronário Gráfica
Associação Cultural Namastê
Storica
Na Calçada
Studio Brava
Kabe Agência
Rockin’hood
Ribon
Cotidiano Aceleradora de Startups
Halegoria Cultural
Barba na Rua
Fermento
Cláudio Abrantes
Arlete Sampaio
Leandro Grass
Fábio Félix
Júlia Lucy
Rafael Prudente
Roberio Negreiros
Fundação Oswaldo Cruz
Universidade de Brasília
Secretaria de Estado de Cultura e
Economia Criativa do Distrito Federal
Secretaria de Estado de Trabalho do
Distrito Federal
Secretaria de Estado de Desenvolvimento
Social do Distrito Federal
Secretaria de Estado de Turismo do
Distrito Federal
André Clemente (Secretário de Economia)
Hamilton Pereira, Guilherme Reis e Bartolomeu Rodrigues (Secretários de Cultura)
Jaime Recena (ex-secretário de Turismo)
Vanessa Chaves de Mendonça (Secretária de Turismo)
Rodrigo Rollemberg (ex-governador do Distrito Federal)
Fundo de População das Nações Unidas
UNICEUB Educação Superior
Vamos
pra
mais
50?
A todos os que participaram da construção
desta história, o nosso MUITO OBRIGADO!
3. 50//21
CANVAS
//
24
MORDA
//
8
HOLOFOTE
//
9
BUTECO
//
74
POUCAS
E
BOAS
//
7
UNFPA
//
72
RASCUNHO
//
38
CÓDIGO
DE
CONDUTA
//
6
Diretora Geral: Michelle Cano
Diretor Executivo: Reinaldo Gomes
Diretor de Redação: André Noblat
Diretor Institucional: Rogério Barba
Editora-chefe: Juliana Valentim
Redator-chefe: José Rezende Jr.
Editora de fotografia: Thaís Mallon
Fotógrafo especial: Marcos André Pinto
Fotógrafo convidado: Fábio Setti
Repórter: Maíra Valério
Colunista: Nelson Fernando Inocencio da Silva
Freelancers: Marianna França e devana babu
Projeto Gráfico e Direção de Criação: Chica Magalhães
e Tiago Palma (Fora da caixa)
Revisora de textos: Jaqueline Fernandes
Estagiárias: Giovanna Figueiredo, Shyrlem Barbosa
e Ana Noronha
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Contatos
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Siga nas Mídias Sociais: @RevistaTracos
Visite a página: revistatracos.com
ISSN: 2763-8502
// 40
3X4
Priscila acumula várias jornadas:
além de porta-voz da cultura,
futura advogada e mãe e pai
de Samuel, ainda faz um curso
técnico de redação, com vistas
a outro sonho: escrever livros
de Direito, sobre injustiças que
conhece na própria carne.
// 69/76
TOCA RAUL
Carioca de nascimento e
brasiliense de coração, Marlene
Souza Lima passeia pelo jazz
com sua paixão: a guitarra. Já o
Culto da Malditas passeia entre
o sacro e o profano com sua
arte híbrida e transversal.
// 10
MOVIMENTE-SE
Houve um tempo em que, em
qualquer canto de Brasília,
ouvia-se rock. Foram tantas
bandas e espaços que fizeram
parte desta história, que a
Setur-DF fez um mapeamento
e criou a icônica Rota do Rock.
Ah, se a cidade falasse...
// 46
MIQUÉIAS PAZ
O primeiro mímico da Capital
Federal acaba de completar
quatro décadas de trajetória.
De uma trajetória que passou por
diferentes fases, sempre usando
a arte como instrumento de
resistência e conexão.
// 26
MANUELA KOROSSY
Aos 19 anos, dona de uma voz considerada surreal, a soprano
brasiliense Manuela Korossy conquista uma vaga na disputadíssima
Juilliard School, melhor escola de artes performáticas do mundo, e vai
em busca da carreira internacional.
// 12
ENTREVISTA
“Está tudo nas canções”. É assim que Dado Villa-Lobos
sintetiza sua extensa carreira. Neste bate papo com a Traços,
ora idílico, ora pesado, o artista fala sobre a cidade, o
presidente, o selo Rockit!, trilhas sonoras e várias outras coisas.
// 56
INSTANTES
Mila Petrillo é um patrimônio cultural de Brasília. Ao longo
de sua carreira, as lentes da fotógrafa capturaram a alma da
cidade em diferentes períodos, como momentos da ditadura,
o início da efervescência cultural da capital, além de inúmeros
espetáculos e iniciativas sociais.
Revista TRAÇOS
Ano 6 setembro 2021
4 5
4. P O U CA S
E B OA S
O Código de Conduta estabelece algumas diretrizes que
têm como objetivo orientar o trabalho dos Porta-Vozes
da Cultura e dos colaboradores da Traços. Ao reportar
casos que fujam das políticas de atuação, você colabora
com o desempenho e o aperfeiçoamento do projeto.
A Traços é uma
publicação sobre arte
e cultura, vendida
nos espaços culturais
e gastronômicos de
Brasília pelas mãos dos
Porta-Vozes da Cultura
– pessoas que estavam
em situação de rua ou em
extrema vulnerabilidade
financeira. Por meio
da revista, o projeto
contribui com a geração
de renda e o ganho de
autonomia dos Porta-
Vozes, que ficam com
70% do valor de cada
exemplar.
6 7
Fone: 3033-4541
André Noblat
andre@revistatracos.com
O uso de linguagem
racista, sexista, lgbtfóbica
ou ofensiva não é aceito
no projeto Traços.
Reportar comportamentos
preconceituosos é dever de
todos.
Respeitar o público ou
qualquer colaborador da
traços e seus parceiros é
essencial, sem jamais agir
de forma agressiva ou
violenta.
Em hipótese alguma o
Porta-Voz da Cultura
poderá oferecer a revista
após ingerir bebida
alcoólica ou estar sob efeito
de qualquer droga.
Os Porta-Vozes da Cultura
não devem comercializar
a revista no território de
venda de outros Porta-
Vozes.
Ao se identificar como
Porta-Voz da Cultura, com
colete e crachá da Traços, o
Porta-Voz se compromete
a não pedir qualquer tipo
de doação aos clientes, seja
em seu nome ou em nome
da Traços.
É responsabilidade do
Porta-Voz da Cultura
informar aos clientes sobre
a data de publicação das
edições que estão sendo
oferecidas para a venda.
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Os exemplares da revista
somente podem ser
vendidos pelo valor
estipulado na capa, não
importando o número da
edição.
Em nenhuma hipótese será
permitido trabalhar com a
venda da revista estando
acompanhado por crianças.
Apenas os exemplares da
Revista Traços podem ser
vendidos pelos Porta-Vozes
da Cultura. Nenhum outro
produto ou serviço deve ser
oferecido.
O Porta-Voz da Cultura deve
se apresentar com uniforme
e crachá de identificação
em todas as atividades
vinculadas ao projeto.
Os Porta-Vozes da Cultura
não estão autorizados a
utilizar a marca Traços de
maneira desrespeitosa,
trazendo prejuízo ao projeto
e/ou seus colaboradores.
Ao abordar o público, o
Porta-Voz da Cultura deverá
usar máscara cobrindo
nariz e boca, mantendo o
distanciamento seguro e as
mãos sempre higienizadas,
conforme recomendado
pelas autoridades sanitárias.
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Meia centena de publicações que
tentaram retratar um pouco da
riqueza da cultura produzida em
nossa cidade. Uma cidade jovem,
mas incrivelmente rica em artistas
e projetos das mais diversas
linguagens. Uma cidade precoce,
que já na década de 80 se destacava
no país pelas bandas de rock n’roll
que aqui nasciam. Uma cidade que
precisará de pelo menos mil edições
da Traços para contar as histórias
lindas que compõem o DNA do
nosso quadradinho.
Justamente por isso, nesse número
marcante em que chegamos,
fazemos questão de reafirmar
o compromisso editorial dessa
publicação com a cultura de
Brasília. Ainda temos muito o que
mostrar e sabemos que sempre
surgirão novos artistas e projetos.
Temos um trabalho lindo e quase
infinito para fazer, e continuaremos
fazendo com todo o carinho e
paixão que colocamos em cada uma
das 50 primeiras edições.
Para homenagear as histórias que
já contamos e as que ainda estão
por vir, trouxemos Dado
Villa-Lobos para a capa desta
edição especial. O guitarrista da
Legião Urbana, compositor e dono
de selo musical, abriu as portas
da sua casa e o seu coração para a
Traços, em uma entrevista sobre
passado, presente e futuro.
A quinquagésima edição
também nos fez arriscar: pela
primeira vez a Traços será
preto e branco. Todos os meses,
quando produzimos uma edição
da revista, também gostamos
de fazer arte. Isso aparece no
formato dos textos, fotos e
diagramação. Sempre tentamos
inovar e, dessa vez, resolvemos
tentar algo que nunca tínhamos
feito. Tivemos que repensar
fotos e diagramação. Esperamos
que vocês gostem do resultado.
Por fim, é um orgulho muito
grande para nós, equipe da
Traços, dividir o resultado de
cada edição com vocês, nossos
leitores. É uma honra fazer parte
da história da cultura de Brasília
e poder amplificá-la.
E CHEGAMOS A
TRACOS NUMERO 50
QUE VENHAM
AS PROXIMAS
50 EDICOES.
5. 8 9
H O LO
F OT E
M
orda
MÚSICA
Vaga Carne
2019 – GRACE PASSÔ E RICARDO ALVES JR.
O filme Vaga Carne (2019) é uma transcrição
da peça, de mesmo nome, da atriz e
dramaturga Grace Passô. Ela dirige o filme
junto com o também diretor Ricardo Alves
Jr. Em 45 minutos de tela, podemos ver
recursos precisos de som, luz e cena. Esses
elementos compõem a experiência radical
de uma voz que toma o corpo de uma
mulher. Nessa tensão entre fala e gesto,
ambas travam uma busca entre identidades
e papéis sociais. Esse, que é um dos
trabalhos mais instigantes do cinema brasileiro recente,
está disponível para locação na plataforma de vídeo
Embaúba Filmes, distribuidora especializada em cinema
brasileiro: embaubafilmes.com.br.
Pedro B. Garcia é realizador audiovisual e faz parte do duo
Casadearroz (casadearroz.com)
LIVRO
Almanaque
do Teatro
LEÔNIX
O Almanaque do Teatro é uma revista didática
divertida, com passatempos e design super atual.
Destinado à alfabetização estética, passa longe
do conteudismo. De forma lúdica, valoriza o
saber teatral e a cultura local, gerando suporte
para o arte-educador em sala de aula e oficinas.
O Almanaque do Teatro foi elaborado com
recursos do FAC, de acordo com o Currículo
em Movimento, referencial teórico da área, e
sugestões de mais de 25 arte-educadores e
150 estudantes das Escolas Parques. É possível acessar
gratuitamente pelo Instagram @euleônix ou pelo site www.
almanaquedoteatro.com
Leônix é atriz, dramaturga, arte-educadora e autora do Almanaque
do Teatro, entre outras obras.
FILME
KAÊ GUAJAJARA
Último single da
rapper Kaê Guajajara,
Por Dentro da Terra,
foi lançado em 2021
pelo Coletivo Azuruhu,
e segue traçando
a linha política e
poética de seus
trabalhos anteriores: a
cantora, compositora,
escritora, atriz e arte-
educadora utiliza suas
composições para
falar sobre a diáspora
dos povos indígenas.
Unindo ancestralidade
e futurismo indígena, é
um grito de resistência
decolonial e uma
busca por reparação
histórica através do
aprofundamento
político e da ocupação
dos espaços. Azuruhu,
fundado pela Kaê, é
Thaís Mallon é fotógrafa e editora de fotografia
da Traços.
A BSB Comidinhas é uma empresa
familiar que produz seus alimentos
sob encomenda, de forma
personalizada para cada cliente.
Segundo Patrícia Gribel, uma das
idealizadoras do negócio, o objetivo
é fazer comida com memória
afetiva: “Se o cliente fala para mim
‘estou com saudade de comer um
doce que eu comia na infância’, nós
vamos tentar fazer”, afirma.
O empreendimento surgiu em
2020, após uma das filhas de
Patrícia pedir para que a tia,
Daniella Gribel, preparasse
Saiba mais: @bsbcomidinhas
um selo dedicado
a impulsionar
artistas indígenas
na música, literatura
e audiovisual.
Seu primeiro EP
é de 2019. Vale a
pena ouvir toda a
discografia, uma
aula urgente de
decolonialidade.
Por
Dentro
da
Terra
o cardápio. Atualmente, os
mais pedidos da marca são a
Cheesecake, o famoso Quindão,
e a queridinha dos clientes, a
deliciosa Banoffee, uma torta
feita com bananas, creme e um
molho espesso de caramelo.
A relação de Patrícia com os
consumidores é algo muito
importante para ela e vai
muito além de uma simples
relação cliente e fornecedor:
“Tenho muito cuidado com
meus clientes, por exemplo,
quando algum me faz uma
encomenda, penso nesse cliente
enquanto estou cozinhando
o pedido. Cada entrega eu
faço pessoalmente e, se não
puder, quem vai é alguém
da família. E vai sempre um
cartão personalizado, eu faço
questão. Porque, se a proposta
do BSB Comidinhas é afeto e
memória, começa com afeto. Eu
acredito muito na gentileza e
no agradecimento, sabe? E está
faltando isso no mundo”.
Os pedidos podem ser feitos
pelo WhatsApp, através de um
link disponibilizado no Instagram
da empresa.
BSB
COMIDINHAS
Farinha
de trigo,
leite,
ovos e o
elemento mais
importante:
afeto
algumas rabanadas (recheadas
de leite ninho), para uma
confraternização de final de ano
no trabalho. Não deu outra!
Após os colegas experimentarem
as rabanadas, começaram a
surgir vários pedidos de pessoas
que também queriam o prato em
suas ceias.
Porém, Daniella ficou
preocupada, pois tem um
problema nas articulações e
temia não conseguir atender a
demanda. Foi então que Patrícia
se dispôs a ajudar a irmã com as
encomendas. “Natal e ano novo,
a gente não teve sossego”,
relembra Patrícia.
Patrícia conta que, no início,
foi sua filha mais nova quem
anunciou o negócio em um
grupo de WhatsApp dos
moradores da quadra onde
residiam, no Lago Sul. Depois
disso, os pedidos não pararam
mais de chegar. Começaram,
então, a pensar em outras
receitas para incrementar
Por Shyrlem Barbosa
Fotos Thaís Mallon
6. 10 11
Eu sempre digo que nasci de
cesariana. Não foi de parto
normal como as outras cidades.
Vim ao mundo com dia marcado
e, sem falsa modéstia, uma
plateia já me esperava. Um país
inteiro aguardava ansiosamente a
minha chegada.
No começo,bem no começo,aqui
não havia nada.Só a poeira da
terra vermelha dançava alegre pelas
ruas recém-formadas.Foi nessa
época que os candangos vieram.
Traziam na mala a esperança de
dias melhores,muitos sonhos e
saudades.Com o passar do tempo,
tiveram filhos.E esses filhos,com
seus amigos,me deram a alegria
de ver nascer um sotaque só
meu.Ainda misturadinho,é bem
verdade,mas só meu.
E não foi apenas o sotaque
que aqueles jovens me deram.
Lembro-me, como se fosse
hoje, daquelas almas inquietas,
movidas pelas paixões e
rebeldias da juventude, com pés
que caminhavam firmes sobre
mim, a Capital do Brasil.
Talvez tenha sido em uma
garagem o primeiro acorde.
Ou debaixo de um dos prédios
da asa norte. A verdade é que
depois do primeiro, veio outro, e
outro, e outro, e outro. Até que
todas as coisas que precisavam
ser ditas viraram música. Era ali
que o nosso rock nascia.
Foi na Colina, na Universidade
de Brasília, que a coisa começou
a se incendiar de verdade. De
lá, ganhou a cidade. Em 1978,
veio o Aborto Elétrico, e aí já
estava certo: a gente entraria
para a história como a Capital
do Rock. De um rock que se
apropriou deste chão, gritando
protestos e ocupando espaços.
Rota brasilia
capital do rock
Por Juliana Valentim
Fotos Thaís Mallon
Guardo na memória alguns
momentos marcantes, como
o primeiro show da Legião
Urbana no Cave, Guará. Feliz
de quem estava lá! E tinha a
Plebe Rude que a gente amava,
Capital Inicial, Raimundos,
Cássia Eller, Natiruts. E o Mel
da Terra que abriu caminho
para todo mundo.
Sempre tive um orgulho danado
de ser tão musical. Houve um
tempo em que, em qualquer
um dos meus cantos, ouvia-se
um som – Na UnB, no Teatro
Garagem, no Nilson Nelson,
na Torre de TV, na Concha
Acústica, no Rádio Center e
nas velhas e conhecidas quadras
– como na 407 norte, onde o
Aborto Elétrico e a Blix 64
tocavam. E tinham também os
subsolos da 207 que abrigavam
diversas salas de ensaio. Foi lá
que o Porão do Rock surgiu.
Quanta coisa acontecia naqueles
mundos.
É fácil a gente se perder nessas
memórias. São tantas bandas e
espaços que fizeram parte desta
história, que sempre imaginei
como seria se todos fossem
organizados em uma única rota.
Pois foi isso que aconteceu.
Acabo de ganhar a Rota do
Rock! A Secretaria de Turismo
do Distrito Federal (Setur
DF) mapeou 37 pontos que
fazem parte da história do rock
brasiliense, em um trabalho
conjunto com a Secretaria de
Estado de Economia, com a
faculdade União Pioneira de
Integração Social (Upis), além
da idealização e curadoria de
Philippe Seabra, vocalista da
Plebe Rude, e a produção de
Tata Cavalcante.
A Secretária da Setur DF,
Vanessa Mendonça, disse: “O
segmento musical do rock como
destino turístico será tratado
como atração principal e com
as luzes que realmente merece.
Considerar esse estilo tão
importante para a história da
nossa capital sob a perspectiva
da consolidação de um destino
é uma conquista inédita e
de valor estratégico para o
desenvolvimento de todos
os setores, em especial, o do
turismo”.
Agora, você imagina a alegria
desta jovem cidade aqui, que
vai poder proporcionar, aos
moradores e turistas, uma
experiência única e afetiva, ao
percorrer os pontos onde tudo
aconteceu? Aliás, você sabia
que o rock foi tombado como
Patrimônio Cultural Imaterial
do DF?
“Com milhões de discos
vendidos, filmes e
documentários com milhões de
espectadores, teses e doutorados
dedicados às letras dessas
bandas, o Rock de Brasília é
um alicerce da contestação e
liberdade de expressão no Brasil,
e isso tem que ser celebrado”,
afirma Philipe Seabra.
Eu não poderia concordar
mais contigo, caro Philipe. E
recomendo ao leitor que ainda
não fez a Rota, que faça. Porque,
em cada canto mapeado, eu vou
desvendando os meus segredos,
segredos de um tempo que
ainda vive.
*Para conhecer os pontos da
Rota Brasília Capital do Rock,
acesse: www.setur.df.gov.br
7. EN T RE
V I S TA
12 13
Villa-Lobos
Está tudo
nas canções
“Está tudo nas canções.” A cidade,
o presidente, as favelas, o senado, os
uniformes, os cartazes, os cinemas
e os lares. O ônibus de ida ou volta
pro Planalto Central. A travessia
do Eixão. Os pegas da Asa Sul. A
Asa Norte, Taguatinga, Planaltina,
Ceilândia e Sobradinho. O Caseb,
o Lago Norte e a UnB. A curva
do Diabo, o Parque da Cidade, os
opalas, as motos e os “camelos”. Além
do tédio (com um T bem grande
pra você) embaixo dos blocos. Ah! E
muitas outras coisas.
Quando Eduardo Dutra
Villa-Lobos – que nasceu na Bélgica
e passou parte da infância em países
como Uruguai e França – chegou
a Brasília, ele ficou bestificado
com a cidade: pareceu-lhe um
autorama gigante. Morou
na 104 e na 213 Sul. Foi
alfabetizado na escola parque
307/308 e educado na Escola
Classe da 204 Sul. Andava de
skate com amigos como Herbert
Vianna e Bi Ribeiro, garotos do
bloco ao lado. Brincava na lama
quando chovia e a cidade ainda não
era asfaltada nem arborizada.
Por André Noblat, devana babu,
Maíra Valério e Shyrlem Barbosa
Fotos Marcos André Pinto
8. 14 15
Roubava gasolina para ir com os
amigos nas festinhas. Trombava
com Oswaldo Montenegro pelas
entrequadras e seguia o Liga Tripa
no Beirute. Tem uma mãe que se
casou com o pai de Dinho Ouro-
Preto e conheceu, no Uruguai, o
diretor teatral Hugo Rodas, que
frequentava a casa da família. É
também sobrinho-neto de Heitor
Villa-Lobos, que dá nome à sala do
Teatro Nacional.
Na adolescência, conheceu os
carinhas da cidade que tocavam
punk rock na calçada de lanchonetes
como a Food’s e começou a segui-los
por aí.
Eventualmente, acabaria se
tornando o guitarrista da banda
mais icônica e famosa de Brasília, e
talvez a maior do Brasil: a Legião
Urbana.
No dia do aniversário de Dado, 29
de junho, ele e o parceiro Marcelo
Bonfá, baterista da Legião,
recuperaram, enfim, o direito de uso
do nome da banda que construíram,
em uma decisão histórica do
Superior Tribunal de Justiça, após
uma longuíssima batalha judicial.
Nesta edição especial da Traços,
a nossa 50ª edição, não nos
furtamos ao prazer de bater um
papo ora idílico, ora pesado, sobre a
cidade, o presidente, o selo Rockit!,
trilhas sonoras e várias outras
coisas. Embora Dado sintetize
corretamente: “Está tudo nas
canções.” “Ponto.”
Naquela música, Leila [do sétimo
álbum da Legião Urbana, A
tempestade] tem um verso que
diz assim: “E domingo/ cachorro-
quente com as crianças na
Fernanda.” Essa Fernanda é a sua
esposa?
É ela mesmo. É que a gente
tinha o costume, nesses anos,
1994, 1995, de todo domingo se
juntar com Renato [Russo], já na
condição de HIV positivo. E ali,
na música Leila, justamente, ele
cita que todo domingo a gente se
encontrava, Fernanda fazia um
cachorro-quente e a gente ficava
ouvindo música, conversando e
jogando jogos de tabuleiro, tipo
Imagem e Ação, sabe? Coisas
assim.
A Fernanda foi a primeira
empresária da banda, né?
O que aconteceu foi que a
Fernanda era relações públicas
de uma casa lá em São Paulo,
a Napalm, que durou pouco
tempo. Era uma casa de punk
rock e a gente, em 1983, estava
começando. A gente gravou umas
demos e o Renato começou a
distribuí-las. Fernanda recebeu
essa demo e o Renato ficou três
horas com ela no telefone. Ele
consegue convencê-la a agendar
uma data lá no Napalm com a
Legião. Lá fomos eu, Renato
e Bonfá. Pegamos um busão e
fomos até São Paulo, e aí a gente
conhece Fernanda. E, aí, eu e
Fernanda temos um... Como se
chama isso hoje? Um crush. Uma
coisa, assim, imediata, e a gente
está casado até hoje.
Aí ela vira a nossa primeira
empresária, realmente. E ela é
também designer gráfica, fazia
as capas dos discos e tal. Mas
chegou um momento em que
começou a ficar complicada a
relação dela ser minha mulher
e ter que lidar com os outros
rapazes da banda, que começaram
a virar estrelas do rock. Então eu
falei para ela, no segundo disco:
“Chega. Vamos arranjar outro
empresário.” O papel dela foi
determinante para levar a gente
até onde a gente chegou, em
termos empresariais e estruturais.
Hoje em dia é ela quem administra
sua carreira?
Total. Por exemplo, nessa fase
em que a gente começou a fazer
eventos comemorando trinta
anos dos álbuns – claro que
tudo isso com muitas questões
jurídicas com herdeiros e coisa e
tal –, foi ela que chegou um dia
para mim e falou assim: “Cara, a
gente vai fazer.” Eu falei “Cara,
esquece isso, pra quê? A minha
vida não gira mais em torno da
Legião Urbana.”
O cara da gravadora veio com
essa ideia de fazer uma edição
comemorativa do primeiro disco,
com outtakes, demos e tal.Tanto
que saiu o disco remasterizado,
um disco duplo. Aí Fernanda
fala: “Cara, vamos fazer uma
excursão disso, vamos juntar
uma banda, junta a sua banda”,
os meus parceiros. E vamos
chamar o André [Frateschi,
vocalista da banda durante as
turnês comemorativas], com quem
já tínhamos uma relação de trinta
anos. Justamente quando a gente
estava lançando esse primeiro
disco, a gente estava tocando na
festa da peça Feliz Ano velho,
[baseada no romance homônimo]
do Marcelo Rubens Paiva, que é
um grande parceiro também.
Foto:
Marcos
André
Pinto
9. 16 17
André é filho de Denise Del
Vecchio, que atuava na peça, era
uma criança que a gente ficava
tomando conta dele no camarim
enquanto a peça acontecia, e
depois a gente ia pro palco tocar.
Eu tinha reencontrado o André
num projeto do Banco do Brasil
de covers dos Beatles.Tocamos
eu, Liminha, João Barone, um
monte de convidados, e o André
era um deles. Quando a gente
estava ensaiando lá no estúdio
do Liminha, e eu vi ele cantando,
meu deus! Ele cantou as músicas
de modo surreal. Oh! Darling
e I am the walrus.. Era, tipo,
impressionante. A Fernanda
insistiu para que chamássemos
ele para essa turnê comemorativa.
Ela falou com umas produtoras
aqui do Rio, eu liguei para o
André e ele topou.
Só que ele estava fazendo uma
minissérie chamada Magnífica
70, da HBO. O diretor geral
da série era um grande amigo,
Cláudio Torres, irmão de
Fernanda Torres. Ele que tinha
feito os cenários da excursão do
V, e ele ama a Legião Urbana,
também. A gente virou e
falou pra ele: “Cara, a gente tá
precisando do André pra ensaiar
aqui com a gente e fazer essa
excursão.” Aí o Cláudio virou
e falou assim: “Sem problema.
Vou matar o André no próximo
episódio.” Foi lá e matou.
Isso tudo para falar da Fernanda,
que articulou essa coisa toda e
que, se dependesse de mim, nada
disso teria acontecido. Eu ia ter
ficado no meu canto fazendo
as minhas coisas com os meus
parceiros, e botando de lado a
questão da Legião. Mas foi tão
fabuloso voltar ao palco e tocar
com esses caras, e com o Bonfá,
ter um encontro de novo com
essa energia incrível que é a
Legião Urbana e o que nossas
músicas despertam no público.
E aí vocês fizeram a turnê, que foi
super bem-sucedida, pelo que a
gente viu. Vai haver um segundo
momento? Vocês vão celebrar
outros discos?
A ideia original era chegar até
o Quatro estações. Aí, veio a
pandemia e a gente saiu de cena.
Veio toda a questão judicial, que
a gente ganhou lá no STJ, e está
tudo tranquilo nesse sentido.
Agora, é esperar o momento pós-
pandêmico para pensar em botar
de novo no bloco na rua.
Aproveitando que agora vocês
têm a posse legal do nome, né?
Quais serão os desdobramentos
disso, agora vocês podem fazer
várias coisas?
Hoje, Brasília passa por esse
momento bizarro.Tem esse
maluco aí no planalto, que,
caramba! Nunca vi isso. Antes de
mais nada, é esperar as coisas se
normalizarem. A gente não sabe
exatamente quando.
Vem aí uma variante delta [da
Covid-19] com tudo. Aqui no
Rio de Janeiro já tá rolando,
apesar das pessoas estarem, ao
mesmo tempo, vacinando-se,
que é uma coisa muito boa. Mas
vamos lá. Vamos aguardar.
Por falar na situação política
atual, que paralelos você traçaria
entre este momento e aquele em
que vocês começaram, no final
da ditadura?
São paralelos bem estranhos.
Então,traçando esse paralelo,ali
era uma coisa realmente séria.A
gente estava querendo a volta da
democracia,a volta do voto.E
agora ficam com essa cortina de
fumaça,voltando com uns tanques
esfumaçados passando pela rua,
pelo planalto,acabando com o
que seria a República do Brasil e
transformando isso aqui,realmente,
em uma República de Bananas.
E quando eu ouvi que eles
foram lá pra Formosa, pra Lagoa
Formosa, eu lembrei de um
show da Legião que a gente fez
lá, da rádio Transamérica. Isso
antes da Legião gravar disco e
tudo. Lembrei daquele lugar, que
realmente é uma lagoa.
É lá que que esses milicos vão
treinar. E aí tudo veio e se
misturou na minha cabeça, e eu
fiquei realmente confuso. Bem
confuso.
Você ainda mantém relações com
Brasília?
Sim, claro. A minha formação
passa por Brasília. Ponto. Se as
pessoas me perguntam, onde quer
que seja, “de onde você é?” Eu
falo assim: “Eu venho de Brasília.
É de lá que eu venho.” Eu estou
aqui no Rio de Janeiro há trinta
e tantos anos, mas de onde eu
sou? Sou de Brasília, cara. Foi ali
que eu me criei durante parte da
infância e da minha adolescência.
São momentos marcantes na
formação de qualquer pessoa. E
Brasília, cara, esse lugar é louco.
Foto:
Fernando
Schlaepfer
Quando eu vi essa cena patética do
desfile de tanques [na Esplanada
dos Ministérios, no dia da votação
da PEC do voto impresso],o
“fumacê”,um negócio grotesco,eu
só me lembrei de um momento
em 1984,na votação das Diretas
Já,da Dante de Oliveira [PEC
que instituiria o voto direto].Eu
estava no salão ali do Congresso,
que dá para a praça,sabe? Estava
ali embaixo.E estavam lá vários
deputados,como o Juruna e o
próprio Dante de Oliveira.Já
eram cinco da tarde quando eu vi
os tanques,caminhões e soldados,
todos,cercando o Congresso.
Aquilo sim era de verdade.Depois,
era o Newton Cruz,a cavalo,
chicoteando os carros nos sinais
quando teve,ao mesmo tempo,um
buzinaço ali.Eu vi isso também.
10. 18 19
Em 1971, 1972, eu morava na
104 Sul, quadra de diplomatas
e militares. A cidade ainda não
tinha a arborização que tem,
não tinha os gramados, e a gente
brincava de polícia e ladrão,
andava pelo Eixão correndo, não
tinha carro. Se chovia, formavam
poças incríveis de lama em que a
gente mergulhava. Eu estudava
ali na Escola Parque da 308 Sul,
me alfabetizei naquela escola, e
também na Escola
Classe 204 Sul.
Eu tenho muito
orgulho de ter sido
alfabetizado em
Brasília, em escola
pública. Depois, a
gente mudou para
o Lago Sul, o pai e
a mãe construíram
uma casa, e eu
fui estudar no
Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro,
em 1975, 1976.
Eu tinha morado em
Montevidéu [Uruguai], Belgrado
[Sérvia], aí chego em Brasília,
esse lugar que é um autorama
gigante, ainda em construção.
Os amigos ali de quadra, naquele
gueto de diplomatas.
A partir desse momento, em
1980, 1981, a gente começou a
seguir esses malucos, que eram
o Renato, o Fê, o Gerusa, o
André Mueller, esses caras aí. E
ali tudo começou, e hoje, onde
foi parar, né? A gente faz parte
da identidade cultural desse
lugar, Brasília. Ponto.
Quem imaginaria, naquela
época, ainda crianças, que
isso fosse acontecer com essa
representatividade tão grande
e tão importante pro Brasil, de
botar uma cara para Brasília. Na
nossa época, tinha o Oswaldo
Montenegro, que a gente via
passar na minha quadra. Ele, o
Mongol, a rapaziada do Liga
Tripa. Então muitas coisas foram
muito importantes na minha
formação em Brasília. E isso
tudo se reverte no fato de eu ter
participado dessa formação da
cultura e identidade por meio da
música, do rock.
Ele adora isso, tipo, fazia parte
do mito. Mas eu não, eu sempre
fui muito pragmático e falei
assim: “Cara, aconteceu porque
a gente deixou acontecer. A
gente não estava preparado para
isso. Que sirva de lição. Deu
ruim”. A gente estava muito
feliz de estar de volta a Brasília,
no Mané Garrincha, mas deu
ruim. Claro que a gente nunca
mais voltou a Brasília. Mas isso
não comprometeu em momento
algum a minha relação com
a cidade, essa relação afetiva,
emocional, e que eu tenho muito
dentro do meu coração, dentro
da minha formação como pessoa,
como músico, como um cara
que enxerga como eu enxergo o
mundo hoje. Então eu consegui
separar uma coisa da outra, mas é
fato que foi um momento crítico
e complicado.
Mas vocês pensaram em voltar?
Não. Com o Renato não. O
Renato era impossível. Ele falou:
“Brasília nunca mais, quero que
se foda.” Renato realmente falou
assim: “Brasília nem fudendo.”
Mas eu já toquei aí em carreira
solo, em alguns lugares, no
festival do Giraffas, enfim. Sem
problema nenhum. Eu acho
que o Renato era tinhoso nesse
sentido, mas passou a infância, a
adolescência, a vida inteira dele
lá. É a formação dele. E ele tinha
uma lealdade com Brasília muito
forte, muito grande.
Como era o processo criativo da
banda?
Oitenta por cento das vezes,
um processo coletivo, quando
se juntavam os caras – eu,
Renato, Bonfá e, quando estava
o Negrete, o Negrete. Assim foi
com o primeiro disco inteiro.
Quando voltei, em 1979, a
cidade já tinha crescido um
pouco mais, se estruturado. Foi
quando eu conheço os caras do
punk rock. O Aborto Elétrico,
a Blitx. Eles passam pela minha
quadra, a 213 Sul, e picham o
muro lá da garagem AE [Aborto
Elétrico], e tal.
Quando entrevistamos o Gabriel
Thomaz, do Autoramas, ele
falou de como esse momento foi
importante, porque era a primeira
vez que eles começaram a ter
orgulho de Brasília, porque havia
ícones para falar, lugares e coisas
de que, antes, ninguém falava.
São tantos espaços identitários
que vão além dessa formação de
espaço de poder, né?
É, incrível. O projeto Cabeças, o
Parque da Cidade. A gente usava
Brasília e circulava por Brasília
no Grande Circular, a pé, de
bicicleta. Alguns caras já tinham
carro, a gente bancava a gasolina,
roubava gasolina no prédio, enfim
(risos). A gente fez muita coisa. E
está tudo nas canções.
Em algum momento, porém, há
uma espécie de desquite, né?
A história do Mané Garrincha,
aquela confusão toda e “nunca
mais vou voltar pra Brasília.”
[Em 1988, o show de retorno da
Legião Urbana a Brasília, já como
grandes ídolos, transformou-se
em uma confusão generalizada.
Eles nunca mais voltaram a tocar
na cidade]. Você também se
desquitou da cidade, também
ficou muito magoado? E, se isso
aconteceu, como conseguiu
reconstruir essa relação?
O Renato ficou muito sentido.
Ele ficou um tempo aí em
Brasília, num hotel. Ah, as
pessoas queimando disco, e tal.
Na “Casinha do Parkway”, onde a banda
ensaiava antes de se mudar p/ o RJ .Brasília, 1984
No Museu da Cidade. Brasília, 1983
Foto:
Daniel
P
Foto:
Daniel
P A passagem dos músicos do Projeto LUXXXanos
pelo Congresso Nacional. Brasília, 2017
Foto:
Fernanda
Villa-Lobos
Show na sala Villa-Lobos do Teatro Nacional. Brasília, 1987
11. 20 21
O primeiro disco foi feito no
estúdio de ensaio no Rádio
Center, [e] no quarto do Renato.
Músicas tipo Petróleo do futuro,
Teorema, O reggae, Soldados,
Será. As pessoas concentradas e
sempre num processo coletivo,
no sentido de que, até o Renato
sendo o cara, digamos assim, um
mentor da coisa, cobrava muito
de todo mundo para que todos
participassem e criassem aquele
negócio. Aí depois o Renato
ficava ouvindo aquilo lá, aquela
base, e acabava escrevendo algo
ali dentro da base. Foi como eu
aprendi a fazer música, e até hoje
é assim. É assim que eu faço
música e temas pro cinema, pra
seriados de TV, pros meus discos.
A gente dava duro mesmo. E ali,
naquele momento, sobriedade
total. Sobriedade, concentração
e “vamo fazer música”, “vamo
gravar”, “vamo criar”.
E aí o Renato dava uns nomes,
“Ah, Pais e filhos.”“Ah, por quê?”
Porque, cara, neguinho estava
virando pai, né? O
Bonfá havia tido
o João Pedro, o
Nicolau [filho do
Dado] estava nascendo, e
a gente ficava no estúdio lendo
aquela revista Pais e Filhos, para
ver como é que é o negócio.
Eles cederam o estúdio, a gente
gravava, e eu tinha a distribuição
da multinacional, que, no caso,
era a EMI, Virgin. E aquilo foi
isso, a gente pegando bandas
novas e botando no estúdio pra
fazer acontecer uma cena. A cena
do rock estava acabando.Tava,
tipo, desmilinguindo. Era um
momento que era basicamente
muito sertanejo, e que o Brasil era
isso, o que me incomodava muito
– o Brasil era 8 ou 80, não tinha
um meio-termo. Então a ideia de
você ter um selo é criar um meio-
termo dentro do mercado.
Duas bandas icônicas de Brasília
foram lançadas pelo seu selo, a
Low Dream e a Dungeon. Como
você conheceu a Low Dream
e como era a relação com [o
guitarrista] Fejão e a galera da
Dungeon?
Foi surreal. Acho que partiu
mais do André Mueller, o
André X. Mas, é claro, porra,
Dungeon, Fejão, a gente circulava
junto. A gente estava sempre
juntos. Aliás, ele partiu de uma
forma dramática. Mas o disco
do Dungeon é incrível, metal
pesado, e ele tocando naquela
guitarra.Tem um estilo, tem
uma sonoridade. Me lembra Jimi
Hendrix.Tem algo diferente
aí, algo que, para quem curte
guitarra e entende daquele
negócio... eu sempre senti isso.
O Fejão era a mesma coisa,
só que no metal pesado.
A gente falou: “Bom, os
caras querem lançar um
disco, então vamos prensar
o disco aqui. Vinil. E assim
foi. Foi maravilhoso. Na
medida do possível que a gente
pode fazer com o Dungeon.
E aí, o Low Dream era essa
coisa post-punk, aquela onda
do Loveless, do My Blood
Valentine, aquela coisa shoegaze.
A ideia era essa, ser proativos e
dar oportunidade pra conseguir
fazer acontecer de algum jeito.
É claro que era uma estrutura
pequena, a gente não tinha
dinheiro de Marketing. Sempre
essa é uma grande treta.
Já que estamos falando de
guitarras, que tipo de equipamento
você usa hoje em dia?
Eu comecei com a Dadocaster
[apelido da primeira guitarra dele],
que o Loro chamava de guitarra-
boi, porque ela não tinha agudo,
era difícil.
Existe essa mitologia do rock de
que é todo mundo muito doido
o tempo todo, mas a maioria
das bandas, por trás, têm uma
trajetória de muito trabalho e
estúdio, mesmo que quebre tudo
na frente dos outros, né?
É verdade. É muito suor. Eu
lembro quando a gente estava
gravando o Quatro estações, que a
gente saiu do zero, praticamente,
e acabou um ano no estúdio.
Foram realmente quatro estações
para fazer aquele disco.
E a gente batia o ponto. Era de
três da tarde às nove da noite,
porque a gente parava para
assistir a novela Vale tudo.Todo
mundo ia para casa assistir
a novela. Mas estávamos lá
trabalhando de, sei lá, meio-dia,
uma hora da tarde, até a hora da
novela, lá no estúdio do Mayrton.
“Ah, não, mas é por causa do
Turguêniev [escritor russo, autor do
romance Pais e Filhos]...” Não. Era
só a revista.
Você está fazendo alguma trilha,
no momento?
Viu um seriado chamado Bom
dia, Verônica? Na Netflix? Então.
Essa trilha é minha. E agora vai
começar a segunda temporada.
Eles vão começar a gravar, então
eu estou fazendo. E, ao mesmo
tempo, eu estou fazendo um
filme sensacional que é a história
da Rádio Fluminense, que vai se
chamar Aumenta que é rock’n’roll.
É a história de uma turma que
fez aquela rádio.
Tocar em rádios alternativas,
estar em veículos alternativos,
para, ali, se o cara for bom, ele vai
adiante. A ideia do selo foi essa.
A gente aproveitou o momento,
em que a cena musical estava
realmente caída, para tentar
dar uma sacudida na poeira. A
gente conseguiu alguma coisa.
Aí, vieram vários selos também,
como o Banguela, que lançou o
Raimundos, do Miranda e dos
Titãs, em São Paulo. Então foi
esse momento. Cá entre nós, a
gente foi precursor dessa ideia.
E é sempre a fim de trabalhar e
descobrir novas linguagens.
É mais ou menos a mesma coisa
que aconteceu em Brasília, com
as bandas. Aconteceu em Niterói,
ali do outro lado da poça, com
esses malucos que chegaram
numa rádio podre e virou a Rádio
Fluminense. Aliás, que toca a
nossa primeira demo no dial
brasileiro.Tô fazendo a trilha
disso aí.Vai ser bem bacana, os
atores são maravilhosos. Uma
história bem legal do Luís
Antonio Mello, o cara que criou
a rádio.
Em relação à Rockit!, como é o
processo de curadoria para definir
quem vai ser apoiado pelo selo?
Hoje em dia, a rapaziada é
carioca, porque é mais fácil, né.
Os caras estão aqui, o estúdio
é aqui, enfim. Mas isso tudo
aconteceu em 1992, quando o
Collor acabou com a indústria
fonográfica no país, com aquele
Plano Collor, sei lá. Os estúdios
fecharam, foi uma crise bem
grande. E, aí, eu estava lançando
selo na época. Eu me associei a
alguns estúdios, aqui do Rio, para
ter o apoio e gravar.
Foto:
Marcos
André
Pinto
12. 22 23
E aí enfim, em 1983, eu consegui
viajar e comprei uma Ibanez
Roadstar III. Mas, na época, meu
amplificador era o Checkmate.
Tinha trocado o falante por um
Novik, que é daqueles que você
botava em carro. Pô, era muito
ruim. Quando a gente chegou
na gravadora, os caras tinham lá
uns Fender Twin, velho. E tinha
uns pedais – eu sempre gostei
muito de pedal. Eu sou um freak
de pedal. Eu coleciono, digamos
assim. E, aí, claro, quando foi
possível viajar, comprar, e tal, eu
comecei a comprar. Eu tenho
tudo – o mínimo. Eu não tenho
essa quantidade absurda, mas
tenho o que me serve. Então eu
tenho desde Telecasters, Stratos
e Les Pauls até uma sitar e umas
coisas velhas: uma Harmony, uma
Epiphone Coronet.
Virava uma festa, aquilo ali, com
aquelas violas, enfim. Nicolas
Behr. Aliás, eu fiz a trilha sonora
de um documentário chamado
Braxília, maravilhoso. Do
Nicolas. A real é que a gente
não lidava muito bem com essa
coisa de falsetes e das pessoas
falando da “harmonia da terra”,
da “natureza”, não sei. Mas,
independentemente disso, era
aquilo, naquele momento. Mas
você imagina que dali saiu o
Milton Guedes, por exemplo.
Eram grandes músicos, surreais,
que estavam ali.
Mas, na época, você é
adolescente, tem aquela turma.
A gente ouvia Gang of Four, Joy
Division, essas coisas. Não batia
com o Mel da Terra. E, um dia,
eu lembro de um show que a
gente fez, tinha uns festivais do
GDF em que você ia tocar nos
coretos das satélites, e aí, um dia,
estamos lá tocando numa praça
dessas, 1983, coisa assim.
Quando eu olho pro lado,
o maluco fazendo a luz,
enlouquecidamente, era o cantor
do Mel da Terra, aquele louro
cabeludo. Aí, quando eu olhei, eu
falei: “Caramba, o cara do Mel da
Terra, fazendo a luz aqui!”
A gente costuma falar que o
objetivo da nossa revista, em
Brasília, é apresentar Brasília
para Brasília, porque a gente
sabe que os nossos artistas, às
vezes, têm que sair para voltar
famoso. E vocês fazem esse
percurso. Vocês sentiram isso?
Que tiveram que sair para voltar?
Não, claro. É um clássico. Santo
de casa não faz milagre. É
difícil. Isso a gente ouve desde
sempre. Mas a gente teve que
sair, na verdade, porque o eixo
cultural das gravadoras era o
Rio de Janeiro.Tinha São Paulo,
mas o forte era basicamente
Rio de Janeiro, onde todas as
gravadoras estavam sediadas, a
EMI, CBS, Warner. E Brasília
era muito longe. Mil e duzentos
quilômetros daqui do Rio, uma
hora e meia de avião. E a gente
acreditava que, para a parada dar
certo, tinha que estar ali do lado
todos os dias, falando praqueles
caras, lá naquela companhia,
naquele prédio.Tinha que
estar presente, perturbando
os caras. E todas as redes de
televisão eram aqui, Rede
Globo, Manchete. Mas a gente
certamente teve esse impulso
de sair de Brasília porque sabia
que em Brasília não ia acontecer
nada muito assim, entende?
Hoje, no Brasil, claro, é tudo
mais conectado.
Você também curte pedalar e
jogar futebol. Você tem mantido
essas atividades na pandemia?
Endorfina, né, cara.Você tem que
produzir endorfina. Aqui no Rio,
são seis dias na semana. Domingo
eu descanso, mas segunda, quarta
e sexta eu corro aqui na Lagoa,
dá 10km, depois terça, quinta e
sábado, bike. O Rio de Janeiro é
o lugar mais lindo, realmente, pra
você andar de bicicleta.Você tem
praia, montanha. Então eu saio
daqui da minha casa na Gávea,
subo a Mesa do Imperador, na
Floresta da Tijuca, e vai embora,
Paineiras, e sobe o Cristo. Quando
você vê, está no Cristo, ali embaixo
do filho do homem, tranquilo,
tira uma foto, com os amigos, ou
sozinho, não importa.Vai e desce,
e aí o dia já está ganho.
O esporte é isso que agrega.Você
conhece pessoas.O futebol,que
eu jogava,agora parei,machuquei.
É um negócio pra jovem,né.Eu
não posso mais machucar.Mas no
futebol eu conheci muita gente,de
trocar ideia,grandes amigos tipo o
Toni Platão [da banda Hojerizah].
A gente tinha uma pelada aqui
nos anos 1980,na PUC,todo
sábado.Depois,a gente foi jogar
lá no campo do Chico Buarque.
Jogava no time contra ele,Chico
e todos os outros artistas que lá
estavam,também.De,tipo,chamar
o Chico pra cantar no meu disco,
entendeu? Foi surreal.Isso,para
mim,foi o maior dos benefícios,
digamos assim.Claro que jogar
futebol é maravilhoso,e tal,mas
eu ter conhecido desde,sei lá,
Sócrates,Zico,Chico Buarque,
Júnior,e ter jogado com esses caras,
entendeu.Então,pra mim,isso é
uma oportunidade impossível de
não aceitar que é bom.
Quando minha mãe morava na
China, em Pequim, em 2002, eu
fui pra lá e trouxe um Guzheng,
que é aquela harpa chinesa, que
eu toquei em vários lugares, em
várias trilhas.Toquei até num
disco do Caetano e do Mautner
[Eu não peço desculpa], na música
O namorado/Urge Dracon.
Eu falei “vou tocar o meu
instrumento chinês aqui”, então
tem lá o solo desse negócio.
Quando começaram a surgir
as bandas punks em Brasília,
já havia algumas bandas de
rock anteriores, como a Mel da
Terra, que faziam um lance mais
progressivo. E a gente sabe que o
punk surgiu, também, como uma
resposta ao rock progressivo,
que estava se tornando muito
elaborado. Como era a relação
de vocês com essas bandas?
Vocês as viam com reverência
ou como inimigas do que vocês
propunham na época?
Eu acho que eles eram diferentes.
Definitivamente,a gente não
estava na sintonia deles.Era
o Mel da Terra,Sol Maior,
né? Mas,em compensação,o
Liga Tripa era aquela banda
que a gente via aqueles oito,
dez malucos descendo a 109
Sul,parava no Beirute,a gente
tomando uma cerveja.
E eu adoro instrumentos
diferentes. Então estou sempre
viajando para fazer as trilhas
sonoras incríveis. Pra você ter
ideias sempre, um instrumento
diferente, um pedal diferente,
uma coisa que vai te trazer uma
atmosfera diferente, uma ideia
musical diferente. Eu tô sempre
atrás. Eu tenho um Seize, um
violão, um lance turco, que é
elétrico e tem uma escala com
quartos de tom, e tem aquele som
bem oriental.
Foto:
Marcos
André
Pinto
13. C
A
N
V
A
S
aqui você
encontra novos
e consagrados
talentos das artes
visuais da cidade
siga a artista
@diana.salu
24 25
Diana Salu é artista, escritora,
publicadora e produtora, travesti e
lésbica. Graduada em Artes Plásticas
pela Universidade de Brasília, tem
em sua trajetória uma profunda
conexão com o fazer artístico autoral,
independente, dissidente. Trabalha
fanzines, poemas e eventos como
espaços de experiência de liberdade:
“onde o encontro pode acontecer,
consigo e com as outras. Onde
possamos nos inventar sem a rigidez
das estruturas estabelecidas”, conta.
Publicou diversos trabalhos autorais
em histórias em quadrinhos, incluindo
Então você quer escrever personagens
trans e Cartas para ninguém, que foi
publicado em 2019 e republicado de
forma independente em 2021. Com
ele, ganhou o troféu HQMIX 2020
na categoria Projeto Gráfico. O livro
trabalha o hibridismo de linguagens
e gêneros, com olhar para poesia,
desenho, paisagem e memória.
“Cartas para Ninguém é o meu
último livro publicado e um marco
importante na minha trajetória
enquanto quadrinista, sendo também
minha estreia enquanto poeta. O
livro habita esse lugar entre as coisas,
entre os gêneros literários, misturando
cartas em quadrinhos, poemas e
desenhos soltos enquanto caminha por
paisagens reais, imaginárias e memórias
- revisitando-as, recontando-as e
inventando-as. Um exercício de narrar-
se e, assim, criar-se”, diz a artista.
Diana foi co-fundadora da MÊS,
editora independente de Brasília com
foco em quadrinhos, artes visuais
e literatura, em atividade de 2013
a 2017. Também foi a idealizadora
da Dente - feira de publicações,
trabalhando na produção até a quinta
edição, em 2019.
DIANA
SALU
14. 27
26
NASCE
UMA
ESTRELA
Aos 19 anos, dona de uma voz
considerada surreal, a soprano
brasiliense Manuela Korossy dá alma
às mulheres trágicas da ópera,
conquista uma vaga na lendária
Juilliard School, a melhor escola
de artes performáticas do
mundo, e vai em busca da
carreira internacional
Por José Rezende Jr.
Fotos Thaís Mallon
15. 28 29
Era uma menina que amava
os dinossauros e queria ser
paleontóloga. Ou então diretora
de cinema, porque gostava tanto
dos filmes que chorava quando
eles chegavam ao fim. Mas
um dia, quando tinha 6 anos
de idade, seus pais a levaram
para assistir pela primeira vez a
uma ópera ao vivo. A ópera era
Carmen, de Bizet, encenada na
Torre de Tevê. Ela bem que podia
ter achado tudo muito chato.
Afinal, se tanta gente grande
ainda torce o nariz para a ópera,
imagina uma criança de 6 anos.
Só que Manuela não achou nada
chato. Muito pelo contrário. O
encantamento foi tamanho que,
aos 12 anos de idade, lá estava
ela estreando nos palcos como
integrante do coro infantil de
outra montagem de Carmen,
desta vez no Teatro Nacional.
E hoje, aos 19, apenas 13 anos
depois daquele dia na Torre,
quando fechou os olhos para
não ver Don José assassinar a
cigana que o rejeitara, a soprano
brasiliense Manuela Korossy
realizou o sonho de nove entre
dez jovens talentos de música,
dança e artes cênicas do mundo
inteiro: ser aceita na Juilliard
School, em Nova York.
Com mais de um século de
tradição e considerada a melhor
escola de artes performáticas
do planeta, a Juilliard é para
poucos, muito poucos. A começar
pela concorrência: de cada 100
candidatos apenas sete são
aceitos, depois de passarem por
exames duríssimos de admissão.
Se o primeiro funil é o da
excelência artística, o segundo é
o financeiro: estudar na Juilliard
custa em torno de US$ 50
mil por ano (cerca de R$ 260
mil reais), fora os custos de
hospedagem numa das cidades
mais caras do mundo.
Algo totalmente fora da realidade
para uma jovem de classe média,
filha de pais assalariados. Pois a
menina brasiliense que amava o
cinema e os dinossauros não se
contentou “só” em ser aprovada
com louvor: ela conquistou uma
bolsa de estudos de 90%, a mais
alta concedida pela Juilliard em
muitos anos. Vale ressaltar que
as cobiçadas bolsas da escola são
concedidas por critérios sociais,
mas também pelos méritos
artísticos – e pelo grau de desejo
da escola em ter determinado
talento entre seus alunos.
“Eu sonhava com a Juilliard
desde os meus 15 anos. Mas ela
é uma escola ridiculamente cara,
com um percentual de admissão
impraticável. Pelo menos eu
pensava assim. Pra você ser
admitida e ganhar uma bolsa tão
alta, a sua audição tem que ser
muito, muito, muito boa”, afirma
Manuela.
Perfeccionista ao extremo – e ela
não teria chegado aonde chegou
se não fosse extremamente
perfeccionista – Manuela
não achou sua audição assim
muito, muito, muito boa. Mas
a rigorosa banca examinadora
da Juilliard decidiu o contrário.
Depois de ser aprovada nas
duas primeiras fases de testes,
que consistia na avaliação de
vídeos com repertório operístico
gravados pelos candidatos,
ela foi para a terceira e última
fase, uma audição on-line com
os professores da escola pelo
aplicativo Zoom.
No meio desse exame final,
um dos professores perguntou:
“Você que é a cantora do
Brasil?”. Depois de ouvir a
confirmação de Manuela, o
professor emendou: “Parabéns,
você é muito talentosa, viu?”.
Detalhe: poucos dias antes dessa
terceira e última fase, ela havia
testado positivo para Covid. O
vírus não chegou a comprometer
o pulmão. Manuela começou
tratamento com corticoides
e passou por um tratamento
fonoaudiológico no HRAN.
Mesmo assim, foi para a audição
final com a garganta ainda
irritada e as vias aéreas inchadas.
Felizmente, o que estava em jogo
na audição decisiva era menos a
voz e mais a diretibilidade, que é
a capacidade de ser dirigida em
cena. Fosse como fosse, o elogio
daquele professor era um spoiler:
a “cantora do Brasil”já havia
conquistado o coração da Juilliard.
Foto:
Thaís
Mallon
16. 30 31
Antes do
começo
Para entender como em tão
pouco tempo Manuela Korossy
chegou aonde tão poucos talentos
conseguem, é preciso voltar ao
começo. Ou melhor, ao antes do
começo.
A futura história de amor de
Manuela com o canto erudito
começou na barriga da mãe,
Gabriela, que cantava trechinhos
de músicas clássicas para a filha
que ia nascer. Gabriela nunca se
apresentou profissionalmente,
mas estudou canto inspirada pelo
pai, o imigrante húngaro Miguel
Korossy, que, segundo ela, tinha
uma voz divina. Manuela não
chegou a conhecer o avô, mas a
genética...
Manuela nasceu e cresceu numa
casa que respira música. Desde
cedo a mãe, Gabriela, e o pai,
Laycer, despertaram na filha o
gosto por jazz, MPB, rock dos
anos 70 e, é claro, música clássica.
Aos 3 anos de idade, ela revelou
aos pais o seu pedido pra Papai
Noel. “Eu quero um negócio que
faz assim”, explicou, repetindo o
gesto de abrir e fechar os braços.
O pai e a mãe custaram a decifrar
o enigma. Até que mataram a
charada: não seria um acordeon?
“É, igual o do Piazolla”, explicou
a menina. O genial músico
argentino era o preferido do
avô Miguel, que, é bom lembrar,
Manuela não chegou a conhecer.
Mas a genética...
A surpresa maior ainda estava
por vir. Os pais rodaram a cidade
à procura de um acordeon
em miniatura, que servisse de
brinquedo para uma criança de 3
anos. Pois mal desembrulhou o
presente de Papai Noel, Manuela
colocou o instrumento no colo,
esticou o fole um pouquinho,
fechou, esticou de novo, fechou...
“E na terceira vez ela começou
a produzir os sons originais
de Asa Branca”, lembra a mãe.
“Claro que ela não tocou com
as harmonias e tudo, mas era a
Asa Branca! A partir daí a gente
começou a ficar mais atento a
essa ligação da Manu com a
música.”
Mas o canto estava longe de
fazer parte da vida de Manuela,
embora ainda bem pequenininha
ela cultivasse o hábito de
cantarolar enquanto mastigava
a comida. Esse hábito persiste
até hoje, mas só quando ela
está distraída. Outro costume,
à primeira vista estranho, mas
que os amantes da música e dos
animais hão de entender, é o que
ela tem de conversar cantando
com a gata da família, a Musetta,
que ganhou esse nome em
homenagem à cortesã da ópera
La Bohème, de Puccini, uma das
preferidas de Manuela.
Aos 7 anos, Manuela foi
matriculada num projeto de
musicalização para crianças
da UnB. Daquele, que era um
projeto de extensão dos alunos
da universidade, migrou para a
Escola de Música de Brasília,
inicialmente para estudar piano
erudito. Mas ela não gostava
nem um pouco das aulas. Faltava-
lhe disciplina para estudar o
instrumento.
O que ela gostava mesmo era de
cantar no coral infantil Primo
Canto,formado por alunos
da Escola de Música que se
destacavam nas disciplinas teóricas.
Apesar de não ser uma aluna muito
boa em piano,aprendia muito
rápido todas as outras matérias
relacionadas à música.
O futuro profissional de Manuela
seria traçado pelas professoras do
Primo Canto. Elas chegaram à
conclusão que Manuela não tinha
problemas de aprendizagem. O
fato é que ela estava sendo mal
direcionada para o piano, quando
na verdade tinha um talento
extraordinário para o canto.
Manuela passou então a ser
acompanhada pelo departamento
da Escola de Música voltado para
alunos com altas habilidades.
O passo seguinte seria,
naturalmente, a mudança para o
curso de canto. Mas, pelas regras
da Escola, esse curso só estava
disponível para jovens a partir
de 16 anos de idade, e Manuela
tinha 15. A solução foi mudar a
regra, e receber como aluna de
canto aquela que, apenas quatro
anos depois, conquistaria uma
vaga na Juilliard.
Duas
Carmens
No meio do caminho, entre a
menina que tocou Asa Branca
num acordeon “igual do Piazolla”
e a adolescente que provocou a
mudança na regra de admissão
do curso do canto da Escola
de Música de Brasília, houve
uma cigana chamada Carmen,
fundamental para as escolhas
futuras de Manuela. Ou melhor:
houve duas Carmens. A primeira
Carmen, recordemos, foi a da
Torre de Tevê, aos 6 anos de
idade, que ela descreveu assim:
“A sensação que eu tive era a de
estar numa sala de cinema muito
grande, com uma tela enorme.
Só que estava tudo acontecendo
ao vivo. O grande diferencial do
teatro, do balé e da ópera é que
você não tem uma câmera fechada
em cima de você. Então toda a
movimentação, todo o figurino,
é tudo muito maior do que uma
montagem para a câmera, e aquilo
tudo acontecendo ao vivo foi
muito intenso pra mim. Carmen
é uma história que culmina num
feminicídio, mas eu lembro que
achei tudo muito bonito, porque
o cenário era todo colorido e todo
mundo cantava o tempo todo.
Lembro também que fiquei triste
porque a Carmen morria no final.”
Foto:
Thaís
Mallon
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Amor x
Sacrifício
Manuela sempre soube o
tamanho do desafio que tinha
pela frente. Afinal, o canto
erudito exige muito mais que
uma bela voz.
“A ópera é uma linguagem que
mistura tudo. Você tem que
ser cantora, tem que ser atriz,
tem que ser uma excelente
musicista, porque são peças muito
complexas. Você tem que ter
muito discernimento de quais
são as suas prioridades, porque é
uma demanda de estudos muito
grande “, ela afirma.
Mas será que toda essa demanda
significa fazer enormes sacrifícios?
“Desperdiçar”a juventude?
Deixar de ter vida própria para se
entregar à arte? Manuela diz que
com ela não é assim.
“Eu amo o que faço. Por isso,
acredito que o meu sacrifício seria
muito maior caso eu optasse por
uma outra carreira tradicional,
mesmo que a demanda de
trabalho fosse bem menor. Cantar,
para mim, não é um martírio.
É só uma questão de eleger
prioridades”, Manuela afirma.
Fora a dedicação férrea aos
estudos da música, Manuela é
uma jovem normal, que troca sem
pestanejar uma balada cheia de
gente por um barzinho com as
pessoas mais queridas. As amigas
e os amigos não são tantos assim,
mas ela os considera seus irmãos,
para rir e chorar juntos. São a
família que ela teve a sorte de
escolher, como costuma dizer.
Não está namorando no
momento, porque a prioridade
é a música. Gosta de cozinhar, e
nas horas vagas estuda história
da moda e desenha figurinos
vintage, meio anos 50, que têm
tudo a ver com o seu estilo de
vestir. Se não fosse cantora
erudita, talvez fosse estilista.
Na música, entre outros, curte
Pink Floyd, Caetano Veloso,
Puccini, Verdi e Bizet, e se
espelha nas sopranos italianas
Gabriella Tucci e Renata Tebaldi,
duas das maiores cantoras
eruditas de todos os tempos.
Ama de paixão o cinema, e
se divide entre a doçura de
Tornatore (de Cinema Paradiso,
seu filme preferido), o humor
ácido de Tarantino e a melancolia
de Lars von Trier.
Na literatura, prefere as obras
densas. Entre seus amores
literários estão o bardo
Shakespeare, o poeta T.S Eliot e
o Victor Hugo de O último dia de
um condenado, que ela considera
“uma das obras pró-democracia
mais geniais do mundo”. Dos
brasileiros, Carlos Drummond de
Andrade e Jorge Amado.
Seu projeto de leitura é algum
dia terminar Trópico de Câncer,
de Henry Miller. “É um livro de
uma acidez intragável, que eu
nunca termino de ler porque o
jeito que ele descreve as misérias
humanas me deixa numa bad
muito grande. Mas no dia que eu
tiver uma vida completamente
tranquila, eu termino”, promete a
soprano que interpreta mulheres
trágicas, vítimas dessas mesmas
misérias humanas.
Manuela vai muito além de
“apenas” interpretar essas
personagens. Ela faz um
mergulho na alma de Carmen,
Manon, Mimi, Violetta e tantas
outras, para tentar entender o
que as levou a um desfecho tão
trágico – destino de 90% das
mulheres de seu repertório.
“Quando a Manu se apaixona por
alguma coisa ela se entrega tão
absolutamente que se torna quase
uma obstinação. Ela acorda e
dorme ouvindo a música. Lê tudo
sobre as personagens, estuda a
fundo os papéis”, conta sua mãe,
Gabriela.
Para interpretar, por exemplo,
Manon Lescaut, da ópera de
mesmo nome, ela foi atrás da
novela L’Histoire du Chevalier
des Grieux et de Manon Lescaut,
do Abade Prévost, que serviu
de inspiração para Puccini. Para
dar voz à vendedora de flores
Violetta Valéry, de La Traviata,
de Verdi, mergulhou numa
edição do romance A Dama das
Camélias, de Alexandre Dumas
Filho, com prefácio de Otto
Maria Carpeaux.
A segunda Carmen entrou
em cena seis anos depois da
primeira. Manuela tinha 12
anos quando foi indicada para
participar do coro infantil da
montagem da ópera de Bizet,
no Teatro Nacional. Foi outro
encantamento, que selaria de vez
o seu futuro profissional.
Manuela ficou fascinada com a
oportunidade de ver uma ópera
sendo construída por dentro,com
todas as engrenagens expostas.O
coro infantil participava apenas de
duas cenas bem pequenas,mas ela
e as outras crianças acompanharam
todas as etapas de montagem,
estavam lá durante os ensaios,e
eram ensaios muito intensos e
longos,durante meses,até chegar à
récita com tudo pronto.
“Essa visão de backstage
[bastidores] mudou
completamente a minha
percepção sobre a ópera. Eu
entendi que o canto era uma
profissão, que eu poderia fazer
aquilo pro resto da vida. Uma
profissão criativa, que te bota
o tempo inteiro em atividade,
que te bota pra estudar o
tempo inteiro. Era um universo
extremamente estimulante, e
pra minha sorte eu tive essa
percepção muito cedo. Foi ali que
eu decidi: isso é o que eu quero
fazer da minha vida.”
Foto:
Thaís
Mallon
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“A Manu vive, dá alma a essas
personagens. Eu acho que isso é
o mais importante no trabalho
dela”, diz Gabriela. “A obstinação
da Manu não é só pela perfeição.
A obstinação dela é dar voz a
essas personagens. Nas religiões
afro-brasileiras, as pessoas que
emprestam o corpo para as
divindades se manifestarem são
chamadas de ‘cavalos’. Acho que a
Manu é isso: um cavalo da arte.”
Sensibilidade
e coragem
– O que você quer com o canto
erudito, Manu?
– Quero ser uma cantora de
carreira internacional.
O diálogo entre a professora
Vilma Bittencourt, da Escola
Música de Brasília, e a jovem
aluna de 15 anos, no primeiro dia
de aula, foi uma amostra do que
viria quatro anos depois.
“Já na primeira aula a Manu
apresentou um material vocal
maravilhoso, uma inteligência
musical bem acima do normal.
A principal dificuldade da jovem
aluna, logo diagnosticada pela
professora, era o fato de que por
ser muito jovem ela ainda não
estava pronta para cantar peças
mais complicadas. A musculatura
precisava ganhar tônus. Só que
Manuela, muito ávida, queria
cantar tudo de uma vez.
“A gente precisava colocar um
freiozinho na Manu, pra ela
desenvolver a musculatura sem
se machucar. Só que ela queria
cantar o tempo inteiro. Eu dizia:
‘Querida, calma, senão você
vai estressar a sua musculatura,
você tem que ter um descanso’.
Ela respondia: ‘Ah, eu descanso
quando for dormir’. E vivia
cantarolando pelos corredores da
escola”, conta a professora.
Manuela amadureceu e
aprendeu a não machucar o seu
instrumento, que é a voz. Não
há de ter sido missão das mais
fáceis para uma artista que, a
exemplo dela, procura sempre ir
além. “Eu nunca trabalho aquém
do esforço que eu deveria estar
empreendendo”, diz ela.
Franklin Segredo, professor
particular de canto de Manuela,
diz que além de qualidades
técnicas excepcionais, a aluna
tem duas característica que
fazem com que ela se destaque
no universo do canto erudito:
sensibilidade para entender suas
personagens e coragem para
superar qualquer obstáculo.
Eu me encantava cada vez
mais porque ela aprendia e se
desenvolvia muito rápido, e logo
estava cantando quase como uma
profissional. Um aluno comum
levaria de quatro a cinco anos
para ficar com a voz do jeito
que a Manu ficou. Mas ela só
precisou de metade desse tempo”,
lembra a professora.
Vilma Bittencourt explica que
inteligência musical é mais do
que apenas ler o que está escrito,é
entender a teoria daquilo,entender
por que tal coisa está acontecendo
musicalmente,qualidades que
Manuela tem de sobra.
“A voz da Manu é surreal. Mas
isso não basta.Tivemos outros
alunos com uma voz igualmente
rara, difícil de encontrar, e a gente
pensava: ‘Meus Deus, esse vai
bombar’. Mas eles não foram
adiante, porque não tinham a
cabeça de músico, não tinham o
raciocínio lógico de músico.
A Manu, ao contrário, tem
uma intuição musical que é só
dela”, lembra a professora, que
voltou a dar aulas particulares
para Manuela nos meses que
antecederam o teste de admissão
para Juilliard.
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“O aprendizado da Manuela é
absurdamente rápido. Ela tem uma
vontade incrível, um desejo enorme de
cantar e de atuar. Porque a ópera não
é canto apenas, ela é teatro cantado,
as personagens são seres humanos
vivendo aquela emoção, aquela dor,
aquela paixão, e a Manuela consegue
viver o momento dessas personagens.
E ela não tem medo, enfrenta o
problema de frente, seja ele qual for.
Isso é essencial pra um artista.”
A boa notícia
Mesmo consciente do seu talento e da
sua enorme dedicação, Manuela não
estava certa de que conseguiria realizar
o sonho. Antes de tudo porque, como
ela já disse, a Juilliard “é uma escola
ridiculamente cara, com um percentual
de admissão impraticável”. Mas havia
também outro fator subjetivo.
“É meio que aquele complexo de
vira-lata da maioria dos estudantes
brasileiros de música. O Brasil já
exportou alunos fantásticos pra
conservatórios enormes do mundo
inteiro, e já formou artistas incríveis
em conservatórios aqui mesmo no
Brasil. Mas infelizmente a gente ainda
tem essa cultura de ‘Ah, você nasceu
no Brasil, você não vai conseguir fazer
carreira’”, afirma.
E foi assim, entre a autoconfiança e
a insegurança, que Manuela esperou
o resultado do exame de admissão da
Juilliard. Na conversa com a Traços, às
vésperas de embarcar para Nova York,
ela relembrou os momentos de angústia
que antecederam à boa notícia.
“Foi muito engraçado, porque eles
atrasaram em dois dias a divulgação
do resultado. Então, foram dois dias de
agonia, eu olhava o e-mail de cinco em
cinco minutos e não chegava nada, e eu
comecei a passar mal. E aí, um dia, já
assim tomando litros de chá de camomila,
eu estava na academia esperando meus
pais quando vi a notificação descendo na
tela do celular: Juilliard. ‘Ai, meu Deus,
fui reprovada’, pensei, até por causa da
Covid, né? E quando eu abri não era
mais o e-mail falando da aprovação, era
já o e-mail informando que eu tinha
conseguido a bolsa. Porque a aprovação
já estava no site desde o dia anterior, mas
eu, de tão tensa, esqueci de olhar. Fiquei
absurdamente atônita. Eu reli o e-mail
umas cinco vezes e não entendi nada.
Parecia que eu tinha me desalfabetizado
do inglês, eu fiquei lendo, relendo e
tentando entender. Foram umas duas
semanas até cair a ficha.”
Uma vez caída a ficha, era hora de fazer
as contas. Mesmo com a bolsa de estudo
recorde de 90%, ainda assim era muito
caro, ainda mais considerando os custos
de uma hospedagem em Nova York.
A solução foi abrir uma vaquinha na
internet. Com as doações dos internautas
e ajuda dos parentes, Manuela conseguiu
o suficiente para bancar o primeiro ano na
Juilliard. Mas ainda faltam os outros três
anos, por isso a vaquinha continua aberta.
Enquanto isso, no duplo papel de mãe
e de fã, Gabriela sofre com a ausência
da filha, mas vibra com cada passo de
Manuela rumo ao sonho de seguir carreira
internacional no canto erudito.
“A música é a paixão, é a vida da Manu”,
afirma a mãe. “Por isso, quando me
perguntam se cantar exige muitos
sacrifícios da Manu, eu respondo que não.
Pra ela, o sacrifício seria não cantar.”
Para colaborar com a
jornada da Manuela na Juilliard
https://campanhadobem.com.br/
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ou PIX: 61 99187-7777
Saiba mais pelo Instagram:
@manuelakorossy
Foto:
Thaís
Mallon
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JULIANA VALENTIM
Juliana Valentim é jornalista e escritora,
autora de 3 livros - de crônicas,
poemas e romance. É uma apaixonada
pela literatura brasileira e gerencia
o perfil literário no Instagram @
palavrasquedancam. É também editora-
chefe da Revista Traços.
Levo dentro de mim uma estrada muito longa
Por onde não passam carros
Ando a pé por ela, eu mesma
Levantando poeira
Com meus passos desencontrados
Levo no peito um lampião antigo
Para espantar medos
E clarear memórias
Que se apagam como vagalumes
Abraço o silêncio que me ronda
E ele sorri
Levo dentro de mim uma estrada muito longa
Onde ecoam todo os passos que já percorri
Na pele que habito
Pareço tão calma
Cuidando das flores do meu jardim
E quem me vê assim
Não sabe da confusão
Não sabe da rebelião
Que mora dentro de mim
Sou feito um caos se instalando
Disfarço-me de ser humano
Mas sou motim!
MOTIM SEI
LA
Tá todo mundo meio assim...
Sei lá
No desmantelo
Nem lá, nem cá
De cabeça pra baixo
Do jeito que dá
Tá todo mundo meio assim
Com a roupa do lado avesso
Sei lá
BEM-FEITO
Tivesse casado comigo teríamos um jardim
Com girassóis e petúnias que são minhas favoritas
Tomaríamos vinho, dia sim, dia não
E faríamos amor nos intervalos
Tivesse casado comigo
Contemplaríamos as noites de lua
Nus e embriagados
Sob os olhos repressores dos vizinhos solitários
POETAS
Eu me apaixono por intelectos
Namoro poetas que nunca conheci
Alguns já partiram há séculos
Outros estão por aqui
Apaixono-me pelo que não existe
Mas isso não me causa dor
Fernando Pessoa sabia das coisas
O poeta é um fingidor
E eu me deixo enganar, todos os dias
Porque amor é amor
TAPETE
Há quem escreva difícil
Quem use o verso rebuscado
Que apesar de tão bonito
Não alcança o coração
Eu gosto é da rima fácil
Daquela que rasga por dentro
Depois retorna em remendo
E se espalha pelo chão
Que se despe de vaidade
É o tapete do mendigo
Mas também da majestade
Palavra bendita do povo
Que canta o uníssono coro
Da sua brasilidade
LEVEZA
Abri o dicionário da alma
Buscando o sentido das coisas
Entre as palavras que lá dançavam
Estava ela: leveza!
Tão colorida
Escrita com giz de cera
Pelas mãos da criança faceira
Que, em nós, nunca envelhece
A gente apenas se esquece
Como é que se flutua
Leveza é palavra pluma
Nas bocas de quem se atreve
A
ESTRADA
DE
DENTRO
21. 41
3X4
A história da porta-voz da cultura
40
É possível
fotografar
o futuro?
Sorriso largo e braços bem
abertos, pronta para abraçar o
mundo. Foi assim que a porta-
voz da cultura Priscila do Carmo
Limoeiro se apresentou pela
primeira vez aos leitores e leitoras
da Traços, nas fotos da seção 3x4
da nossa edição nº 11. Feitas em
setembro de 2016, as fotografias,
no entanto, parecem registrar não
aquele tempo presente de cinco
anos atrás, mas antecipar este
futuro que é hoje, setembro de
2021, quando Priscila – agora sim
– tem motivos bem fortes para
sorrir e abraçar o mundo.
Não que a Priscila de cinco anos
atrás fosse uma pessoa o tempo
todo triste. Era, na verdade,
uma mulher que precisava
enfrentar a insegurança e a
depressão, e que não dispunha da
autoconfiança e da autoestima
que fazem com que ela hoje em
dia se apresente assim: “Muito
prazer. Sou Priscila, mulher preta
empoderada.”
Priscila
Por José Rezende Jr.
Fotos Thaís Mallon
22. Tenta em vão matar a saudade
de ver o filho olhando as muitas
fotos que consomem boa parte da
memória do seu celular. Quando a
saudade aperta além da conta, assiste
às poucas imagens de Samuel em
movimento. São só dois vídeos: no
primeiro, Samuel imita o som de um
liquidificador; no segundo, Samuel
pedala o velotrol que ganhou da mãe.
Sim: Priscila, que a vida inteira só
ganhou bonecas de segunda mão,
que já não serviam às filhas das
patroas de sua mãe, conseguiu juntar
dinheiro para comprar um velotrol
novinho para o filho.
Uma juíza
preta
Importante reconhecer que o
embrião da futura Priscila de
2021 já estava contido na Priscila
de 2016. A principal prova é que
aquela Priscila de cinco anos
atrás, mesmo ainda distante
da mulher preta empoderada
de hoje, havia acabado de
derrotar dois inimigos ferozes:
o machismo e o Estado. Depois
de lutar com unhas e dentes, ela
finalmente conseguiu dar ao filho
o que ela mesma, Priscila, nunca
teve: um sobrenome de pai na
certidão de nascimento.
Priscila engravidou do ex-
namorado, que não quis
reconhecer – nem conhecer – o
filho. Logo ela, que até hoje
carrega na carteira de identidade
um vazio enorme no lugar onde
deveria existir um nome de pai.
Esse vazio tem peso, e Priscila
não queria ver também o filho
obrigado a arrastá-lo pela vida
afora. Foi contra esse vazio que
ela começou a sua luta, quando
Samuel ainda estava dentro de
sua barriga, e só terminou quando
Samuel tinha cinco meses de
vida e, enfim, um nome de pai na
certidão de nascimento – ainda
que o de um pai ausente.
A guerra de Priscila parecia não
ter fim.Foi várias vezes grávida ao
fórum,voltou várias vezes ao fórum
já com o filho nos braços,como ela
contou à Traços em 2016:
“Minha mãe teve dois filhos sem
pai. Eu tive o Samuel. Mas a
semelhança acaba aí. Quero mudar
o rumo da minha história. Quero
ser um exemplo vivo para o Samuel,
quero que ele cresça e possa dizer:
Minha mãe quebrou a maldição.
Tive que lutar muito, e essa luta
acabou com o meu psicológico, com
o meu emocional. Eu chegava no
fórum e me mandavam voltar outro
dia, e no outro dia era a mesma
coisa, e no outro dia também. Fui
pra audiência recém-parida, toda
costurada da cesariana”.
Cansada da guerra, com o
psicológico e o emocional
abalados, morrendo de saudade
do filho, o peito ainda cheio de
leite, Priscila chegou em Brasília
no dia 14 de março de 2016,
e logo se tornou porta-voz da
cultura da Traços. Já naquela
época alimentava o sonho de
entrar na faculdade, conquistar
o diploma de Direito e atuar
na vara de família, para ajudar
outras Priscilas e outros Samuels.
E, mais adiante, tornar-se juíza,
para evitar que outras mulheres
passassem o que ela passou
quando precisou do Judiciário.
“Enfrentei muito descaso dentro
do fórum Rui Barbosa [em
Salvador], mesmo estando com
uma barriga de oito meses. E sei
que tem muita mulher precisando
ser acolhida como eu precisei,
precisando ser ajudada por uma
juíza preta que passou fome como
eu passei, uma juíza preta que
pega ônibus debaixo de sol quente
na parada como eu pego. Quero
ser essa juíza”, diz Priscila hoje.
O sonho, que na época podia
parecer inalcançável a quem
olhasse de fora, está bem mais
próximo. A Priscila de 2021
cursa o 4º semestre de Direito
na faculdade JK. (Tem até uma
vaquinha na internet, pra ajudar
a pagar as mensalidades.) Os
passos seguintes são conquistar o
diploma, passar na prova da OAB,
atuar primeiro como advogada,
depois como promotora, ser
aprovada no concurso público e
tornar-se a juíza preta que não vai
deixar mulher nenhuma sofrer o
que ela sofreu.
Recém-chegada à capital do país,
a Priscila de 2016 enfrentava
sobretudo a dor da separação do
filho pequeno, Samuel, que ela
havia deixado em Salvador aos
cuidados da mãe, dona Carminha,
quando veio tentar a sorte em
Brasília. Hoje, setembro de 2021,
Priscila e Samuel estão juntos e
felizes, mas em setembro de 2016,
quando estampou pela primeira
vez as páginas da seção 3x4,
Priscila amargava seis meses sem
ver o filho, que ela não teve tempo
nem de desmamar direito, como
relatou o texto da edição nº 11:
Nestes seis meses de distância, Samuel
aprendeu a engatinhar, e Priscila
não viu. Samuel aprendeu a andar,
e Priscila não abriu os braços para
ampará-lo nas quedas. Samuel
aprendeu a falar, e Priscila não estava
por perto para ouvir suas primeiras
palavras. Não é a mesma coisa, mas
ela pelo menos ouve a voz do filho
quando telefona para Salvador.“Alô.
Mamãe. Amo”, Samuel diz.
42 43
“Muito
prazer.
Sou Priscila,
mulher preta
empoderada.”
Foto:
Thaís
Mallon
23. 44 45
De Priscila
pra Priscila
Priscila acumula várias jornadas:
além de porta-voz da cultura,
estudante de Direito e mãe e
pai de Samuel, ela ainda faz um
curso técnico de redação, com
vistas a outro sonho: escrever
livros de Direito, sobre temas
que ela conhece na carne. Os
dois primeiros já estão na sua
cabeça. Um sobre o direito à
paternidade, com base na guerra
que travou contra o machismo
e o Estado, e o outro sobre o
direito das mães-solo à moradia,
essa que ela ainda espera
conquistar.
As duas Priscilas, a de 2016 e
a de 2021, são muito gratas à
Traços. Pela acolhida carinhosa,
pelo apoio psicológico, pela
melhoria da qualidade de
vida. São apenas cinco anos de
diferença entre uma e outra, mas
é como se fosse uma vida inteira.
“Quantas vezes eu deixei de
comer pra que meu filho e
minha mãe comessem... Eu só
pensava neles, só via os dois na
minha frente, só pensava em
como ia fazer pra comprar a
fralda, pra comprar o leite. Hoje
faço uma limpeza de pele, faço
as unhas, boto uma roupinha
mais arrumada no corpo. Hoje
eu consigo cuidar de mim.”
E antes de terminarmos
(provisoriamente) a história das
duas Priscilas – que, é claro,
continua depois que fecharmos
esta edição nº 50 da Traços –
cabe aqui uma pergunta:
– Priscila, se fosse possível
voltar no tempo, o que a Priscila
empoderada de 2021 diria pra
aquela Priscila insegura e triste
de 2016?
– Eu diria pra ela o que hoje
eu sei. Que às vezes é dia de
sol, mas que o tempo também
pode fechar, e que mesmo assim
a gente não pode esmorecer.
Aprendi que duas coisas movem
o ser humano: o sonho e a
esperança.
As cicatrizes
A Priscila de 2021 tem muito
carinho pela Priscila de 2016.Mas
gosta muito mais da versão atual
de si mesma.Diz que não esperava
mudar tanto,nem chegar aonde
chegou em apenas cinco anos.
“É até emocionante pensar no
quanto mudei. Eu realmente dei
um up na minha vida. A Priscila
de hoje sabe dizer ‘não’ e sabe
dizer ‘sim’ também, sempre de
uma forma assertiva. Há cinco
anos, eu não imaginava que
teria a qualidade de vida que eu
tenho hoje. A Traços me deu
essa oportunidade e eu agarrei
pelos cabelos. Se hoje eu sou
a mulher que sou é também
porque tive acompanhamento
psicológico, e isso mexeu muito
com a minha cabeça, me ajudou
muito a curar as cicatrizes.
Porque se a gente não cura nossas
cicatrizes, a gente tende a gerar
outras e mais outras. A gente
precisa se curar internamente.
Nosso psicológico é nosso HD,
se ele estiver estragado nada mais
funciona direito.”
Priscila sabe que a luta das
mulheres pretas,sobretudo pobres,
mesmo quando empoderadas,
é sem fim.Mas sabe também
que já avançou muito.É uma
das porta-vozes da cultura mais
bem-sucedidas da Traços,tanto
em volume de vendas quanto
em afeto recebido dos leitores e
leitoras da revista.Mora de aluguel
no Paranoá,enquanto espera na
fila da Codhab (Companhia de
Desenvolvimento Habitacional
do Distrito Federal) por uma
moradia destinada à população em
vulnerabilidade social,para realizar
enfim o sonho da casa própria.
Mas nenhuma dessas conquistas
– nem a melhoria da qualidade
de vida, nem a faculdade de
Direito, nem a futura casa
própria – faria sentido se ela já
não tivesse conseguido realizar
o sonho maior: trazer o filho e a
mãe pra morarem com ela.
“O Samuel tem 6 aninhos. É
um companheiro pra mim.
Tudo ele quer fazer comigo:
passear, andar de bicicleta, fazer
as atividades de casa... Ele acha
que eu sou muito amiga, muito
parceira dele. A verdade é que
eu sou a mãe e o pai do Samuel.
Sou eu que ensino pra ele o que
é certo e o que é errado.Tenho
que criar meu filho direito, não
posso deixar ao encargo do
mundo.”
O filho aprendeu a admirar o
trabalho da mãe. Outro dia,
feliz da vida, mostrou pra ela o
desenho que fez. Nele, Priscila
aparece vendendo a Traços.
Samuel vai bem na escola.
Priscila se orgulha da letra bonita
do filho. Não esconde o alívio de
saber que ele tem direito a um
sobrenome de pai, mesmo não
tendo direito um pai.
“Pelo menos na escolinha
ele não passa vergonha, nem
frustração. No Dia dos Pais a
escola mandou um convite aqui
pra casa. E o convite tinha o
nome do pai escrito. Eu disse
pro Samuel: ‘Filho, eu vou
guardar esse papel, porque tem
o nome do seu pai. Se um dia
vocês se encontrarem, você
mostra pra ele’. O Samuel pode
nunca conhecer o pai, mas é
importante saber que ele existe.’’
Para ajudar a Priscila a se formar:
www.vakinha.com.br/vaquinha/ajude-priscila-a-se-formar
Foto:
Thaís
Mallon
24. mímico e
muito mais
MIQUEIAS
PAZ
Por Maíra Valério e Marianna França
Fotos Fábio Setti
Direção de arte: Tamara dos Santos
46 47
Ato I: o
artista em
descoberta
Miquéias Paz, o primeiro
mímico do Distrito Federal,
recebeu a Revista Traços para
uma conversa íntima durante
uma ligação de vídeo. Enquanto
passava um café fresco, começou
o compartilhamento das
diferentes fases de suas mais de
quatro décadas de trajetória.
Primeiro mímico da capital federal, pai, avô,
mestre da cultura popular brasileira,
ex-deputado distrital, conhecedor dos milagres
da arte como forma de resistência…
Abram alas: com vocês, Miquéias Paz!
Haja café!
O início de tudo se deu em uma
Brasília povoada por jovens
artistas que queriam deixar marcas
na cultura local, ainda incipiente,
e lutar a favor da democracia.
Concentrado no bate-papo, cada
detalhe era minuciosamente
lembrado por ele – nomes,
datas, lugares – como se tivesse
acontecido ontem.
Em um ensaio tímido, a arte
chegou na vida do mímico
quando ele era ainda criança e
quase foi embora para nunca
mais voltar. Nas palavras dele, a
primeira experiência com o teatro
não foi “das mais interessantes”.
Durante uma gincana de escola,
quando tinha uns nove anos de
idade, Miquéias decidiu fazer
uma imitação do esplendoroso
Ney Matogrosso e acabou sendo
severamente repreendido pelo
pai. “Isso não era pra mim, né?
Não era ‘coisa de homem’ imitar
o Ney Matogrosso. E aí, nessa
história, perdi qualquer vontade
de estar no palco, né?”, relembra.
Porém, no início dos anos oitenta,
a arte bateu novamente na porta
de Miquéias. Isso foi quando,
ainda no ensino médio, um amigo
falou para ele sobre um curso de
teatro que estava com inscrições
abertas e tentou incentivá-lo a
fazer parte. “Marcinho o nome
dele [Márcio Rodrigues]. Foi
criador de um espaço aqui muito
importante em Taguatinga, o
Botequim Blues [um dos pubs
mais longevos e conhecidos da
região]. E eu disse ‘não’. Se eu
tinha alguma intenção, ela tava
muito reprimida”, conta. “Mas aí,
nessa época, ele já com esse olhar
dele aí, de produtor, que já devia
estar na veia…E eu ‘não, não sei
fazer isso não’ e, tá bom, passou
essa conversa…”, acrescenta.
25. 48 49
Será que tinha passado mesmo?
Era o que o mímico queria
acreditar. Contudo, Marcinho
foi insistente e, apesar de todas
as negativas, realizou por conta
própria a inscrição de Miquéias
no curso oferecido pelo Projeto
Plateia, iniciativa da extinta
Fundação Educacional.“E teve
uma lábia suficientemente firme
pra poder me convencer”, ri o ator.
Órfão de mãe desde os quatro
anos de idade, o artista, que veio
do Paraná para Brasília aos cinco,
precisou tornar-se independente
muito cedo. O pai não tinha
muitos recursos e, dessa maneira,
Miquéias acabou “pingando aqui
e ali”, por casas de parentes. Aos
doze anos, já estava inserido
no mercado de trabalho
informal; aos catorze, já
tinha carteira assinada
como empacotador de
supermercado e, aos
quinze, já morava
sozinho, após uma
temporada com a
irmã.
Portanto, dono de si e
sem a necessidade de
dar satisfação para
outras pessoas, o
mímico decidiu
arriscar a arte
novamente – e,
dessa vez, agarrou firme
e nunca mais largou.
Desse curso inicial, muitos
quiseram continuar na área,
incluindo Miquéias. A partir
daí, o modo com que o artista
enxergava o mundo passou a ter
uma perspectiva mais versátil,
divertida e empolgante, com um
viés de militância. “Fazer teatro
era um movimento libertário,
a gente não imaginava o teatro
como profissão, mas como algo
que a gente pudesse ser diferente,
não fizesse parte da mesmice que
estava acontecendo”, conta.
Seguindo o fluxo de descobertas
de uma nova paixão, ele decidiu
ingressar no Grupo Retalhos, de
teatro amador, berço de vários
artistas locais. O grupo surgiu
quando alguns integrantes do
Projeto Plateia decidiram se
unir. Composto por artistas de
localidades como Taguatinga e
Ceilândia, a iniciativa instigou
Miquéias a participar de muitas
intervenções de resistência ao
longo da década de oitenta.
“Pra minha felicidade. Até
porque a gente era um grupo
mais de periferia, então a gente
acabou que conviveu com
algumas pessoas que já vinham
na militância”, relembra. “Foi
quando comecei a conhecer o
que era o processo político, não
necessariamente partidário”,
acrescenta. As performances
estavam sempre conectadas com
alguma questão de caráter social.
O grupo realizava passeatas em
busca de espaços para a cultura
na cidade e apresentava, ainda,
muitos espetáculos pelas ruas do
DF – o que incluía até mesmo
o Areal “quando era apenas um
areal mesmo”, enfatiza o mímico.
DA POLÍTICA
INFORMAL A
DEPUTADO
DISTRITAL
O trabalho de Miquéias sempre
o levou para a mídia, como é
o caso, neste momento. Certa
vez, ao ser entrevistado pelo
jornalista e poeta Luis Turiba,
o mímico foi indagado se já
tinha cogitado ser candidato
a deputado. Até então, tal
ideia nunca havia passado pela
cabeça de Miquéias mas, depois
da reportagem, foram várias
as pessoas que começaram a
sondá-lo. “Eu nem levava aquilo
muito a sério”, conta. Política
institucionalizada não era uma
vontade e ele sabia que o intuito
era funcionar principalmente
como um agregador de votos
dentro de uma legenda.
Para surpresa geral, ele acabou
aceitando entrar na corrida
eleitoral. No entanto, a surpresa
maior foi ter sido, de fato, eleito.
O artista fez parte do Partido
Comunista do Brasil (PC do B)
e, por divergências (“não sabia
ainda convencer as pessoas da
importância da cultura como
transformação”, diz), migrou
para o Partido dos Trabalhadores
(PT). Sua atuação na área foi
da metade até o final dos anos
noventa e é um período que
ele não relembra com tom
de saudade. Mas ele segue,
“amadurecendo, aprendendo e
se reconstruindo”, nas próprias
palavras. “Posso ter aberto uma
porta do respeito à arte enquanto
instrumento de transformação da
sociedade”, reflete.
não sei o quê e aí eu fui entender
que nada daquilo [das roupas] era
muito importante, era importante
com quem eu estivesse”, afirma.
De acordo com o artista, esse foi
um momento de virada pois foi
quando ele entendeu a diferença
entre o ser e o ter. Para ele, a
sociedade da época – e de hoje
também – estimula uma vida de
aparências e incentiva as pessoas
a trabalharem o dia inteiro apenas
para adquirirem um bem ou uma
roupa que as faça serem aceitas
por um determinado grupo. No
entanto, o mímico percebeu, ao
se reunir com aquelas pessoas em
prol da cultura, que estava mais
interessado em fazer a diferença
no mundo, de alguma forma, e
não em tentar se encaixar em
redomas sociais.
A maneira que ele encontrou
de se libertar foi essa: se
conectando com o teatro e
com as questões políticas que
podem vir junto com essa
forma de expressão artística.
“Era um momento em que
o Brasil tinha uma história
meio que… Começava,
né? Foi oitenta e…
Oitenta para oitenta
e um, então tinha um
movimento que eu não tinha
consciência, porque eu vivia
dentro de uma redoma, né, mais
religiosa, né, familiar”, rememora.
“Eu não era muito voltado para o
que estava acontecendo no país.
Mas alguns dos que estavam
no grupo já eram de alguma
organização estudantil, alguma
coisa… E aí a gente começava a
conversar essas coisas”, diz.
O tal curso de teatro aconteceu
em uma escola no final de
Taguatinga Norte e reuniu uma
turma de aproximadamente
sessenta alunos em uma
semana de “muita diversão e
aprendizado”, segundo Miquéias.
“Eu era o garotinho que tinha
saído da religião há pouco tempo.
Todo alinhadinho, sapatinho
brilhando e tal. No final do
primeiro dia [de curso], meu
sapato já tinha virado figurino de
alguém, minha blusa tinha virado
Ato II:
“Ó, você está
fazendo
mímica, né?”
O Miquéias mímico começou
a nascer, de fato, em um evento
em Paracatu (MG) junto ao seu
grupo de teatro. “Lá já tinha
um movimento de resistência
política”, comenta. Entre as
dinâmicas do evento, uma das
atividades culturais envolvia criar
personagens e realizar um cortejo
pela cidade. Empolgado, o artista
vestiu uma malha preta, fez uma
maquiagem meio borrada e
começou a brincar.
Pelas ruas da cidade, ele se
divertia com esse figurino
enquanto interpretava um
personagem ainda em formação,
que parecia um boneco. A
brincadeira foi contagiando a
meninada, que o acompanhou
pelo cortejo durante horas.
De repente, uma das crianças
perguntou para o colega de
Miquéias se, quando voltassem
para casa, o “boneco” seria
guardado inteiro ou era preciso
desmontá-lo. “Essa pergunta,
para mim, foi fundamental.
Tinha alguma magia no ar,
alguma coisa forte aí”, fala.
Foto:
Fábio
Setti
26. 50 51
Foi então que o artista começou
a desenvolver mais o “boneco”
e, a partir daí, a criar um
personagem que, mais tarde, ele
foi entender como a figura de
um mímico.“Nesse momento,
esse personagem que faz essa
transição do que eu fazia com
teatro falado, convencional, para
a mímica. No momento que
eu faço essa experimentação é
que algumas pessoas [falam]:
‘Ó, você está fazendo mímica,
né?’E eu nem sabia que estava
fazendo mímica... E aí comecei a
entender o que era, fui conversar
com algumas pessoas, comecei
a assistir coisas”, explica.“Tinha
o grupo EnDança, com Luiz
Mendonça [dançarino, coreógrafo
e professor] que dirigia, e era
uma coisa bem corporal, muito
forte, aí comecei a conversar
com eles, conversar com
outros atores, o que achavam,
comecei a fazer tudo quanto é
oficina, tudo quanto é workshop
que tinha, qualquer coisa de
movimento eu ia fazer. A gente
teve uma efervescência de ações,
né? Projeto Cabeças, Jogo de
Cena, várias coisas estavam
acontecendo”, relembra. Isso foi
em meados dos anos oitenta.
Miquéias, que era também
um dos poucos homens na
Escola Normal de Taguatinga,
aproveitou um concurso na
instituição para inscrever o
personagem. “Ele não tinha um
nome, né? Lembro que, indo
pra apresentação, aí [pensei]:
‘Gente, mas ele é só um
boneco, né? Não fala, não conta
nada, só se movimenta, isso tá
me incomodando’. E aí surgiu
a ideia de contar uma pequena
historinha com esse boneco,
sem palavra”, diz.
“E aí contei a história de um
trabalhador que ia trabalhar,
com todos os percalços de
sair cedo, com sonhos… Bom,
resumindo, esse personagem
que surgiu aí acabou ganhando
o festival da escola. Depois,
acabou indo se apresentar
em outras escolas, em vários
lugares”, relembra, com carinho.
Esse foi, como define o artista,
um boom na carreira dele.
Quanto mais escolas ele visitava,
mais escolas queriam recebê-
lo. Após uma apresentação
para um auditório lotado de
crianças atentas, ele passou a
se dizer oficialmente mímico.
E, após mais de trezentas
apresentações por escolas
de todo o DF, em que teve
a oportunidade de colher
feedbacks importantíssimos de
adolescentes “sem perdão, que
falam tudo mesmo”, ele passou
a ser reconhecido como uma
personalidade local. “Tudo isso
sem rede social”, diverte-se.
Esse processo permitiu que ele
aperfeiçoasse o próprio trabalho
e começasse a percorrer por
festivais teatrais diversos.
De festival em festival, ele
foi se conectando também
com entidades, sindicatos e
associações que começaram
a escrever uma nova história
na vida dele.“O olhar do meu
trabalho tinha muito essa coisa
do personagem brasileiro,
histórias de luta”, diz.“Eu virei o
artista dos sindicatos”,acrescenta.
Uma parceria frutífera aconteceu
especialmente com o Sindicato
dos Bancários de Brasília que,
para Miquéias, era uma “potência
cultural”entre os anos oitenta
e noventa, por conta do apoio
disponibilizado aos artistas.
Foto:
Fábio
Setti
27. 52 53
No evento, quando fez uma
apresentação de seu trabalho, foi
aplaudido de pé e tudo mudou
da água para o vinho. “Imagina,
você vai como aprendiz e de
repente é aceito, né?”, comenta.
Pra completar, descobriu que
a tal carta que havia recebido
dizia que ele teria todos os
custos cobertos pelo evento. “E
eu comendo batata todo dia”,
ri. Então, acabou ganhando
mais uma semana de viagem,
com ingressos para espetáculos
e museus. “Foi uma semana
de desfrute”, relembra. E essa
semana de desfrute, alguns
meses após o evento, acabou
virando uma fértil parceria:
Miquéias foi convidado para
voltar para a Inglaterra, para
participar de experimentações
artísticas com um dos
instrutores do festival.
Ele foi, claro. E acabou
entrando em um ciclo de
passar quase dois anos indo
e voltando, dentro de um
projeto da companhia Ralf
Ralf, junto com atores de locais
como Estados Unidos, França,
Escócia e Porto Rico. Com
o grupo, viajou por países da
Europa e pelos Estados Unidos,
conheceu novas culturas e
enriqueceu o próprio repertório
prático-teórico. Além disso,
o carimbo internacional pode
sempre dar uma ajudinha no
impulsionamento de artistas
brasileiros, principalmente
quando eles estão fora de eixos
tradicionais (o que deveria fazer
as pessoas pensarem sobre o
porquê disso).
O trabalho do mímico era
requisitado por esse nicho
não apenas pela facilidade de
encaixar uma atividade com
um homem só em qualquer
programação (Miquéias
já chegou a realizar uma
performance em um pequeno
cubo 1x1 metro na Câmara dos
Deputados), mas também pela
capacidade que a arte realizada
por ele possuía de adentrar
lugares que outras expressões
artísticas não conseguiam. Sem
a “agressividade da palavra”,
segundo o artista, muito pode
ser dito no silêncio.
Ato III:
partitura
corporal
ritmada
mentalmente
Ainda “pingando aqui e ali”,como
na infância e adolescência,mas
dessa vez por bons motivos – para
apresentar o próprio trabalho,
afinal –,Miquéias descobriu
um festival de mímica que iria
acontecer na Inglaterra.Isso foi
já chegando nos anos noventa,
o que significa que o artista
precisou realizar uma intensa
mobilização presencial para
levantar fundos para viajar.Após
muito esforço,conseguiu,mas
os desafios persistiam.A língua
inglesa,que ele não dominava,
era uma barreira – “Me deram
uma carta que eu não sabia o
que estava escrito”,relembra.
Ele não encontrava onde era
o evento.As pessoas não eram
muito solícitas.Mil coisas.Mas
ele conseguiu superar também
essas adversidades e se instalou no
festival,realizou cursos e fez tudo
o que tinha direito.
Fotos:
Fábio
Setti
28. 54 55
O processo de conhecer outras
localidades do Brasil e do mundo
caminhou junto ao processo de
autoconhecimento do artista:
quanto mais ele olhava para o
outro, mais ele olhava, também,
para dentro de si próprio.
Miquéias já sabia, há tempos,
que um mímico poderia ir muito
além da cara branca e roupa
listrada de Marcel Marceau,
famoso mímico francês que
viveu entre 1923 e 2007.“Desde
a máscara até nudez, existem
várias formas de fazer mímica,
não é a máscara branca e roupa
listrada que te definem”, conta.
Contudo, o aprendizado
estava sempre presente. O
próximo paradigma foi o
do som: acostumado ao
silêncio absoluto como regra,
representado por filmes como
O Boulevard do Crime (1945),
do também francês Marcel
Carné, o primeiro mímico
do DF passou a introduzir a
sonoridade em seu trabalho,
de maneira onomatopeica.
“Sonorizar gestos sem que isso
fosse exatamente uma palavra”,
explica. Desse modo, ele passou
a trabalhar com ritmo, a ter o
movimento ritmado a partir de
uma sonoridade criada dentro
da própria cabeça. “É como se
tivesse uma partitura corporal
ritmada a partir de um trabalho
que se cria mentalmente”, diz.
Tais descobertas, de acordo
com o artista, ganharam força
nas trocas internacionais visto
que, antes da popularização da
internet, a informação sobre
determinados temas era escassa
no Brasil, principalmente de algo
tão específico quanto a mímica.
Hoje, o trabalho de Miquéias
engloba questões sociais em um
mix de técnicas de mímica que
abrangem a rua, a brasilidade
e a latinidade.“Talvez seja essa
característica… O meu trabalho
mistura o que a gente é”, define.
E essa mistura dá muita liga.
Neste governo, o mímico foi
reconhecido como mestre
da cultura popular brasileira
da região Centro-Oeste pelo
Ministério da Cultura. E,
pouco antes da pandemia da
COVID-19 começar, Miquéias
recebeu, em Cuba, uma
homenagem à representatividade
da identidade latino-americana
de seu trabalho, em festival
organizado pela Escola Nacional
de Mímica de Cuba.
“Lá em Cuba, me deram
esse reconhecimento, fizeram
esse festival em que eu era
homenageado com essa
lógica. Meu trabalho tem essa
característica: não me ausentar
de minha realidade”, afirma,
orgulhoso.“A arte é um caminho
de trabalho, de reconhecimento
como um ser humano
participante na sociedade. Arte
é instrumento de conexão,
senão é uma coisa muito
individualizada”, acrescenta.
PERDA DE PESSOAS
IMPORTANTES
Embora Miquéias tenha
conquistas recentes para
celebrar, os infortúnios de uma
crise sanitária, econômica e
social que assolam o país e
tiraram a vida de mais de meio
milhão de brasileiros também
atingiram o círculo íntimo dele.
Durante a pandemia, ele perdeu
a esposa Ivete Mangueira,
companheira há mais de
uma década e professora da
Secretaria de Educação do DF.
“Era uma pessoa muito linda,
que nesse processo artístico
foi muito importante, esses
últimos catorze anos foram ao
lado dela”, lamenta. Eles já eram
amigos há cerca de trinta anos
e, segundo o mímico, foram
parceiros de inúmeras histórias.
“Dói muito. Infelizmente tive que
aprender muito cedo a perder
pessoas importantes”, afirma,
relembrando a morte da mãe.
CONVIVÊNCIA
CULTURAL
O mímico vive, há algumas
décadas, em uma chácara em
Vicente Pires, que era só um
retângulo de terra quando ele
chegou, aos vinte e dois anos.
Hoje, o local tem plantações,
um palco na varanda e está
virando uma área que o artista
tem o objetivo de transformar
em um espaço de convivência
cultural, com cursos, oficinas,
encontros – coisas que já vinham
acontecendo, de modo não
sistemático, e ele quer consolidar
mais organizadamente.
No espaço, ele quer também
realizar encontros de música
caribenha durante a semana, e
preparar feijoadas com samba
de quintal e galinhada aos fins de
semana. “Gosto muito de cozinhar
e nem imagino estar no fogão de
forma comercial, mas quero dar
meus pitacos”, brinca. “Enquanto
essa coisa [o coronavírus] não
nos deixa, eu tô preparando o
espaço”, diz. Na casa, ele pinta,
sobe na parede, faz reparos e
resgata tudo o que aprendeu
no período em que atuou com
construção civil, antes do teatro.
SAIBA MAIS
@miqueias.paz
Foto:
Fábio
Setti
29. MILA PETRILLO
Por Marianna França e Shyrlem Barbosa
I N S
TA N
T ES
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Mila Petrillo é uma mulher
distraída, mas quando uma
câmera encosta em seu rosto
e encaixa entre as mãos, ela se
torna completamente presente:
fotografar é como se fosse um
estado meditativo. Guiada pelas
emoções da cena, ela se conecta
e encontra o enquadramento
perfeito. Mila diz que é um
processo emocional difícil de
descrever. Por isso, as imagens
contam histórias por si só, suaves
e impactantes.
Em 1987, com apenas 18
anos, ela começou a fotografar.
O enquadramento do olhar,
necessário para a fotografia, foi
algo sempre presente devido a sua
criação. Mila é filha de artistas
socialistas nada convencionais
para o século passado: o pai,
José Petrillo, publicitário com
aspirações voltadas para o cinema,
já a mãe, Dalel Achkar Petrillo,
desenhista de animação.
SUAS LENTES REGISTRARAM
MAIS DO QUE É POSSÍVEL
IMAGINAR, MOMENTOS
DA DITADURA, O INÍCIO DA
EFERVESCÊNCIA CULTURAL
DE BRASÍLIA, INÚMEROS
ESPETÁCULOS, INICIATIVAS
SOCIAIS DIVERSAS COMO O
PROJETO AXÉ, O RIO 92 E A RIO
+ 20. CONHEÇA A FOTÓGRAFA
MILA PETRILLO, PATRIMÔNIO
CULTURAL DE BRASÍLIA.
“Para mim, é muito melhor
ver uma peça de teatro ou
um espetáculo de dança
fotografando porque eu tô
dentro, é como se eu tivesse
no palco junto. Então, é muito
engraçado porque todo meu ser
responde àquilo, sabe? Todo o
meu ser responde ao ápice da
música, dos movimentos, das
expressões. As coisas que eu
fotografei eu não esqueço mais,
assim, elas ficam impressas
de alguma maneira” explica a
fotógrafa com mais de 40 anos
de carreira.
Luciano Porto em Hexgram,
Histórias do Velho e do Mundo
(1996). Direção Mark Hopkins
Projeto Axé (2010)
Eliana Carneiro em Anada
(1986). Direção Eliana Carneiro
Janguruçú/Edisca (1998)