João Garcia é um alpinista português que escalou todas as 14 montanhas mais altas do mundo sem oxigénio artificial. Apesar de viajar frequentemente, o número de países que visitou é modesto porque prefere conhecer as culturas locais e conviver com as pessoas. Considera o Nepal como uma segunda casa onde se sente em casa.
1. O meu passaporte
Ele já esteve em quatro dos cinco mora. O que noto é que há muito
continentes e, antes do final do pouca tolerância — ouvem-se A família
ano, há-de completar a lista com
uma viagem à Oceania. Por isso
comentários... ‘Olha como estes
tipos fazem isto...’ Não é a atitude nepalesa
não deixa de ser surpreendente correcta.” Para quem viveu três anos na
que a sua contabilidade de países A ideia é sempre “aprender, Bélgica durante o serviço militar e
visitados seja, digamos, tão não impor”. Mas isto também chegou a pensar mudar-se para lá,
discreta. “Vinte, à volta disso”, não envolve qualquer tipo de parece estranho que João não se
estima o alpinista João Garcia. É desresponsabilização: “Se percebo sinta em casa na pátria das batatas
que, na verdade, apesar de passar que posso ensinar alguma coisa, fritas e das cervejas artesanais. Mas
boa parte do ano fora de casa, aí tento, mas sem impor. Explico, ele fez aqui um corte. “Não sinto
os destinos têm sempre algo em demonstro, ajudo no que posso. E Bilhete de identidade isso, houve uma altura em que
comum: há uma montanha no eles podem ligar ao que eu digo ou João Silva Abranches Garcia tem tive de decidir se ficava lá ou não e
final do caminho. E as maiores não, é um direito que lhes assiste.” 43 anos, completados a 11 de Junho decidi não ficar. Aliás, na Europa
montanhas estão concentradas Com tanto carimbo no passado, já depois de ter entrado não nos sentimos fora de casa, na
numa mão-cheia de países. passaporte, para mais repetidos para a história do alpinismo verdade, porque não escapamos
É por isso que se torna mais fácil em muitos casos, há-de haver mundial como o 10.º homem a aos problemas. Há sempre
prosseguir a conversa com uma sítios que funcionam já como uma escalar todas as 14 montanhas do Internet, telemóvel...”
abordagem mais filosófica. João segunda casa para um homem que planeta com mais de 8000 metros Resta o Nepal. Destino
tem um conjunto de princípios que se dedica ao alpinismo desde a sem recorrer a oxigénio artificial. incontornável nas últimas duas
leva sempre consigo quando sai da adolescência e passou a vida adulta A primeira foi o Cho Oyu, em 1993; décadas, o pequeno reino dos
sua Lisboa natal. “Viajar não é só a escalar montanhas. João lembra a última o Annapurna, a 17 de Abril Himalaias assumiu, claramente,
colocar os pés no país, é conviver Chamonix e o Nepal. A cidade de 2010. A conclusão desta odisseia o estatuto de segunda casa do
com a cultura dos locais por onde francesa no sopé do Monte Branco foi reconhecida pelo Presidente alpinista. “Katmandu [a capital]
passamos. Como ando a pé, isso dá- porque representa uma espécie de da República, Cavaco Silva, nas é uma cidade fantástica. E o
me a possibilidade de conhecer as romaria anual, “nem que seja para comemorações do Dia de Portugal, vale do Khumbu é sempre um
pessoas. É o mais enriquecedor.” olhar para as montras” da meca do a 10 de Junho deste ano, com a local especial, fica na rota de
Nunca se cansa desta descoberta: montanhismo europeu. imposição da comenda da Ordem aproximação de várias montanhas
“Por mais que vá a um sítio, Honorífica Portuguesa do Mérito. que escalei, algumas das quais
serei sempre um turista, alguém Entre todas as suas escaladas, a foram uma autêntica rampa de
de fora, um viajante. E, como que lhe granjeou maior notoriedade lançamento da minha carreira.”
tal, tento honrar as tradições e foi a subida ao Evereste (em 1999), Estamos a falar do vale que leva
costumes desse local. É preciso ter o ponto mais alto da Terra. Mas ao Evereste, mas também ao
flexibilidade cultural e uma atitude essa foi, na sua opinião, a “pior de Island Peak (6189m), ao Pumori
humilde: quando recebemos um todas” — o parceiro de escalada, (7161m) e ao Ama Dablam (6812m),
visto não somos donos de um país, o belga Pascal Debrouwer, montanhas onde Garcia liderou
somos visitas. E, enquanto visita, morreu na montanha e Garcia expedições comerciais, num
eu tenho de respeitar quem ali sofreu queimaduras de gelo que período anterior à parceria com o
implicaram a amputação de várias Millenium BCP que lhe permitiu
falanges dos dedos das mãos e tornar-se himalaísta profissional.
cirurgia reconstrutiva do nariz.
Dois anos depois estava de volta
aos “8000”.
João Garcia
“Quando recebemos
um visto, não somos donos
de um país”
Escalou, sem oxigénio, todas as 14 montanhas mais altas do planeta e isso é missão para uma
vida. Não admira, portanto, que o passaporte do alpinista João Garcia não coleccione muitos
carimbos diferentes. Mas ele compensa a falta de quantidade com a qualidade: como anda
a pé, fica a conhecer as pessoas dos sítios que visita. Sempre de mente aberta e com atitude
humilde, como contou a Luís Francisco (texto) e Rui Gaudêncio (fotos)
10 • Sábado 31 Julho 2010 • Fugas
2. As viagens de eleição
2007 – Equador
“Passei lá duas semanas, escalei
três ou quatro cumes, com a casa
de um amigo a fazer de base. Adoro
aquele país com um espanhol doce,
vulcões bonitos e vida barata. É
tudo a um dólar. Não levem notas
grandes!”
1983 – Serra da Estrela
“Tinha 16 anos. Fui de bicicleta
e isso permite apreciar a berma
da estrada, o espaço desfila
lentamente. Para mais, é uma
viagem cheia de significado:
marcou a minha primeira
libertação, o contacto com um
mundo que me deu acesso a outras
ambições.”
Nepal
“Não posso escolher uma. Vale
para qualquer das 30 vezes que
já lá fui. É um país mágico para
apaixonados pela montanha.
Magnífico e ainda comunga a
imagem que persigo: povo simples
e sorridente, montanhas com pouca
presença de estrangeiros.”
E há também a família adoptiva (bateria), nomes de “guerra” no Já esteve na Antárctida, onde
em Pangboche, uma aldeia sherpa a Filho de viajante meio, tocaram em vários grupos “nem o Google Earth conseguiu
4000 metros de altitude. “Às vezes rock portugueses nas décadas de cartografar certas zonas”, e
dou por mim a deformar os planos, No princípio não era assim, claro. 1980 e 90. vê o continente mais extremo
de forma a poder lá voltar, matar Mas sempre existiu o bichinho João sempre gostou de viajar e os como potencial palco de futuras
saudades, conviver com eles...” de viajar, quanto mais não fosse seus projectos futuros, agora que aventuras. África, excepção
Conheceram-se quando João ficou porque o pai, piloto da TAP, completou a missão dos 14 “8000”, feita a Marrocos, que considera
no seu lodge (as estalagens típicas à passava a vida nisso. E dava um não passam por ficar no sofá. “Uma um “destino genial para os
beira do trilho) e a relação avançou jeitão... “Às vezes ia com ele: das coisas que quero fazer é visitar portugueses”, não o atrai por aí
muito para lá da mera fidelidade safaris e visitas a minas de ouro na zonas pouco frequentadas pelos além, ao contrário do que sucede
comerciante/cliente. Basta dizer África do Sul; Brasil (e eu a dizer, turistas. É também uma forma de com a Ásia. “É o Evereste dos
que João patrocina os estudos quando vi escaladores no morro responsabilidade social: sendo continentes, monstruoso. Há tanto
de um dos filhos do casal e que do Corcovado: ‘Isto também eu Carimbo mais desejado conhecido, posso influenciar outras para descobrir e escalar...”
este toma conta do seu iaque — consigo fazer!’); Montreal, a ‘babar- “Vou tê-lo em breve. Em Dezembro pessoas a seguirem os meus passos, E, finalmente, a Europa,
baptizado pelos sherpas, tal como me’ para os artigos de neve nas vou à Nova Zelândia (e também a ajudar quem mora nesses locais esse “submundo tão dividido,
o próprio alpinista, Tshiring Dai, lojas; Nova Iorque no Inverno, onde à Austrália). Para quem gosta remotos.” culturalmente diverso, sobrelotado
aquele que tem vida longa. entrávamos nas lojas e no Metro só de trekking, há nomes mágicos: Continente a continente, João e... poluído”. João, que gosta é de
Mas então as viagens são só para aquecermos.” Patagónia, Nepal, Alpes e Nova descreve a América do Norte como deixar tudo para trás, não encontra
montanhas? “Não. Com a Inês João não era cliente único destas Zelândia. São países e regiões “muito mais suja do que vemos por aqui grande gozo de viajante.
[a namorada] tenho feito outras aventuras. Tinha de as dividir com lindíssimos e onde andar a pé é nos filmes, excepto o Alasca, que “Citando um alpinista russo, o
viagens!”, garante. Pensa um os irmãos, gémeos, dois anos e natural. E, depois, há também o continua a ser um paraíso natural Anatoly Boukreev, as montanhas
bocado e só se lembra de um fim- meio mais velhos. Estes, claro, mal fascínio de O Senhor dos Anéis... Ir muito bem preservado”. Da são as catedrais onde vou exercer
de-semana em Barcelona. O que se viram em Nova Iorque atiraram- ao outro lado do mundo é coisa para América do Sul retém a sensação a minha religião. E as grandes
vale é que ela também gosta de se às lojas de instrumentos se fazer uma vez na vida.” sempre libertadora de sair de casa catedrais estão fora da Europa.”
montanhas... musicais. Estava escrito: Zezé no Inverno e chegar a um sítio onde
Garcia (guitarra) e Nini Garcia é Verão: “Nem percebemos bem
porquê, mas ficamos maravilhados.
Sentimo-nos em casa.”
Fugas • Sábado 31 Julho 2010 • 11