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Ch~.: 929 C623a =690
Autor: Cleaver, Eldridge
Título: Alma no exílio : Autobiogratia
111 1
11111111111111111
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7423553 Ac. I 3I 114
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O SI N rJ Ml 'NTO E A CONI:;CJt.NCTA
O negro norte-americano está em marcha.
Não aceita mais a posição humilhante de ci-
dadão de segunda classe, cujas prerrogativas
constitucionais têm de ser formalmente garan-
tidas por legislação adicional (como o demons-
-tra o caso da "integração" nas escolas, lugares
. públicos, estabelecimentos comerciais, etc.),
embora a realidade do dia-a-dia, sobretudo nos
estados sulistas, a desrespeite de modo aberto
ou contorne de maneira solerte.
Essa campanha em defesa de seus direitos
humanos não se processa de modo uniforme,
coordenadamente, jã que as táticas de luta co-
brem uma vasta gama que vai da resistência
passiva à luta armada. Há os negros que
marcham com Deus, pela Família, recorrendo
à Bíblia, às leis e aos sentimentos dos bran-
cos, esperando poder convencê-los à prática de
uma convivência em que nenhum homem seja
diminuído ou preterido em virtude de sua côr.
Martin Luther King foi o apóstolo dêsse
sonho, dessa "revolução não-violenta". Seu
credo, definido em inúmeros discursos, tinha
forte sabor messiânico: "Sonho que um dia,
nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos
de antigos escravos e os filhos de proprietários
de escravos poderão sentar-se à mesa da fra-
ternidade. Sonho que um dia o próprio Es-
tado do Mississippi - que hoje se vê sufocado
pela opressão - será transformado num oásis
de liberdade e justiça. Sonho que meus qua-
tro netinhos viverão um dia num país onde
bâo serão julgados pela côr de sua pele, mas
pela personalidade que tiverem". Em 4 de
abril de 1968 Martin Luther King terminou
sua carreira de nobre e generoso sonhador:
James Earl Ray, branco, ex-presidiário, o
abate a tiro de fuzil, na cidade de Memphis,
Tennessee.
Muitos negros, contudo, descrêem da uti-
lidade de campanhas pacíficas. Uns se orga-
nizam em comunidades agressivas, cujo leit-
motiv é o racismo antibranco, defendendo o
retôrno às origens africanas. São os Black
Muslims (Muçulmanos Negros), cujo líder,
Malcolm X, foi também assassinado. Outros,
revolucionários militantes, fazem da Juta pela
emancipação dos negros uma primeira fase da
campanha maior, contra o próprio establish-
&"~.,ri
Coleção
BffiLIOTECA DO LEITOR MODERNO
Volume 132
-
- - - - - -
Eldridge Cleaver
Alma no Exílio
Autobiografia espiritual e intelectual
de um líder negro norte~americano
Tradução de
ANTÔNIO EDGARDO S. DA CosTA REIS
civilização
brasileira
Título do original norte-americano:
SOUL ON ICE
Copyright © 1968 by Eldridge Cleaver
Capa:
AUGUSTO IR!ARTE GIRONÁZ
Diagramação:
LÉA CAULLIRAUX
Direitos para a língua portuguêsa adquiridos pela
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
Rua 7 de Setembro, 97
RIO DE JANEIRO,
que se reserva a propriedade desta tradução.
1 9 7 1
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
- - - - - -
A Beverly,
com quem partilhei o
amor definitivo.
•· .,.
.. : .
' ~ .
Dentre as excelentes pessoas que muito ajuda-
ram para a publicação dêstes escritos, gostaria de
agradecer especialmente a Edward M. Keating, cria-
dor da revista Ramparts, que foi o primeiro profis-
sional a dar atenção a meus trabalhos; a Maxwell
Gcismar, cujas críticas me ajudaram a conseguir um
certo contrôle sôbre minhas anotações, e a David
Welsh, pela sua inestimável assistência como revisor
de texto.
Agradecimentos
Pelas transcrições de trechos das obras abaixo indicadas, agra-
decemos aos proprietários dos direitos, que gentilmente os con-
cederam:
The Dead Lecturer, de LeRoi Jones, © 1964 by LeRoi Jones.
Transcrição autorizada por The Sterling Lorci Agency.
A Superioridade Natural da Mulher, de Ashley Montagu, ©
1953 by Ashley Montagu. Transcrição autorizada por The
Macmillan Company.
Meu Problema Negro - e o Nosso, de Norman Podboretz in
Commentary. © fevereiro, 1963, by Norman Podbo!etz.
Commentary, fragmento de uma carta de Irving Louis Horo-
wi~, reproduzido com autorização da revista Commentary.
© JUnho, 1963, by The American Jewish Committee.
Cartas A bertas ao Presidente, de Norman Mailcr, © 1959, by
Norman Mailer. Transcrição autorizada por G. P. Put-
nam's Sons.
Da próxima Vez, o Fogo, de James Baldwin, © 1962, 1963,
by James Baldwin. Transcrição autorizada por The Dial
Press, Inc.
OIL The Road, de Jack Kcrouac. © 1955, 1957, by Jack Ke-
rouac. Transcrição autorizada por The Viking Press, Inc.
"O Cristo e Seus Ensinamentos" foi publicado inicialmente na
revista Esquire, em abril de 1967, sob o título de The Guru
of San Quentin.
Índice
INTRODUÇÃO por Maxwell Geismar
I. C ARTAS DA PRISÃO
A Transformação
Alma no Exílio
Quatro Vinhetas
- Sôbre Watts
- Olhos
- Alimento da Alma
- Uma Conversão Religiosa,
Mais ou Menos
- "O Cristo" e seus ensinamentos
Um dia na Penitenciária de Folsoro
Reações Iniciais ao Assassinato de Malcolrn X
ll. SANGUE DA BÊSTA
A Raça Branca e seus Heróis
Lázaro, Adianta-te
Notas Sôbre o Filho Nativo
União em Tôrno da Bandeira
A Participação do Homem Negro no Vietnã
Lei Interna e Ordem Internacic:1al
Xlll
1
3
17
24
24
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28
28
30
38
48
61
63
80
92
lOS
113
120
III. PRELÚDIO PARA O AMOR- TR~s CARTAS 131
IV. MULHER BRANCA, HoMEM NEGRO
A Alegor-ia dos Eunucos Negros
A Mitose Originária
Convalescença
A Tôdas as Mulheres Negras,
de Todos os Homens Negros
143
145
165
178
180
Introdução
MAXWELL GEISMAR
....
ESTB Livro, escrito na prisão por um jovem negro ameri-
cano (ou afro-americano), é uma das descobertas da década
de 1960. Numa época literária caracterizada por predorrünante
mediocridade de expressão, pela ausência de novos talentos de
importância, por uma espécie de depressão espiritual após a
grande onda da literatura americana dos anos vinte aos anos
quarenta, Eldridge Cleaver é uma das destacadas novas vozes
literárias a serem ouvidas. Lembra-me os grandes clias do pas-
sado. Evoca o Native Son*, de Ricbard Wright, além de ter
verdadeira afinidade moral com um dos poucos livros bons de
nossa época, a Autobiografia de Malcolm X. E, em têrmos ame-
" Publicndo no Brasil sob o título Filho Nativo, pela Cia. Editôra
Nncional, São Panlo (N. do T.)
xiii
ricanos, representa a única coisa comparável aos escritos de
Frantz Fanon.
De maneira curiosa, o livro de Cleaver tem claro paralelis-
mo com o Black Skin White Masks, de Fanon. Em ambos,
o problema central é o da identificação da alma negra "coloni-
zada" - de modo mais sutil, talvez, nos Estados Unidos, por
uns trezentos anos, se bem que mais penetrantemente - pela
1 sociedade branca opressiva que projeta sua breve e estreita visão
/ da vida como verdade eterna. Muito apropriadamente, Eldridge
Cleaver abre as Cartas da Prisão com a parte chamada "A
Transformação", datada de 1954, quando contava dezoito anos
de idade. A Suprema Côrte acabava de colocar a segregação
fora da lei e Cleaver encontrava-se na Penitenciária Estadual de
Folsom, na Califórnia, sob a acusação de porte de maconha.
Ele seria reenviado à prisão, pelo que descreve como estupro-
por-princípio. Há uma espécie de adolescente inocência - a ·
inocência do gênio - nessas primeiras cartas. Mais tarde, êle
iria revelar uma ironia brutal e um humor profundo e sombrio
a respeito da civilização do homem branco nos Estados Unidos
do século XX.
Cleaver é, simplesmente, um dos melhores críticos da época
atual; e, nesta afirmação, incluo tanto os sociólogos formais
como os ficcionistas contemporâneos que, de modo geral, aban-
donaram esta parte da literatura pelo culto da sensibilidade.
(Tenho consciência, também, de que talvez possam ser consi-
derados excessivos os elogios contidos nesta introdução; em tal
caso, peço apenas ao leitor que pare de ler o que escrevo, o
passe diretamente a Cleaver. ) Como no caso de Malcolm X,
aqui está um crítico "de fora", que se diverte em dissecar as
mais profundas e caras noções do nosso comportamento pessoal
e social; é preciso certa quantidade de coragem e "objetividade
deliberada" quando o lemos. :Ble despedaça nossos precon-
ceitos favoritos com as garras selvagens de sua prosa, até que
nossas feridas estejam descobertas c nossa psique exposta. E
temos de reagir ou então rir coro êle pelo serviço que nos pres-
tou. As "almas da gente negra", como diz W. E. B. Du Bois,
são o melhor espelho em que &e reflete a imagem do branco
americano em meados do século XX.
xiv
:E: sem dúvida audacioso da parte de Cleaver abrir esta
coleção de ensaios com aquêles que, partindo do caso específico
do estupro, enfoquem na realidade todo o profundo relaciona-
mento entre o homem negro e a mulher branca. Há um tipo
secreto de misticismo sexual neste escritor que adiciona profun-
didade e colorido ao seu comentário social; é uma mente lite-
rária e imaginativa pesquisando os aspectos mais relevantes de
nossa vida em comum. Seguem-se, então, as Quatro Vinhetas
- sôbrc Watts, os muçulmanos, o catolicismo e Thomas Mer-
ton, e o heróico professor da prisão chamado Lovdjieff. Neste
ponto, começamos a sentir o alcance e a profundidade da mente
de Eldridge Cleaver sôbre questões cmoc·ionais e filosóficas, bem
como históricas e sociais, - e, por que não dizer, "heróico",
nível raramente atingido na ficção contemporânea, não é carac-
terização inadequada para certas partes desta coleção de ensaios
profundamente revolucionária.
Após uma série de novas experiências religiosas na prisão,
o jovem Cleaver converteu-se ao maometismo, tornou-se depois
um pregador muçulmano dotado de extraordinária eloqüência c
convicção e, finalmente, um fiel seguidor de Maleolm X. Atra-
vés dêsse processo, recuperou sua imagem própria, antes aliena-
da e despedaçada, guando criança do gueto negro da Califórnia;
e, a partir daí, começou o notável processo de auto-análise,
auto-educação e auto-expressão descrit!:IS nas páginas do livro.
O ensaio intitulado "Reações Iniciais ao Assassinato de Mal-
colm X", escrito em 1965, é um documento de suma impor-
tância para a compreensão da proscrita alma negra americana
dos dias de hoje; esclarece todos os longos e quentes verões de
distúrbios, violências e destruição "sem sentido".
Cleaver liga de tal maneira o movimento da resistência negra
militante às correntes de revolução mundial que isto pode resul-
tar num choque para muitos americanos brancos de tendência
liberal c boa-vontade espuitual.
Mas é isso que ocorre; e quanto mais cedo tentarmos com-
preender tal coisa, melhor; Eldridge Cleaver pode nos ajudar
neste processo. "Alcançaremos nossa condição de homens. Ou
a alcançaremos ou a terra será arrasada pelas nossas tentativas
ti~: conquistá-la" - c algumas partes da terra americana já
foram arra'Sadas por êstc espírito profético de cólera e digni-
XV
dade humana. Mas é o capítulo do livro intitulado "Sangue
da Bêsta", e trechos como "A Raça Branca e Seus Heróis",
que considero de importância fundamental e do maior valor
literário. Apresentando-se como "observador da Ofay"*, Clea-
ver descreve êstc período histórico e esta cultura americana em
têrmos da mais adstr-
ita precisão, da mais desapiedada ironia e
da mais insistente veracidade. Recorda-nos tôdas as simples ver-
dades que as décadas de distorção e hipocrisia da Guerra Fria
quase varreram de nosso registro hlstórico - a nossa consciên-
cia histórica.
O livro é um vigoroso relato daqueles primeiros anos da
década de 1960, quando a Campanha dos Direitos Civis desper-
tou uma consciência nacional que ficara forçadamente insen-
sível, indolente e evasiva desde o trauma mccarthista. Há
uma atmosfera de turbulência nestes ensaios, que vai do advento
da Beat Generation e do On the Road, de Jack Kerouac, até
os versos revolucionários de Le Roi Jones, voltando depois aos
abolicionistas (tão desprezados e escarnecidos pelos historia-
dores revisionistas do Sul na época moderna), a Harriet Beecher
Stowe e àquela famosa peroração de 4 de Julho em favor da
raça escrava, por Frederíck Douglas, em 1852.
Na parte final do livro, parece que Eldridge Cleaver atingiu
soa própria convalescença espiritual, com o espírito cicatrizado
(não mais racista ou estreitamente nacionalista) e a fôrça adulta
como escritor. Como soltam fagulhas essas páginas! O ensaio
"Lázaro, Adianta-te", sôbre as celebridades negras e a respeito
do boxe como símbolo da virilidade das massas americanas, e
sôbre Muhamad Ali em particular, é uma beleza. Nêle, Cleaver
começa a tocar em todos os aspectos da cultura americana com
segurança c visão clara. "Notas sôbre o Filho Nativo" é. a
melhor análise que já li da carreira literária de James Baldwm;
e enquanto Cleaver diz, calmamente, coisas que nenhum crítico
branco poderia realmente atrever-se a dizer, não se nota o menor
sinal de ciúme artístico mesquinho, ou de vaidade, em sua dis-
cussão - tal como aquela, por exemplo, que marcou o próprio
"' Ofay: palavra da gíria negra norte-americana. designando pessoas
de côr branca. (N. do T.)
xvi
repúdio de Baldwin ao seu antigo mentor, Richard Wright. O
ensaio "União em tôrno da Bandeira" nos dá o simples, inci-
sivo e verdadeiro ponto de vista afro-americano sôbre a guerra
no Vietnã, opinião que Martin Luther King s6 tardiamente acei-
tou e que, na verdade, coincide com a opinião mundial sôbre
nosso aberrante comportamento no sudeste da Ásia. Mas êste
volume, que se abre com o tema de amor (Eldridge Cleaver
jamais deixa passar o fundo sexual de cada fenômeno social
ou racial), termina com o mesmo tema.
Há cartas tocantes e esclarecedoras dirigidas à advogada dos
direitos civis na Califórnia, Beverly Axelrod, que, assombrada
com o talento de Cleaver, como todos nós que o encontramos
pela primeira vez há alguns anos atrás, conseguiu sua libertação
da Prisão Folsom, após nove anos. Há a parte do livro chamada
"A Mitose Original", próxima de uma espécie de misticismo-
sexual laurentino, dando forma a tipos sociais tão encantadores
como o Criado Supermasculino e a Boneca Ultrafeminina: o mito
sexo-social que Cleaver ·inventou para o homem negro de segun-
da classe (todo corpo, sem cérebro) e para a senhora branca
e pura do Sul que, digamos, passa a existência com langor e aos
faniquitos. :gstes são os mitos exóticos e as lendas fabricadas
por um sistema de castas raciais incorporado a uma hipócrita
sociedade de classes. Estas são as fantasias satíricas, pairando
sôbre algo que poderia ser chamado de "miscigenação essen-
cial", como a chave procurada, a solução inadmissível para o
problema racial americano.
Esqueci de mencionar as descrições admiràvelmente irô-
nicas do Twist como o sintoma social da nova era de igualdade
racial nascente. Aqui, com os Beatles e o Rock n' Roll, quando
Eldridge Cleaver entra na área das diversões de massa nos Esta-
dos Unidos, está mais perto do que nunca de rir abertamente
dos ridículos do homem branco; além disso, na denúncia final
do Eunuco Negro à Rainha Negra - ao fértil ventre negro de
tôda a história - êle nos lembra de como a civilização sempre
zombou da alegria humana.
Harrison, New York
Junho de 1967
xvii
I. Cartas da Prisão
A Transformação
Penitenciária Estadual de Folsom
25 de junho de 1965
Mn. novecentos e cinqüenta e quatro, quando eu tinha
dezoito anos, é considerado um ponto crucial de transição na
história do afro-americano - e também na dos Estados Unidos
como um todo - pois foi o ano em que a segregação racial
se viu banida pela Suprema Côrte. Foi, também, um ano crucial
para mim, porque- em 18 de junho de 1954 - comecei a
cumprir pena na penitenciária estadual, acusado de posse de
maconha.
Quando entrei na prisão; fazia apenas um mês que fôra
tomada a decisão da Suprema Côrte, e não acredito que tivesse
rucsmo a mais vaga idéia de sua importância ou significação
histórica. Mais tarde, porém, a acirrada controvérsia desenca-
deada pelo término da doutrina iguais-mas-separados viria a exer-
cer um profundo efeito sôbre mim. Essa controvérsia desper-
3
tou-me para minha posição na Améril:a e come~i a formar um
conceito do que significava ser negro na Aménca branca.
Naturalmente, sempre soubera que era. UJ? negr~, mas
nunca, realmente, parara para tomar consciencm ~aq?~o em
que estava envolvido. Enfrentei a vida como um mdivtduo e
assumi os riscos. Até 1954, vivíamos numa atmosfera de n~vo­
caína. Os negros achavam necessário, para ~~te~ u~ míntm?
de sanidade possível, ficar de algum modo a distancia e deslt-
gados do "problema". Aceitávamos as iodi~idades e as engre-
nagens do aparelho de opressão, sem reagir através da org~­
nização de sit-ins* ou realizando manifestações de massa. Alt-
mentado pelas chamas da controvérsia sôbre a segregação, logo
fiquei inflamado de indignação por meu recé~~escoberto status
social e, interiormente, voltei as costas à Amenca, com horror,
nojo e revolta.
Na prisão estadual de Soledad, aderi a um grupo de jovens
negros que, como eu, estava em agitada rebelião contra o que
considerávamos a continuação da escravatura num plano supe-
rior. Amaldiçoávamos tudo que fôsse american? - inclus~ve
o beisebol e os cachorros-quentes. Todo o respe1to que pudes-
semos ter tido por poUticos, pregadores, advogados, governa-
dores, presidentes, senadores, congressi~tas foi c~mpletamente
destruído quando os vimos contemponzar e _ace1tar co~pro­
missos a respeito do certo e do errado, da legalldade e da ilega-
lidade da constitucionalidade e da inconstitucionalidade. Sabía-
mos que afinal de contas, êles brigavam entre si a nosso respeito,
sôbre o 'que fazer com os negros, e se deviam ou não começar
a nos tratar como sêres humanos. Eu desprezava todos êles.
Os segregacionistas eram condenados indiscriminadamente,
sem mesmo ouvirmos seus elevados e rebuscados argumentos.
Os outros, eu desprezava por perderem temp? em debates.com
os segregacionistas: por que não esm~gá-los stmples:nente, JOgá-
los na prisão - êles estavam desafiando ~ lei, na_? estavam?
Eu desafiei a lei e êles me puser~m na cade1a. Entao, por que
não meter também as mães dêles na prisão? Eu fôra apanhado
• Protesto passivo organizado, contra a segreg~ç~o racial, no qual
os manifestantes ocupam lugares que lhes são proibidos, como restau·
taurantes e outros locais públicos. (N. do T.)
4
com uma sacola de compras cheia de maconha, uma sacola de
compras cheia de amor - estava apaixonado pela erva e nem
por um minuto pensei que houvesse algo de errado em "puxá-la".
Fazia quatro ou cinco anos que "queimava a erva" e estava
convencido, com o fervor de um cruzado, de que a maconha era
superior à bebida - no entanto, os mandões da terra pare-
ciam todos ser beberrões. Não podia compreender como êles 1
tinham mais justüicativas para beber do que eu para "ficar 1
baratinado". Eu era um "queimador de erva", e era natural
que me sentisse injustamente prêso.
Enquanto tudo isso sucedia, nosso grupo adotava o ateísmo.
Simples e sem qualquer base filosófica racional, nosso ateísmo
era pragmático. Eu começara a acreditar que Deus não existe; e,
se existisse, os homens não sabiam nada a respeito dêle. Por
conseguinte, tôdas as religiões eram embustes - o que tornava
todos os pregadores e padres, aos nossos olhos, embusteiros,
inclusive aquêles que corriam de um lado para outro na peni-
tenciária e que, curiosamente, podiam pedir por você junto ao
Todo Poderoso Criador do Universo, mas não podiam conse-
guir nada, aqui embaixo, com os guardas ou com a junta de
livramento condicional - tinham o poder de nos fazer entrar
nos Portões Celestiais depois que estivéssemos mortos, mas não
podiam nos fazer atravessar o portão da prisão enquanto ainda
estivéssemos vivos. Além disso, os religiosos que trabalham na
prisão têm um estigma indelével aos olhos dos presos, porque
escoltam os condenados até a câmara de gás. Tais homens de
Deus são argumentos poderosos em favor do ateismo, que era,
para mim, uma fonte de enorme orgulho. Mais tarde, fortaleci
meus argumentos ao ler Thomas Paine e sua crítica devastadora
da Cristandade, em particular, c da religião organizada, em
geral.
Através da leitura, fiquei assombrado ao descobrir como
sfío confusas as pessoas. Eu pensava que, fora dali, além do
horizonte da minha própria ignorância, existia a unanimidade;
que, embora eu não soubesse o que acontecia no universo,
m•tros certamente saberiam. No entanto, aqui estava eu desco-
b• indo que todos os Estados Unidos atravessavam um caos de
dis~órdia sôbre segregação e integração. Nessas circunstâncias,
decidi que a única coisa segura a fazer era agir por conta pró-
5
pria. Tornou-se claro que me era possível tomar a iniciativa:
ao invés de simplesmente reagir, eu poderia agir. Passaria unila-
teralmente - não importando se alguém concordasse comigo
ou não - a repudiar tôdas as alianças, a moral, os valôres -
mesmo continuando a existir dentro desta sociedade. Minha
consciência seria livre e nenhum poder no universo poderia for-
çar-me a aceitar algo que não quisesse. Seria dono do meu
nariz. Isso era também uma parte da minha nova liberdade.
Nada aceitaria até que fôsse provado que era bom - para
mim. Tomei-me um iconoclasta ao extremo. Qualquer asser-
ção afirmativa feita por alguém à minha volta tornava-se alvo
para posições de crítica e acusação.
Esse joguinho tornou-se bom para mim e eu me tornei
bom nêle. Atacava tôdas as formas de piedade, lealdade e sen-
timento: casamento, amor, Deus, patriotismo, a Constituição, os
Fundadores da Nação, leis, conceitos de certo-errado-bem-mal,
tôdas as formas de comportamento ritual e convencional.
Enquanto pulava de um pé para outro, de porrete na mão, em
busca de novos ídolos para destruir, encontrei re~mentc, pela
primeira vez na vida, com alguma seriedade, O Ogro, erguen-
do-se à minha frente numa névoa. Descobri, alarmado, que
O Ogro exercia tremendo e espantoso poder sôbre mim, e não
compreendia êsse poder nem por que estava à sua mercê. Ten-
tei repudiar O Ogro, arrancá-lo do meu coração como fizera
com Deus, a Constituição, os princípios, a moral e os valôres
- mas O Ogro tinba suas garras enterradas no âmago do meu
ser e recusava-se a tirá-las. Lutei freneticamente para liber-
tar-me, mas O Ogro apenas zombou de mim e afundou suas
garras ainda mais profundamente na minha alma. Compreendi,
então, que havia encontrado uma chave importante, que, se con-
quistasse O Ogro e quebrasse seu domínio sôbre mim, estaria
livre. Mas sabia, também, que era uma corrida contra o tempo
e que se eu não vencesse, certamente seria dominado e destruído.
Eu, um homem negro, enfrentei O Ogro - a mulher branca.
Na prisão, aquelas coisas recusadas e proibidas ao prisio-
neiro tornam-se precisamente, claro, as que êle mais deseja.
Como éramos trancados nas celas antes do anoitecer, costumava
ficar acordado durante a noite, torturado pela ansiedade dolo-
rosa de dar uma voltinha à luz das estrêlas, ou ir à praia, diri-
6
gir um carro numa auto-estrada, deixar crescer a barba ou fazer
amor com uma mulher.
Como eu não era casado, as visitas conjugais não teriam
resolvido meu problema. Por isso, denunciei essa idéia como
injusta por natureza; os prisioneiros solteiros necessitavam e
mereciam funcionar do mesmo modo que os casados. Advo-
guei o estabelecimento de um sistema de Serviço Civil pelo qual
mulheres pegas serviriam às necessidades dos presos que manti-
véssem um registro de bom comportamento. Se o prisioneiro
casado preferisse a própria espôsa, teria êsse direito. Uma vez
que a Califórnia não pretendia estabelecer nem o sistema das
visitas conjugais nem o do Serviço Civil, alguém poderia advogar
tanto um como outro com igual entusiasmo e com o mesmo
resultado: nada.
Isto pode parecer ridículo para algumas pessoas. Mas era
vital para mim e tão urgente quanto a necessidade de respirar,
porque eu estava na "fase do touro" e a falta de acesso a mulhe-
res era, incontestàvelmente, uma forma de tortura. Sofri. Minha
amante na ocasião em que fui prêso, a linda e solitária espôsa
de um militar convocado e servindo no exterior, morreu inespe-
radamente três semanas depois de eu entrar na prisão; e os rígi-
dos e desumanos regulamentos controlando a correspondência
entre prisioneiros e pessoas livres impediam que eu me corres-
pondcsse com outras jovens senhoras que eu conhecia. Aquilo
deixou-me sem qualquer contato com mulheres, exceto as de
minha família.
No processo para suportar meu confinamento, resolvi
arrumar uma dessas jovens que posam para fotografias a fim
de colá-la na parede da minha cela. Eu me apaixonaria por
ela e extravasaria minhas afeições. Ela, uma representante sim-
bólica da classe proibida de mulheres, ajudar-me-ia até que eu
fôsse pôsto em liberdade. Das páginas da revista Esquire, casei
com uma noiva de formas voluptuosas. Nosso casamento fêz
progressos durante algum tempo: sem brigas nem queixas. E
então, certa noite, quando voltava da escola, fiquei horrorizado
c enraivecido ao saber que um guarda entrara em minha cela,
arrancara meu "doce de côco" da parede, rasgara-o em peda-
cinhos e deixara o papel picado espalhado no vaso sanitário:
era como ver um cadáver boiando num lago. Dando-lhe o entêr-
7
ro que merecia, puxei a descarga. E como diz o dito popular,
mandei-a para Long Beach. Mas, fiquei realmente descontro-
lado de raiva: quase tôdas as celas, exceto aquelas dos homos-
sexuais, tinham uma garôta na parede c os guardas não se
importavam. Por que, indaguei ao guarda no dia seguinte, tinha
me escolhido para um tratamento especial?
- Você não sabe que temos um regulamento proibindo
a colagem de fotografias nas paredes? - perguntou-me êle.
- Que se danem as regras.- respondi. -Você sabe tão
bem quanto eu que êsse regulamento não é observado.
- Vou lhe dizer uma coisa. - continuou êle r·indo para
mim (o sorriso fêz com que me colocasse de guarda) - assumo
o compromisso com você: arn1me uma jovem de côr para colar
- mulher branca, não - e eu a deixarei ficar na parede. Esta-
mos conversados?
E u fiquei mais embaraçado do que chocado. ~lc rindo na
minha cara. Chamei-o de uns dois ou três palavrões c me afas-
tei. Posso ainda lembrar sua grande cara de lua arreganhando
os dentes amarelos para mim. O aspecto perturbador de todo
o incidente foi que um terrível sentimento de culpa caiu sôbre
mim quando me dei conta de que escolhera a fotografia da
jovem branca entre várias fotos de garôtas negras. Tentei esque-
cer, mas estava fascinado pela verdade que o fato envolvia. Por
que, ante~, não tinha pensado naquilo sob êstc ângulo? Assim,
concentre1-me na questão e comecei a investigar meus senti-
mentos. Seria verdade, eu preferira mesmo a branca ao invés
das negras? A conclusão foi clara e inevitável: preferira.
Decidi sondar meus amigos sôbre a questão c foi fácil deter-
minar, das conversas em geral, que a mulher branca ocupava
um lugar peculiarmente proeminente em todos os nossos traços
de referência. Com que aprendi desde então, isso tudo parece
agora terrlvt:lmente elementar. Mas, na ocasião, foi uma aven-
tura tremendamente intricada.
Uma tarde, quando um grande grupo de negros estava no
pátio da prisão tomando sol, agachei-me junto a êles e apresen-
tei o problema: o que êles preferiam, mulheres brancas ou negras?
Alguns disseram que as japonêsas eram suas favoritas, outros
as chinesas, alguns as européias, outros as mülhercs mexicanas
8
- todos manifestaram uma preferência, e de modo geral admi-
tiam livremente seu desagrado pelas mulheres negras.
- Pra mim, prêto só Cadillac - disse um dêles.
- Se dinheiro fôssc prêto, não queria nem um níquel
- afirmou outro.
Um prisioneiro baixo e atarracado, bom pugilista pêso-leve,
com o complexo de homem pequeno que o fazia gostar de boxear
com pesos-pesados, saltou sôbre os çés. Tinha uma côr ama-
relada e nós o chamávamos de Borboleta.
- Todos vocês, crioulos, são uns porcos! - esbravejou
o Borboleta. - Eu não vou com nenhuma branca fedorenta.
Minha avó é branca e nem mesmo dela eu gosto!
Mas isso aconteceu de tal modo que o comparsa do Bor-
boleta, também no meio do grupo, logo após disse ao compa-
nheiro de crime:
- Ora, sente-se e fique quietinho, "seu" pedaço de tronco.
E aquela garôta mais pra branca que pra preta que abriu seu
nariz? Você a desejava, ou estava somente correndo atrás dela
com a língua de fora porque a odiava?
Parte porque ficara embaraçado e parte porque seu com-
parsa era pêso-pesado, Borboleta vôou sôbre êle. E, antes que
pudéssemos separá-los e nos dispersar, para que o guarda não
soubesse quem estivera brigando, Borboleta tirava sangue do
nariz do companheiro. Borboleta fugiu mas, por causa do san-
gue, o comparsa foi apanhado. No jantar daquela noite comi
ao lado de Borboleta e interroguei-o duramente sôbre sua ati-
tude em relação às brancas. E, após a evasiva inicial, admitiu
que a mulher branca também fazia pouco dêle.
- E. uma praga - disse êle. - Passamos a vida tôda
com a mulher branca dançando diante de nós como uma cenoura,
prêsa num caniço, na frente de um burro: olhe mas não toque.
(Em 1958, depois de minha saída em liberdade condicional e
tlc ter sido devolvido a San Quentin sob nova acusação, Borbo-
leta ainda estava lá. Tornara-se muçulmano negro e foi o prin-
cipal responsável pelo meu aprendizado da sua filosofia. Depois
de sua libertação de San Quentin, Borboleta entrou para a mes-
quita de Los Angclcs, galgou ràpidamente os degraus hierár-
quicos e é, agora, um experiente ministro das mesquitas de Elijah
Mu h~1mmad, em outra cidade. Conseguiu completar seu tempo
9
de livramento condicional, casou-se - com uma môça bem
preta - e está .indo muito bem.)
_De nossa discussão, que começou naquela noite e jamais
termmo~, passamos a observar até que ponto, no curso dos
acontecimentos, o crescimento do negro na América é doutri-
nado dentro do padrão de beleza da raça branca. Não que os
brancas façam.um esfôrço c?nsciente e calculado para isso, pensá-
vamos; mas, Já que conshtuem a maioria, fizeram uma lava-
gem cerebral nos n~gros pelos mesmos processos que empre-
gara~ ~ara s~. doutn~arem nos padrões do seu próprio grupo.
Aquilo mtensificou mmhas frustrações por saber que fui doutri-
nado para ver a mulher branca como mais bonita e desejável
do q~e as ,mulheres da minha própria côr. Aquilo lançou-me
aos livros a procura de luz sôbre o assunto. No Native Son
de Richard Wright, encontrei Bigger Thomas e a visão profund~
do problema.
Meu interêsse nesta área persistiu e depois, em 1955 ocor-
re.u w;n fato em Mississipi que me virou pelo avêsso: Émmett
Tdl, Jovem negro de Chicago, fôra assassinado por flertar,
supostamente, com uma mulher branca. Fôra morto a tiros
a cabeça esmagada pelos repetidos golpes com barras de ferro:
e o corpo, totalmente decomposto e com um pêso amarrado
foi ret~ado de um rio. Fiquei, naturalmente, revoltado com tudo:
Mas VI, um dia, numa revista, a fotografia da mulher branca
com a qual Emmett Till alegadamente flertara. Enquanto olhava
a. foto, senti aquela ligeira tensão no centro do peito que expe-
runento quando uma mulher me atrai. Fiquei enojado e revol-
tado comigo mesmo. Ali estava a mulher que causara a morte de
um negro, .possivelmente porque quando êle olhou para ela tam-
bém ~xpenmeotou,as mesmas tensões de lascívia e desejo dentro
do petto - e provavelmente pelas mesmas razões que senti. Tudo
era inacreditável para mim. Olhei a fotografia uma, duas vêzes
e, apesar de tudo, contra a minha vontade e o ódio que sentia
pela mulher e tudo que representava, ela me atraía. Senti raiva
de mim mesmo, da América, da mulher branca, da história que
provocara aquelas tensões no meu peito.
Dois dias depois, sofri um "colapso nervoso". Durante
vários dias gritei e esbravejei contra a raça branca, contra a
mulher branca, em particular, contra a Am6rica branca, em
10
geral. Quando voltei a mim, estava trancafiado numa cela de
paredes acolchoadas, sem a mais vaga lembrança de como fôra
parar ali. Tudo que podia lembrar era uma eternidade de passos
indo e voltando na cela, pregando para as paredes sem ouvidos.
Tive várias conversas com o psiquiatra. Sua conclusão foi
de que eu odiava m.inha mãe. Como chegou a isto eu nunca
soube, porque êle nada conhecia a respeito da minha mãe; e,
quando me fazia perguntas, eu respondia com mentiras absurdas.
O que me revoltou nêle foi que me ouvira denunciar os brancos,
ainda que em cada entrevista guiasse deliberadamente a conversa
para a vida da minha família, para a minha infância. Aquilo
em si estava certo, mas êle propositadamente bloqueou tôdas as
minhas tentativas de trazer à tona a questão racial, e deixou
claro que não estava interessado na minha atitude com relação
aos brancos. Era uma caixa de Pandora que êle não se preo-
cupou em abrir. Depois de suspender minhas severas críticas
contra os brancos, tive alta do hospital. Voltei ao convívio dos
prisioneiros como se nada tivesse acontecido. Continuei a medi-
tar sôbre êsses acontecimentos e sôbre a d.inâmica das relações
raciais na América.
Durante êste período, concentrei minhas leituras no campo
da economia. Tendo previamente passado os olhos nas teorias
e escritos de Rousseau. Thomas Paine e Voltaire, dei um certo
polimento na minha posição iconoclasta sem, entretanto, impor-
tar-me muito em compreender suas posições afirmativas. Na
economia, porque todos pareciam achar necessário atacar e con-
denar os escritos de Karl Marx, procurei seus livros e, embora
êle tivesse me deixado com dor de cabeça, adotei-o como auto-
ridade. Não estava preparado para compreendê-lo, mas era
capaz de ver nêle uma crítica e condenação eficazes do capi-
talismo. A descoberta de que, realmente, o capitalismo ameri-
cano merecia todo o ódio e desprêzo que sentia por êle, no fundo
do coração, foi para mim algo como tomar o remédio adequado.
Isso teve um efeito positivo e estabilizador sôbre mim - até
certo ponto, porque eu não estava disposto a ficar bitolado -
c desviou-me de uma antiga preocupação: meditações mórbidas
sôbrc o homem negro e a mulher branca. Prossegu.indo minhas
leituras até a história do socialismo, li, sem também entender
muito, alguns dos apaixonantes e exortat6rios escritos de Lênin;
11
apaixonei-me pelo Catecismo do Revolucionário, de Bakunin e
Nechaiév - cujos princípios, juntamente com alguns conselhós
de Maquiavel, procurei incorporar ao meu próprio comporta-
mento. Fiz dêsse catecismo a minha bíblia e, insistindo numa
plataforma pessoal que nada tinha a ver com a reconstrução da
sociedade, comecei conscientemente a jncorporar êstes princí-
pios à minha vida diária, a empregar táticas de crueldade com
quem quer que tivesse contato. E passei a olhar a América
branca com êstes novos olhos.
De certo modo, cheguei à conclusão que, por uma questão
de princípios, era de suma importância para mim ter uma ati-
tude hostil e sem compaixão para com as mulheres brancas. O
têrmo proscrito atraía-me e, quando se aproximava a hora do
meu livramento condicional, considerei já ser mentalmente livre
- eu era um proscrito. Afastara-me da lei do homem branco,
que eu repudiava com desdém e satisfação. Transformei-me na
própria lei - meu próprio legislativo, minha própria suprema
côrte, meu próprio executivo. No momento em que saí pelo
portão da penitenciária, meus sentimentos em relação às mulhe-
res brancas, em geral, podiam ser resumidos nas seguintes linhas:
12
A UMA MÔÇA BRANCA
Eu te amo
Porque és branca,
Não porque és atraente
Ou fascinante.
Tua brancura
:B um fio de sêda
Embaraçando-se nos meus pensamentos
Em riscos incandescentes
De lascívia e de desejo.
Eu te odeio
Porque és branca.
Tua carne branca é alimento de pesadelos.
Branca é
A pele do Demônio.
Tu és a minha Moby Dick,
Feiticeira branca,
Símbolo da corda e da árvore da fôrca,
Da cruz em fogo.
Amando-te assim,
Meu coração se parte em dois.
Crucificado.
Tornei-me um estuprador. Para refinar minha técnica e
modus operandi, comecei a praticar com as môças negras do
gueto - do gueto negro, onde a ignorância e o vício não apa-
recem como anomalias ou desvios do padrão normal, mas como
parte da aptidão para o sofrimento. E, quando achei que
estava suficientemente treinado, saí em campo seguindo a pista
da prêsa branca. Tudo isto foi consciente, deliberado, volun-
tário e ordenado - apesar de agora sentir que me encontrava
possuído por um espírito enfurecido, desenfreado e completa-
mente depravado.
O estupro era um ato de insurreição. Enchia-me de prazer
o fato de ue estava desafiando e pisoteando a lei do homem
branco, o seu ststcma de valôrcs, e que via ava suas mulherC
J
- c .
isto, acredito eu, era o que mais me satisfazia, porque me
sentia revoltado com o modo pelo qual, lústôriamente, o homem
branco fizera uso da mulher negra. Achei que estava obtendo
a vingança. Partindo do local em que fôra cometido o estupro,
a consternação propagava-se em círculos concêntricos. Queria
enviar ondas de consternação por tôda a raça branca. Recente-
mente, encontrei esta citação num dos poemas de LeRoi Jones,
tirado do seu livro The Dead Lecturer:
Um culto de morte necessita do simples braço em
posição de ataque sob um lampião de rua. Dos corta-
dores de sua terra arrendada. Apareçam, dadaístas niilis-
tas negros. Raptem as môças brancas. Raptem seus pais.
Cortem as gargantas de suas mães.
13
Vivi aquelas linhas e sei que, se não tivesse sido agarrado
pelas autoridades, teria raspado algumas gargantas brancas.
Existem, é claro, muitos jovens negros lá fora que neste exato
momento estão cortando gargantas brancas e violando a môça
branca. Não estão fazendo isso porque leram as poesias de
LeRoi, como alguns críticos parecem acreditar. Pelo contrário,
LeRoi expressa simples fatos da vida.
Após voltar à prisão, passei algum tempo examinando a
mim mesmo e, pela primeira vez na vida, admiti que estava
errado, que me extraviara - não tanto da lei do homem branco,
mas do ser humano, civilizado - pois não podia aprovar o
estupro. Embora tivesse algum conhecimento de minhas moti-
vações, não me sentia justificado. Perdi o auto-respeito. Meu
orgulho de homem dissolveu-se e tôda a minha frágil estrutura
moral pareceu ruir, completamente abalada.
Eis por que comecei a escrever. Para salvar a mim mesmo.
Concluí que ninguém poderia me salvar, a não ser eu mesmo.
As autoridades da penitenciária eram desinteressadas e incapa-
zes de salvar-me. Precisava procurar a verdade e desenredar o
emaranhado de minhas motivações. Tinha de descobrir quem
eu era e o que desejava ser, que tipo de homem eu devia ser,
e o que poderia fazer para tomar-me o melhor no que eu era
capaz. Compreendi que aquilo que se passara comigo também
acontecera a um sem-número de outros negros, e que aconte-
ceria com muitos e muitos mais.
Constatei que eu procurara a saída mais fácil, fugindo dos
problemas. Também aprendi que era muito mais fácil fazer
o mal do que o bem. E fiquei terrivelmente impressionado com
os jovens da América, negros e brancos. Sinto orgulho dêles
porque reafirmaram minha fé na humanidade. Senti o que deve
ser o amor para a juventude da América e quero ser parte da
bondade e da grandeza que ela deseja para tôdas as pessoas.
Da minha cela na prisão, observei a América ir acordando aos
poucos. Ainda não acordou totalmente, mas existe vida no ar
e em todos os lugares eu vejo a beleza. Assisti aos sit-ins, às
incursões pela liberdade, aos verões sangrentos de Mississipi, às
manifestações em todo o país, ao movimento FSM (Movimento
14
pela Liberdade de Expressão), aos teach-ins*, e ao crescente
movimento de protesto contra a política externa de Lyndon
Strangelove; tudo isto, e os milhares de pequenos detalhes, mos-
traram-me que estava na hora de me compor c andar no rumo
certo. Daí o motivo de concentrar meus escritos e esforços nesta
área. Estamos num país muito doente - eu, talvez, seja mais
doente do que a maioria. Mas aceito isso. Disse no princípio
que sou um extremista por natureza - assim, também é justo
que eu deva ser extremamente doente. ,
Estava bem familiarizado com o Eldridge que veio para a
prisão, mas aquêle Eldridge não existe mais. E o que sou agora
é de certo modo estranho para mim. Podem achar difícil de
compreender, mas é muito fácil para alguém na cadeia perder
seu senso de indivíduo. E se êlc foi suportanto tôdas as espé-
cies de mudanças radicais, complicadas e desordenadas, então
termina não sabendo quem é. Tomemos como exemplo a ques-
tão de ser atraente para as mulheres. Vê-se fàcilmente como
um homem pode perder sua arrogância ou certeza sôbre a ques-
tão, prêso numa cela! Quando está no mundo livre, é constan-
temente alertado sôbre como está sua aparência pelo número de
cabeças femininas que faz virar quando caminha pela rua. Na
prisão, o máximo que êle consegue são olhares de ódio e sobran-
celhas franzidas. Anos e anos de olhares carrancudos. A indi-
vidualidade não é nutrida na prisão, nem pelas autoridades nem
pelos condenados. :b um buraco muito fundo para se sair.
O que deve ser feito, acredito, é que todos êsscs problemas
- particularmente a indisposição entre a mulher branca e homem
negro - devem ser trazidos à luz, estudados e resolvidos. Sei
que a atitude doentia do homem negro em relação à mulher
branca é uma doença revolucionária: que o mantém perpetua-
mente fora de harmonia com o sistema que o oprime. Muitos
hruncos autolisonjeiarn-se com a idéia de que a lascívia e o desejo
do homem negro pela môça branca dos seus sonhos é pura-
mcnlc uma atração estética, mas nada poderia estar mais dis-
• 'l'rach-ins: período prolongado de conferência e discursos espe-
llllllllt'lltc conduzido~ em colégio ou universidade, por seus membros
1111 i'On vidndoH, como expressão de protesto social. (N. do T.)
15
tante da verdade. Sua motivação é de um modo geral de natu-
reza tão sangrenta, pérfida, penetrante c perversa, que os brancos
são realmente pressionados a acharem lisonjeira. Discuti êsses
aspectos com os prisioneiros que foram condenados por estupro,
e suas motjvações são muito simples. Mas relutam em discutir
com o homem branco que, na sua maioria, compõe os quadros
da prisão. Acredito que na experiência dêsses homens está a
sabedoria e a prudência que devem ser utilizadas para auxiliar
outros jovens que rumam na mesma direção. Penso que todos
nós, a nação inteira, caminharemos melhor se encararmos tudo
isso diretamente. O sentimento de muitas pessoas será ferido,
mas êste é o preço que precisa ser pago.
Pode ser que eu possa ferir a mim mesmo falando franca
e diretamente, mas não me importo com isso. :a claro que quero
sair da prisão, e quero muito, mas tenho certeza de que um
dia sairei. E estou mais preocupado com o que serei após
sair. Sei que seguindo o curso que tracei encontrarei minha
salvação. Se tivesse seguido o rumo marcado para mim pelas
autoridades, indubitàvelroente já estaria lá fora há muito tempo
- mas não seria um homem inteiro. Seria mais fraco e não
teria certeza sôbre onde desejo chegar, o que desejo fazer e
como ir até lá.
18
O preço de odiar outros sêres humanos é amar menos
a si próprio.
I
Alma no Exílio
----------------------------------------
Penitenciária Estadual de Folsom
9 de outubro de 1965
T ENHO perfeita consc1encia de que estou na pnsao, de
que sou negro, de que fui estuprador e de que sou diplomado
em ignorância. Nunca soube que significado se espera que eu
atribua a êsses fatôres. Mas suspeito de que, em conseqüência
dêsscs aspectos do meu caráter, as pessoas "livres-normais-ins-
llllfdas", seguramente esperam que eu seja mais reservado, peni-
tente, arrependido e não muito rápido para abrir a bôca sôbre
t·crtos assuntos. Mas eu as "deixei na mão", desapontei-as,
lú com que ficassem boquiabertas numa espécie de torpor, como
se estivessem pensando: "Você está ficando maluco! Será que
nao vê que tem um débito com a sociedade?" Minha resposta
tt todos C:stcs pensamentos ocultos nas suas cabeças quadradas,
t·wondidos atrás de olhos vesgos e bombardeadores, é que o
"iiii!IIL: dos camponeses vietnamitas já pagou todos os meus débi-
tnH; que 1l povo vietnamita, afligido por um mal devastador
17
chamado Ianque, através de seus sofrimentos - em oposiÇao
à "frustração" dos tranqüilos amer-
icanos bem nutridos, seguros
em suas casas e preocupados em comer bacon, presunto ou sal-
sicha com ovos de primeira qualidade, enquanto os vietnamitas
se preocupam cada manhã em saber se os ianques vão lançar
gases, incendiá-los ou explodir seus humildes abrigos com sarai-
vadas de bombas - cancelaram todos os rou*.
Ao começar esta carta, poderia - com a mesma facilidade
- ter mencionado outros aspectos da minha condição. Poderia
ter dito: estou perfeitamente consciente de que sou alto, de que
sou magro, de que preciso me barbear e de que tenho vigor
suficiente para chupar as velhas têtas murchas da minha avó,
e de que cu cavaria cada vez mais profundo para ficar limpo
novamente, não apenas no sentido de tomar um banho a vapor,
mas de me transformar num perfeito cavalheiro com um toque
do Harlem; ou de que gostaria de vestir um macacão, colocar
um babador e tornar-me um Bobalhão, de que gostaria de com-
pletar a "última milha"** e deixar a barba crescer do modo como
requer o nacionalismo local, e me vestir como camarada à moda
de Che Guevara, e compartilhar do seu destino, proclamando
um nôvo rumo a explorar através do cérebro otimista e blo-
queado da Nova Esquerda, ou de como gostaria de estar neste
momento em Berkeley, rolando naquela lama, fazendo traves-
suras naquele chiqueiro de revolução tímida, respirando seus
gases fortes, c olhando indiferentemente para um nôvo John
Brown, um Eugene Debs, um negro humilde e astuto como Mal-
colm X, um Robert Franklin WiJl!ams, um Lênin americano,
um Fidel, um Mau-Mau, UM MAU-MAU, UM MAU-MAU, UM MAU-
MAU, UM MAU-MAU, UM MAU-MAU, UM MAU-MAU. . . Tudo
isto é verdade.
Mas o que importa é que me apaixonei por meu advogado!
Não é surpreendente? Espera-se de um condenado que tenha alta
consideração por qualquer um que chegue em seu auxílio, que
tente ajudá-lo e que gaste tempo, energia e dinheiro na tenta-
• Abreviatura fonética de l owe you: vale, reconhecimento de dí-
vida, contendo os três letras seguidas da quantia c llssin<~tura. (N. do T.)
** O autor refere-se ao caminho entre a sua cela e a câmara da
morte. (N. do T.)
18
tiva de libertá-lo. Mas pode um condenado realmente amar um
advogado? :e uma coisa de mau gôsto. Os condenados odeiam
advogados. Caminhar pelo pátio da penitenciária e falar bem
de um advogado é levantar as sobrancelhas caídas pelo abati-
mento de criminosos maníacos. Os presidiários estão conven-
cidos de que os advogados devem possuir um caderninho prêto
secreto que a ninguém mais é permitido ver, um livro que lhes
ensina uma moralidade esotérica, na qual o Deus Supremo é
traiçoeiro, e confundir um cliente de confiança, a mais nobre das
ações. Os prisioneiros ficaram sabendo que eu me "queimara"
com algumas revistas que me foram dadas por meu advogado e
que eu fôra atirado no "Buraco" por causa daquilo. Riam inten-
cionalmente e me diziam que eu bancara o trouxa, que meu
advogado me enrolara e que, se não conseguia ver a conspi-
ração, eu era tão estúpido que compraria, não só a ponte Golden
Gate, mas até um sorvete derretido.
Agora era a minha vez de rir maliciosamente. A paranóia
do condenado é tão espêssa quanto o muro da penitenciária -
e, no momento, necessário. Por que deveríamos ter fé em qual-
quer um? Mesmo nossas espôsas e amantes cujas camas compar-
tilhamos, com as quais repartimos os momentos mais felizes e
as relações mais delicadas, deixam-nos depois de algum tempo,
humilham-nos, proclamam independência e tratam-nos como se
nos odiassem, não nos escrevem sequer uma carta, ou mandam
um cartão de Natal cada ano, ou alguns maços de cigarros ou
tubo de pasta de dente de vez em quanto. Tôda a sociedade
mostra a bunda para o prisioneiro e espera que êle a beije: o
presidiário sente como se levasse um chute ou uma bala bem
no traseiro. Vê as unhas e dentes do homem e aprende ràpi-
damentc a descobrir e mostrar as suas. Manter o freio sôbre
os ideais e sentimentos da civilização em tais circunstâncias é
provàvelmcnte impossível. Quanto mais incrível não será, então,
r nquanto enraizados neste buraco, apaixonar-se, e por um advo-
l'ado! Use um advogado, sim; use qualquer um. Diga-lhe
ruc-;rno que você está apaixonado. Mas você sempre saberá
quundo cstú mentindo e, mesmo se conseguisse ludibriá-lo, não
~·w1scguiria jamais ludibriar a si mesmo.
n por que você fica triste quando vê que tudo depende
dt· tais fios tênues c caprichosos? Porque você é um sonhador,
19
um incrível sonhador, com uma minóscula centelha escondida
em algum lugar dentro de você e que não pode se apagar, c que
nem você pode extinguir ou dominar e que o tortma horr'ivel-
mcnte, porque tôdas as chances são a favor de seu contínuo abra-
samento. Em meio à mais sórdida decadência e pútrida selva-
geria, esta centelha lhe fala de beleza, de calor e de bondade
humana, de generosidade, de grandeza, de heroísmo, de mar-
tírio e lhe fala de amor.
Por esta razão, amo meu advogado. Meu advogado não
é uma pessoa comum. h um rebelde, um revolucionário que
está alienado fundamentalmente do status quo e, provàvelmeote,
com uma intensidade, convicção e irrecuperabilidade tão grandes
quanto a minha alienação - e possivelmente com mais inteli-
gência, compaixão e humanidade. Se você ler os jornajs, não
terá dúvidas quanto ao incessante envolvimento do meu advo-
gado na agitação contra tôdas as manifestações dos monstruosos
males do nosso sistema, tais como a intervenção nos assw1tos
internos do povo vietnamita ou a invasão da República Domi-
nicana pelos fuzileiros norte-americanos. E o meu advogado
defende os manifestantes dos direitos civis, os que participam
de sit-ins, os estudantes que protestam em favor da Liberdade
de Expressão e que rebelaram contra a máquina Kerr-Strong*
na Universidade da Califórnia. Meu amor por meu advogado
deve-se, em parte, a estas atjvidades e envolvimentos, porque
estamos sempre do mesmo lado em tais questões. E cu amo
todos os meus aliados. Mas isto, que pode ser o princípio de
uma explanação, não chega a explicar o que se passa entre nós.
Suponho que devesse ser franco e, antes de me aprofundar
mais no assunto, admitir que meu advogado é uma mulher -
ou, talvez, devesse omitir esta parte do enigma - uma mulher
excelente, fora do comum e linda. Sei que ela acredita que eu
realmente não a amo e que estou confundindo uma combinação
de desejo e gratidão com amor. Desejo e gratidão eu sinto
em abundância, mas também amo esta mulher. E temo que,
acreditando que não a amo, ela aja de acôrdo com tal crença.
"' Ciark Kerr, educador norte-americano, nascido em 191 1, e Di-
retor da Universidade da Califórnia de 1958 a 1967. (N. do T.)
20
- ..-._ -- __.... ~~--~-- ~ -- -----~~
- - - - -
À noite, falo com ela no meu sono, longos diálogos nos
quais ela me responde. Alternamo-nos ao falar, como no
script de uma peça. E deixe-me dizer que não acredito em uma
palavra do que ela diz. Acordo reanimado e, embora meu sono
tenha sido agitado, não fico cansado. Exceto por umas poucas
horas perdidas nas quais ela desaparece e eu caio em sono
profundo, flutuo num nível entre a consciência e a paz, e o
diálogo prossegue. Isso não me aborrece agora. Freqüente-
mente passo por isto quando alguma coisa prende minha cons-
ciência.
Tendo grande consideração pelas pessoas que realmente
ouvem os outros, o que a outra pessoa tem para dizer, porque
raramente se encontra alguém que seja realmente capaz de falar
e deixar falar com a mesma seriedade. Naturalmente, quando
estava fora da penitenciária, não era exatamente assim; as
sementes estavam ali, mas havia muita confusão e loucura mis-
turadas. Guardava um profundo desejo de me comunicar e
conhecer outras pessoas, mas era incapaz. E não sabia como
fazer.
Conseguir conhecer outras pessoas, entrar naquele mundo
nôvo, é um salto derradeiro e irreparável para o desconhecido.
A perspectiva é aterradora. Os riscos são enormes. As emoções,
irresistíveis. Na verdade, duas pessoas relutam em despir seus
pensamentos uma para a outra, porque - agindo desta maneira
- tornam-se vulneráveis e dão enorme poder sôbre si. E com
que freqüência se infligem dor e tormento! O melhor é manter
relações insípidas e superficiais; dêste modo, as cicatrizes não são
tão profundas. Dos rasgos na alma não corre sangue.
Mas não acredito que um relacionamento maravilhoso tenha
sempre de acabar em carnificina, ou que tenhamos de ser frau-
dulentos e pretenciosos uns com os outros. Se projetarmos ima-
gens fraudulentas e pretensiosas, ou se nos fantasiarmos com
caricaturas destorcidas do que realmente somos, então, quando
acordarmos do transe e contemplarmos além da falsidade e da
vergonha, tudo se dissolverá, tudo morrerá ou será transformado
em rancor e ódio. Sei que algumas vêzes as pessoas se enganam
por motivos genuínos para se apegarem ao objeto de seus senti-
mentos mais ternos. Consideram-se a si mesmas de tal modo
inadequadas que se sentem forçadas a usar continuamente uma
máscara para impressionar à outra.
21
Se um homem é livre - ou seja, não está na pnsao, no
Exército, num mosteiro, num hospital, numa espaçonave, num
submarino - e vive uma vida normal com a costumeira multi-
plicidade de relações sociais com indivíduos de ambos os sexos,
pode se revelar incapaz de experimentar o impacto total de
outro indivíduo sôbre si próprio. As influências competitivas e
fôrças conflitantes de outras personalidades podem diluir a per-
cepção física e emocional de alguém, até o ponto em que êste
não recebe, e nem pode receber, tudo que a outra pessoa é
capaz de transmitir.
Contudo, posso acreditar que um homem cuja alma ou
mecanismo emocional jaz adormecido num limbo sem vida de
dessuetude seja capaz de responder do fundo de algum grande
manancial submerso em seu ser, algo como um potente catalisador
atirado numa massa crítica, quando uma mulher atraente, cati-
vante e amorosa entra no raio de ação dos seus sentimentos.
E que incitamento profundo, moroso, atormentador, relutante e
alarmante! :Ble sente uma certa parte de si em estado de fluxo,
como se algo estranho e incorpóreo tivesse mexido dentro do
seu corpo, estremecendo-o ao se flexionar; sente-se como se
voltasse lentamente à vida. Muda a composição química do seu
·corpo e é estimulado por novas fôrças.
A princípio, quando ela se aproxima dêle, seu coração é
vazio, um lugar desolado, um oásis sem água, inconsolável, e êle
anseia por uma mulher, sem cujo sustento a tensão de sua
masculinidade não se afrouxa. Sente a necessidade imperativa
da bondade, simpatia, compreensão e da voz de uma mulher
de ouvir o seu riso em resposta às palavras que pronuncia, de
olhar dentro dos seus olhos, de aspirar sua fragrância primitiva,
de ouvir - com os ouvidos massacrados - o sussurro sensual
de roupas íntimas quando as pernas são cruzadas e descruzadas
sob a mesa, de sentir o pêso delicado e tímido de sua mão -
e como dolorosa e completamente êle tem consciência de sua
presença, de cada movimento seu! S como se deixassem alguém
morrer atrás de um arbusto numa estrada solitária. O sol quente
e a sombra do arbusto, se não oferecem uma extensão da vida,
proporcionam pelo menos uma morte lenta. E tão logo êste
alguém sinta que a próxima respiração será certamente a última,
um pássaro raro e com as côres do arco-íris pousa suavemente
num galhinho do arbusto e, com a magia do seu canto melodioso
22
e a beleza de sua plumagem, seduz o moribundo de volta à vida.
O homem à morte sente correr com fôrças dentro de si, através
das veias do seu corpo, vindas da densa atmosfera criada pela
presença do pássaro; e sabe intuitivamente no seu apêgo à vida,
que se o pássaro permanecer ali êle reconquistará a fôrça e a
vitalidade - e a vida.
Vendo a imagem escapulir dos fracos dedos de sua cons-
ciência tão logo o pássaro se vá, a mente luta por um sinal dêle
no qual possa prender a memória. Com ciúmes, guarda a lem-
brança enfraquecida do seu encontro, com a avidez do usurário
que contempla as ações mais rendosas da Bôlsa de Valôres. A
impenetrável maquinaria do subconsciente projeta a imagem
sôbre o consciente: o braço direito dela, nu da curva do ombro
à ponta dos dedos. (Teriam seus lábios tremido com o desejo
de marcar aquela carne macia e d~ aparência fria com um beijo
de fogo, e teriam seus dedos comichado pela ânsia de carícias?)
Tal é a magia de uma mulher, o princípio feminino da natureza
corporificado por ela, o poder de ressuscitar e revitalizar um
homem solitário totalmente isolado.
Tinha vinte e dois anos quando entrei na penitenciária e,
é claro, mudei tremendamente com o passar dos anos. Mas
sempre tive grande autocrítica e, nos últimos anos, senti que
estava perdendo a identidade. Havia um marasmo em meu
corpo que se evadia, como se não pudesse localizar exatamente
sua posição. Eu percebia êste amortecimento, esta sensação de
atrofia que perseguia o fundo da minha consciência. Devido a
êste ponto insensível, senti-me peculiarmente desequilibrado, com
a percepção de alguma coisa desaparecida, de uma mancha
branca, de uma certa sensação de vazio. Agora, sei o que era.
Após oito anos no presídio, fui visitado por uma mulher, uma
mulher que estava interessada no meu trabalho e preocupada
com o que acontecera comigo. E, desde que a conheci, senti a
vida, a fôrça correndo de volta àquela mancha. Meu modo de
andar, os passos nas minhas caminhadas, que se haviam tornado
incertos e inseguros, começaram a recuperar a precisão, a con-
fiança e o arrôjo que davam vontade de pular sôbre as mesas.
Agora, posso até andar com um pouco de arrogância e, como li
num livro em algum lugar, "impulsionar-me como uma loco-
motiva".
23
Sôbre Watts
Quatro Vinhetas
Penitenciária Estadual de Folsom
16 de agôsto de 1965
QUANDO deixamos o refeitório numa manhã de domingo
e caminhávamos pelo pátio do presídio, quatro dias depois de
fracassados levantes em Watts, um grupo de low ríders* daquela
• Low rider: Apelido usado em Los Angeles para os jovens do
gueto. Originalmente, o têrmo se referia ao jovem que rebaixa a sus-
pensão de seu carro de modo a que ande quase colado ao chão; tam-
bém implica o estilo de dirigir dêsses jovens. Sentados com os braços
esticados ao volante e coro os bancos totalmente reclinados, tudo que
se pode ver são seus olhos, o que constitui a maneira "pra írente" de
dirigir. Quando êsses jovens alienados surgiram com seus carros, logo
passaram a ser chamados de low riders, expandindo-se o têrmo de tal
modo que todos os jovens do gueto negro - mas nunca os delicados
filhos da burguesia negra - passaram a ser chamados de Low rlders.
No Brasil, o têrmo popular que mais se aproxima de Low rider é
"lenhador", aquêle que "lenha'' o automóvel, e adota uma postura si-
milar quando ao volante. (N. do T.)
24
cidade reuniu-se na quadra de basquete. fuibiam sorrisos jubi-
lantes e triunfais, animados por um espírito bairrista, como se
também êles estivessem no centro do levante, que tinha lugar
a centenas de quilômetros ao sul, no gueto de Watts.
- Rapaz - disse um dêles - o que estão fazendo por lá?
Dá o serviço, meu chapa.
Todos bateram com as palmas das mãos uns nos outros,
numa saudação enfática, e irrompcram em risos de prazer.
- Meu chapa, nossos irmãos estão tomando conta do ne-
gócio! - gritou outro, extasiado.
Um low réder, então, avançando para o centro do círculo
formado pelos outros, inclinou-se para trás e fêz um rodopio
empunhando o cinto com os braços esticados da maneira como
vira James Cagney e George Raft fazerem em muitos ftlmes de
gangsters. Juntei-me à roda. Pressentindo a 3Froximação de um
momento de criatividade, todos ficamos bem quietos, impassíveis,
e outros companheiros que passavam por ali chegaram-se à roda,
comportando-se da mesma maneira.
- Camaradas - disse - êles andam em grupos de quatro
e dão pontapés nas portas; tomando Reds* e esmurrando cabeças;
bebendo vinho e cometendo crimes, disparando armas e saquean-
do; gozando** e "lenbando", incendiando e rasgando pneus;
virando carros e destruindo bares; enlouquecendo Parker e fa-
zendo-me ficar satisfeito; acabando com a mentira do "calma,
meu irmão" e destacando a querida Watts do mapa - minha
bunda preta está em Folsom esta manhã, mas meu coração negro
está em Watts.
Lágrimas de contentamento corriam dos seus olhos.
Foi um riso puro e revolucionário que todos compartilha-
mos, algo de que nós, geralmente, não tínhamos oportunidade
de participar. 1
Watts era um lugar de vergonha. Costumávamos usar Watts
como um epíteto, quase da mesma maneira como os rapazes da
cidade falam da "roça" como têrmo de derrisão. Ridicularizar
alguém como "aleijado", que está por fora do que acontece na
"' Recls: um barbitúrico, chamado Red Devils; assim conhecido
1lcvi<.Io a côr de sua cápsula e por possuir efeito estimulante.
n lligh-siding : Gozar alguém. Rir às custas de outro.
25
cidade (um campônio desajeitado); um "matuto" de Los An-
geles derrubaria qualquer um dizendo que êle acabava de deixar
Watts, que devia voltar a Watts até que apreftdesse o que estava
se passando, ou que apenas roubou dinheiro suficiente para
mudar-se de Watts e que já estava tentando desempenhar um
papel ativo. Mas, agora, os negros são vistos em Folsom pro-
clamando "sou de Watts, meu chapa!" -não importa que seja
verdade ou não, pois acho que o significado está claro. Confissão:
também eu participei dêste jôgo dizendo "sou de Watts". Na
ve~dade, vivi lá por algum tempo, e tenho orgulho disso, a des-
p~tto das lamentações enfadonhas de Whjtney Young, Roy Wil-
kms e do Pregador.
Olhos
Penitenciária Estadual de Folsom
28 de outubro de 1965
Certa v~z, ~u descia a Main Street, em Los Angcles, por
volta do meto-dta de um sábado, num lindo e ensolarado dia.
Era apenas um garnizé, na casa dos dezesseis anos acho eu
e tinha a maneir~ de andar do tipo "penso-que-estou-~bafando":
saracot~ando e ptsando na ponta dos pés. Diante de mim, junto
à calçada, havia um salão de engraxates. Estava bem na minha
direção. Uma vitrola automática tocava alto uma música de
grande sucesso que me atraiu enquanto caminhava. Passei a
andar seguindo o compasso da música. Sentada no banco reser-
vado aos fregueses encontrava-se uma "irmã" muito bonita esta-
lan~o os dedos. e retorcendo o corpo no ritmo da música, 'e que
sornu para mtm quando, nossos olhos se encontraram. Não
havia ninguém na engra~t~ria e; ~s~ que subi na cadeira o
disco terminou. Parei óe seguir ocompasso e fiquei olba~do
para a garôta completamente fascinado. Então, bruscamente,
ela começou a cantar: "Lindos, lindos olhos castanhos".
26
Que sensação! Aquilo me tocou profundamente, fêz-me
perder o gingado, e só então reparei que estava ali em pé olhando
embasbacado para ela como um roceiro imbecil. Fiquei real-
mente confuso e embaraçado. "Desliguei" completamente. E,
quando procurei a porta para sair correndo, vi-a rolar no chão
de tanto rir. Aquilo, entretanto, fêz com que me sentisse bem
e até hoje guardo essa lembrança pelo modo como foi pene~
trante o incidente.
Tive uma experiência bem diferente durante uma disputa
pelo poder entre facções de muçulmanos em San Quentin. Um
irmão de direita tentou deixar-me do lado de fora com uma
tática bem baixa: "Irmãos" - disse êle a todos nós, um dia
- "o irmão Eldridge não deve ter permissão para ocupar qual-
quer posição até que complete sete anos como muçulmano.
:me tem a Marca da Bêsta no corpo. Olhem seus olhos - êle
têm os olhos do demônio".
As palavras me surpreenderam e me tocaram num ponto
sensível. Vários outros irmãos também ficaram confusos. Mas,
um dos meus amigos salvou tudo salientando que "muitos dos
chamados negros têm os olhos estranhos das bêstas. Os demô-
nios fizeram uma mistura de todos nós. Mesmo o honorável
Elijah Muhammad tem olhos com uma côr brilhante. O irmão
Malcolm tem olhos reluzentes. Assim, não saia por aí falando
dêste modo porque você somente estará pregando a desunião.
O honorável Elijab Muhammad prega a união. Se você se
diz muçulmano, irmão, terá de começar pensando positivo e
abandonar tudo que fôr negativo".
O sujeito foi obrigado a bater em retirada o mais rápido
possível. Mas eu estava sangrando por dentro.
tUnlvnrsldadt do Br:~;;m;'
BIBLIOTECA
27
Alimento da Alma
Penitenciária Estadual de Folsom
3 de novembro de 1965
A gente ouve um bocado de jazz falando do Alimento da
~lma. Coma tr.ipas: os negros do gueto as comem por neces-
Sidade, enquanto a burguesia negra transformou o alimento num
sl?gan de escárnio. . Comer tripas é acabar virando as próprias
tnpas. Agora que Já conhecem o preço de um bife lá vem êles
batendo o cu sôbre o Alimento da Alma. '
.A ênfase sôbre o Alimento da Alma é a ideologia da bur-
guesia negra contra-revolucionária. A principal razão de Elijah
~uhammad ter proibido a carne de porco para os negros nada
tmha a ver com tratados dietéticos. A questão é que quando
a gente vê todos aquêles negros engaiolados no gueto com a
cabeça cheia de bifes de filé - com o pêso do fervor religioso
atrás do desejo da "bóia" - então alguma coisa precisa ser
dada. ~ sistema fêz concessões aos residentes do gueto para
que obtivessem um pouco de carne de porco, mas não há pro-
visões para que a elite abra mão de um bífe. As paredes come~
çam a desmoronar.
Uma conversão religiosa, mais ou menos
Penitenciária Estadual de Folsom
1O de setembro de 1965
Já fui católico durante certo tempo. Fui batizado fiz a
minha Primeira Comunhão, a Crisma e usava uma C~z de
Cr~sto p~ê.sa a uma ?orr~nt~a em tôr~o do pescoço. Rezava à
no1te, d1z1a o rosáno, 1a a Confissão c rezava tôdas as Ave-
28
Marias e Padre-Nossos que, como penitência, o padre mandava.
Irremcdiàvclmente enamorado pelo pecado como eu era, embora
aterrorizado pelos pecados dos outros, ansiava pelo Dia do
Juízo Final e o julgamento perante o júri de meus pares - esta
era a minha única chance de escapar às chamas que já podia
sentir chamuscando meus pés. Encontrava-me, naquela ocasião,
numa instituição do Juizado de Menores da Califórnia por ter
transgredido as leis do homem; Deus, naquela época, não me
acusara de nada. E, se acusou, foi uma acusação secreta pois
jamais fui informado de quaisquer queixas contra mim. Os
motivos pelos quais me tornei católico residiam em que as normas
da instituição estabeleciam que, aos domingos, todos os internos
eram obrigados a comparecer à igreja de sua escolha. Escolhi
a Igreja Católica porque todos os negros e mexicanos a freqüen-
tavam. Os brancos iam à capela protestante. Fôra eu imbecil
ao ponto de entrar na capela protestante, um rosto negro num
mar de brancos e, com a guerra de guerrilhas que travávamos,
eu poderia acabar sendo um mártir da cristandade - São Eldrid-
ge, o Estúpido.
Tudo terminou quando um dia, numa aula de catecismo, o
padre perguntou se algum dos presentes compreendia o mistério
da Santíssima Trindade. E u estudava minhas lições aplicada-
mente e sabia de cor o que me havia ensinado. Ràpidamente,
levantei a mão, com o coração palpitando de orgulho e devoção
por essa oportunidade de demonstrar meu conhecimento do
Verbo. Para minha grande surprêsa e embaraço, o padre afir-
mou - e aquilo soou como o ribombar de um trovão - que
cu estava mentindo, que ninguém, nem mesmo o Papa, com-
preendia a Divindade, e perguntou por que pensava eu que êles
chamavam aquilo de mistério da Santíssima Trindade? Como
lllll rclt.mpago, notei - ofendido pelas imediatas vaias de meus
t.•ok•gns de catecismo - que tinha sido usado, que o padre
f lt':lrn i'i espreita na espera de uma oportunidade para lançar
.tquclc trovão, de maneira a provar conclusivamente que a ques-
1.111 dn Santíssima Trindade não era para ser trazida à luz da
l w11pr~·cnsão.
P cu pretendia explicar a Trindade através de uma analogia
w u1 11 olco três-em-um; c provàvelmente era parecido.
29
"O Cristo" e seus ensinamentos
Penitenciária Estadual de Folsom
10 de setembro de 1965
A primeira vez que tomei conhecimento de Thomas Merton
foi em Sao Quentin, por volta de (acredito) 1959-60. Naquele
tempo, um .~anto caminhou sôbre a Terra na pessoa de um tal
Chns LovdJ•eff. Tratava-se de um professor em San Quentin
e gu~ par~ to~os os que o procuravam. O que ensinava? Tudo.
:e !Da•s fácil diZer apenas que ensinava Lovdjieff e deixemos as
coJsas se desenvolverem assim. Ele próprio clamava ser uma
espécie de ~iscípulo de Alan W. Watts, a quem costumava tra-
zer a Quentm para nos falar de vez em quando sôbre o hinduís-
mo, zcnbudisJ?o e sôbre o modo como os povos da Ásia contem-
playam o umverso. Nunca compreendi como "O Cristo" (era
assun que eu. costumava chamar Lovdjieff, para seu pesar e sofri-
mento) po~1a sentar-se ao~ pés de Watts, pois êle sempre me
par~ceu ma1s veemente, ma1s humano e possuidor de maior sabe-
d_?TJ~ do que a que Watts demonstrava tanto em suas confe-
~cnctas _como em se.us livros. Talvez eu tenha formado esta
1mprcssao por ter fi<:ado mais exposto a Lovdjieff do que a
Watts. Contudo, ha~a alguma coisa com respeito a Watts que
me lembrava de un:t mteressante e bem feito anúncio de um apa-
relho para econom1zar trabalho, destinado à dona de casa ame-
ricana, e publicado com destaque nas páginas centrais da revista
Li/e; embora. a principal qualidade de Lovdjieff parecesse ser a
dor e o s~frunento, be?l ~orno uma fôrça peculiar apoiada na
compreensao do seu propno desamparo, fraqueza e necessidade.
Es~dei ~om Lovdj.ie~ a história J?Undial, filosofia oriental, filo-
sofia oc1dental, rcl!g~ao comparatJva e economia. E não podia
separar uma aula da outra, como não podiam os outros estu-
dante~, nem tampouco, acredito, o próprio Lovdjieff. Tudo era
LovdJ•eff.
As pared~ .de su~ sala de aula eram cobertas por cartazes
de cartolma ex1bmdo c1tações dos maiores pensadores do mundo.
Japonêses, esquimós, africanos, astecas, peruanos, Voltaire, Coo-
30
fúcio, Lao-Tsé, Jesus Cristo, Moisés, Maomé, Buda, Rabbi Hil-
lel, Platão, Aristóteles, Marx, Lênin, Mao Tsé-Tung, Zoroastro
e Thomas Merton, entre outros. Certa vez, Lovdj;eff deu uma
aula sôbre Merton, lendo trechos de sua obra e tentando inserir
sua vida e trabalho no contexto. tle parecia querer desespera-
damente que respeitássemos a vocação e a escolha da vida con-
templativa de Merton. Foi uma batalha difícil porque uma
prisão, em muitas coisas, é semelhante a um mosteiro. Os inter-
nos na aula de Lovdjieíf odiavam a cadeia. Estarrecia-nos
saber que um homem livre podia entrar voluntàriamente na pri-
são - ou num mosteiro. Deixe-me dizer já: pensávamos que
Merton era algum tipo maluco. Tínhamos o mesmo conceito
em relação a Lovdjieff. Meu dcsgôsto íntimo era que, em muitas
coisas, eu não era nada mais que um monge; e como abominava
aquela visão de mim mesmo!
Eu fôra mistificado por Mcrton, mas não podia acreditar
em sua defesa apaixonada do monasticismo. Desconfiava de
Lovdjieff na questão de Thomas Merton. Minha consciência
ouviu um apêlo especial na sua voz. Defendendo ardentemente
Merton, Lovdjieff parecia estar defendendo a si próprio, tentando
se convencer. Um dia, Lovdjieff confidenciou-nos que tentara
entrar para um mosteiro, mas não conseguira. Mas terminou
conseguindo, mesmo sem entrar. San Quentim era o seu mos-
teiro. Ocupava-se com a penitenciária como se tivesse uma
vocação especial para ensinar a prisioneiros. Ficava lá dias e
noites, mesmo aos sábados, sem nunca faltar. As autoridades
precisavam, às vêzes, mandar um guarda à sua sala para que
parasse a aula, a fim de que os detentos pudessem ser trancados
~·m suas celas para passar a noite. :l?.le ficava horrorizado com
n fato de que lhe podiam fazer tal exigência. Com relutância,
ficntava-se pesadamente na cadeira, sobrecarregado pela derrota,
t' di;.ia-nos que fôssemos para nossas celas. Parte do poder que
lhe havíamos dado consistia em que nunca deixávamos sua aula
n menos que êlc próprio nos dispensasse. Se um guarda che-
~·assc c nos mandasse sair, receberia em resposta apenas olhares
l.íos; nfio nos moveríamos até que Lovdjieff desse consenti-
ltll'II(O. Blc adquiria um estímulo particular com essas pequenas
vlló•it1R sôbre seus algozes. Caso êle não conseguisse chegar
11 pcnitcnciCtria por ter problemas com o automóvel, como acon-
31
teceu certa ocastao, no dia seguinte enchia-nos de desculpas e
lamentava profundamente a falta.
Lovdjieff conseguiu arrancar-me o compromisso, sob pala-
vra, de que algum dia leria Merton por espontânea vontade -:-
não insistiu em precisar uma época, apenas "algum dia". Mutto
fácil. Dei-lhe minha palavra. Em 1963, quando fui transferido
de San Quentin para Folsom por ter sido acusado de agitador,
mandaram-me diretamente para a solitária. As autoridades não
julgavam prudente, naquela altura, permitir que eu circulasse
entre a população carcerária. Eu havia desenvolvido um pro-
grama intensivo para pôr em prática imediatamente, se alguma
vez fôsse colocado na soütária: estocar livros e ler, ler, ler;
fazer ginástica e esquecer o resto do mundo. Já descobrira a
inutilidade e a futilidade de preocupar-se. (Anos atrás, já dei-
xara de ser um daqueles prisioneiros que pega o calendário e
risca cada dia que passa.) Quando pedi alguns livros para ler
naquele buraco, um encarregado mandou-me uma lista para que
fizesse a seleção. Fiquei cheio de contentamento ao ver The
Seven Storey Mountain, a autobiografia de Merton. Pensei em
Lovdjie(f. Ali estava a oportunidade para cumprir minha pro-
messa.
Fui torturado por aquêle livro, poiso sofrimento de Merton,
aa sua procura de Deus, parecia-me inteiramente inútil. Naquela
época, eu era um muçulmano negro acorrentado pelo Demônio
no fundo de um buraco. Deveria esperar que Alá destruísse
as paredes e me libertasse? Para núm, a Hngua e símbolos da
religião não passavam de armas de guerra. Não via outro fim
para elas. Todos os deuses estão mortos, exceto o deus da guer-
ra. Desejava que Merton afirmasse em têrmos seculares as
razões que o levaram a retirar-se do sistema político, econô-
mico, militar e social no qual nasceu, c procurar refúgio num
mosteiro.
Apesar de minha rejeição da visão teísta do mundo defen-
dida por Mertoo, não podia mantê-la fora da cela. g1e abria
caminho com os ombros através da porta. Benvindo, Irmão
Merton. Dei-lhe um abraço de urso. O que mais me impres-
sionou em tudo foi a descrição que fêz do gueto negro de Nova
Iorque - o Harlem. Gostei tanto que copiei à mão o principal.
Mais tarde, depois ele sair da solitária, costumava lembrar cssu
32
r
I passagem, em que falava dos muçulmanos negros aos outros
prisioneiros.
Aqui, nesta grande, escura e miserável zona, centenas
de milhares de negros são arrebanhados como gado, a
maior parte sem nada para comer ou para fazer. Todos
os sentidos e imaginações, sensibilidades e emoções, lamen-
tos e desejos, esperanças e idéias de uma raça com vívidos
sentimentos e profundas reações emocionais desabam sôbre
êles próprios, comprimidos pela corrente de ferro da frus-
tração: o preconceito que os encurrala dentro de suas qua-
tro intransponíveis paredes. Neste gigantesco caldeirão,
inestimáveis aptidões naturais, sabedoria, amor, música,
ciência e poesia são atiradas e deixadas ferver com o refugo
ele uma natureza elementarmente corrompida, e milhares
sôbre miJhares de almas são destruídas pelo vício, pela
miséria e pela degradação, eliminadas, varridas e levadas
do registro da vida desumanizada.
O que não foi devorado em sua fornalha escura, Har-
lem, pela maconha, pelo gim, pela insanidade, pela histe-
ria, pela sífilis?
Durante algum tempo, sempre que me sentia amolecer, rela-
llltt'1 11 (anica coisa a fazer era ler aquela passagem para torna.r-
1111.' novumcntc uma chama viva de indignação. Exercia sôbre
1111111 prt•cisamcnlc o mesmo efeito que costumavam ter os escri-
'"~ dr tmjah Muhammad, as palavras de Malcolm X, ou as de
quuh1111. 1 porta-voz dos oprimidos em qualquer parte do mundo.
 tht uvu t'<l111 simpatia diante de qualquer protesto contra a
fll ollllll
1 lllll'lllnlo, gostaria de falar mais a respeito de Lovdjieff
c) <'•t~lu.
c'l1111 I ovdjidf era possuidor de grande inteligência e tinha
duc· '~ tu l'L tllnllui<:n. Fiquei com a impressão de que a carni-
11( "'" du SL
'I'IItltht ( iucrra Mundial, particularmente a aborda-
t' ''' • 1 lt•tt lllltt'tt l' t'Íl'llllficA do genocídio pelo regime nazista,
I '1 ttllllt 1 ~fllt i( m'lt trautnMicn da qual lhe era impossível
33
~'I
r
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I'
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recuperar-se. Era como se tivesse visto ou experimentado alguma
coisa que o mudara para sempre, adoecendo sua alma e engol-
fando-o em simpatia e amor por tôda a humanidade. tle odiava
tôdas as repressões contra o pensamento e o espírito humano,
bem como tôda crença cega e tôda asserção dogmática. :e.1e
questionava tudo.
Nunca tive certeza sôbre o que exatamente o impelia. Que
era impelido, não havia dúvida. Havia uma sensação de irrea-
lismo em tôrno dêle. Parecia mover-se numa névoa. A atmos-
fera que criava era como o encanto místico da poesia de Khalil
Oibran. Parecia estar sempre ouvindo uma música distante, ou
vozes silenciosas, ou murmurando para si mesmo. Amava o
silêncio e dizia que só devia ser quebrado por comunicações
importantes; afirmava que expulsaria de suas aulas os alunos
que se distraíssem em conversas inúteis com os colegas nas últi-
mas filas. Em aula, era um ditador. Fazia vigorar certas regras
e não tolerava que fôssem violadas - não fumar na sala, antes,
durante c nos intervalos das aulas; não comentar suas aulas, a
menos que a conversa tivesse ligação com o assunto discutido
em sala; não comer ou mastigar chicles durante as aulas; não
ser irreverente. Regras simples, talvez, mas em San Quentin
eram visionárias, arriscadas e audaciosas. O Cristo fêz com
que vigorassem estritamente. Os outros professôres e os guardas
ficavam pensando como êle conseguira aquilo. Nós, estudantes,
imaginávamos como nos havíamos submetido tão entusiàstica-
meote. O Cristo olharia sorprêso, como se não compreendesse,
caso se fizessem perguntas a respeito. Se um dos outros profes-
sôres esquecesse e entrasse fumando na sala de aula de Lovd-
jicff, era mandado sair às carreiras. O mesmo acontecia com
os guardas da prisão. Ainda posso ver a expressão chocada de
um professor substituto que, ao entrar na sala de Lovdjieff du-
rante o intervalo, fumando cachimbo, foi severamente advertido:
"Saia imediatamente desta sala!"
Quando se entrava numa aula de Lovdjieff, entrava-se para
aprender. Se, por acaso, você revelasse outros motivos, recebia
um "saia imediatamente daqui!" - sem maldade, mas sem equí-
vocos. :ele era uma magneto, uma instituição. Trabalhava infa-
tigàvelmente. Seu dia começava quando o sino da escola tocava,
às oito horas da manhã. Várias vêzes, abria mão do almôço
34
para entrevistar alguns estudantes e auxiliá-los nos trabalhos de
aula ou problemas pessoais. Mas, também, nunca deixou de se
queixar do fato de que as autoridades negassem per:missão para
que almoçasse no refeitório junto com os prisioneiros. Se lhe
tivessem dado uma cela, êle lá ficaria. Após o almôço, dava
aula até às três horas da tarde. Quando a escola noturna vol-
tava a funcionar às seis horas, O Cristo lá estava, radiante e
jubiloso, ensinando cheio de entusiasmo até às dez horas da
noite. Depois, relutantemente, ia para casa sofrer no exílio até
que a escola abrisse no dia seguinte. Aos sábados, lá estava êle
novamente radiante e bem cedo para ensinar Lovdjieff. E tam-
bém viria aos domingos, não fôsse as autoridades fazerem pé
firme e se recusarem a discutir o assunto. O Cristo aprovei-
tava o domingo para gravar um programa de rádio noturno,
com duas horas de duração, que êle retransmitia aos prisioneiros.
Suas aulas eram obras de arte. Transformou a história
antiga em contemporânea, evocando o ambiente total - intelec-
tual, social, político e econômico - de uma era. Dava vida às
ruínas do passado. Os alunos ficavam em seus lugares extasiados
enquanto O Cristo falava, com seus óculos de aros prateados
refletindo a luz brilhante dos seus olhos.
Vestia-se como um colegial, denunciando uma inclinação
para suéteres simples e calças largas e lisas sem nenhuma carac-
terística particular. Quando ensinava religião, queimava incenso
em aula, para evocar um certo estado de espírito. E era sempre
indicado para tratar dos alunos que pareciam impossíveis de
educar - velhos que passaram a vida analfabetos e fixados em
suas idéias c hábitos. Lovdjicff não acreditava que alguém ou
.tlguma coisa no mundo ficasse permanentemente prêsa a idéias
l' h:tbitos. Com os alunos inteligentes e que tinham mais facili-
dmlc para aprender, Lovdjieff parecia indeciso, quase como se
dt,scssc, apontando para os analfabetos e falando para os mais
ntllligcntcs: "Vão embora. Deixem-me. Vocês não precisam
dl· rnim. Os outros, sim".
Jesus chorou. Lovdjieff choraria com um acontecimento
lt ii~•.Íl'o ocorrido há milhares de anos em algum atalho esquecido
1h1~ 1·rms do Nilo. Certa ocasião, deu uma aula sôbre os
ltlltl•n!i lwbrcus. Ficou furioso com êles por terem escolhido como
lnt·ul p:1rn so estabelecerem as rotas comerciais entre o Egito e
35
a Mesopotâmia. Mostrou como, coro o passar dos séculos, êssc
povo tem sido ·de tempos em tempos atacado novamente, viti-
mado por carnificinas, expulso de suas terras, perseguido, mas
sempre reaparece.
- O que os faz voltar para êsses lugares! - exclamou.
Lovdjieff perdeu a respiração. Seu rosto desfigurou-se, caiu
para a frente e chorou. - Por que insistem em viver no meio
daquela . . . daquela (por alguns instantes, pensei cá comigo,
O Cristo não encontrou palavras) daquela. . . daquela. . . estra-
da?! Isto é tudo, olhem! E apontou as rotas comerciais no
mapa atrás de sua mesa, depois sentou-se e chorou sem se con-
trolar durante alguns minutos.
Em outra ocasião, trouxe trechos gravados em fita do Look
Hom.eward Angel, de Thomas Wolfe. O Cristo chorou durante
tôda a fita.
O Cristo podia chorar com uma linha de poesia, com uma
única imagem de um poema, com a beleza da música de um
poema, com o fato de que o homem pode falar, ler, escrever,
andar, reproduzir, morrer, comer, eliminar - com o fato de
que uma galinha pode botar ôvo.
Certa vez, passou uma semana inteira dando aulas sôbre o
Amor. Citava o que os poetas diziam do amor, o que os roman-
cistas falaram do amor, o que os dramaturgos escreveram sôbre
o amor. Rodou fitas de Ashley Montagu, também sôbre o amor.
No fim da semana, cada aluno deveria escrever um ensaio sôbre
a sua própria concepção do amor, não ·importando se tivesse so-
frido influência do que fôra dito durante tôda a semana. Em
meu trabalho, expliquei que não amava as pessoas brancas. E
citei Malcolm X:
36
Como posso amar o homem que violou minha mãe,
matou meu pai, escravizou meus ancestrais, lançou bombas
atômicas sôbre o Japão, exterminou índios e me mantém
engaiolado no gueto? Era preferível que me amarrassem
dentro de um saco e me jogassem no Rio Harlem.
Lovdjieff negou-se a dar nota a meu trabalho. E devol-
veu-o a mim. Protestei, dizendo que êle estava sendo intole-
rante e dogmático ao não compreender meu ódio, simplesmente
porque êle próprio era branco. Disse-me que falasse com êle
depois da aula.
- Como você pode fazer isto comigo? - perguntou.
- Apenas escrevi do modo como sentia - disse-lhe.
Ao invés de responder, chorou.
- Jesus chorou - falei, e depois me retirei.
Passados dois dias, êle devolveu meu ensaio - sem nota.
Ao contrário, havia manchas sôbre o papel que imaginei serem
lágrimas.
Embora a popularidade de Lovdjieff entre os prisioneiros
continuasse aumentando e as listas de pessoas que aguardavam
suas aulas ficassem cada vez maiores, as autoridades da peniten-
ciária baniram seu programa de rádio. Depois, proibiram que
fôsse à prisão aos sábados. Posteriormente, afastaram-no da
escola noturna, impedindo-o de ensinar. Finalmente, tomaram
seu passe e o impediram de frequentar San Quentin.
Preciso dizer que êste homem não foi adequadamente des-
crito. Omiti propositadamente certas coisas, outras não sei como
dizer. Até começar a escrever isto, não sabia que tinha uma
lembrança tão viva de Lovdjieff. Mas, agora, posso fechar os
olhos e reviver muitas cenas nas quais êle representa um ato.
37
Um dia na Penitenciária de Folsom
Penitenciária Estadual de Folsom
19 de setembro de 1965
Mw dia começa oficialmente às sete horas, quando todos
os prisioneiros são obrigados a levantar da cama e ficar em pé
diante da porta da cela para que sejam contados pelos guardas,
que caminham ao longo das fileiras marcando "um, dois, três ..."
Contudo, nunca fiquei na cama até às sete horas. Geralmente,
por volta das cinco e meia, já estou acordado. A primeira coisa
que faço é arrumar a cama. Depois, recolho todos os livros,
jornais, etc. . . espalhados no chão e jogo-os em cima da cama,
a fim de limpar o chão para fazer ginástica. Na minl1a ccln,
tenho um pequeno banco sôbre o qual apóio uma larga chapa
de compensado, com cêrca de um metro por oitenta centímetros,
que uso como mesa para escrever, seja à mão Oll à nuíquina.
A noite, coloco essa mesa improvisada no chão, .iuntamente com
os livros e os papéis, e, quando leio à noite, espalho uma porçao
de coisas sôbre o chão. Quando saio da cela coloco a prancha,
.)8
carregada de livros e papéis, sôbre a cama; evito assim que um
guarda, ao entrar, retire-a do banco, como já aconteceu certa
vez. Ainda nu, que é como habitualmente durmo, passo à ro-
tina; flexiono as pernas, abro os braços, toco com as mãos as
pontas dos dedos dos pés, sento de cócoras e faço uma viravolta.
E assim continuo, cêrca de meia hora.
Algumas vêzes, caso tenha algo que deseje escrever ou dati-
lografar de modo a poder mandar pelo correio da manhã, dis-
penso a ginástica. Mas isso é coisa rara. (Somos obrigados, se
queremos que nossa correspondência seja expedida num dia
determinado, a colocar as cartas na caixa do correio até às
ojto horas. Quando saímos da cela às sete e meia para o café
da manhã, passamos ao lado da caixa postal, e, a caminho do
refeitório, colocamos a correspondência.)
Normalmente, por volta da hora em que termino a ginás-
tica, o carcereiro (nós o chamamos de zelador de fila, ou cha-
veiro) aproxima-se e enche meu balde com água quente. Não
temos água quente corrente. Cada cela possui uma pequena
pia com uma torneira de água fria, uma cama, um armário, uma
ou duas prateleiras ao longo da parede, e um vaso sanitário. O
carcereiro tem um regador grande com um cano comprido,
como o que as pessoas usam para regar as plantas, apenas sem
o chuveiro. l?.Ie enfia o cano através das barras e despeja cêrca
de quatro litros de água quente. A porta da minha cela não
tem barras; é uma chapa sólida de aço com cinqüenta e oito
buracos do tamanho aproximado de uma moeda de meio dólar,
c um postigo no centro, na altura dos olhos, com três centíme-
trus de largura e cinco de comprimento. O carcereiro estica o
t' llllO alravés de um dos pequenos buracos e despeja a minha
llptnt quente. À tarde, joga a correspondência através do pos-
IIJ'O, por onde normalmente também os prisioneiros passam
llliiHUS, livros, doces e cigarros.
Ounndo o guarda tem correspondência para mim, êle se
Jlllt junto à porta c me chama pelo nome; eu então recito meu
llllllll' I O A-29498 - para verificar se sou o Cleaver certo.
IJu 111do recebo a correspondência, sempre desvio os olhos da
' "' • tlt• 11mt1o a não poder ver quem a remete. Depois, sento-
uu 11 .1 l' liiiHI c começo a olhar a carta devagarzinho, como faz
11111 I"V•IIIIH tll.l pôquer quando chora suas cartas. Posso sentir
39
quando recebo uma carta sua e, quando choro seu nome no enve-
lope, solto um grande berro. :a como tirar quatro ases. Mas,
se a carta não é sua, é como se eu tirasse sete, oito, nove, dez,
tôdas as cartas de naipes diferentes. Uma violenta patada. Nada.
Pior ainda é quando o guarda passa pela minha porta sem parar.
Posso ouvir suas chaves tilintando. Se êle pára, as chaves soam
como sinos de Natal; se continua, soam apenas como... chaves.
Resido no bloco de honra. Nos outros blocos, a frente das
celas é apenas de barras. Quando me mudei pela primeira vez
para o bloco de honra, não gostei muito da idéia. As celas
pareciam feitas para uma masmorra. As fortes portas de aço,
ao fecharem, batiam com um clangor de finalismo que arrepiava
minha alma. A primeira vez que a porta se fechou para mim
tive a mesma sensação feroz e histérica que havia sentido, anos
atrás, em San Quentin, quando debutei na solitária. Durante
um rápido momento, senti-me como se gritasse por socorro, e
parecia-me que em nenhuma circunstância teria capacidade para
suportar aquela cela. Naquela fração de segundo, senti como
se gritasse para os guardas, implorando que me deixassem sair,
suplicando que me deixassem ir embora, prometendo que seria
um bom môço no futuro.
Mas, tão ràpidamente como senti aquela sensação, ela tam-
bém foi embora, dissolvida, e me senti em paz comigo mesmo.
Achei que poderia suportar qualquer coisa, tôdas as coisas,
mesmo o teste de ser quebrado ao meio na tortura do cavalete.
Estive em todos os tipos de celas que havia à disposição nas
penitenciárias da Califórnia, e a porta daquela, naquele momento,
parecia a mais cruel e detestável de tôdas. Entretanto, acostu-
mei-me a gostar desta porta. Quando saio da cela não vejo a
hora de voltar, de bater aquela porta pesada e ouvir o sêco
girar das chaves enquanto o carcereiro a tranca por trás de mim.
O zelador de fila carrega consigo as chaves das celas do. bloco
de honra o dia inteiro, abandonando..as à noite, e para se entrar
na cela tudo que a gente tem a fazer é chamar o carcereiro de
plantão no corredor. Uma vez dentro dela, sinto-me seguro:
não tenho mais de olhar os outros prisioneiros ou os guardas
armados nas tôrres de contrôle. Se você vive numa cela que
só tem barras na frente, não pode se dar ao luxo de descansar:
alguém pode vir anelando pelo corredor e atirar um coquetel
10
Molotov sôbre você antes que perceba, algo que vi acontecer
em San Quentin. Sempre que estou numa dessas celas com
barras, mantenho um cobertor à mão para uma emergência,
para apagar um incêndio caso necessário. Paranóia? Sim, mas
é a última coisa que alguém pode fazer por si próprio. Na minha
atual cela, com sua porta iotranspotúvel, não me preocupo com
sabotagens - embora se alguém tiver maus instintos, talvez
consiga imaginar algo praticável.
Bem. . . após terminar a ginástica c ter chegado a água
quente, tomo um banho de passarinho na minúscula pia. Nor-
malmente, isso ocorre por volta das seis horas. Depois, até às
sete e meia, quando saímos para o café, limpo a cela e tento
pegar algumas notícias do rádio. Rádio? - cada cela tem um
par de fones! - com apenas dois canais. Os programas são
monitorizados na sala de rádio. A programação é feita pela
comissão do rádio, da qual sou membro.
Às sete e meia, café. Do refeitório, todos os dias exceto
aos sábados, meu dia de folga, vou direto à padaria, visto
minha roupa branca de trabalho, e assim fico até o meio-dia.
Depois fico "livre" até às três e vinte da tarde, a hora obriga-
tória para se recolher às celas, quando somos obrigados, nova-
mente, a ficar de pé junto a porta para sermos contados. Há
uma outra contagem às seis e meia - três vêzes todos os dias,
sem falhar.
Quando termino o trabalho na padaria posso escolher entre
(l) ir para minha cela; (2) ficar no salão para assistir aos pro-
gramas da televisão; (3) descer até a biblioteca; ou (4) sair até
o pátio para caminhar, sentar para tomar sol, levantar pêso,
jogar algum joguinho interessante - como damas, xadrez, bola
de gude, ferradura, volibol, beisebol, arremêsso de disco, saco
de boxe, basquete, conversar, TV, tênis de mesa, observar os
outros prisioneiros que estão observando os outros colegas.
Quando vim pela primeira vez para Folsom, fiquei surprêso
ao ver velhos de cabeça branca jogando bola de gude. Os joga-
dores de bolas de gude em Folsom são legendários em todo o
sistema penitenciário: a primeira vez que ouvi falar nêles foi
há vários anos atrás. Existe um senso de suprema derrota a
respeito dêJcs. Um sujeito pode gabar-se de que vai sair da
41
prisão e permanecer lá fora, mas alguém logo ridiculariza seu
orgulho dizendo que em breve êle estará de volta, jogando bolas
de gude como uma pessoa que perdeu sua antiga grandeza, um
joão-ninguém, arremessado de volta à infância por uma derrota
esmagadora no seu sonho final. Os jogadores de bolas de gude
transformaram o jôgo numa arte, e jogam o dia inteiro, fanàti-
camente absorvidos pelo que estão fazendo.
Se eu tivesse um companheiro de cela que soubesse jogar,
jogaria xadrez com êle de vez em quando, talvez uma partida
por noite. Tenho um tabuleiro de xadrez particular c, às vêzes,
quando não tenho nada para fazer, apanho um pequeno enve-
lope no qual guardo uma coleção de problemas para enxadristas
recortados dos jornais, e resolvo um ou dois. Mas nunca fui
capaz de dedicar todo meu tempo a uma destas partidas. E
raras vêzes consigo jogar uma partida lá fora, no pátio. . . Sem-
pre que atravesso o pátio nestes últimos tempos, estou normal-
mente a caminho da biblioteca.
No pátio, há um pequeno barraco junto a um dos cantos
onde está instalada a sede do Conselho Consultivo dos Prisio-
neiros (IAC). Esporàdicamente, visito o barraco para bater papo
e saber das últimas notícias. E, vez por outra, vou até a área
de levantamento de pêso, coloco o calção, seguro um pedaço
de ferro por algum tempo e fico "de môlho" sob o sol.
Às lrês e meia da tarde, cela. Em pé para a contagem.
Depois, saída para o jantar. Volta à cela. Em pé para a con-
tagem às seis e meia. Depois, todos podemos deixar as celas,
um corredor de cada vez, para tomar banho, trocar os lençóis
c toalhas imundas por outras limpas, cortar o cabelo e, então,
todos voltam às celas. Evito esta reunião social tomando banho
na padaria. À noite, apenas saio para trocar meu lençol. No
bloco de honra, temos permissão para sair após a contagem das
seis c meia da tarde todos os sábados, domingos e quartas-feiras
para ver televisão até às dez horas, antes de sermos trancados
para dormir. A única vez que saí para ver televisão foi para
apreciar as "belezas" do Shinding and Hollywood-A-Go-Go, mas
o programa nunca mais foi ao ar. Recentemente, conseguimos
mudar as regras de maneira que, nas noites de TV, os do bloco
de honra possam escrever à máquina até às dez horas. Antes,
era costume não permitir que se batesse à máquina depois das
42
oito horas. Fico muito satisfeito por poder aproveitar mais
êsse tempo extra para datilografar: posso lhe escrever maiS
cartas.
Às quintas-feiras, deixo a minha cela após a contagem das
seis e meia para comparecer à reunião semanal do IAC. Essas
reuniões são suspensas exatamente às nove horas. Nas manhãs
de sábado, meu dia de folga, costumo participar das reuniões do
Gavel Club, mas no sábado passado, como estava no meio de
minha última carta para você, retirei-me para minha ce1a. Fico
satisfeito por ter vontade de deixar o Gavel Club, mas espero
não fazê-lo porque é lugar onde estou adquirindo valiosa expe-
riência e técnica de falar em público.
Em média, passo aproximadamente dezessete horas por
dia na minha cela. Gozo a solidão. A única desvantagem é que
não tenho possibilidade de conseguir o tipo de material de lei-
tura que desejo, e é difícil encontrar alguém com um bom nível
de conversa.
Existem poucos sujeitos aqui que escrevem. Parece que
todos desejam escrever. Alguns dêles conseguiram vender um
trabalho aqui, outro ali. Eles têm uma comissão de escritores
que se reúne na biblioteca sob a proteção do nosso bibliote-
cário. Jamais tive o desejo de integrar essa turma, em parte
devido à minha antipatia pela atitude do bibliotecário, e em
parte devido aos tipos falsos e esquisitos dos prisioneiros. A
maior parte, suponho, é porque os m·embros da comissão são
todos brancos e todos perturbados com relação às pessoas de
côr. São uns tipos amáveis, não chegando a ter o entusiasmo
dos bons liberais brancos, e se conformam com a atmosfera de
Mississipi que prevalece aqui em Folsom. Aqui, brancos e
negros não se confraternizam. O conceito de Harry Golden de
integração vertical e segregação horizontal domina tudo. Os
brancos querem falar com você lá fora, no pátio ou no trabalho,
permanecendo em pé, mas se esquivam quando é para se sentar
ao lado do negro. Por exemplo, quando entramos em fila para
a "bóia" há a mais comrpleta integração. Mas, uma vez dentro
do refeitório, os negros procuram os negros para sentarem juntos,
e os brancos se aproximam dos brancos ou dos mexicanos.
Há um sujeito judeu de Nova Iorque que se meteu em
encrencas em Frisco (San Francisco) . E'le pensa que é outro
Lenny Bruce. Realmente é engraçado e muito desembaraçado,
43
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Livro de alma no exilio - Eldrige Cleaver

  • 1. Ch~.: 929 C623a =690 Autor: Cleaver, Eldridge Título: Alma no exílio : Autobiogratia 111 1 11111111111111111 1111 7423553 Ac. I 3I 114 tx.l BCE ~riçJge eaver
  • 2. O SI N rJ Ml 'NTO E A CONI:;CJt.NCTA O negro norte-americano está em marcha. Não aceita mais a posição humilhante de ci- dadão de segunda classe, cujas prerrogativas constitucionais têm de ser formalmente garan- tidas por legislação adicional (como o demons- -tra o caso da "integração" nas escolas, lugares . públicos, estabelecimentos comerciais, etc.), embora a realidade do dia-a-dia, sobretudo nos estados sulistas, a desrespeite de modo aberto ou contorne de maneira solerte. Essa campanha em defesa de seus direitos humanos não se processa de modo uniforme, coordenadamente, jã que as táticas de luta co- brem uma vasta gama que vai da resistência passiva à luta armada. Há os negros que marcham com Deus, pela Família, recorrendo à Bíblia, às leis e aos sentimentos dos bran- cos, esperando poder convencê-los à prática de uma convivência em que nenhum homem seja diminuído ou preterido em virtude de sua côr. Martin Luther King foi o apóstolo dêsse sonho, dessa "revolução não-violenta". Seu credo, definido em inúmeros discursos, tinha forte sabor messiânico: "Sonho que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de antigos escravos e os filhos de proprietários de escravos poderão sentar-se à mesa da fra- ternidade. Sonho que um dia o próprio Es- tado do Mississippi - que hoje se vê sufocado pela opressão - será transformado num oásis de liberdade e justiça. Sonho que meus qua- tro netinhos viverão um dia num país onde bâo serão julgados pela côr de sua pele, mas pela personalidade que tiverem". Em 4 de abril de 1968 Martin Luther King terminou sua carreira de nobre e generoso sonhador: James Earl Ray, branco, ex-presidiário, o abate a tiro de fuzil, na cidade de Memphis, Tennessee. Muitos negros, contudo, descrêem da uti- lidade de campanhas pacíficas. Uns se orga- nizam em comunidades agressivas, cujo leit- motiv é o racismo antibranco, defendendo o retôrno às origens africanas. São os Black Muslims (Muçulmanos Negros), cujo líder, Malcolm X, foi também assassinado. Outros, revolucionários militantes, fazem da Juta pela emancipação dos negros uma primeira fase da campanha maior, contra o próprio establish- &"~.,ri
  • 3. Coleção BffiLIOTECA DO LEITOR MODERNO Volume 132 - - - - - - - Eldridge Cleaver Alma no Exílio Autobiografia espiritual e intelectual de um líder negro norte~americano Tradução de ANTÔNIO EDGARDO S. DA CosTA REIS civilização brasileira
  • 4. Título do original norte-americano: SOUL ON ICE Copyright © 1968 by Eldridge Cleaver Capa: AUGUSTO IR!ARTE GIRONÁZ Diagramação: LÉA CAULLIRAUX Direitos para a língua portuguêsa adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Rua 7 de Setembro, 97 RIO DE JANEIRO, que se reserva a propriedade desta tradução. 1 9 7 1 Impresso no Brasil Printed in Brazil - - - - - - A Beverly, com quem partilhei o amor definitivo.
  • 5. •· .,. .. : . ' ~ . Dentre as excelentes pessoas que muito ajuda- ram para a publicação dêstes escritos, gostaria de agradecer especialmente a Edward M. Keating, cria- dor da revista Ramparts, que foi o primeiro profis- sional a dar atenção a meus trabalhos; a Maxwell Gcismar, cujas críticas me ajudaram a conseguir um certo contrôle sôbre minhas anotações, e a David Welsh, pela sua inestimável assistência como revisor de texto.
  • 6. Agradecimentos Pelas transcrições de trechos das obras abaixo indicadas, agra- decemos aos proprietários dos direitos, que gentilmente os con- cederam: The Dead Lecturer, de LeRoi Jones, © 1964 by LeRoi Jones. Transcrição autorizada por The Sterling Lorci Agency. A Superioridade Natural da Mulher, de Ashley Montagu, © 1953 by Ashley Montagu. Transcrição autorizada por The Macmillan Company. Meu Problema Negro - e o Nosso, de Norman Podboretz in Commentary. © fevereiro, 1963, by Norman Podbo!etz. Commentary, fragmento de uma carta de Irving Louis Horo- wi~, reproduzido com autorização da revista Commentary. © JUnho, 1963, by The American Jewish Committee. Cartas A bertas ao Presidente, de Norman Mailcr, © 1959, by Norman Mailer. Transcrição autorizada por G. P. Put- nam's Sons. Da próxima Vez, o Fogo, de James Baldwin, © 1962, 1963, by James Baldwin. Transcrição autorizada por The Dial Press, Inc. OIL The Road, de Jack Kcrouac. © 1955, 1957, by Jack Ke- rouac. Transcrição autorizada por The Viking Press, Inc. "O Cristo e Seus Ensinamentos" foi publicado inicialmente na revista Esquire, em abril de 1967, sob o título de The Guru of San Quentin. Índice INTRODUÇÃO por Maxwell Geismar I. C ARTAS DA PRISÃO A Transformação Alma no Exílio Quatro Vinhetas - Sôbre Watts - Olhos - Alimento da Alma - Uma Conversão Religiosa, Mais ou Menos - "O Cristo" e seus ensinamentos Um dia na Penitenciária de Folsoro Reações Iniciais ao Assassinato de Malcolrn X ll. SANGUE DA BÊSTA A Raça Branca e seus Heróis Lázaro, Adianta-te Notas Sôbre o Filho Nativo União em Tôrno da Bandeira A Participação do Homem Negro no Vietnã Lei Interna e Ordem Internacic:1al Xlll 1 3 17 24 24 26 28 28 30 38 48 61 63 80 92 lOS 113 120 III. PRELÚDIO PARA O AMOR- TR~s CARTAS 131
  • 7. IV. MULHER BRANCA, HoMEM NEGRO A Alegor-ia dos Eunucos Negros A Mitose Originária Convalescença A Tôdas as Mulheres Negras, de Todos os Homens Negros 143 145 165 178 180 Introdução MAXWELL GEISMAR .... ESTB Livro, escrito na prisão por um jovem negro ameri- cano (ou afro-americano), é uma das descobertas da década de 1960. Numa época literária caracterizada por predorrünante mediocridade de expressão, pela ausência de novos talentos de importância, por uma espécie de depressão espiritual após a grande onda da literatura americana dos anos vinte aos anos quarenta, Eldridge Cleaver é uma das destacadas novas vozes literárias a serem ouvidas. Lembra-me os grandes clias do pas- sado. Evoca o Native Son*, de Ricbard Wright, além de ter verdadeira afinidade moral com um dos poucos livros bons de nossa época, a Autobiografia de Malcolm X. E, em têrmos ame- " Publicndo no Brasil sob o título Filho Nativo, pela Cia. Editôra Nncional, São Panlo (N. do T.) xiii
  • 8. ricanos, representa a única coisa comparável aos escritos de Frantz Fanon. De maneira curiosa, o livro de Cleaver tem claro paralelis- mo com o Black Skin White Masks, de Fanon. Em ambos, o problema central é o da identificação da alma negra "coloni- zada" - de modo mais sutil, talvez, nos Estados Unidos, por uns trezentos anos, se bem que mais penetrantemente - pela 1 sociedade branca opressiva que projeta sua breve e estreita visão / da vida como verdade eterna. Muito apropriadamente, Eldridge Cleaver abre as Cartas da Prisão com a parte chamada "A Transformação", datada de 1954, quando contava dezoito anos de idade. A Suprema Côrte acabava de colocar a segregação fora da lei e Cleaver encontrava-se na Penitenciária Estadual de Folsom, na Califórnia, sob a acusação de porte de maconha. Ele seria reenviado à prisão, pelo que descreve como estupro- por-princípio. Há uma espécie de adolescente inocência - a · inocência do gênio - nessas primeiras cartas. Mais tarde, êle iria revelar uma ironia brutal e um humor profundo e sombrio a respeito da civilização do homem branco nos Estados Unidos do século XX. Cleaver é, simplesmente, um dos melhores críticos da época atual; e, nesta afirmação, incluo tanto os sociólogos formais como os ficcionistas contemporâneos que, de modo geral, aban- donaram esta parte da literatura pelo culto da sensibilidade. (Tenho consciência, também, de que talvez possam ser consi- derados excessivos os elogios contidos nesta introdução; em tal caso, peço apenas ao leitor que pare de ler o que escrevo, o passe diretamente a Cleaver. ) Como no caso de Malcolm X, aqui está um crítico "de fora", que se diverte em dissecar as mais profundas e caras noções do nosso comportamento pessoal e social; é preciso certa quantidade de coragem e "objetividade deliberada" quando o lemos. :Ble despedaça nossos precon- ceitos favoritos com as garras selvagens de sua prosa, até que nossas feridas estejam descobertas c nossa psique exposta. E temos de reagir ou então rir coro êle pelo serviço que nos pres- tou. As "almas da gente negra", como diz W. E. B. Du Bois, são o melhor espelho em que &e reflete a imagem do branco americano em meados do século XX. xiv :E: sem dúvida audacioso da parte de Cleaver abrir esta coleção de ensaios com aquêles que, partindo do caso específico do estupro, enfoquem na realidade todo o profundo relaciona- mento entre o homem negro e a mulher branca. Há um tipo secreto de misticismo sexual neste escritor que adiciona profun- didade e colorido ao seu comentário social; é uma mente lite- rária e imaginativa pesquisando os aspectos mais relevantes de nossa vida em comum. Seguem-se, então, as Quatro Vinhetas - sôbrc Watts, os muçulmanos, o catolicismo e Thomas Mer- ton, e o heróico professor da prisão chamado Lovdjieff. Neste ponto, começamos a sentir o alcance e a profundidade da mente de Eldridge Cleaver sôbre questões cmoc·ionais e filosóficas, bem como históricas e sociais, - e, por que não dizer, "heróico", nível raramente atingido na ficção contemporânea, não é carac- terização inadequada para certas partes desta coleção de ensaios profundamente revolucionária. Após uma série de novas experiências religiosas na prisão, o jovem Cleaver converteu-se ao maometismo, tornou-se depois um pregador muçulmano dotado de extraordinária eloqüência c convicção e, finalmente, um fiel seguidor de Maleolm X. Atra- vés dêsse processo, recuperou sua imagem própria, antes aliena- da e despedaçada, guando criança do gueto negro da Califórnia; e, a partir daí, começou o notável processo de auto-análise, auto-educação e auto-expressão descrit!:IS nas páginas do livro. O ensaio intitulado "Reações Iniciais ao Assassinato de Mal- colm X", escrito em 1965, é um documento de suma impor- tância para a compreensão da proscrita alma negra americana dos dias de hoje; esclarece todos os longos e quentes verões de distúrbios, violências e destruição "sem sentido". Cleaver liga de tal maneira o movimento da resistência negra militante às correntes de revolução mundial que isto pode resul- tar num choque para muitos americanos brancos de tendência liberal c boa-vontade espuitual. Mas é isso que ocorre; e quanto mais cedo tentarmos com- preender tal coisa, melhor; Eldridge Cleaver pode nos ajudar neste processo. "Alcançaremos nossa condição de homens. Ou a alcançaremos ou a terra será arrasada pelas nossas tentativas ti~: conquistá-la" - c algumas partes da terra americana já foram arra'Sadas por êstc espírito profético de cólera e digni- XV
  • 9. dade humana. Mas é o capítulo do livro intitulado "Sangue da Bêsta", e trechos como "A Raça Branca e Seus Heróis", que considero de importância fundamental e do maior valor literário. Apresentando-se como "observador da Ofay"*, Clea- ver descreve êstc período histórico e esta cultura americana em têrmos da mais adstr- ita precisão, da mais desapiedada ironia e da mais insistente veracidade. Recorda-nos tôdas as simples ver- dades que as décadas de distorção e hipocrisia da Guerra Fria quase varreram de nosso registro hlstórico - a nossa consciên- cia histórica. O livro é um vigoroso relato daqueles primeiros anos da década de 1960, quando a Campanha dos Direitos Civis desper- tou uma consciência nacional que ficara forçadamente insen- sível, indolente e evasiva desde o trauma mccarthista. Há uma atmosfera de turbulência nestes ensaios, que vai do advento da Beat Generation e do On the Road, de Jack Kerouac, até os versos revolucionários de Le Roi Jones, voltando depois aos abolicionistas (tão desprezados e escarnecidos pelos historia- dores revisionistas do Sul na época moderna), a Harriet Beecher Stowe e àquela famosa peroração de 4 de Julho em favor da raça escrava, por Frederíck Douglas, em 1852. Na parte final do livro, parece que Eldridge Cleaver atingiu soa própria convalescença espiritual, com o espírito cicatrizado (não mais racista ou estreitamente nacionalista) e a fôrça adulta como escritor. Como soltam fagulhas essas páginas! O ensaio "Lázaro, Adianta-te", sôbre as celebridades negras e a respeito do boxe como símbolo da virilidade das massas americanas, e sôbre Muhamad Ali em particular, é uma beleza. Nêle, Cleaver começa a tocar em todos os aspectos da cultura americana com segurança c visão clara. "Notas sôbre o Filho Nativo" é. a melhor análise que já li da carreira literária de James Baldwm; e enquanto Cleaver diz, calmamente, coisas que nenhum crítico branco poderia realmente atrever-se a dizer, não se nota o menor sinal de ciúme artístico mesquinho, ou de vaidade, em sua dis- cussão - tal como aquela, por exemplo, que marcou o próprio "' Ofay: palavra da gíria negra norte-americana. designando pessoas de côr branca. (N. do T.) xvi repúdio de Baldwin ao seu antigo mentor, Richard Wright. O ensaio "União em tôrno da Bandeira" nos dá o simples, inci- sivo e verdadeiro ponto de vista afro-americano sôbre a guerra no Vietnã, opinião que Martin Luther King s6 tardiamente acei- tou e que, na verdade, coincide com a opinião mundial sôbre nosso aberrante comportamento no sudeste da Ásia. Mas êste volume, que se abre com o tema de amor (Eldridge Cleaver jamais deixa passar o fundo sexual de cada fenômeno social ou racial), termina com o mesmo tema. Há cartas tocantes e esclarecedoras dirigidas à advogada dos direitos civis na Califórnia, Beverly Axelrod, que, assombrada com o talento de Cleaver, como todos nós que o encontramos pela primeira vez há alguns anos atrás, conseguiu sua libertação da Prisão Folsom, após nove anos. Há a parte do livro chamada "A Mitose Original", próxima de uma espécie de misticismo- sexual laurentino, dando forma a tipos sociais tão encantadores como o Criado Supermasculino e a Boneca Ultrafeminina: o mito sexo-social que Cleaver ·inventou para o homem negro de segun- da classe (todo corpo, sem cérebro) e para a senhora branca e pura do Sul que, digamos, passa a existência com langor e aos faniquitos. :gstes são os mitos exóticos e as lendas fabricadas por um sistema de castas raciais incorporado a uma hipócrita sociedade de classes. Estas são as fantasias satíricas, pairando sôbre algo que poderia ser chamado de "miscigenação essen- cial", como a chave procurada, a solução inadmissível para o problema racial americano. Esqueci de mencionar as descrições admiràvelmente irô- nicas do Twist como o sintoma social da nova era de igualdade racial nascente. Aqui, com os Beatles e o Rock n' Roll, quando Eldridge Cleaver entra na área das diversões de massa nos Esta- dos Unidos, está mais perto do que nunca de rir abertamente dos ridículos do homem branco; além disso, na denúncia final do Eunuco Negro à Rainha Negra - ao fértil ventre negro de tôda a história - êle nos lembra de como a civilização sempre zombou da alegria humana. Harrison, New York Junho de 1967 xvii
  • 10. I. Cartas da Prisão
  • 11. A Transformação Penitenciária Estadual de Folsom 25 de junho de 1965 Mn. novecentos e cinqüenta e quatro, quando eu tinha dezoito anos, é considerado um ponto crucial de transição na história do afro-americano - e também na dos Estados Unidos como um todo - pois foi o ano em que a segregação racial se viu banida pela Suprema Côrte. Foi, também, um ano crucial para mim, porque- em 18 de junho de 1954 - comecei a cumprir pena na penitenciária estadual, acusado de posse de maconha. Quando entrei na prisão; fazia apenas um mês que fôra tomada a decisão da Suprema Côrte, e não acredito que tivesse rucsmo a mais vaga idéia de sua importância ou significação histórica. Mais tarde, porém, a acirrada controvérsia desenca- deada pelo término da doutrina iguais-mas-separados viria a exer- cer um profundo efeito sôbre mim. Essa controvérsia desper- 3
  • 12. tou-me para minha posição na Améril:a e come~i a formar um conceito do que significava ser negro na Aménca branca. Naturalmente, sempre soubera que era. UJ? negr~, mas nunca, realmente, parara para tomar consciencm ~aq?~o em que estava envolvido. Enfrentei a vida como um mdivtduo e assumi os riscos. Até 1954, vivíamos numa atmosfera de n~vo­ caína. Os negros achavam necessário, para ~~te~ u~ míntm? de sanidade possível, ficar de algum modo a distancia e deslt- gados do "problema". Aceitávamos as iodi~idades e as engre- nagens do aparelho de opressão, sem reagir através da org~­ nização de sit-ins* ou realizando manifestações de massa. Alt- mentado pelas chamas da controvérsia sôbre a segregação, logo fiquei inflamado de indignação por meu recé~~escoberto status social e, interiormente, voltei as costas à Amenca, com horror, nojo e revolta. Na prisão estadual de Soledad, aderi a um grupo de jovens negros que, como eu, estava em agitada rebelião contra o que considerávamos a continuação da escravatura num plano supe- rior. Amaldiçoávamos tudo que fôsse american? - inclus~ve o beisebol e os cachorros-quentes. Todo o respe1to que pudes- semos ter tido por poUticos, pregadores, advogados, governa- dores, presidentes, senadores, congressi~tas foi c~mpletamente destruído quando os vimos contemponzar e _ace1tar co~pro­ missos a respeito do certo e do errado, da legalldade e da ilega- lidade da constitucionalidade e da inconstitucionalidade. Sabía- mos que afinal de contas, êles brigavam entre si a nosso respeito, sôbre o 'que fazer com os negros, e se deviam ou não começar a nos tratar como sêres humanos. Eu desprezava todos êles. Os segregacionistas eram condenados indiscriminadamente, sem mesmo ouvirmos seus elevados e rebuscados argumentos. Os outros, eu desprezava por perderem temp? em debates.com os segregacionistas: por que não esm~gá-los stmples:nente, JOgá- los na prisão - êles estavam desafiando ~ lei, na_? estavam? Eu desafiei a lei e êles me puser~m na cade1a. Entao, por que não meter também as mães dêles na prisão? Eu fôra apanhado • Protesto passivo organizado, contra a segreg~ç~o racial, no qual os manifestantes ocupam lugares que lhes são proibidos, como restau· taurantes e outros locais públicos. (N. do T.) 4 com uma sacola de compras cheia de maconha, uma sacola de compras cheia de amor - estava apaixonado pela erva e nem por um minuto pensei que houvesse algo de errado em "puxá-la". Fazia quatro ou cinco anos que "queimava a erva" e estava convencido, com o fervor de um cruzado, de que a maconha era superior à bebida - no entanto, os mandões da terra pare- ciam todos ser beberrões. Não podia compreender como êles 1 tinham mais justüicativas para beber do que eu para "ficar 1 baratinado". Eu era um "queimador de erva", e era natural que me sentisse injustamente prêso. Enquanto tudo isso sucedia, nosso grupo adotava o ateísmo. Simples e sem qualquer base filosófica racional, nosso ateísmo era pragmático. Eu começara a acreditar que Deus não existe; e, se existisse, os homens não sabiam nada a respeito dêle. Por conseguinte, tôdas as religiões eram embustes - o que tornava todos os pregadores e padres, aos nossos olhos, embusteiros, inclusive aquêles que corriam de um lado para outro na peni- tenciária e que, curiosamente, podiam pedir por você junto ao Todo Poderoso Criador do Universo, mas não podiam conse- guir nada, aqui embaixo, com os guardas ou com a junta de livramento condicional - tinham o poder de nos fazer entrar nos Portões Celestiais depois que estivéssemos mortos, mas não podiam nos fazer atravessar o portão da prisão enquanto ainda estivéssemos vivos. Além disso, os religiosos que trabalham na prisão têm um estigma indelével aos olhos dos presos, porque escoltam os condenados até a câmara de gás. Tais homens de Deus são argumentos poderosos em favor do ateismo, que era, para mim, uma fonte de enorme orgulho. Mais tarde, fortaleci meus argumentos ao ler Thomas Paine e sua crítica devastadora da Cristandade, em particular, c da religião organizada, em geral. Através da leitura, fiquei assombrado ao descobrir como sfío confusas as pessoas. Eu pensava que, fora dali, além do horizonte da minha própria ignorância, existia a unanimidade; que, embora eu não soubesse o que acontecia no universo, m•tros certamente saberiam. No entanto, aqui estava eu desco- b• indo que todos os Estados Unidos atravessavam um caos de dis~órdia sôbre segregação e integração. Nessas circunstâncias, decidi que a única coisa segura a fazer era agir por conta pró- 5
  • 13. pria. Tornou-se claro que me era possível tomar a iniciativa: ao invés de simplesmente reagir, eu poderia agir. Passaria unila- teralmente - não importando se alguém concordasse comigo ou não - a repudiar tôdas as alianças, a moral, os valôres - mesmo continuando a existir dentro desta sociedade. Minha consciência seria livre e nenhum poder no universo poderia for- çar-me a aceitar algo que não quisesse. Seria dono do meu nariz. Isso era também uma parte da minha nova liberdade. Nada aceitaria até que fôsse provado que era bom - para mim. Tomei-me um iconoclasta ao extremo. Qualquer asser- ção afirmativa feita por alguém à minha volta tornava-se alvo para posições de crítica e acusação. Esse joguinho tornou-se bom para mim e eu me tornei bom nêle. Atacava tôdas as formas de piedade, lealdade e sen- timento: casamento, amor, Deus, patriotismo, a Constituição, os Fundadores da Nação, leis, conceitos de certo-errado-bem-mal, tôdas as formas de comportamento ritual e convencional. Enquanto pulava de um pé para outro, de porrete na mão, em busca de novos ídolos para destruir, encontrei re~mentc, pela primeira vez na vida, com alguma seriedade, O Ogro, erguen- do-se à minha frente numa névoa. Descobri, alarmado, que O Ogro exercia tremendo e espantoso poder sôbre mim, e não compreendia êsse poder nem por que estava à sua mercê. Ten- tei repudiar O Ogro, arrancá-lo do meu coração como fizera com Deus, a Constituição, os princípios, a moral e os valôres - mas O Ogro tinba suas garras enterradas no âmago do meu ser e recusava-se a tirá-las. Lutei freneticamente para liber- tar-me, mas O Ogro apenas zombou de mim e afundou suas garras ainda mais profundamente na minha alma. Compreendi, então, que havia encontrado uma chave importante, que, se con- quistasse O Ogro e quebrasse seu domínio sôbre mim, estaria livre. Mas sabia, também, que era uma corrida contra o tempo e que se eu não vencesse, certamente seria dominado e destruído. Eu, um homem negro, enfrentei O Ogro - a mulher branca. Na prisão, aquelas coisas recusadas e proibidas ao prisio- neiro tornam-se precisamente, claro, as que êle mais deseja. Como éramos trancados nas celas antes do anoitecer, costumava ficar acordado durante a noite, torturado pela ansiedade dolo- rosa de dar uma voltinha à luz das estrêlas, ou ir à praia, diri- 6 gir um carro numa auto-estrada, deixar crescer a barba ou fazer amor com uma mulher. Como eu não era casado, as visitas conjugais não teriam resolvido meu problema. Por isso, denunciei essa idéia como injusta por natureza; os prisioneiros solteiros necessitavam e mereciam funcionar do mesmo modo que os casados. Advo- guei o estabelecimento de um sistema de Serviço Civil pelo qual mulheres pegas serviriam às necessidades dos presos que manti- véssem um registro de bom comportamento. Se o prisioneiro casado preferisse a própria espôsa, teria êsse direito. Uma vez que a Califórnia não pretendia estabelecer nem o sistema das visitas conjugais nem o do Serviço Civil, alguém poderia advogar tanto um como outro com igual entusiasmo e com o mesmo resultado: nada. Isto pode parecer ridículo para algumas pessoas. Mas era vital para mim e tão urgente quanto a necessidade de respirar, porque eu estava na "fase do touro" e a falta de acesso a mulhe- res era, incontestàvelmente, uma forma de tortura. Sofri. Minha amante na ocasião em que fui prêso, a linda e solitária espôsa de um militar convocado e servindo no exterior, morreu inespe- radamente três semanas depois de eu entrar na prisão; e os rígi- dos e desumanos regulamentos controlando a correspondência entre prisioneiros e pessoas livres impediam que eu me corres- pondcsse com outras jovens senhoras que eu conhecia. Aquilo deixou-me sem qualquer contato com mulheres, exceto as de minha família. No processo para suportar meu confinamento, resolvi arrumar uma dessas jovens que posam para fotografias a fim de colá-la na parede da minha cela. Eu me apaixonaria por ela e extravasaria minhas afeições. Ela, uma representante sim- bólica da classe proibida de mulheres, ajudar-me-ia até que eu fôsse pôsto em liberdade. Das páginas da revista Esquire, casei com uma noiva de formas voluptuosas. Nosso casamento fêz progressos durante algum tempo: sem brigas nem queixas. E então, certa noite, quando voltava da escola, fiquei horrorizado c enraivecido ao saber que um guarda entrara em minha cela, arrancara meu "doce de côco" da parede, rasgara-o em peda- cinhos e deixara o papel picado espalhado no vaso sanitário: era como ver um cadáver boiando num lago. Dando-lhe o entêr- 7
  • 14. ro que merecia, puxei a descarga. E como diz o dito popular, mandei-a para Long Beach. Mas, fiquei realmente descontro- lado de raiva: quase tôdas as celas, exceto aquelas dos homos- sexuais, tinham uma garôta na parede c os guardas não se importavam. Por que, indaguei ao guarda no dia seguinte, tinha me escolhido para um tratamento especial? - Você não sabe que temos um regulamento proibindo a colagem de fotografias nas paredes? - perguntou-me êle. - Que se danem as regras.- respondi. -Você sabe tão bem quanto eu que êsse regulamento não é observado. - Vou lhe dizer uma coisa. - continuou êle r·indo para mim (o sorriso fêz com que me colocasse de guarda) - assumo o compromisso com você: arn1me uma jovem de côr para colar - mulher branca, não - e eu a deixarei ficar na parede. Esta- mos conversados? E u fiquei mais embaraçado do que chocado. ~lc rindo na minha cara. Chamei-o de uns dois ou três palavrões c me afas- tei. Posso ainda lembrar sua grande cara de lua arreganhando os dentes amarelos para mim. O aspecto perturbador de todo o incidente foi que um terrível sentimento de culpa caiu sôbre mim quando me dei conta de que escolhera a fotografia da jovem branca entre várias fotos de garôtas negras. Tentei esque- cer, mas estava fascinado pela verdade que o fato envolvia. Por que, ante~, não tinha pensado naquilo sob êstc ângulo? Assim, concentre1-me na questão e comecei a investigar meus senti- mentos. Seria verdade, eu preferira mesmo a branca ao invés das negras? A conclusão foi clara e inevitável: preferira. Decidi sondar meus amigos sôbre a questão c foi fácil deter- minar, das conversas em geral, que a mulher branca ocupava um lugar peculiarmente proeminente em todos os nossos traços de referência. Com que aprendi desde então, isso tudo parece agora terrlvt:lmente elementar. Mas, na ocasião, foi uma aven- tura tremendamente intricada. Uma tarde, quando um grande grupo de negros estava no pátio da prisão tomando sol, agachei-me junto a êles e apresen- tei o problema: o que êles preferiam, mulheres brancas ou negras? Alguns disseram que as japonêsas eram suas favoritas, outros as chinesas, alguns as européias, outros as mülhercs mexicanas 8 - todos manifestaram uma preferência, e de modo geral admi- tiam livremente seu desagrado pelas mulheres negras. - Pra mim, prêto só Cadillac - disse um dêles. - Se dinheiro fôssc prêto, não queria nem um níquel - afirmou outro. Um prisioneiro baixo e atarracado, bom pugilista pêso-leve, com o complexo de homem pequeno que o fazia gostar de boxear com pesos-pesados, saltou sôbre os çés. Tinha uma côr ama- relada e nós o chamávamos de Borboleta. - Todos vocês, crioulos, são uns porcos! - esbravejou o Borboleta. - Eu não vou com nenhuma branca fedorenta. Minha avó é branca e nem mesmo dela eu gosto! Mas isso aconteceu de tal modo que o comparsa do Bor- boleta, também no meio do grupo, logo após disse ao compa- nheiro de crime: - Ora, sente-se e fique quietinho, "seu" pedaço de tronco. E aquela garôta mais pra branca que pra preta que abriu seu nariz? Você a desejava, ou estava somente correndo atrás dela com a língua de fora porque a odiava? Parte porque ficara embaraçado e parte porque seu com- parsa era pêso-pesado, Borboleta vôou sôbre êle. E, antes que pudéssemos separá-los e nos dispersar, para que o guarda não soubesse quem estivera brigando, Borboleta tirava sangue do nariz do companheiro. Borboleta fugiu mas, por causa do san- gue, o comparsa foi apanhado. No jantar daquela noite comi ao lado de Borboleta e interroguei-o duramente sôbre sua ati- tude em relação às brancas. E, após a evasiva inicial, admitiu que a mulher branca também fazia pouco dêle. - E. uma praga - disse êle. - Passamos a vida tôda com a mulher branca dançando diante de nós como uma cenoura, prêsa num caniço, na frente de um burro: olhe mas não toque. (Em 1958, depois de minha saída em liberdade condicional e tlc ter sido devolvido a San Quentin sob nova acusação, Borbo- leta ainda estava lá. Tornara-se muçulmano negro e foi o prin- cipal responsável pelo meu aprendizado da sua filosofia. Depois de sua libertação de San Quentin, Borboleta entrou para a mes- quita de Los Angclcs, galgou ràpidamente os degraus hierár- quicos e é, agora, um experiente ministro das mesquitas de Elijah Mu h~1mmad, em outra cidade. Conseguiu completar seu tempo 9
  • 15. de livramento condicional, casou-se - com uma môça bem preta - e está .indo muito bem.) _De nossa discussão, que começou naquela noite e jamais termmo~, passamos a observar até que ponto, no curso dos acontecimentos, o crescimento do negro na América é doutri- nado dentro do padrão de beleza da raça branca. Não que os brancas façam.um esfôrço c?nsciente e calculado para isso, pensá- vamos; mas, Já que conshtuem a maioria, fizeram uma lava- gem cerebral nos n~gros pelos mesmos processos que empre- gara~ ~ara s~. doutn~arem nos padrões do seu próprio grupo. Aquilo mtensificou mmhas frustrações por saber que fui doutri- nado para ver a mulher branca como mais bonita e desejável do q~e as ,mulheres da minha própria côr. Aquilo lançou-me aos livros a procura de luz sôbre o assunto. No Native Son de Richard Wright, encontrei Bigger Thomas e a visão profund~ do problema. Meu interêsse nesta área persistiu e depois, em 1955 ocor- re.u w;n fato em Mississipi que me virou pelo avêsso: Émmett Tdl, Jovem negro de Chicago, fôra assassinado por flertar, supostamente, com uma mulher branca. Fôra morto a tiros a cabeça esmagada pelos repetidos golpes com barras de ferro: e o corpo, totalmente decomposto e com um pêso amarrado foi ret~ado de um rio. Fiquei, naturalmente, revoltado com tudo: Mas VI, um dia, numa revista, a fotografia da mulher branca com a qual Emmett Till alegadamente flertara. Enquanto olhava a. foto, senti aquela ligeira tensão no centro do peito que expe- runento quando uma mulher me atrai. Fiquei enojado e revol- tado comigo mesmo. Ali estava a mulher que causara a morte de um negro, .possivelmente porque quando êle olhou para ela tam- bém ~xpenmeotou,as mesmas tensões de lascívia e desejo dentro do petto - e provavelmente pelas mesmas razões que senti. Tudo era inacreditável para mim. Olhei a fotografia uma, duas vêzes e, apesar de tudo, contra a minha vontade e o ódio que sentia pela mulher e tudo que representava, ela me atraía. Senti raiva de mim mesmo, da América, da mulher branca, da história que provocara aquelas tensões no meu peito. Dois dias depois, sofri um "colapso nervoso". Durante vários dias gritei e esbravejei contra a raça branca, contra a mulher branca, em particular, contra a Am6rica branca, em 10 geral. Quando voltei a mim, estava trancafiado numa cela de paredes acolchoadas, sem a mais vaga lembrança de como fôra parar ali. Tudo que podia lembrar era uma eternidade de passos indo e voltando na cela, pregando para as paredes sem ouvidos. Tive várias conversas com o psiquiatra. Sua conclusão foi de que eu odiava m.inha mãe. Como chegou a isto eu nunca soube, porque êle nada conhecia a respeito da minha mãe; e, quando me fazia perguntas, eu respondia com mentiras absurdas. O que me revoltou nêle foi que me ouvira denunciar os brancos, ainda que em cada entrevista guiasse deliberadamente a conversa para a vida da minha família, para a minha infância. Aquilo em si estava certo, mas êle propositadamente bloqueou tôdas as minhas tentativas de trazer à tona a questão racial, e deixou claro que não estava interessado na minha atitude com relação aos brancos. Era uma caixa de Pandora que êle não se preo- cupou em abrir. Depois de suspender minhas severas críticas contra os brancos, tive alta do hospital. Voltei ao convívio dos prisioneiros como se nada tivesse acontecido. Continuei a medi- tar sôbre êsses acontecimentos e sôbre a d.inâmica das relações raciais na América. Durante êste período, concentrei minhas leituras no campo da economia. Tendo previamente passado os olhos nas teorias e escritos de Rousseau. Thomas Paine e Voltaire, dei um certo polimento na minha posição iconoclasta sem, entretanto, impor- tar-me muito em compreender suas posições afirmativas. Na economia, porque todos pareciam achar necessário atacar e con- denar os escritos de Karl Marx, procurei seus livros e, embora êle tivesse me deixado com dor de cabeça, adotei-o como auto- ridade. Não estava preparado para compreendê-lo, mas era capaz de ver nêle uma crítica e condenação eficazes do capi- talismo. A descoberta de que, realmente, o capitalismo ameri- cano merecia todo o ódio e desprêzo que sentia por êle, no fundo do coração, foi para mim algo como tomar o remédio adequado. Isso teve um efeito positivo e estabilizador sôbre mim - até certo ponto, porque eu não estava disposto a ficar bitolado - c desviou-me de uma antiga preocupação: meditações mórbidas sôbrc o homem negro e a mulher branca. Prossegu.indo minhas leituras até a história do socialismo, li, sem também entender muito, alguns dos apaixonantes e exortat6rios escritos de Lênin; 11
  • 16. apaixonei-me pelo Catecismo do Revolucionário, de Bakunin e Nechaiév - cujos princípios, juntamente com alguns conselhós de Maquiavel, procurei incorporar ao meu próprio comporta- mento. Fiz dêsse catecismo a minha bíblia e, insistindo numa plataforma pessoal que nada tinha a ver com a reconstrução da sociedade, comecei conscientemente a jncorporar êstes princí- pios à minha vida diária, a empregar táticas de crueldade com quem quer que tivesse contato. E passei a olhar a América branca com êstes novos olhos. De certo modo, cheguei à conclusão que, por uma questão de princípios, era de suma importância para mim ter uma ati- tude hostil e sem compaixão para com as mulheres brancas. O têrmo proscrito atraía-me e, quando se aproximava a hora do meu livramento condicional, considerei já ser mentalmente livre - eu era um proscrito. Afastara-me da lei do homem branco, que eu repudiava com desdém e satisfação. Transformei-me na própria lei - meu próprio legislativo, minha própria suprema côrte, meu próprio executivo. No momento em que saí pelo portão da penitenciária, meus sentimentos em relação às mulhe- res brancas, em geral, podiam ser resumidos nas seguintes linhas: 12 A UMA MÔÇA BRANCA Eu te amo Porque és branca, Não porque és atraente Ou fascinante. Tua brancura :B um fio de sêda Embaraçando-se nos meus pensamentos Em riscos incandescentes De lascívia e de desejo. Eu te odeio Porque és branca. Tua carne branca é alimento de pesadelos. Branca é A pele do Demônio. Tu és a minha Moby Dick, Feiticeira branca, Símbolo da corda e da árvore da fôrca, Da cruz em fogo. Amando-te assim, Meu coração se parte em dois. Crucificado. Tornei-me um estuprador. Para refinar minha técnica e modus operandi, comecei a praticar com as môças negras do gueto - do gueto negro, onde a ignorância e o vício não apa- recem como anomalias ou desvios do padrão normal, mas como parte da aptidão para o sofrimento. E, quando achei que estava suficientemente treinado, saí em campo seguindo a pista da prêsa branca. Tudo isto foi consciente, deliberado, volun- tário e ordenado - apesar de agora sentir que me encontrava possuído por um espírito enfurecido, desenfreado e completa- mente depravado. O estupro era um ato de insurreição. Enchia-me de prazer o fato de ue estava desafiando e pisoteando a lei do homem branco, o seu ststcma de valôrcs, e que via ava suas mulherC J - c . isto, acredito eu, era o que mais me satisfazia, porque me sentia revoltado com o modo pelo qual, lústôriamente, o homem branco fizera uso da mulher negra. Achei que estava obtendo a vingança. Partindo do local em que fôra cometido o estupro, a consternação propagava-se em círculos concêntricos. Queria enviar ondas de consternação por tôda a raça branca. Recente- mente, encontrei esta citação num dos poemas de LeRoi Jones, tirado do seu livro The Dead Lecturer: Um culto de morte necessita do simples braço em posição de ataque sob um lampião de rua. Dos corta- dores de sua terra arrendada. Apareçam, dadaístas niilis- tas negros. Raptem as môças brancas. Raptem seus pais. Cortem as gargantas de suas mães. 13
  • 17. Vivi aquelas linhas e sei que, se não tivesse sido agarrado pelas autoridades, teria raspado algumas gargantas brancas. Existem, é claro, muitos jovens negros lá fora que neste exato momento estão cortando gargantas brancas e violando a môça branca. Não estão fazendo isso porque leram as poesias de LeRoi, como alguns críticos parecem acreditar. Pelo contrário, LeRoi expressa simples fatos da vida. Após voltar à prisão, passei algum tempo examinando a mim mesmo e, pela primeira vez na vida, admiti que estava errado, que me extraviara - não tanto da lei do homem branco, mas do ser humano, civilizado - pois não podia aprovar o estupro. Embora tivesse algum conhecimento de minhas moti- vações, não me sentia justificado. Perdi o auto-respeito. Meu orgulho de homem dissolveu-se e tôda a minha frágil estrutura moral pareceu ruir, completamente abalada. Eis por que comecei a escrever. Para salvar a mim mesmo. Concluí que ninguém poderia me salvar, a não ser eu mesmo. As autoridades da penitenciária eram desinteressadas e incapa- zes de salvar-me. Precisava procurar a verdade e desenredar o emaranhado de minhas motivações. Tinha de descobrir quem eu era e o que desejava ser, que tipo de homem eu devia ser, e o que poderia fazer para tomar-me o melhor no que eu era capaz. Compreendi que aquilo que se passara comigo também acontecera a um sem-número de outros negros, e que aconte- ceria com muitos e muitos mais. Constatei que eu procurara a saída mais fácil, fugindo dos problemas. Também aprendi que era muito mais fácil fazer o mal do que o bem. E fiquei terrivelmente impressionado com os jovens da América, negros e brancos. Sinto orgulho dêles porque reafirmaram minha fé na humanidade. Senti o que deve ser o amor para a juventude da América e quero ser parte da bondade e da grandeza que ela deseja para tôdas as pessoas. Da minha cela na prisão, observei a América ir acordando aos poucos. Ainda não acordou totalmente, mas existe vida no ar e em todos os lugares eu vejo a beleza. Assisti aos sit-ins, às incursões pela liberdade, aos verões sangrentos de Mississipi, às manifestações em todo o país, ao movimento FSM (Movimento 14 pela Liberdade de Expressão), aos teach-ins*, e ao crescente movimento de protesto contra a política externa de Lyndon Strangelove; tudo isto, e os milhares de pequenos detalhes, mos- traram-me que estava na hora de me compor c andar no rumo certo. Daí o motivo de concentrar meus escritos e esforços nesta área. Estamos num país muito doente - eu, talvez, seja mais doente do que a maioria. Mas aceito isso. Disse no princípio que sou um extremista por natureza - assim, também é justo que eu deva ser extremamente doente. , Estava bem familiarizado com o Eldridge que veio para a prisão, mas aquêle Eldridge não existe mais. E o que sou agora é de certo modo estranho para mim. Podem achar difícil de compreender, mas é muito fácil para alguém na cadeia perder seu senso de indivíduo. E se êlc foi suportanto tôdas as espé- cies de mudanças radicais, complicadas e desordenadas, então termina não sabendo quem é. Tomemos como exemplo a ques- tão de ser atraente para as mulheres. Vê-se fàcilmente como um homem pode perder sua arrogância ou certeza sôbre a ques- tão, prêso numa cela! Quando está no mundo livre, é constan- temente alertado sôbre como está sua aparência pelo número de cabeças femininas que faz virar quando caminha pela rua. Na prisão, o máximo que êle consegue são olhares de ódio e sobran- celhas franzidas. Anos e anos de olhares carrancudos. A indi- vidualidade não é nutrida na prisão, nem pelas autoridades nem pelos condenados. :b um buraco muito fundo para se sair. O que deve ser feito, acredito, é que todos êsscs problemas - particularmente a indisposição entre a mulher branca e homem negro - devem ser trazidos à luz, estudados e resolvidos. Sei que a atitude doentia do homem negro em relação à mulher branca é uma doença revolucionária: que o mantém perpetua- mente fora de harmonia com o sistema que o oprime. Muitos hruncos autolisonjeiarn-se com a idéia de que a lascívia e o desejo do homem negro pela môça branca dos seus sonhos é pura- mcnlc uma atração estética, mas nada poderia estar mais dis- • 'l'rach-ins: período prolongado de conferência e discursos espe- llllllllt'lltc conduzido~ em colégio ou universidade, por seus membros 1111 i'On vidndoH, como expressão de protesto social. (N. do T.) 15
  • 18. tante da verdade. Sua motivação é de um modo geral de natu- reza tão sangrenta, pérfida, penetrante c perversa, que os brancos são realmente pressionados a acharem lisonjeira. Discuti êsses aspectos com os prisioneiros que foram condenados por estupro, e suas motjvações são muito simples. Mas relutam em discutir com o homem branco que, na sua maioria, compõe os quadros da prisão. Acredito que na experiência dêsses homens está a sabedoria e a prudência que devem ser utilizadas para auxiliar outros jovens que rumam na mesma direção. Penso que todos nós, a nação inteira, caminharemos melhor se encararmos tudo isso diretamente. O sentimento de muitas pessoas será ferido, mas êste é o preço que precisa ser pago. Pode ser que eu possa ferir a mim mesmo falando franca e diretamente, mas não me importo com isso. :a claro que quero sair da prisão, e quero muito, mas tenho certeza de que um dia sairei. E estou mais preocupado com o que serei após sair. Sei que seguindo o curso que tracei encontrarei minha salvação. Se tivesse seguido o rumo marcado para mim pelas autoridades, indubitàvelroente já estaria lá fora há muito tempo - mas não seria um homem inteiro. Seria mais fraco e não teria certeza sôbre onde desejo chegar, o que desejo fazer e como ir até lá. 18 O preço de odiar outros sêres humanos é amar menos a si próprio. I Alma no Exílio ---------------------------------------- Penitenciária Estadual de Folsom 9 de outubro de 1965 T ENHO perfeita consc1encia de que estou na pnsao, de que sou negro, de que fui estuprador e de que sou diplomado em ignorância. Nunca soube que significado se espera que eu atribua a êsses fatôres. Mas suspeito de que, em conseqüência dêsscs aspectos do meu caráter, as pessoas "livres-normais-ins- llllfdas", seguramente esperam que eu seja mais reservado, peni- tente, arrependido e não muito rápido para abrir a bôca sôbre t·crtos assuntos. Mas eu as "deixei na mão", desapontei-as, lú com que ficassem boquiabertas numa espécie de torpor, como se estivessem pensando: "Você está ficando maluco! Será que nao vê que tem um débito com a sociedade?" Minha resposta tt todos C:stcs pensamentos ocultos nas suas cabeças quadradas, t·wondidos atrás de olhos vesgos e bombardeadores, é que o "iiii!IIL: dos camponeses vietnamitas já pagou todos os meus débi- tnH; que 1l povo vietnamita, afligido por um mal devastador 17
  • 19. chamado Ianque, através de seus sofrimentos - em oposiÇao à "frustração" dos tranqüilos amer- icanos bem nutridos, seguros em suas casas e preocupados em comer bacon, presunto ou sal- sicha com ovos de primeira qualidade, enquanto os vietnamitas se preocupam cada manhã em saber se os ianques vão lançar gases, incendiá-los ou explodir seus humildes abrigos com sarai- vadas de bombas - cancelaram todos os rou*. Ao começar esta carta, poderia - com a mesma facilidade - ter mencionado outros aspectos da minha condição. Poderia ter dito: estou perfeitamente consciente de que sou alto, de que sou magro, de que preciso me barbear e de que tenho vigor suficiente para chupar as velhas têtas murchas da minha avó, e de que cu cavaria cada vez mais profundo para ficar limpo novamente, não apenas no sentido de tomar um banho a vapor, mas de me transformar num perfeito cavalheiro com um toque do Harlem; ou de que gostaria de vestir um macacão, colocar um babador e tornar-me um Bobalhão, de que gostaria de com- pletar a "última milha"** e deixar a barba crescer do modo como requer o nacionalismo local, e me vestir como camarada à moda de Che Guevara, e compartilhar do seu destino, proclamando um nôvo rumo a explorar através do cérebro otimista e blo- queado da Nova Esquerda, ou de como gostaria de estar neste momento em Berkeley, rolando naquela lama, fazendo traves- suras naquele chiqueiro de revolução tímida, respirando seus gases fortes, c olhando indiferentemente para um nôvo John Brown, um Eugene Debs, um negro humilde e astuto como Mal- colm X, um Robert Franklin WiJl!ams, um Lênin americano, um Fidel, um Mau-Mau, UM MAU-MAU, UM MAU-MAU, UM MAU- MAU, UM MAU-MAU, UM MAU-MAU, UM MAU-MAU. . . Tudo isto é verdade. Mas o que importa é que me apaixonei por meu advogado! Não é surpreendente? Espera-se de um condenado que tenha alta consideração por qualquer um que chegue em seu auxílio, que tente ajudá-lo e que gaste tempo, energia e dinheiro na tenta- • Abreviatura fonética de l owe you: vale, reconhecimento de dí- vida, contendo os três letras seguidas da quantia c llssin<~tura. (N. do T.) ** O autor refere-se ao caminho entre a sua cela e a câmara da morte. (N. do T.) 18 tiva de libertá-lo. Mas pode um condenado realmente amar um advogado? :e uma coisa de mau gôsto. Os condenados odeiam advogados. Caminhar pelo pátio da penitenciária e falar bem de um advogado é levantar as sobrancelhas caídas pelo abati- mento de criminosos maníacos. Os presidiários estão conven- cidos de que os advogados devem possuir um caderninho prêto secreto que a ninguém mais é permitido ver, um livro que lhes ensina uma moralidade esotérica, na qual o Deus Supremo é traiçoeiro, e confundir um cliente de confiança, a mais nobre das ações. Os prisioneiros ficaram sabendo que eu me "queimara" com algumas revistas que me foram dadas por meu advogado e que eu fôra atirado no "Buraco" por causa daquilo. Riam inten- cionalmente e me diziam que eu bancara o trouxa, que meu advogado me enrolara e que, se não conseguia ver a conspi- ração, eu era tão estúpido que compraria, não só a ponte Golden Gate, mas até um sorvete derretido. Agora era a minha vez de rir maliciosamente. A paranóia do condenado é tão espêssa quanto o muro da penitenciária - e, no momento, necessário. Por que deveríamos ter fé em qual- quer um? Mesmo nossas espôsas e amantes cujas camas compar- tilhamos, com as quais repartimos os momentos mais felizes e as relações mais delicadas, deixam-nos depois de algum tempo, humilham-nos, proclamam independência e tratam-nos como se nos odiassem, não nos escrevem sequer uma carta, ou mandam um cartão de Natal cada ano, ou alguns maços de cigarros ou tubo de pasta de dente de vez em quanto. Tôda a sociedade mostra a bunda para o prisioneiro e espera que êle a beije: o presidiário sente como se levasse um chute ou uma bala bem no traseiro. Vê as unhas e dentes do homem e aprende ràpi- damentc a descobrir e mostrar as suas. Manter o freio sôbre os ideais e sentimentos da civilização em tais circunstâncias é provàvelmcnte impossível. Quanto mais incrível não será, então, r nquanto enraizados neste buraco, apaixonar-se, e por um advo- l'ado! Use um advogado, sim; use qualquer um. Diga-lhe ruc-;rno que você está apaixonado. Mas você sempre saberá quundo cstú mentindo e, mesmo se conseguisse ludibriá-lo, não ~·w1scguiria jamais ludibriar a si mesmo. n por que você fica triste quando vê que tudo depende dt· tais fios tênues c caprichosos? Porque você é um sonhador, 19
  • 20. um incrível sonhador, com uma minóscula centelha escondida em algum lugar dentro de você e que não pode se apagar, c que nem você pode extinguir ou dominar e que o tortma horr'ivel- mcnte, porque tôdas as chances são a favor de seu contínuo abra- samento. Em meio à mais sórdida decadência e pútrida selva- geria, esta centelha lhe fala de beleza, de calor e de bondade humana, de generosidade, de grandeza, de heroísmo, de mar- tírio e lhe fala de amor. Por esta razão, amo meu advogado. Meu advogado não é uma pessoa comum. h um rebelde, um revolucionário que está alienado fundamentalmente do status quo e, provàvelmeote, com uma intensidade, convicção e irrecuperabilidade tão grandes quanto a minha alienação - e possivelmente com mais inteli- gência, compaixão e humanidade. Se você ler os jornajs, não terá dúvidas quanto ao incessante envolvimento do meu advo- gado na agitação contra tôdas as manifestações dos monstruosos males do nosso sistema, tais como a intervenção nos assw1tos internos do povo vietnamita ou a invasão da República Domi- nicana pelos fuzileiros norte-americanos. E o meu advogado defende os manifestantes dos direitos civis, os que participam de sit-ins, os estudantes que protestam em favor da Liberdade de Expressão e que rebelaram contra a máquina Kerr-Strong* na Universidade da Califórnia. Meu amor por meu advogado deve-se, em parte, a estas atjvidades e envolvimentos, porque estamos sempre do mesmo lado em tais questões. E cu amo todos os meus aliados. Mas isto, que pode ser o princípio de uma explanação, não chega a explicar o que se passa entre nós. Suponho que devesse ser franco e, antes de me aprofundar mais no assunto, admitir que meu advogado é uma mulher - ou, talvez, devesse omitir esta parte do enigma - uma mulher excelente, fora do comum e linda. Sei que ela acredita que eu realmente não a amo e que estou confundindo uma combinação de desejo e gratidão com amor. Desejo e gratidão eu sinto em abundância, mas também amo esta mulher. E temo que, acreditando que não a amo, ela aja de acôrdo com tal crença. "' Ciark Kerr, educador norte-americano, nascido em 191 1, e Di- retor da Universidade da Califórnia de 1958 a 1967. (N. do T.) 20 - ..-._ -- __.... ~~--~-- ~ -- -----~~ - - - - - À noite, falo com ela no meu sono, longos diálogos nos quais ela me responde. Alternamo-nos ao falar, como no script de uma peça. E deixe-me dizer que não acredito em uma palavra do que ela diz. Acordo reanimado e, embora meu sono tenha sido agitado, não fico cansado. Exceto por umas poucas horas perdidas nas quais ela desaparece e eu caio em sono profundo, flutuo num nível entre a consciência e a paz, e o diálogo prossegue. Isso não me aborrece agora. Freqüente- mente passo por isto quando alguma coisa prende minha cons- ciência. Tendo grande consideração pelas pessoas que realmente ouvem os outros, o que a outra pessoa tem para dizer, porque raramente se encontra alguém que seja realmente capaz de falar e deixar falar com a mesma seriedade. Naturalmente, quando estava fora da penitenciária, não era exatamente assim; as sementes estavam ali, mas havia muita confusão e loucura mis- turadas. Guardava um profundo desejo de me comunicar e conhecer outras pessoas, mas era incapaz. E não sabia como fazer. Conseguir conhecer outras pessoas, entrar naquele mundo nôvo, é um salto derradeiro e irreparável para o desconhecido. A perspectiva é aterradora. Os riscos são enormes. As emoções, irresistíveis. Na verdade, duas pessoas relutam em despir seus pensamentos uma para a outra, porque - agindo desta maneira - tornam-se vulneráveis e dão enorme poder sôbre si. E com que freqüência se infligem dor e tormento! O melhor é manter relações insípidas e superficiais; dêste modo, as cicatrizes não são tão profundas. Dos rasgos na alma não corre sangue. Mas não acredito que um relacionamento maravilhoso tenha sempre de acabar em carnificina, ou que tenhamos de ser frau- dulentos e pretenciosos uns com os outros. Se projetarmos ima- gens fraudulentas e pretensiosas, ou se nos fantasiarmos com caricaturas destorcidas do que realmente somos, então, quando acordarmos do transe e contemplarmos além da falsidade e da vergonha, tudo se dissolverá, tudo morrerá ou será transformado em rancor e ódio. Sei que algumas vêzes as pessoas se enganam por motivos genuínos para se apegarem ao objeto de seus senti- mentos mais ternos. Consideram-se a si mesmas de tal modo inadequadas que se sentem forçadas a usar continuamente uma máscara para impressionar à outra. 21
  • 21. Se um homem é livre - ou seja, não está na pnsao, no Exército, num mosteiro, num hospital, numa espaçonave, num submarino - e vive uma vida normal com a costumeira multi- plicidade de relações sociais com indivíduos de ambos os sexos, pode se revelar incapaz de experimentar o impacto total de outro indivíduo sôbre si próprio. As influências competitivas e fôrças conflitantes de outras personalidades podem diluir a per- cepção física e emocional de alguém, até o ponto em que êste não recebe, e nem pode receber, tudo que a outra pessoa é capaz de transmitir. Contudo, posso acreditar que um homem cuja alma ou mecanismo emocional jaz adormecido num limbo sem vida de dessuetude seja capaz de responder do fundo de algum grande manancial submerso em seu ser, algo como um potente catalisador atirado numa massa crítica, quando uma mulher atraente, cati- vante e amorosa entra no raio de ação dos seus sentimentos. E que incitamento profundo, moroso, atormentador, relutante e alarmante! :Ble sente uma certa parte de si em estado de fluxo, como se algo estranho e incorpóreo tivesse mexido dentro do seu corpo, estremecendo-o ao se flexionar; sente-se como se voltasse lentamente à vida. Muda a composição química do seu ·corpo e é estimulado por novas fôrças. A princípio, quando ela se aproxima dêle, seu coração é vazio, um lugar desolado, um oásis sem água, inconsolável, e êle anseia por uma mulher, sem cujo sustento a tensão de sua masculinidade não se afrouxa. Sente a necessidade imperativa da bondade, simpatia, compreensão e da voz de uma mulher de ouvir o seu riso em resposta às palavras que pronuncia, de olhar dentro dos seus olhos, de aspirar sua fragrância primitiva, de ouvir - com os ouvidos massacrados - o sussurro sensual de roupas íntimas quando as pernas são cruzadas e descruzadas sob a mesa, de sentir o pêso delicado e tímido de sua mão - e como dolorosa e completamente êle tem consciência de sua presença, de cada movimento seu! S como se deixassem alguém morrer atrás de um arbusto numa estrada solitária. O sol quente e a sombra do arbusto, se não oferecem uma extensão da vida, proporcionam pelo menos uma morte lenta. E tão logo êste alguém sinta que a próxima respiração será certamente a última, um pássaro raro e com as côres do arco-íris pousa suavemente num galhinho do arbusto e, com a magia do seu canto melodioso 22 e a beleza de sua plumagem, seduz o moribundo de volta à vida. O homem à morte sente correr com fôrças dentro de si, através das veias do seu corpo, vindas da densa atmosfera criada pela presença do pássaro; e sabe intuitivamente no seu apêgo à vida, que se o pássaro permanecer ali êle reconquistará a fôrça e a vitalidade - e a vida. Vendo a imagem escapulir dos fracos dedos de sua cons- ciência tão logo o pássaro se vá, a mente luta por um sinal dêle no qual possa prender a memória. Com ciúmes, guarda a lem- brança enfraquecida do seu encontro, com a avidez do usurário que contempla as ações mais rendosas da Bôlsa de Valôres. A impenetrável maquinaria do subconsciente projeta a imagem sôbre o consciente: o braço direito dela, nu da curva do ombro à ponta dos dedos. (Teriam seus lábios tremido com o desejo de marcar aquela carne macia e d~ aparência fria com um beijo de fogo, e teriam seus dedos comichado pela ânsia de carícias?) Tal é a magia de uma mulher, o princípio feminino da natureza corporificado por ela, o poder de ressuscitar e revitalizar um homem solitário totalmente isolado. Tinha vinte e dois anos quando entrei na penitenciária e, é claro, mudei tremendamente com o passar dos anos. Mas sempre tive grande autocrítica e, nos últimos anos, senti que estava perdendo a identidade. Havia um marasmo em meu corpo que se evadia, como se não pudesse localizar exatamente sua posição. Eu percebia êste amortecimento, esta sensação de atrofia que perseguia o fundo da minha consciência. Devido a êste ponto insensível, senti-me peculiarmente desequilibrado, com a percepção de alguma coisa desaparecida, de uma mancha branca, de uma certa sensação de vazio. Agora, sei o que era. Após oito anos no presídio, fui visitado por uma mulher, uma mulher que estava interessada no meu trabalho e preocupada com o que acontecera comigo. E, desde que a conheci, senti a vida, a fôrça correndo de volta àquela mancha. Meu modo de andar, os passos nas minhas caminhadas, que se haviam tornado incertos e inseguros, começaram a recuperar a precisão, a con- fiança e o arrôjo que davam vontade de pular sôbre as mesas. Agora, posso até andar com um pouco de arrogância e, como li num livro em algum lugar, "impulsionar-me como uma loco- motiva". 23
  • 22. Sôbre Watts Quatro Vinhetas Penitenciária Estadual de Folsom 16 de agôsto de 1965 QUANDO deixamos o refeitório numa manhã de domingo e caminhávamos pelo pátio do presídio, quatro dias depois de fracassados levantes em Watts, um grupo de low ríders* daquela • Low rider: Apelido usado em Los Angeles para os jovens do gueto. Originalmente, o têrmo se referia ao jovem que rebaixa a sus- pensão de seu carro de modo a que ande quase colado ao chão; tam- bém implica o estilo de dirigir dêsses jovens. Sentados com os braços esticados ao volante e coro os bancos totalmente reclinados, tudo que se pode ver são seus olhos, o que constitui a maneira "pra írente" de dirigir. Quando êsses jovens alienados surgiram com seus carros, logo passaram a ser chamados de low riders, expandindo-se o têrmo de tal modo que todos os jovens do gueto negro - mas nunca os delicados filhos da burguesia negra - passaram a ser chamados de Low rlders. No Brasil, o têrmo popular que mais se aproxima de Low rider é "lenhador", aquêle que "lenha'' o automóvel, e adota uma postura si- milar quando ao volante. (N. do T.) 24 cidade reuniu-se na quadra de basquete. fuibiam sorrisos jubi- lantes e triunfais, animados por um espírito bairrista, como se também êles estivessem no centro do levante, que tinha lugar a centenas de quilômetros ao sul, no gueto de Watts. - Rapaz - disse um dêles - o que estão fazendo por lá? Dá o serviço, meu chapa. Todos bateram com as palmas das mãos uns nos outros, numa saudação enfática, e irrompcram em risos de prazer. - Meu chapa, nossos irmãos estão tomando conta do ne- gócio! - gritou outro, extasiado. Um low réder, então, avançando para o centro do círculo formado pelos outros, inclinou-se para trás e fêz um rodopio empunhando o cinto com os braços esticados da maneira como vira James Cagney e George Raft fazerem em muitos ftlmes de gangsters. Juntei-me à roda. Pressentindo a 3Froximação de um momento de criatividade, todos ficamos bem quietos, impassíveis, e outros companheiros que passavam por ali chegaram-se à roda, comportando-se da mesma maneira. - Camaradas - disse - êles andam em grupos de quatro e dão pontapés nas portas; tomando Reds* e esmurrando cabeças; bebendo vinho e cometendo crimes, disparando armas e saquean- do; gozando** e "lenbando", incendiando e rasgando pneus; virando carros e destruindo bares; enlouquecendo Parker e fa- zendo-me ficar satisfeito; acabando com a mentira do "calma, meu irmão" e destacando a querida Watts do mapa - minha bunda preta está em Folsom esta manhã, mas meu coração negro está em Watts. Lágrimas de contentamento corriam dos seus olhos. Foi um riso puro e revolucionário que todos compartilha- mos, algo de que nós, geralmente, não tínhamos oportunidade de participar. 1 Watts era um lugar de vergonha. Costumávamos usar Watts como um epíteto, quase da mesma maneira como os rapazes da cidade falam da "roça" como têrmo de derrisão. Ridicularizar alguém como "aleijado", que está por fora do que acontece na "' Recls: um barbitúrico, chamado Red Devils; assim conhecido 1lcvi<.Io a côr de sua cápsula e por possuir efeito estimulante. n lligh-siding : Gozar alguém. Rir às custas de outro. 25
  • 23. cidade (um campônio desajeitado); um "matuto" de Los An- geles derrubaria qualquer um dizendo que êle acabava de deixar Watts, que devia voltar a Watts até que apreftdesse o que estava se passando, ou que apenas roubou dinheiro suficiente para mudar-se de Watts e que já estava tentando desempenhar um papel ativo. Mas, agora, os negros são vistos em Folsom pro- clamando "sou de Watts, meu chapa!" -não importa que seja verdade ou não, pois acho que o significado está claro. Confissão: também eu participei dêste jôgo dizendo "sou de Watts". Na ve~dade, vivi lá por algum tempo, e tenho orgulho disso, a des- p~tto das lamentações enfadonhas de Whjtney Young, Roy Wil- kms e do Pregador. Olhos Penitenciária Estadual de Folsom 28 de outubro de 1965 Certa v~z, ~u descia a Main Street, em Los Angcles, por volta do meto-dta de um sábado, num lindo e ensolarado dia. Era apenas um garnizé, na casa dos dezesseis anos acho eu e tinha a maneir~ de andar do tipo "penso-que-estou-~bafando": saracot~ando e ptsando na ponta dos pés. Diante de mim, junto à calçada, havia um salão de engraxates. Estava bem na minha direção. Uma vitrola automática tocava alto uma música de grande sucesso que me atraiu enquanto caminhava. Passei a andar seguindo o compasso da música. Sentada no banco reser- vado aos fregueses encontrava-se uma "irmã" muito bonita esta- lan~o os dedos. e retorcendo o corpo no ritmo da música, 'e que sornu para mtm quando, nossos olhos se encontraram. Não havia ninguém na engra~t~ria e; ~s~ que subi na cadeira o disco terminou. Parei óe seguir ocompasso e fiquei olba~do para a garôta completamente fascinado. Então, bruscamente, ela começou a cantar: "Lindos, lindos olhos castanhos". 26 Que sensação! Aquilo me tocou profundamente, fêz-me perder o gingado, e só então reparei que estava ali em pé olhando embasbacado para ela como um roceiro imbecil. Fiquei real- mente confuso e embaraçado. "Desliguei" completamente. E, quando procurei a porta para sair correndo, vi-a rolar no chão de tanto rir. Aquilo, entretanto, fêz com que me sentisse bem e até hoje guardo essa lembrança pelo modo como foi pene~ trante o incidente. Tive uma experiência bem diferente durante uma disputa pelo poder entre facções de muçulmanos em San Quentin. Um irmão de direita tentou deixar-me do lado de fora com uma tática bem baixa: "Irmãos" - disse êle a todos nós, um dia - "o irmão Eldridge não deve ter permissão para ocupar qual- quer posição até que complete sete anos como muçulmano. :me tem a Marca da Bêsta no corpo. Olhem seus olhos - êle têm os olhos do demônio". As palavras me surpreenderam e me tocaram num ponto sensível. Vários outros irmãos também ficaram confusos. Mas, um dos meus amigos salvou tudo salientando que "muitos dos chamados negros têm os olhos estranhos das bêstas. Os demô- nios fizeram uma mistura de todos nós. Mesmo o honorável Elijah Muhammad tem olhos com uma côr brilhante. O irmão Malcolm tem olhos reluzentes. Assim, não saia por aí falando dêste modo porque você somente estará pregando a desunião. O honorável Elijab Muhammad prega a união. Se você se diz muçulmano, irmão, terá de começar pensando positivo e abandonar tudo que fôr negativo". O sujeito foi obrigado a bater em retirada o mais rápido possível. Mas eu estava sangrando por dentro. tUnlvnrsldadt do Br:~;;m;' BIBLIOTECA 27
  • 24. Alimento da Alma Penitenciária Estadual de Folsom 3 de novembro de 1965 A gente ouve um bocado de jazz falando do Alimento da ~lma. Coma tr.ipas: os negros do gueto as comem por neces- Sidade, enquanto a burguesia negra transformou o alimento num sl?gan de escárnio. . Comer tripas é acabar virando as próprias tnpas. Agora que Já conhecem o preço de um bife lá vem êles batendo o cu sôbre o Alimento da Alma. ' .A ênfase sôbre o Alimento da Alma é a ideologia da bur- guesia negra contra-revolucionária. A principal razão de Elijah ~uhammad ter proibido a carne de porco para os negros nada tmha a ver com tratados dietéticos. A questão é que quando a gente vê todos aquêles negros engaiolados no gueto com a cabeça cheia de bifes de filé - com o pêso do fervor religioso atrás do desejo da "bóia" - então alguma coisa precisa ser dada. ~ sistema fêz concessões aos residentes do gueto para que obtivessem um pouco de carne de porco, mas não há pro- visões para que a elite abra mão de um bífe. As paredes come~ çam a desmoronar. Uma conversão religiosa, mais ou menos Penitenciária Estadual de Folsom 1O de setembro de 1965 Já fui católico durante certo tempo. Fui batizado fiz a minha Primeira Comunhão, a Crisma e usava uma C~z de Cr~sto p~ê.sa a uma ?orr~nt~a em tôr~o do pescoço. Rezava à no1te, d1z1a o rosáno, 1a a Confissão c rezava tôdas as Ave- 28 Marias e Padre-Nossos que, como penitência, o padre mandava. Irremcdiàvclmente enamorado pelo pecado como eu era, embora aterrorizado pelos pecados dos outros, ansiava pelo Dia do Juízo Final e o julgamento perante o júri de meus pares - esta era a minha única chance de escapar às chamas que já podia sentir chamuscando meus pés. Encontrava-me, naquela ocasião, numa instituição do Juizado de Menores da Califórnia por ter transgredido as leis do homem; Deus, naquela época, não me acusara de nada. E, se acusou, foi uma acusação secreta pois jamais fui informado de quaisquer queixas contra mim. Os motivos pelos quais me tornei católico residiam em que as normas da instituição estabeleciam que, aos domingos, todos os internos eram obrigados a comparecer à igreja de sua escolha. Escolhi a Igreja Católica porque todos os negros e mexicanos a freqüen- tavam. Os brancos iam à capela protestante. Fôra eu imbecil ao ponto de entrar na capela protestante, um rosto negro num mar de brancos e, com a guerra de guerrilhas que travávamos, eu poderia acabar sendo um mártir da cristandade - São Eldrid- ge, o Estúpido. Tudo terminou quando um dia, numa aula de catecismo, o padre perguntou se algum dos presentes compreendia o mistério da Santíssima Trindade. E u estudava minhas lições aplicada- mente e sabia de cor o que me havia ensinado. Ràpidamente, levantei a mão, com o coração palpitando de orgulho e devoção por essa oportunidade de demonstrar meu conhecimento do Verbo. Para minha grande surprêsa e embaraço, o padre afir- mou - e aquilo soou como o ribombar de um trovão - que cu estava mentindo, que ninguém, nem mesmo o Papa, com- preendia a Divindade, e perguntou por que pensava eu que êles chamavam aquilo de mistério da Santíssima Trindade? Como lllll rclt.mpago, notei - ofendido pelas imediatas vaias de meus t.•ok•gns de catecismo - que tinha sido usado, que o padre f lt':lrn i'i espreita na espera de uma oportunidade para lançar .tquclc trovão, de maneira a provar conclusivamente que a ques- 1.111 dn Santíssima Trindade não era para ser trazida à luz da l w11pr~·cnsão. P cu pretendia explicar a Trindade através de uma analogia w u1 11 olco três-em-um; c provàvelmente era parecido. 29
  • 25. "O Cristo" e seus ensinamentos Penitenciária Estadual de Folsom 10 de setembro de 1965 A primeira vez que tomei conhecimento de Thomas Merton foi em Sao Quentin, por volta de (acredito) 1959-60. Naquele tempo, um .~anto caminhou sôbre a Terra na pessoa de um tal Chns LovdJ•eff. Tratava-se de um professor em San Quentin e gu~ par~ to~os os que o procuravam. O que ensinava? Tudo. :e !Da•s fácil diZer apenas que ensinava Lovdjieff e deixemos as coJsas se desenvolverem assim. Ele próprio clamava ser uma espécie de ~iscípulo de Alan W. Watts, a quem costumava tra- zer a Quentm para nos falar de vez em quando sôbre o hinduís- mo, zcnbudisJ?o e sôbre o modo como os povos da Ásia contem- playam o umverso. Nunca compreendi como "O Cristo" (era assun que eu. costumava chamar Lovdjieff, para seu pesar e sofri- mento) po~1a sentar-se ao~ pés de Watts, pois êle sempre me par~ceu ma1s veemente, ma1s humano e possuidor de maior sabe- d_?TJ~ do que a que Watts demonstrava tanto em suas confe- ~cnctas _como em se.us livros. Talvez eu tenha formado esta 1mprcssao por ter fi<:ado mais exposto a Lovdjieff do que a Watts. Contudo, ha~a alguma coisa com respeito a Watts que me lembrava de un:t mteressante e bem feito anúncio de um apa- relho para econom1zar trabalho, destinado à dona de casa ame- ricana, e publicado com destaque nas páginas centrais da revista Li/e; embora. a principal qualidade de Lovdjieff parecesse ser a dor e o s~frunento, be?l ~orno uma fôrça peculiar apoiada na compreensao do seu propno desamparo, fraqueza e necessidade. Es~dei ~om Lovdj.ie~ a história J?Undial, filosofia oriental, filo- sofia oc1dental, rcl!g~ao comparatJva e economia. E não podia separar uma aula da outra, como não podiam os outros estu- dante~, nem tampouco, acredito, o próprio Lovdjieff. Tudo era LovdJ•eff. As pared~ .de su~ sala de aula eram cobertas por cartazes de cartolma ex1bmdo c1tações dos maiores pensadores do mundo. Japonêses, esquimós, africanos, astecas, peruanos, Voltaire, Coo- 30 fúcio, Lao-Tsé, Jesus Cristo, Moisés, Maomé, Buda, Rabbi Hil- lel, Platão, Aristóteles, Marx, Lênin, Mao Tsé-Tung, Zoroastro e Thomas Merton, entre outros. Certa vez, Lovdj;eff deu uma aula sôbre Merton, lendo trechos de sua obra e tentando inserir sua vida e trabalho no contexto. tle parecia querer desespera- damente que respeitássemos a vocação e a escolha da vida con- templativa de Merton. Foi uma batalha difícil porque uma prisão, em muitas coisas, é semelhante a um mosteiro. Os inter- nos na aula de Lovdjieíf odiavam a cadeia. Estarrecia-nos saber que um homem livre podia entrar voluntàriamente na pri- são - ou num mosteiro. Deixe-me dizer já: pensávamos que Merton era algum tipo maluco. Tínhamos o mesmo conceito em relação a Lovdjieff. Meu dcsgôsto íntimo era que, em muitas coisas, eu não era nada mais que um monge; e como abominava aquela visão de mim mesmo! Eu fôra mistificado por Mcrton, mas não podia acreditar em sua defesa apaixonada do monasticismo. Desconfiava de Lovdjieff na questão de Thomas Merton. Minha consciência ouviu um apêlo especial na sua voz. Defendendo ardentemente Merton, Lovdjieff parecia estar defendendo a si próprio, tentando se convencer. Um dia, Lovdjieff confidenciou-nos que tentara entrar para um mosteiro, mas não conseguira. Mas terminou conseguindo, mesmo sem entrar. San Quentim era o seu mos- teiro. Ocupava-se com a penitenciária como se tivesse uma vocação especial para ensinar a prisioneiros. Ficava lá dias e noites, mesmo aos sábados, sem nunca faltar. As autoridades precisavam, às vêzes, mandar um guarda à sua sala para que parasse a aula, a fim de que os detentos pudessem ser trancados ~·m suas celas para passar a noite. :l?.le ficava horrorizado com n fato de que lhe podiam fazer tal exigência. Com relutância, ficntava-se pesadamente na cadeira, sobrecarregado pela derrota, t' di;.ia-nos que fôssemos para nossas celas. Parte do poder que lhe havíamos dado consistia em que nunca deixávamos sua aula n menos que êlc próprio nos dispensasse. Se um guarda che- ~·assc c nos mandasse sair, receberia em resposta apenas olhares l.íos; nfio nos moveríamos até que Lovdjieff desse consenti- ltll'II(O. Blc adquiria um estímulo particular com essas pequenas vlló•it1R sôbre seus algozes. Caso êle não conseguisse chegar 11 pcnitcnciCtria por ter problemas com o automóvel, como acon- 31
  • 26. teceu certa ocastao, no dia seguinte enchia-nos de desculpas e lamentava profundamente a falta. Lovdjieff conseguiu arrancar-me o compromisso, sob pala- vra, de que algum dia leria Merton por espontânea vontade -:- não insistiu em precisar uma época, apenas "algum dia". Mutto fácil. Dei-lhe minha palavra. Em 1963, quando fui transferido de San Quentin para Folsom por ter sido acusado de agitador, mandaram-me diretamente para a solitária. As autoridades não julgavam prudente, naquela altura, permitir que eu circulasse entre a população carcerária. Eu havia desenvolvido um pro- grama intensivo para pôr em prática imediatamente, se alguma vez fôsse colocado na soütária: estocar livros e ler, ler, ler; fazer ginástica e esquecer o resto do mundo. Já descobrira a inutilidade e a futilidade de preocupar-se. (Anos atrás, já dei- xara de ser um daqueles prisioneiros que pega o calendário e risca cada dia que passa.) Quando pedi alguns livros para ler naquele buraco, um encarregado mandou-me uma lista para que fizesse a seleção. Fiquei cheio de contentamento ao ver The Seven Storey Mountain, a autobiografia de Merton. Pensei em Lovdjie(f. Ali estava a oportunidade para cumprir minha pro- messa. Fui torturado por aquêle livro, poiso sofrimento de Merton, aa sua procura de Deus, parecia-me inteiramente inútil. Naquela época, eu era um muçulmano negro acorrentado pelo Demônio no fundo de um buraco. Deveria esperar que Alá destruísse as paredes e me libertasse? Para núm, a Hngua e símbolos da religião não passavam de armas de guerra. Não via outro fim para elas. Todos os deuses estão mortos, exceto o deus da guer- ra. Desejava que Merton afirmasse em têrmos seculares as razões que o levaram a retirar-se do sistema político, econô- mico, militar e social no qual nasceu, c procurar refúgio num mosteiro. Apesar de minha rejeição da visão teísta do mundo defen- dida por Mertoo, não podia mantê-la fora da cela. g1e abria caminho com os ombros através da porta. Benvindo, Irmão Merton. Dei-lhe um abraço de urso. O que mais me impres- sionou em tudo foi a descrição que fêz do gueto negro de Nova Iorque - o Harlem. Gostei tanto que copiei à mão o principal. Mais tarde, depois ele sair da solitária, costumava lembrar cssu 32 r I passagem, em que falava dos muçulmanos negros aos outros prisioneiros. Aqui, nesta grande, escura e miserável zona, centenas de milhares de negros são arrebanhados como gado, a maior parte sem nada para comer ou para fazer. Todos os sentidos e imaginações, sensibilidades e emoções, lamen- tos e desejos, esperanças e idéias de uma raça com vívidos sentimentos e profundas reações emocionais desabam sôbre êles próprios, comprimidos pela corrente de ferro da frus- tração: o preconceito que os encurrala dentro de suas qua- tro intransponíveis paredes. Neste gigantesco caldeirão, inestimáveis aptidões naturais, sabedoria, amor, música, ciência e poesia são atiradas e deixadas ferver com o refugo ele uma natureza elementarmente corrompida, e milhares sôbre miJhares de almas são destruídas pelo vício, pela miséria e pela degradação, eliminadas, varridas e levadas do registro da vida desumanizada. O que não foi devorado em sua fornalha escura, Har- lem, pela maconha, pelo gim, pela insanidade, pela histe- ria, pela sífilis? Durante algum tempo, sempre que me sentia amolecer, rela- llltt'1 11 (anica coisa a fazer era ler aquela passagem para torna.r- 1111.' novumcntc uma chama viva de indignação. Exercia sôbre 1111111 prt•cisamcnlc o mesmo efeito que costumavam ter os escri- '"~ dr tmjah Muhammad, as palavras de Malcolm X, ou as de quuh1111. 1 porta-voz dos oprimidos em qualquer parte do mundo. tht uvu t'<l111 simpatia diante de qualquer protesto contra a fll ollllll 1 lllll'lllnlo, gostaria de falar mais a respeito de Lovdjieff c) <'•t~lu. c'l1111 I ovdjidf era possuidor de grande inteligência e tinha duc· '~ tu l'L tllnllui<:n. Fiquei com a impressão de que a carni- 11( "'" du SL 'I'IItltht ( iucrra Mundial, particularmente a aborda- t' ''' • 1 lt•tt lllltt'tt l' t'Íl'llllficA do genocídio pelo regime nazista, I '1 ttllllt 1 ~fllt i( m'lt trautnMicn da qual lhe era impossível 33
  • 27. ~'I r li ,, 'I li' I' ~ recuperar-se. Era como se tivesse visto ou experimentado alguma coisa que o mudara para sempre, adoecendo sua alma e engol- fando-o em simpatia e amor por tôda a humanidade. tle odiava tôdas as repressões contra o pensamento e o espírito humano, bem como tôda crença cega e tôda asserção dogmática. :e.1e questionava tudo. Nunca tive certeza sôbre o que exatamente o impelia. Que era impelido, não havia dúvida. Havia uma sensação de irrea- lismo em tôrno dêle. Parecia mover-se numa névoa. A atmos- fera que criava era como o encanto místico da poesia de Khalil Oibran. Parecia estar sempre ouvindo uma música distante, ou vozes silenciosas, ou murmurando para si mesmo. Amava o silêncio e dizia que só devia ser quebrado por comunicações importantes; afirmava que expulsaria de suas aulas os alunos que se distraíssem em conversas inúteis com os colegas nas últi- mas filas. Em aula, era um ditador. Fazia vigorar certas regras e não tolerava que fôssem violadas - não fumar na sala, antes, durante c nos intervalos das aulas; não comentar suas aulas, a menos que a conversa tivesse ligação com o assunto discutido em sala; não comer ou mastigar chicles durante as aulas; não ser irreverente. Regras simples, talvez, mas em San Quentin eram visionárias, arriscadas e audaciosas. O Cristo fêz com que vigorassem estritamente. Os outros professôres e os guardas ficavam pensando como êle conseguira aquilo. Nós, estudantes, imaginávamos como nos havíamos submetido tão entusiàstica- meote. O Cristo olharia sorprêso, como se não compreendesse, caso se fizessem perguntas a respeito. Se um dos outros profes- sôres esquecesse e entrasse fumando na sala de aula de Lovd- jicff, era mandado sair às carreiras. O mesmo acontecia com os guardas da prisão. Ainda posso ver a expressão chocada de um professor substituto que, ao entrar na sala de Lovdjieff du- rante o intervalo, fumando cachimbo, foi severamente advertido: "Saia imediatamente desta sala!" Quando se entrava numa aula de Lovdjieff, entrava-se para aprender. Se, por acaso, você revelasse outros motivos, recebia um "saia imediatamente daqui!" - sem maldade, mas sem equí- vocos. :ele era uma magneto, uma instituição. Trabalhava infa- tigàvelmente. Seu dia começava quando o sino da escola tocava, às oito horas da manhã. Várias vêzes, abria mão do almôço 34 para entrevistar alguns estudantes e auxiliá-los nos trabalhos de aula ou problemas pessoais. Mas, também, nunca deixou de se queixar do fato de que as autoridades negassem per:missão para que almoçasse no refeitório junto com os prisioneiros. Se lhe tivessem dado uma cela, êle lá ficaria. Após o almôço, dava aula até às três horas da tarde. Quando a escola noturna vol- tava a funcionar às seis horas, O Cristo lá estava, radiante e jubiloso, ensinando cheio de entusiasmo até às dez horas da noite. Depois, relutantemente, ia para casa sofrer no exílio até que a escola abrisse no dia seguinte. Aos sábados, lá estava êle novamente radiante e bem cedo para ensinar Lovdjieff. E tam- bém viria aos domingos, não fôsse as autoridades fazerem pé firme e se recusarem a discutir o assunto. O Cristo aprovei- tava o domingo para gravar um programa de rádio noturno, com duas horas de duração, que êle retransmitia aos prisioneiros. Suas aulas eram obras de arte. Transformou a história antiga em contemporânea, evocando o ambiente total - intelec- tual, social, político e econômico - de uma era. Dava vida às ruínas do passado. Os alunos ficavam em seus lugares extasiados enquanto O Cristo falava, com seus óculos de aros prateados refletindo a luz brilhante dos seus olhos. Vestia-se como um colegial, denunciando uma inclinação para suéteres simples e calças largas e lisas sem nenhuma carac- terística particular. Quando ensinava religião, queimava incenso em aula, para evocar um certo estado de espírito. E era sempre indicado para tratar dos alunos que pareciam impossíveis de educar - velhos que passaram a vida analfabetos e fixados em suas idéias c hábitos. Lovdjicff não acreditava que alguém ou .tlguma coisa no mundo ficasse permanentemente prêsa a idéias l' h:tbitos. Com os alunos inteligentes e que tinham mais facili- dmlc para aprender, Lovdjieff parecia indeciso, quase como se dt,scssc, apontando para os analfabetos e falando para os mais ntllligcntcs: "Vão embora. Deixem-me. Vocês não precisam dl· rnim. Os outros, sim". Jesus chorou. Lovdjieff choraria com um acontecimento lt ii~•.Íl'o ocorrido há milhares de anos em algum atalho esquecido 1h1~ 1·rms do Nilo. Certa ocasião, deu uma aula sôbre os ltlltl•n!i lwbrcus. Ficou furioso com êles por terem escolhido como lnt·ul p:1rn so estabelecerem as rotas comerciais entre o Egito e 35
  • 28. a Mesopotâmia. Mostrou como, coro o passar dos séculos, êssc povo tem sido ·de tempos em tempos atacado novamente, viti- mado por carnificinas, expulso de suas terras, perseguido, mas sempre reaparece. - O que os faz voltar para êsses lugares! - exclamou. Lovdjieff perdeu a respiração. Seu rosto desfigurou-se, caiu para a frente e chorou. - Por que insistem em viver no meio daquela . . . daquela (por alguns instantes, pensei cá comigo, O Cristo não encontrou palavras) daquela. . . daquela. . . estra- da?! Isto é tudo, olhem! E apontou as rotas comerciais no mapa atrás de sua mesa, depois sentou-se e chorou sem se con- trolar durante alguns minutos. Em outra ocasião, trouxe trechos gravados em fita do Look Hom.eward Angel, de Thomas Wolfe. O Cristo chorou durante tôda a fita. O Cristo podia chorar com uma linha de poesia, com uma única imagem de um poema, com a beleza da música de um poema, com o fato de que o homem pode falar, ler, escrever, andar, reproduzir, morrer, comer, eliminar - com o fato de que uma galinha pode botar ôvo. Certa vez, passou uma semana inteira dando aulas sôbre o Amor. Citava o que os poetas diziam do amor, o que os roman- cistas falaram do amor, o que os dramaturgos escreveram sôbre o amor. Rodou fitas de Ashley Montagu, também sôbre o amor. No fim da semana, cada aluno deveria escrever um ensaio sôbre a sua própria concepção do amor, não ·importando se tivesse so- frido influência do que fôra dito durante tôda a semana. Em meu trabalho, expliquei que não amava as pessoas brancas. E citei Malcolm X: 36 Como posso amar o homem que violou minha mãe, matou meu pai, escravizou meus ancestrais, lançou bombas atômicas sôbre o Japão, exterminou índios e me mantém engaiolado no gueto? Era preferível que me amarrassem dentro de um saco e me jogassem no Rio Harlem. Lovdjieff negou-se a dar nota a meu trabalho. E devol- veu-o a mim. Protestei, dizendo que êle estava sendo intole- rante e dogmático ao não compreender meu ódio, simplesmente porque êle próprio era branco. Disse-me que falasse com êle depois da aula. - Como você pode fazer isto comigo? - perguntou. - Apenas escrevi do modo como sentia - disse-lhe. Ao invés de responder, chorou. - Jesus chorou - falei, e depois me retirei. Passados dois dias, êle devolveu meu ensaio - sem nota. Ao contrário, havia manchas sôbre o papel que imaginei serem lágrimas. Embora a popularidade de Lovdjieff entre os prisioneiros continuasse aumentando e as listas de pessoas que aguardavam suas aulas ficassem cada vez maiores, as autoridades da peniten- ciária baniram seu programa de rádio. Depois, proibiram que fôsse à prisão aos sábados. Posteriormente, afastaram-no da escola noturna, impedindo-o de ensinar. Finalmente, tomaram seu passe e o impediram de frequentar San Quentin. Preciso dizer que êste homem não foi adequadamente des- crito. Omiti propositadamente certas coisas, outras não sei como dizer. Até começar a escrever isto, não sabia que tinha uma lembrança tão viva de Lovdjieff. Mas, agora, posso fechar os olhos e reviver muitas cenas nas quais êle representa um ato. 37
  • 29. Um dia na Penitenciária de Folsom Penitenciária Estadual de Folsom 19 de setembro de 1965 Mw dia começa oficialmente às sete horas, quando todos os prisioneiros são obrigados a levantar da cama e ficar em pé diante da porta da cela para que sejam contados pelos guardas, que caminham ao longo das fileiras marcando "um, dois, três ..." Contudo, nunca fiquei na cama até às sete horas. Geralmente, por volta das cinco e meia, já estou acordado. A primeira coisa que faço é arrumar a cama. Depois, recolho todos os livros, jornais, etc. . . espalhados no chão e jogo-os em cima da cama, a fim de limpar o chão para fazer ginástica. Na minl1a ccln, tenho um pequeno banco sôbre o qual apóio uma larga chapa de compensado, com cêrca de um metro por oitenta centímetros, que uso como mesa para escrever, seja à mão Oll à nuíquina. A noite, coloco essa mesa improvisada no chão, .iuntamente com os livros e os papéis, e, quando leio à noite, espalho uma porçao de coisas sôbre o chão. Quando saio da cela coloco a prancha, .)8 carregada de livros e papéis, sôbre a cama; evito assim que um guarda, ao entrar, retire-a do banco, como já aconteceu certa vez. Ainda nu, que é como habitualmente durmo, passo à ro- tina; flexiono as pernas, abro os braços, toco com as mãos as pontas dos dedos dos pés, sento de cócoras e faço uma viravolta. E assim continuo, cêrca de meia hora. Algumas vêzes, caso tenha algo que deseje escrever ou dati- lografar de modo a poder mandar pelo correio da manhã, dis- penso a ginástica. Mas isso é coisa rara. (Somos obrigados, se queremos que nossa correspondência seja expedida num dia determinado, a colocar as cartas na caixa do correio até às ojto horas. Quando saímos da cela às sete e meia para o café da manhã, passamos ao lado da caixa postal, e, a caminho do refeitório, colocamos a correspondência.) Normalmente, por volta da hora em que termino a ginás- tica, o carcereiro (nós o chamamos de zelador de fila, ou cha- veiro) aproxima-se e enche meu balde com água quente. Não temos água quente corrente. Cada cela possui uma pequena pia com uma torneira de água fria, uma cama, um armário, uma ou duas prateleiras ao longo da parede, e um vaso sanitário. O carcereiro tem um regador grande com um cano comprido, como o que as pessoas usam para regar as plantas, apenas sem o chuveiro. l?.Ie enfia o cano através das barras e despeja cêrca de quatro litros de água quente. A porta da minha cela não tem barras; é uma chapa sólida de aço com cinqüenta e oito buracos do tamanho aproximado de uma moeda de meio dólar, c um postigo no centro, na altura dos olhos, com três centíme- trus de largura e cinco de comprimento. O carcereiro estica o t' llllO alravés de um dos pequenos buracos e despeja a minha llptnt quente. À tarde, joga a correspondência através do pos- IIJ'O, por onde normalmente também os prisioneiros passam llliiHUS, livros, doces e cigarros. Ounndo o guarda tem correspondência para mim, êle se Jlllt junto à porta c me chama pelo nome; eu então recito meu llllllll' I O A-29498 - para verificar se sou o Cleaver certo. IJu 111do recebo a correspondência, sempre desvio os olhos da ' "' • tlt• 11mt1o a não poder ver quem a remete. Depois, sento- uu 11 .1 l' liiiHI c começo a olhar a carta devagarzinho, como faz 11111 I"V•IIIIH tll.l pôquer quando chora suas cartas. Posso sentir 39
  • 30. quando recebo uma carta sua e, quando choro seu nome no enve- lope, solto um grande berro. :a como tirar quatro ases. Mas, se a carta não é sua, é como se eu tirasse sete, oito, nove, dez, tôdas as cartas de naipes diferentes. Uma violenta patada. Nada. Pior ainda é quando o guarda passa pela minha porta sem parar. Posso ouvir suas chaves tilintando. Se êle pára, as chaves soam como sinos de Natal; se continua, soam apenas como... chaves. Resido no bloco de honra. Nos outros blocos, a frente das celas é apenas de barras. Quando me mudei pela primeira vez para o bloco de honra, não gostei muito da idéia. As celas pareciam feitas para uma masmorra. As fortes portas de aço, ao fecharem, batiam com um clangor de finalismo que arrepiava minha alma. A primeira vez que a porta se fechou para mim tive a mesma sensação feroz e histérica que havia sentido, anos atrás, em San Quentin, quando debutei na solitária. Durante um rápido momento, senti-me como se gritasse por socorro, e parecia-me que em nenhuma circunstância teria capacidade para suportar aquela cela. Naquela fração de segundo, senti como se gritasse para os guardas, implorando que me deixassem sair, suplicando que me deixassem ir embora, prometendo que seria um bom môço no futuro. Mas, tão ràpidamente como senti aquela sensação, ela tam- bém foi embora, dissolvida, e me senti em paz comigo mesmo. Achei que poderia suportar qualquer coisa, tôdas as coisas, mesmo o teste de ser quebrado ao meio na tortura do cavalete. Estive em todos os tipos de celas que havia à disposição nas penitenciárias da Califórnia, e a porta daquela, naquele momento, parecia a mais cruel e detestável de tôdas. Entretanto, acostu- mei-me a gostar desta porta. Quando saio da cela não vejo a hora de voltar, de bater aquela porta pesada e ouvir o sêco girar das chaves enquanto o carcereiro a tranca por trás de mim. O zelador de fila carrega consigo as chaves das celas do. bloco de honra o dia inteiro, abandonando..as à noite, e para se entrar na cela tudo que a gente tem a fazer é chamar o carcereiro de plantão no corredor. Uma vez dentro dela, sinto-me seguro: não tenho mais de olhar os outros prisioneiros ou os guardas armados nas tôrres de contrôle. Se você vive numa cela que só tem barras na frente, não pode se dar ao luxo de descansar: alguém pode vir anelando pelo corredor e atirar um coquetel 10 Molotov sôbre você antes que perceba, algo que vi acontecer em San Quentin. Sempre que estou numa dessas celas com barras, mantenho um cobertor à mão para uma emergência, para apagar um incêndio caso necessário. Paranóia? Sim, mas é a última coisa que alguém pode fazer por si próprio. Na minha atual cela, com sua porta iotranspotúvel, não me preocupo com sabotagens - embora se alguém tiver maus instintos, talvez consiga imaginar algo praticável. Bem. . . após terminar a ginástica c ter chegado a água quente, tomo um banho de passarinho na minúscula pia. Nor- malmente, isso ocorre por volta das seis horas. Depois, até às sete e meia, quando saímos para o café, limpo a cela e tento pegar algumas notícias do rádio. Rádio? - cada cela tem um par de fones! - com apenas dois canais. Os programas são monitorizados na sala de rádio. A programação é feita pela comissão do rádio, da qual sou membro. Às sete e meia, café. Do refeitório, todos os dias exceto aos sábados, meu dia de folga, vou direto à padaria, visto minha roupa branca de trabalho, e assim fico até o meio-dia. Depois fico "livre" até às três e vinte da tarde, a hora obriga- tória para se recolher às celas, quando somos obrigados, nova- mente, a ficar de pé junto a porta para sermos contados. Há uma outra contagem às seis e meia - três vêzes todos os dias, sem falhar. Quando termino o trabalho na padaria posso escolher entre (l) ir para minha cela; (2) ficar no salão para assistir aos pro- gramas da televisão; (3) descer até a biblioteca; ou (4) sair até o pátio para caminhar, sentar para tomar sol, levantar pêso, jogar algum joguinho interessante - como damas, xadrez, bola de gude, ferradura, volibol, beisebol, arremêsso de disco, saco de boxe, basquete, conversar, TV, tênis de mesa, observar os outros prisioneiros que estão observando os outros colegas. Quando vim pela primeira vez para Folsom, fiquei surprêso ao ver velhos de cabeça branca jogando bola de gude. Os joga- dores de bolas de gude em Folsom são legendários em todo o sistema penitenciário: a primeira vez que ouvi falar nêles foi há vários anos atrás. Existe um senso de suprema derrota a respeito dêJcs. Um sujeito pode gabar-se de que vai sair da 41
  • 31. prisão e permanecer lá fora, mas alguém logo ridiculariza seu orgulho dizendo que em breve êle estará de volta, jogando bolas de gude como uma pessoa que perdeu sua antiga grandeza, um joão-ninguém, arremessado de volta à infância por uma derrota esmagadora no seu sonho final. Os jogadores de bolas de gude transformaram o jôgo numa arte, e jogam o dia inteiro, fanàti- camente absorvidos pelo que estão fazendo. Se eu tivesse um companheiro de cela que soubesse jogar, jogaria xadrez com êle de vez em quando, talvez uma partida por noite. Tenho um tabuleiro de xadrez particular c, às vêzes, quando não tenho nada para fazer, apanho um pequeno enve- lope no qual guardo uma coleção de problemas para enxadristas recortados dos jornais, e resolvo um ou dois. Mas nunca fui capaz de dedicar todo meu tempo a uma destas partidas. E raras vêzes consigo jogar uma partida lá fora, no pátio. . . Sem- pre que atravesso o pátio nestes últimos tempos, estou normal- mente a caminho da biblioteca. No pátio, há um pequeno barraco junto a um dos cantos onde está instalada a sede do Conselho Consultivo dos Prisio- neiros (IAC). Esporàdicamente, visito o barraco para bater papo e saber das últimas notícias. E, vez por outra, vou até a área de levantamento de pêso, coloco o calção, seguro um pedaço de ferro por algum tempo e fico "de môlho" sob o sol. Às lrês e meia da tarde, cela. Em pé para a contagem. Depois, saída para o jantar. Volta à cela. Em pé para a con- tagem às seis e meia. Depois, todos podemos deixar as celas, um corredor de cada vez, para tomar banho, trocar os lençóis c toalhas imundas por outras limpas, cortar o cabelo e, então, todos voltam às celas. Evito esta reunião social tomando banho na padaria. À noite, apenas saio para trocar meu lençol. No bloco de honra, temos permissão para sair após a contagem das seis c meia da tarde todos os sábados, domingos e quartas-feiras para ver televisão até às dez horas, antes de sermos trancados para dormir. A única vez que saí para ver televisão foi para apreciar as "belezas" do Shinding and Hollywood-A-Go-Go, mas o programa nunca mais foi ao ar. Recentemente, conseguimos mudar as regras de maneira que, nas noites de TV, os do bloco de honra possam escrever à máquina até às dez horas. Antes, era costume não permitir que se batesse à máquina depois das 42 oito horas. Fico muito satisfeito por poder aproveitar mais êsse tempo extra para datilografar: posso lhe escrever maiS cartas. Às quintas-feiras, deixo a minha cela após a contagem das seis e meia para comparecer à reunião semanal do IAC. Essas reuniões são suspensas exatamente às nove horas. Nas manhãs de sábado, meu dia de folga, costumo participar das reuniões do Gavel Club, mas no sábado passado, como estava no meio de minha última carta para você, retirei-me para minha ce1a. Fico satisfeito por ter vontade de deixar o Gavel Club, mas espero não fazê-lo porque é lugar onde estou adquirindo valiosa expe- riência e técnica de falar em público. Em média, passo aproximadamente dezessete horas por dia na minha cela. Gozo a solidão. A única desvantagem é que não tenho possibilidade de conseguir o tipo de material de lei- tura que desejo, e é difícil encontrar alguém com um bom nível de conversa. Existem poucos sujeitos aqui que escrevem. Parece que todos desejam escrever. Alguns dêles conseguiram vender um trabalho aqui, outro ali. Eles têm uma comissão de escritores que se reúne na biblioteca sob a proteção do nosso bibliote- cário. Jamais tive o desejo de integrar essa turma, em parte devido à minha antipatia pela atitude do bibliotecário, e em parte devido aos tipos falsos e esquisitos dos prisioneiros. A maior parte, suponho, é porque os m·embros da comissão são todos brancos e todos perturbados com relação às pessoas de côr. São uns tipos amáveis, não chegando a ter o entusiasmo dos bons liberais brancos, e se conformam com a atmosfera de Mississipi que prevalece aqui em Folsom. Aqui, brancos e negros não se confraternizam. O conceito de Harry Golden de integração vertical e segregação horizontal domina tudo. Os brancos querem falar com você lá fora, no pátio ou no trabalho, permanecendo em pé, mas se esquivam quando é para se sentar ao lado do negro. Por exemplo, quando entramos em fila para a "bóia" há a mais comrpleta integração. Mas, uma vez dentro do refeitório, os negros procuram os negros para sentarem juntos, e os brancos se aproximam dos brancos ou dos mexicanos. Há um sujeito judeu de Nova Iorque que se meteu em encrencas em Frisco (San Francisco) . E'le pensa que é outro Lenny Bruce. Realmente é engraçado e muito desembaraçado, 43