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_-„-. -,-t-i T. ii-riTi'i-ui-n—IITT r7~ionrii_niLLi.:jiiiLj '.J
N.Cham, 341.5466 241J
Autor: Zehr, Howard
Tííulo: Justiça restaurativa
Título original: The Líttle Book of Restorative Justice
Copyright ©2010
Coordenação editorial: LiaDiskin
Capa e projeto gráfico: Vera Rosenthal
Produção e Diagramação: Tony Rodrigues
Preparação de originais: Lídia Angela LaMarck
Revisão: Lia Diskin
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP,Brasil)
Zehr, Howard
Justiça Restauraliva / Howard_Z_ehr; tradução Tônia Van Acker.
- São Paulo: Palas Athena, 2012.
Título origina!:The Little Book of RestorativeJustice
1.Criminosos-Reabilitação 2.Justiça criminal-Administração 3.Justiça
restaurativa 4. Punição-Filosofia 5. Vítimas decrirnes I. Título.
12-04576 CDD-303.Ó8
índices^para catálogo sistemático:
1.Justiça restaurativa: Justiça penal:
Criminologia; Problemassociais 364.68
1a edição, junho de 2012
Todos os direitos reservados e protegidos
_pela_LeL9610_dejL£Lde_fe.v.ereir_o_deJ.998._
Ê proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios,
sern a autorização prévia, por escrito, da Editora.
Direitos adquiridos para a língua portuguesa por Paias Athena Editora
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editora@palasathena.org.br
CONTEÚDO
Prefácio deLeoberto Brancher .-... 3
1. VISÃO GERAL 13
Por que este livro? 15
A Justiça Restaurativa não é 18
A Justiça Restaurativaéfocada
em necessidades e papéis 24
2. PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS 31
Os três pilares da Justiça Restaurativa 34
-. —Q_íquem"-e-o "como" são-importantes 36
A Justiça Restaurativa visa endireitar as coisas 40
Uma lente restaurativa 44
Definindo Justiça Restaurativa 48
As metas da Justiça Restaurativa 49
Perguntas balizadoras da Justiça Restaurativa 50
Indicadores de Justiça Restaurativa 52
PRÁTICAS RESTAURATIVAS 53
O cerne das abordagens geralmente envolve
um encontro 55
Os modelos diferem quanto ao "quem" e ao "como" ....53
Os modelos diferem quanto a seus objetivos 63
Um continuum restaurativo 66
"
aí i
HOWARD ZEHR -JUSTIÇA RESTAURATIVA
4. ISTO ou AQUILO?
Justiça retributiva XJustiça Restaurativa?
Justiça criminal XJustiça Restaurativa? ...
A Justiça Restaurativa vista como um rio .
ANEXO 1: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
.71
.71
,72
.74
Notas
Leituras Selecionadas
77
83
87
PREFÁCIO
l~yaz poucos anos, menos de dez. Embora fôssemos todos já
JL bastante crescidos, mais parecíamos garotos ávidos por
alcançar o final de um conto de literatura juvenil.Assim era
a atmosfera de encantamento emistério quando os primeiros
"manuscritos" sobre Justiça Restaurativa começaram a apa-
recer entre nós, que sofregamente nos debruçávamos sobre
traduções improvisadas, às vezes confusas, embora nunca o
--suficiente obscuras para nos retirar o entusiasmo, ou para
encobrir a veia latejante da boa nova que traziam.
Entre esses achados, destacavam-se fragmentos de textos
do Prof. Howard Zehr- alguns que, aliás, agora podemos ver
traduzidos neste livro. Não apenas pela mística de serem con-
siderados parte importante dos "originais que deram início à
série" mas, sobretudo, peia capacidade de expressão sintética.
esquemática e visual,pelos recursos de linguagem capazes de
objetivar insights, pela capacidade de transmitir, apesar das
nossas mal traduzidaslinhas, a percepção da intensidade das
emoções experimentadas apenas pelas pessoas que convivem
concretamente com a aflição e a dor da violência e do crime,
das algemase das cadeias que as cercam.
Tabelas comparativas ("isto ou aquilo"); traduções do
intraduzível ("o que a Justiça Restaurativa não á"), fórmulas
HOWARD ZSHR-JUSTIÇA RESTAVBATIVA
sintéticas e organizativas, como"princípios fundamentais de
Justiça Restaurativa", que você vaiencontrarneste livro, eram
' recebidas e decifradas comofragmentos de um tesouro que
se insinuava após uma busca até então sem norte e, por isso
mesmo, longa, tormentosa edesnutrida- massempre persis-
tente - em homenagem aosfiapos intuitivos deesperançacom
'os quais se costuma tecer o porvirhumano.
Foi com matrizes essenciais como as que você vai encon-
trar neste pequeno livro que se nutriram os primeiros pas-
sos e encontros do Núcleode Estudos e Pesquisas em Justiça
Restaurativa da Escola Superior da Magistratura da AJURIS
- Associação dos Juizes do Rio Grande do Sul, espaço de
aprendizagem e dereflexãoteórica que deu origem aoProjeto
Justiça para o Século 21-Instituindo Práticas Restaurativas,
desde o qualpassamos a submeter o cotidiano dos processos
da Justiça Juvenil de Porto Alegre ao crivo das novas lentes
reveladas por Howard Zehr: as lentes restaurativas.
Não surgia aí apenas mais um espaço de estudos, senão
que, corno diria Huinber-to-Maturanarabria-se-uma nova teia
de conversações- inspirada epautada pelos princípios axio-
lógicos danovidaderestaurativa, e compartilhada por juizes,
promotores dejustiça, defensores públicos, policiais(embora,
na verdade, não muitos), assistentes sociais, psicólogos, psí-
quiatras, educadores sociais e_professore_s;__
Além de abarcar diferentes-facetas-do-mesmo objeto de
trabalho - conflitos, violênciaseinfrações penais envolven-
do crianças e adolescentes ~, esse grupo se identificava por
compartilhar um sentimento comum de esgotamento e asfi-
xia diante dos respectivos, sistemas institucionais e reper-
tórios académicos, marcados por hierarquias autoritárias e
suas certezas irredutíveis, na prática, tão arrogantes quanto
reprodutoras de violências,violências certamente maiores do
4
PREFÁCIO
que as atribuídas à maioria dos jovens submetidos aos seus
mecanismos de controle e poder.
• Nossoprimeiro teste das ideias sobre JustiçaRestaurativa
ocorreria ainda em 2002. Na audiência de instrução, a vítima
de um roubo a mão armada, uma senhora de 50 anos, foi soli-
citada a fazer o reconhecimento de dois réus menores. Sua
casa fora invadida por três rapazes (oterceiro era um maior,
que conseguiufugir), mas logo cercadapela polícia,comtodos
dentro e, felizmente, o desfecho foi a rendição. Ela fez pouco
caso do vidro espelhado da sala de reconhecimentos. "Claro
que conheço.Eles moram no mesmo condomínio. Esse aqui
~ disse apontando para um deles - eu conheço desde bebé.
Carreguei ele muito no colo quando o ônibus estava lotado,
pois a mãe dele embarcava umas paradas adiante da minha,
ela tinha de viajar em pé e então eu levava ele no colo...". A
manifestação dessa senhora, feita refém com sua filha de 21
anos e o neto de 8 meses dentro da própria casa, serviria de
senha.para iniciar o primeiro círculo restaurativo realizado
no Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre.
Apesar dainexperiência e das dificuldadesmetodológicas,
os encontros proporcionaram uma confirmação irreversível
das hipóteses teóricas. Principalmente quando uni dos rapa-
zes, ainda preso, aparentemente resistia às orientações da
mediadora para que se desculpasse com as vítimas (ométo-
do então era o da mediação da terapia familiar sistémica). O
rapaz se levantou, pediu para pegar no colo o bebé, também
presente ao encontro e, com a criança nos braços, colocou-se
dejoelhos e, chorando, pediu perdão.
Vista de fora, a cena podeparecer excessivamente teatral,
até mesmo manipulatória. Mas para quem esteve ali,vivendo
de dentro a força emotiva e a intimidade do encontro, não
restaram dúvidas. Quem ali se prostrava e pedia perdão de
HOWARD ZBHR - JUSTIÇA RESTAURATIVA
joelhos não era mais o ladrão, o assaltante, o réu, o menor
infrator. Era de novo aquele menino vizinho que a vítima -
como ele agora com seu neto - há 17anos segurara cmseu
colo. E desde esse nível incomensuravelmente profundo de
.resgate e conexão, um novo futuro se abriria para todos.
As vítimaspuderamsentir-se aliviadas do seu trauma e do
seu temor. Afinal, os algozesno fundo não eram tão monstru-
osos assim e, com certeza, nuncamais voltariam, elesmesmos,
a tentar novamente assaltá-las. Aliás, uma das propostas de
reparação feita pelos rapazes, mas recusada pelas vítimas,
• era de que eles viessem todas as noites vigiar seu portão e
dar-lhes segurança no horário de chegarem em casa. Ora, do
ponto de vista das vítimas, aceitá-los agora comoseus "segu-
ranças" seria prorrogar excessivamente a vivência traumáti-
ca do assalto. Mas depois de todo o ocorrido, aqueles dois,
com certeza, não as assaltariam outra vez. Ficara evidente
que cada um desses jovens - agora confrontados comsua
própria humanidadeatravés do espelho do reconhecimento
do sofrimento e dahumanidade_das-V-ítimas,-e-dos próprios
familiares integrados ao encontro - descera até oinferno do
crime, mas para reencontrar a raiz da própria identidade e
para dali ressurgir firmadonoutro sentido, noutro propósito,
noutra perspectiva de vida.A experiência, ao final, por maior
que tenha sido o sofinmentgjbld^i^siielt(^_r_esp_oiisabilidade_
e liberdade. E essa cena.do pedido.de.perdão resume uma
vivência cuja intensidade e repercussão em termos de elabo-
ração psíquica não poderia ser proporcionada por qualquer
prisão-nem, talvez, psicanálise«do mundo.
Valeressaltar que esse testemunhode resgate das relações
de humanidadee proximidade, em que um conflito grave, ao
ponto de tipificar um crime, acaba dando lugar a ama expe-
riência de transcendência e enlevo, não fazparte da literatura
6
PREFÁCIO
internacional, nem teve palcona Nova Zelândia,na Austrália,
no Canadá ou nos Estados Unidos. Foi vivido e escrito no
Brasil. Ocorreu aqui.em casa, conosco, tal como poderia ter
acontecido na sua casa,com você,na sua instituição, escola ou
comarca. Ou talvez aconteçam em breve através da sua ação.
Depois de muito estudar e muito refletir a respeito de
nossas práticas de justiça com infrator es menores de idade
"sob as lentes restaurativas", e de realizar testes eventuais
como o relatadoacima, em 2005iniciamosuma aplicaçãomais
sistemática e estruturada. Comsubsídios do GovernoFederal
(Secretaria da Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça,
e Secretaria Nacional de Direitos Humanos) e de agências
das Nações Unidas (PNUD e UNESCO, esta com recursos
do Programa Criança Esperança, da Rede Globo), surgiu o
Projeto Justiça para o Século 21, com. o objetivo de difundir
a aplicação dos princípios e práticas da Justiça Restaurativa
na pacificação de conflitos e violências envolvendo crianças,
adolescentes e seu entorno familiar ecomunitário,
""Ainda que a princípio centrada no Juizadoda Infância e da
Juventude e nos atos infracionais e correspondentes proces-
sos judiciais e medidas socioeducativas (modalidade de san-
ção penal prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente,
aplicável a menores com idades entre 12 e 17anos), esse foco
-ampliado-do4^i-ojeto-levQU-a-experiêncía_de_aplicacão das
práticas restaurativas em outros espaços de atendimento a
crianças ejovens, como escolas, abrigos e organizações não
governamentais.
Mensurar resultados é difícil quando se trata de avaliar
um processo que envolve mudanças culturais e, sobretudo,
quando se atua de forma difusa e capilarizada. Mas importa
dizer que a qualidade das ideias que você encontrará resu-
midas neste livro foisuficientepara gerar um interesse e um
7
HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAUKATIVA
despertar tão abrangentes que os grupos de leitura iniciais
deram lugar a um processo que denominamos "encharca-
mento de capacitações", dirigido apessoas e instituições que
atuam comfoco em crianças e adolescentesna capital gaúcha.
Entre 2005 e 2011,11.793pessoas participaram de atividades
de sensibilização e formação promovidas díretamente pelo
Justiça 21.Destas, 1.059 realizaram o Curso de Formação de
Lideranças em Justiça Restaurativapromovido pela Escola
Superior da Magistratura e 908participaram do nosso Curso
de Formação de Coordenadores de Círculos Restaurativos.
Um monitoramento feito pela Faculdade de Serviço Social da
PUCRS acompanhou 380 casos atendidos no Juizado entre
2005 e 2007. Entrevistando os participantes, constatou-se que
95% das vítimas e 90% dos ofensores saíram satisfeitos de
sua experiência de contato com a justiça após participarem
deprocedimentos restaurai:vos. (Os índices internacionais de
satisfação no contato com ajustiça criminal giram em torno
de meros12 a 15%positivos]. Cerca de 90% dos acordos foram
julgados cuinpridos—A-reiteraçãe-de-atos4nfracionais-entre
os ofensoresparticipantes caiu em 23% comparativamente a
outros quenão participaramdenenhum encontro restaurativo
(a íntegra do relatório da pesquisa está disponível em www.
justica21.org.br].
^_s_s_ejes.temunho-tem-por-objetivo-dizer-^seja-bem--v-i-ndo—
à Justiça Restaurativa, sinta-se em-casa;-você também pode".
Porque fazpouco que chegamospor aqui com as mãos vazias,
a mente assoladapor dúvidas,e o coração amargurado diante
de tantos problemaspor resolvercomferramentas que sabida-
mente não funcionam, além de_apresentar_em-ter.ríveis efeitos
colaterais, como surrar crianças e aprisionar adolescentes.
Para nosso alívio, porém, apareceria essa luzno fim dotúnel
do crime.E,apropósito do alcancedas luzesrestaurativas, uma
PREFÁCIO
ressalva.Não seiludam os céticos com afalsa ideiade que Justiça
Restaurativa só funcione restrita àjustiça juvenil. De fato, sua
expansão no inundo vem tendo como carro-chefe essa área da
jurisdição criminal -a dos crimes praticados por menores de
idade. Aliás, aquijá podemos comemorar arecente introdução
dos conceitos essenciais da Justiça Restaurativa nesse campo
através da Lei12.594, de 18dejaneiro de 2012,que regulamentou
o Sinase -Sistema NacionaldeAtendimento Socioeducativo -,
abrindo as portas para construirmos uma justiça juvenil res-
tauratíva para atender nossos adolescentes infratores. Mas essa
vanguarda da justiçajuvenil em acolher a Justiça Restaurativa
se devemais a fatores conjunturais do que à natureza em si do
objeto dessa áreajmisdicional.
Entre esses fatores, alinham-se a maior flexibilidade das
normas processuais e dopróprio sancionamento, a histórica (e
contraproducente, embora muitomais benéfica do que a mera
punição] ênfase terapêutica-no tratamento do delinquente, a
afeição a práticas interdisciplínares, amaior abertura e pesso-
"alidade no trato comas partes envolvidasno processo, amaior
benevolência com oinfrator menor de idade, a integração de
familiares, comunidades e diversos serviços de atendimento,
com efeito, que fazem, dajustiçajuvenil um canteiro fértil para
as sementes restaurativas. Aliás, já bastariam essas carac-
-ter-ísticas-para-en-sinai;-e-muito,-à-justiça-penal-de_adur£os:-
precisamos processos e sanções mais flexíveis, intervenções
iníerprofissionais, menos automatismo punitivo, maior dis-
ponibilidade para a escuta das necessidades dos envolvidos,
mais humanidade no trato com os infratores, e habilidade e
agilidade na articulação de redes.
Mas as ideias da Justiça Restaurativa não se esgotariam
nesse conjuntojá conhecido derecomendações. Elaslevam ao
âmago das próprias concepções do sistema, de modo a fazer
9
HOWARD ZERR - JUSTIÇA RESTAURATIVA
com que sua aplicaçãoexperimentale aparentemente inofen-
siva no atendimentoa adolescentes infratores seja apenas um
mote para iluminar e colocar em xeque a improdutividade
dos mais arraigados pressupostos implícitosdo sistema penal
tradicional, que podem ser resumidos nos conceitos estrutu-
rantes de culpa, perseguição, imposição, castigo e coerção.
O simples fato de operar ajustiça penal tentando substituir
esses conceitos, respectivamente, pelos de responsabilidade,
encontro, diálogo, reparação dodano e coesão social, mesmo
que complexo e trabalhoso, e talvez por ora somente possí-
vel de forma-tópica e ocasional,já é por si só atitude capaz
de subverter e colapsar positivamenteum sistema obsoleto
e oneroso cuja reprodução, definitivamente, não se justifica.
Trata-se aqui de uma subversãonão apenas penetrante e
capaz de desafiar osnúcleos conceituais do sistema, mas tam-
bém transversal, ao ponto denos fazer ver que o sistema insti-
tucional dejustiça não é senão reflexo de um padrão cultural,
historicamente consensual, pautadopela crença na legitimida-
de do emprego da violênda-Gomo-inst-r-umenta compensatório
das injustiças e na eficácia pedagógica das estratégias puniti-
vas. E essa crença, muito embora-cristalizada-e perfeitamente
visível nos alicerces do sistema jurídico-penal, somente está
ali porquereside insidiosamenteincrustada nas nossas mais
sutis e cotidianas relações depoder - desde onde continua se
PREFÁCIO
Tamanha é a abrangência das ideias sintetizadas neste
pequeno livroque, apesar denão ensinar exatamente o "como"
[tal qualpossivelmente ninguémofaça), mostra muitoclaramen-
te "emque" e"por que" uma abordagem restaurativa dos confli-
tos e do crimepodefazer toda a diferençanessa encruzilhada da
história em que a violênciae a insegurança transbordam e nos
desafiam, transfiguradas em esfinges pós-modernas.
Através de um texto leve, preciso e dinâmico, o decano da
Justiça Restaurativa nos conduz a um encontro denso, embora
descontraído, com as bases conceituais dessa inovadora pro-
posta, ao mesmo tempo em que fornece elementos preciosos
para fazermos nossos próprios juízos ereflexões sobretudo o
que até aqui vimos falando efazendo em nome dajustiça. Aos
que estiverem dispostos a um encontro despojado e honesto
com suas crenças, com seus valores, com suas práticas de
poder e, portanto, consigo mesmos, o processo que está por
se iniciar com aleitura deste livro conduzirá a um irreversível
e.emp.olgante resultado.
.^^_Shalom para você e para todos os que possam vir a ajudar
a libertar das prisões do crime e dos conflitos e, indissociáveis
delas, das prisões do medo, da ignorância e do sofrimento.
Leoherto Brancher
~ Juiz dê~DTreÍtò
reproduzindo de forma sub-reptícia eJndiscriminada.- - -
É nessa perspectiva que se pode compreender também
porque os princípiosemétodosdaJustiçaRestaurativa, apesar
de emergentes e radicados na justiça penal, possam ter apli-
cação' eficiente ou, no mínimo, produjzi^jflexões_relevantes
quando estendidos à resolução de conflitos sob diferentes
molduras procedimentais ou em contextos ambientais diver-
sos, enão somente no âmbito dajustiça formal.
10 11
Tjpfr/pip*
Z*BLnTÍ9$
VISÃO GERAL
v
Enquanto sociedade, como devemos reagir às ofensas?
Quando acontece um crime ou quando é cometida uma
injustiça, o que precisa ser feito? O que pede nosso senso de
justiça?
Para os norte-americanos a premência dessas questões
intensificou-se comos eventos traumáticos de 11de setembro
de 2001. Mas a discussão é antiga e, na verdade, tem abran-
gência internacional. - - —
.__.Quer_estejamós preocupados com. crimes ou outras ofen-
-sasrnossa-reflexão-sobre tais questões foiprofundamente mol-
dada pelo sistemajurídico ocidental-não apenas noOcidente,
mas também em grande parte do outro lado do mundo.
O sistema jurídico ocidental ou, mais especificamente,
a justiça criminal, tem. importantes qualidades. No entanto,
vem crescendo o rejionhecmientO-de^uasJimítacões-e-car-ên^-
cias.Não raro, vítimas, ofensores e membros da comunidade
sentem que o sistema deixa de atender adequadamente às
suas necessidades. Osprofissionaisda área dajustiça -juizes,
advogados, promotores, oficiais de condicional, funcionários
do sistema prisional- amiúde expressam suafrustraçãocom
o sistema. Muitos sentem que o processo judicial aprofunda
as chagas e os conflitos sociais ao invés de contribuir para
seu saneamento epacificação.
13
m
HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA
A Justiça Restaurativa procura tratar de algumas dessas
necessidades e limitações. Desde os anos 70 vem surgindo
vários programas e abordagensem centenas de comunidades
de vários países do mundo. Com frequência são oferecidos
como alternativas paralelas ou no âmbito mesmo do sistema
jurídico vigente.No entanto, a partir de 1989, a Nova Zelândia
fez daJustiçaRestaurativa o centrode todo o seu sistema penal
para a infância e ajuventude.
Atualmente, em muitaslocalidades, aJustiçaRestaurativa
é consideradaum sinal de esperança eum rumo para o futuro.
Resta saber se conseguiremosrealizar suas promessas.
AJustiça Restaurativacomeçoucomo um esforçopara lidar
com assaltos e outros1 crimes patrimoniais que em geral são
vistos (em muitoscasosincorretamente) como ofensas menores.
Hoje, contudo, as abordagens restaurativas estão disponíveis
em algumas comunidadespara aplicação às modalidades mais
violentas de crime: morte causada por embriaguez ao volante,
agressão, estupro e mesmo homicídio. Á partir da experiência
das Comissões de Verdade-e-ReGoneiliação-na -África do Sul,
também vêmsendorealizadosesforçospara aplicar a estrutura
da Justiça Restaurativa a situações de violência generalizada.
Além disso, tais abordagens e práticas estão ultrapassan-
do o sistema dejustiça criminale chegando a escolas, locais
de trabalho einstituições religiosas.Alguns defendem a ideia
de que abordagens restaurativas como-os-"círculos" (prática
específica que nasceu nas comunidades indígenas canaden-
ses) podemser usadas para trabalhar, resolver e transformar
os conflitos em geral. Outros vêem as "conferências de gru-
pos familiares" (modalidadecom ra_í.zes_jLa_No_ya^ Zelândia e
Austrália, e também em encontros facilitados entre vítima e
ofensor) comoum caminhopara construir e sanar comunida-
des. KayPranis, destacada defensorada Justiça Restaurativa,
14
VISÃO GERAL
afirma que os círculos são uma modalidade de democracia
participativa que vaium passo além da regra da maioria sim-
ples (veja as p. 61-62 para uma explicaçãomais detalhada dos
círculos no contexto da Justiça Restaurativa}.
Nas sociedades onde o sistema jurídico ocidental substi-
tuiu ou suprimiu processos tradicionais dejustiça eresolução
de conflitos, aJustiça Restaurativaoferece unia estrutura apta
a reexaminar e, por vezes, reativar tais tradições.
Embora o termo "Justiça Restaurativa" abarque uma
ampla gama de programas e práticas, no seu cerne ela é um
conjunto de princípios, uma filosofia, uma série alternativa
de perguntas paradigmáticas. Em última análise, a Justiça
Restaurativa oferece uma estrutura alternativa para pensar
as ofensas. Examinarei esse arcabouço nas páginas que se
seguem, explorando o modo como pode ser utilizado.
-POR QUE ESTE LIVRO? - - . -
-Neste.livro não-tentarei defender.a Justiça Restaurativa.-
-Nern-explorarei as muitas impiicações dessa abordagem.
Gostaria que ele fosse uma breve descrição ou resumo da
Justiça Restaurativa. Ainda que apresente abaixo alguns dos
programas epráticas, meufoco recairá principalmente sobre
seus princípios ou filosofia.
Este livro é para as pessoas que ouviram a expressão
"Justiça Restaurativa" e estão curiosas sobre suas implica-
ções. Também se destina àqueles que estão trabalhando nesse
campo, mas têm dúvidas, ou estão perdendo a clareza quanto
à sua missão. Espero poder oferecer esclarecimento sobre os
legítimos rumos do comboio da Justiça Restaurativa e, em
alguns casos, levar o trem de volta aos trilhos.
Trata-se deuni empenho importantenos dias dehoje. Como
toda tentativa demudança,aJustiçaRestaurativa muitasvezesse
15
m
m
i? i
HowAítD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA
desencaminhou no curso de seu desenvolvimentoe dissemina-
ção. Na presença de cada vez,mais programas que se intitulam
"Justiça Restaurativa", não raro osignificado desse termo se tor-
na rarefeito ou confuso. Devido à inevitável pressão do trabalho
no mundoreal, amiúdeaJustiçaRestaurativa tem sido sutilmente
desviada ou cooptada, afastando-sedos princípios de origem.
Essa questão vempreocupando de modo especial os gru-
pos de defesa dos interesses das vítimas.AJustiça Restaurativa
se diz orientada para as vítimas - mas será de fato? Essas
associações devítimas temem que os esforços para promover
a Justiça Restaurativasejam comfrequência motivados prin-
cipalmente pelo desejo de trabalhar demaneira mais positiva
com os ofensores. Ass"im sendo, aJustiça Restaurativa poderá
se tornar apenas uma forma de lidar com os ofensores, tal
como o sistema criminalque procura aprimorar ou substituir.
Outros se perguntam se elade fato atendeu demodo ade-
quado às necessidades dos ofensores e se seus esforços-são
efetivamente restaurativos. Será que osprogramas de Justiça
Restaurativa oferecemrap"oio-STifiàente-paTa-que os ofensores
cumpram suas obrigações e mudem seus padrões de com-
portamento? Será que de fato tratam"os nTales que levaram
os ofensores a se tornarem quem são? Tais programas não
estarão se tornando somente uma outra forma de punir os
_-ofeiisoresr^ob-outro-pr-etexto?-E.a.comunidade_como-um.todo?_
Estará suficientementemotivada para-envolver-se e assumir
suas obrigações em relação às vítimas, aos ofensores e a seus
membros em geral?
Experiências anteriores para promover mudanças no cam-
po da justiça nos adyertem-de.gue-desv.ios-e-deformações
acontecem inevitavelmente, apesar denossas melhores inten-
ções. Se os defensores da mudança não estiverem dispostos
a reconhecer e atacar esses prováveis desvios, seus esforços
16
VISÃO GEHAL
poderão acabar produzindo algo muito diferente do que pre-
tendiam. De fato, as "emendas" podem acabar sendo muito
piores que o "soneto" que planejavamreformar ou substituir.
Uma das salvaguardas mais importantes contra tais des-
vios é dar a devida atenção aos princípios fundamentais.Se
estivermos bem conscientes deles, se planejarmosnossos pro-
gramas com' esses princípios em mente, se nos deixarmos
avaliar por esses mesmos princípios, é bem mais provável que
nos mantenhamos na trilha correia,
A questão é que o campo daJustiça Restaurativa tem cres-
cido comtanta rapidez e emtantas direções que às vezes não
é fácil caminhar para o futuro com integridade e criativida-
de. Somente uma visão clara dos princípios e metas poderá
oferecer a bússola de que precisamos para encontrar o norte
num caminho inevitavelmente tortuoso e incerto.
Este livro é uma contribuição que procura articular os
conceitos da Justiça Restaurativa em termos bem diretos. No
entanto, devo admitir-que-existem limitações à estrutura que
"^s]30çarei^ãquirSõu"cõhsidèfadõ~pbr muitos como uni dos pri-
.meiros sistematizadoresedivulgadoresdaJustiça Restaurativa.
Apesar determe esforçadobastante para manter uma abertura
crítica, possuoum viésfavorável aesseideal.Além disso, apesar
de meu empenho em contrário, escrevo do ponto de.vista de
-minha-própr-ia—lenteVque-se-formou-a-partirdaquilo~que~sour
urnhomembranco, de classemédia, descendente de europeus e
cristão menonita.Talbiografia e ainda outros interesses neces-
sariamente modelam minha voz e visão.
Mesmo havendo certo consenso dentro do campo da
Justiça Restaurativaquanto às grandes linhas que demarcam
seus princípios, nem tudo passa sem contestação. Estas pági-
nas retraíam a minha compreensão da Justiça Restaurativa,
que deve ser testada pelas vozes de outros.
17
HOIVAKD ZEHR - JUSTIÇA RESTAURATIVA
Por fim, escrevi este livro no contexto da América do
Norte. A terminologia, as questões levantadas, e mesmo o
modo como o conceito foiformulado refletem em certa medida
as realidades do meu ambiente. Mas espero que ele seja útil
também para profissionais que atuam em outros contextos,
mesmo que adaptações ou traduções sejam necessárias.
Tendo em vista esse pano de fundo e essas qualificações,
passemos agora à questão: o que é Justiça Restaurativa?
Muitas ideias equivocadas cercam o termo epenso que ê cada
vez mais importante definir aquilo que a Justiça Restaurativa
não é.
A JUSTIÇA RESTÁURATJVA NÃO É...
* A Justiça Restaurativa não tem como objeto principal
o perdão ou a reconciliação.
Algumas vítimas e defensores de vítimas reagem negativa-
mente à Justiça Restaurativa porque imaginam que o obje-
tivo do programa seja o de estimular, ou mesmo forçar, a
vítima a perdo"ar ou se reconCÍlisr~cum~o ofensor.
Comoveremos mais adiante, operdão oua reconciliação não
são o objetivo principalou o foco da Justiça Restaurativa.É
verdade que a Justiça Restaurativaofereceum contexto em
quenrn ou ambospodem vir a acontecer.Defato, algum grau
-de-perdãorou-mesmo-de-reeoneiliação,-realmente-oeor-re-
com mais frequência do que no ambiente litigioso do pro-
cesso penal.Contudo,esta é urna escolhaque ficatotalmente
a cargo dos participantes.Não deve haver pressão alguma
no sentido de perdoar ou de buscar reconciliação.
A Justiça Restaurativa não é mediação.
Tal como os programas de mediação, muitos progra-
mas de Justiça Restaurativasão desenhados em torno da
18
VISÃO GERAL
possibilidade de um encontrofacilitado entre vítimas, ofen-
sores e, possivelmente,membrosda comunidade. No entan-
to, nem sempre se escolhe realizar o encontro, nem seria
apropriado. Além disso, as abordagens restaurativas são
importantes quando o ofensornão foipego ou quando uma
das partes não se dispõe ou não pode participar. Portanto,
a abordagem restaurativa não se limita a um encontro.
Mas, mesmo quando o encontro acontece, o termo "media-
ção" não constituiuma descrição adequada daquilo que vai
acontecer. Num conflito mediadose presume que as partes
atuem num mesmo nível ético, muitas vezes com responsa-
bilidades que deverãoser partilhadas.Embora esseconceito
de culpa partilhadaseja válido emcertos crimes,na maioria
deles isso não ocorre. As vítimas de estupro ou mesmo de
roubo não querem ser vistas como "partes de um conflito".
Na realidade,podem estar em meio a uma luta interna contra
a tendência de culparem a si mesmas.
De-qualquer maneira, para participar de uni encontro de
-Justiça-Restaurativa, na maioria dos casos o ofensor deve
admitir algum grau de responsabilidade pela ofensa, e um
elemento importante de tais programas é que se reconheça
e se dê nome a tal ofensa. A linguagem neutra da mediação
pode induzir ao erro, e chega a ser um insulto em certas
-situações.
Ainda que o termo "mediação" tenha sido adotado desde
o início dentro do campo da Justiça Restaurativa, ele vem
sendo cada vezmais substituído por termos como"encontro"
ou "diálogo" pelos motivos expostos acima.
A Justiça Restaurativa não tem por objetivo principal
reduzir a reincidência ou as ofensas ern série.
Num esforço para ganharaceitação,os programas de Justiça
19
!p
h
HOWARD ZEHR ~ JUSTIÇA RESTAURATIVA
Resíaurativa muitas vezes são promovidos ou avaliados
como maneiras de diminuir a reincidência ou os crimes em
série.
Há bons motivospara acreditar que tais programas redu-
zem de fato a criminalidade. As pesquisas realizadas
até o momento - com foco principalmente em ofenso-
résjuvenis-são bastante animadoras em relação a esse
quesito. No entanto, a redução da reincidência não é o
motivo pelo qual se devam promover os programas de
Justiça Restaurativa.
A diminuição da criminalidade é um subproduto da Justiça
Restaurativa, que deve ser administrada, em primeiro
lugar, pelo fato de ser a coisa certa a fazer. As necessidades
das vítimas precisam ser atendidas, os ofensores devem
ser estimuladosa assumir responsabilidade por seus atos,
e aqueles que foram afetados por seus atos devem estar
envolvidos no processo - independente do fato de os ofen-
sores caírem em si e abandonarem seu comportamento
transgressor- ———-
A Justiça Restaurativa não é um programa, ou projeto
específico.
Muitos programas adotam a Justiça Restaurativa em todo
ou em parte. Contudo, não existe, um modelo puro que
possa ser visto como ideal ou-passível-de implementação
imediata em qualquer comunidade. Estamos ainda nurna
fase de aprendizadomuito intenso nesse campo. As práti-
cas mais interessantes que têm surgido nos últimos anos
não passavam pela cabeça daqueles_guedjram início aos
primeiros programas, e muitas ideias inovadoras surgirão
em virtude do diálogo e experimentação futuros.
20
VISÃO GERAL
.A Justiça - ,
Restaurativa é
Tinia,Bússola e
naorum..mapa.''
Vi.
Do mesmo modo, todos os mode-
los estão, em alguma medida,
atrelados à cultura. Portanto a
Justiça Restaurativa deve ser
construída de baixo para cima,
pelas comunidades, através do
diálogo sobre suas necessidades
e recursos, aplicando os princípios às situações que lhes
são próprias.
A Justiça Restaurativanão é um mapa, mas seus princípios
podem ser vistos como uma bússola que aponta na direção
desejada. No mínimo, a Justiça Restaurativa é um convite
ao diálogo e à experimentação.
A Justiça Restaurativa não foi concebida para ser apli-
cada a ofensas" comparativamente menores ou ofensores
- primários; _..._.- ... _ .
"Talvez sejãlnTfsTácircõUsegúir d apoio da comunidade a
programas que lidam com os chamados "casos de menor
gravidade". No entanto, a experiência tem demonstrado
que a Justiça Restaurativa pode produzir maior impacto
nos casos de crimes mais graves. Alérn disso, se seus prin-
_cíp_i_oJs_f_or_em_Ie_v_ados_a_sério,_a_necessidade-daabor-dagens-
restaurativas fica muito clara no tocante aos casos mais
graves. As perguntas balizadoras da Justiça Restaurativa
(veja p. 50) podem ajudar a criar respostas judiciais a situa-
ções muito difíceis. Á violênciadoméstica éprovavelmente
a área de aplicaçãomais problemática e, nesse caso, acon-
selho grande cautela.
21
HOWARDZEHR -JUSTIÇA RESTAURATIVA
* A Justiça Restaurativa não é algo novo nem se originou
nos Estados Unidos.
O moderno campo da Justiça Restaurativa de fato desen-
volveu-se nos anos 70 a partir de experiências em comu-
nidades norte-americanas com uma parte considerável de
população menonita. Buscandoaplicar sua fé e visão de paz
ao campo implacável da justiça criminal, os menonitas e
outros profissionais de Ontário, Canadá, e depois deIndiana,
Estados Unidos, experimentaramencontros entre ofensor e
vítima dandoorigem a programas, nessas comunidades, que
depois serviram de modelo "para projetos em outras partes
do mundo. A teoria da Justiça Restaurativa desenvolveu-se
inicialmente desses empenhes.
Contudo, o movimento deve muito a esforços anteriores e a
várias tradições culturais ereligiosas. Beneficiou-se enorme-
mente do legado dos povos nativos da América do Norte e
Nova Zelândia.Portanto, suas raízes e precedentes são bem
mais amplosque a iniciativa menonitados anos70. Na verdade,
essas raízes sãotãG^antiga^quanto^Mstóriada humanidade."
• A Justiça Restaurativa não é Uma~páriacela nem neces-
sariamente um substituto para o processo penal.
A Justiça Restaurativa não é, de modo algum, resposta
—para-todas-as-situações,-Neni-está-claro-que-deva-substi--
tuir o processo penal, mesmoTiunrmundo ideal. Muitos
entendem que, mesmo que a Justiça Restaurativa pudesse
ganhar ampla implementação,algum tipo de sistema jurí-
dico ocidental(idealmente orientado por princípios restau-
rativos) ainda seria necessário .como-salvaguarda e defesa
dos direitos humanos fundamentais. De fato, esta é a fun-
ção das varas de infância ejuventude no sistema de Justiça
Restaurativa juvenil da Nova Zelândia.
22
VISÃO GERAL
A maioria dos defensores da Justiça Restaurativa concor-
da que o crime tem uma dimensão pública e uma priva-
da. Creio que seria mais exato dizer que o crime tem uma
dimensão social ao lado de uma mais local e pessoal. O
sistema jurídico se preocupa com a dimensão pública, ou
seja, os interesses e obrigações da sociedade representada
pelo Estado. Mas esta ênfase relega ao segundo plano, ou
chega a ignorar, os aspectos pessoais e interpessoais do
crime. Ao colocar o foco sobre as dimensões privadas do
crime, consequentemente valorizando seu papel, a Justiça
Restaurativa procura oferecer um maior equilíbrio na
maneira como vivenciamos a justiça.
A Justiça Restaurativa não é necessariamente uma alter-
nativa ao aprisionamento.
A sociedade ocidental, e especialmente os EstadosUnidos,
faz uso abusivo-dos presídios. Se aJustiça Restaurativa
fosse levada a sério, nosso recurso ao aprisionamento seria
-reduzido..e_a_natureza_dos .estabelecimentos prisionais
mudaria significativamente. No entanto, as abordagens
restaurativas podem também ser usadas em conjuntocom
as sentenças de detenção, ou em paralelo a estas. Elas
não são necessariamente uma alternativa à privação de
liberdade.
í
fl
A Justiça Restaurativa não se contrapõe necessariamente
àjustiça retributiva.
Apesar de minhas afirmações em obras anteriores, não
vejo mais a Justiça Restaurativa como oposta à justiça
retributiva. Esta questão será tratada em maior detalhe
nas p. 71-72.
i
23
HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA
A JUSTIÇA RESTAURATIVA E FOCADA
EM NECESSIDADES E PAPÉIS
O movimento de Justiça Restaurativa começou como
uni esforço de repensar as necessidades que o crime gera
e os papéis inerentes ao ato lesivo. Os defensores da Justiça
Restaurativa examinaramas necessidades que não estavam
sendo atendidas pelo processo legal corrente. Observaram
também que é por demais restritiva a visão prevalente de
quais são os legítimosparticipantesou detentores de interesse
no processojudicial.
A Justiça Restaurativa amplia-o círculo dos interessados
no processo (aqueles que foram afetados ou têm uma posi-
ção em relação ao evento ou ao caso) para além do Estado e
do ofensor, incluindo também as vítimas e os membros da
comunidade.'
Como esta visão denecessidadesepapéis marcou a origem
do movimento, e pelo fato de a estrutura de necessidades/
papéis ser tão inerente ao conceito, é importante começar
nossa revisão desse-ponto^À-medida-que-O-campo da Justiça
Restaurativa se desenvolveu, a análise dos detentores de inte-
resse tornou-se maiscomplexae abrangente. A discussão que
segue se limita a algumas das preocupações centrais que já
se faziam presentes desde oinício do movimento e que conti-
nuam a desempenhar um papelcentral. Ela também selimita
VISÃO GERAL
de justiça criminal. Não raro as vítimas se sentem ignora-
das, negligenciadas ou até agredidas pelo processo penal.
Isto acontece em parte devido à definiçãojurídica do crime,
que não inclui a vítima.Ocrime é definido como atocometido
contra o Estado, e por isso oEstado toma olugar da vítima no
processo. No entanto, em geral as vítimas têm uma série de
necessidades a serem atendidas pelo processo judicial.
Devido à definiçãojurídica de crime e à natureza do pro-
cesso penal, quatro tipos de necessidadeparecem estar sendo
especialmente negligenciadas:
1. Informação. A vítima precisa de respostas às suas dúvidas
sobre o ato lesivo - por que aconteceu e o que aconteceu
depois? Precisa de informações reais, não especulações
ou informações oficiais vindas de um julgamento ou dos
autos do processo. Conseguir informações reais em geral
requer que tenhamos acesso direto ou indireto ao ofensor
que detém a.informação. _
2. Falar a verdade. Uni elemento importante no processo de
recuperação ou superação da vivência do crime é a oportu-
nidade de narrar o acontecido. De fato, na maioria dos casos
é importante que a vítima reconte sua história várias vezes.
Há bons motivos terapêuticos para tanto. Parte do trauma
.-*
* ii
às necessidades "judiciais"- necessidades dasvítimas, ofen-
sores e membros da comunidade que podem ser atendidas,
ao menos em parte, pelo sistemajudicial.
Vítimas
A Justiça Restaurativa se preocupa em especial, com as
necessidades das vítimas de atosilícitos, aquelas necessidades
que não estão sendo adequadamenteatendidas pelo sistema
acarretado pelo crime advém da forma como ele perturba
nossa visão sobre nós mesmos e o mundo, nossa história
de vida. Transcender essa vivência implica em "recontar"
nossa vida, narrando a história em contextos significativos,
muitas vezes em situações onde receberá reconhecimento
público. Com frequência éimportantepara avítima contar a
história àqueles que causaram o dano, fazendo-os entender
o impacto de suas ações.
25
HOWARD ZEHR -JUSTIÇA RESTAURATIVA
3. Empoderamento. Em geral as vítimas sentem que a ofensa
sofrida privou-lhesdocontrole -controle sobre suaproprie-
dade, seu corpo, suas emoções, seus sonhos. Envolver-se
com o processojudicial esuas váriasfases pode ser uma for-
ma significativa de devolverum senso de poder às vítimas.
4. Restituição patrimonial ou vindicação.Arestituição patri-
monial por parte do ofensor geralmente constitui elemento
importante para as vítimas, por vezes, em virtudedas perdas
reais sofridas mas, igualmente,devido ao reconhecimento
simbólico que a restituição dos bens representa. Quando
um ofensor faz um esforço para corrigir o dano cometido,
mesmo que parcialmente, isto é uma forma de dizer "estou
assumindo a responsabilidade, você não é culpado/a pelo
que eu fiz". De fato, a restituição de bens é um sintoma ou
sinal que representa umanecessidade mais básica - a de
vindicação. Embora o conceito de vindicação esteja fora
do escopo deste livro, estou convencido de que se trata de
uma necessidade-básica-q-ue-todos-temos ao sermos tratados
injustamente. A restituição de bens é uma dentre muitas
outras maneiras de atender a essa necessidade de igualar
o placar.Um pedido de desculpas também pode contribuir
para satisfazer essa necessidade de ter reconhecido o mal
que nos foi infligido.
A teoriae apráticadaJustiça Restaurativa surgirame foram
fortemente moldadaspelo esforço delevar a sério as necessi-
dades das vítimas.
Ofensor es
O segundo maior foco depreocupação que motivaaJustiça
Restaurativa é a responsabilidade do ofensor.
26
VISÃO GERAL
O sistema dejustiça penal se preocupa com responsabilizar
os ofensores, mas isto significa garantir que recebam a puni-
ção que merecem.Oprocesso dificilmente estimulao ofensor
a compreender as consequências de seus atos ou desenvolver
empatia em.relaçãoà vítima.Pelocontrário, ojogo adversaríal
exige que o ofensor defenda os próprios interesses. O ofensoré
desestimulado areconhecersua responsabilidade e tem poucas
oportunidades de agir de modo responsável concretamente.
As estratégias neutralizadoras - estereótipos e raciona-
lizações que os ofensores adotam para se distanciarem das
pessoas que agrediram-nunca são contestadas. Assim, infe-
lizmente, o senso de alienação social do ofensor só aumenta
ao passar pelo processo penal e pela experiência prisional.
Por vários motivos esse processo tende a dêsestimular a res-
ponsabilidade e a empatiapor parte do ofensor.
A Justiça Restaurativa tem promovido a conscientização
sobre os limites e subprodutos negativos da punição. Mais
do. que.isto, vem sustentando que a punição não constitui
-real-responsabilização. A-verdadeira responsabilidade con-
siste em olhar de frente para os atos que praticamos, significa
estimular o ofensor a compreenderoimpacto de seu compor-
tamento, os danos que causou - e instá-lo a adotar medidas
para corrigir tudo o que for possível. Sustento que este tipo de
responsabilidade é melhor para as vítimas, para a sociedade
e para os ofensores.
Além da sua responsabilidade para com as vítimas e a
comunidade, o ofensor tem outras necessidades. Dentro dos
parâmetros daJustiça Restaurativa,se queremos queassuma
suas responsabilidades, mude de comportamento, torne-se um
membro que contribuapara a comunidade, devemos também
atender às suas necessidades. O assunto ultrapassa o escopo
deste livro, mas as seguintes sugestões esboçam onecessário.
27
HQWARD ZEHR - JUSTIÇA RESTAURATIVA
Os ofensoresprecisam que ajustiçalhes ofereça:
1. Responsabilização que
a. Cuide dos danos resultantes,
b. Estimule a empatia e a responsabilidade e
c. Transforme a vergonha.2
2. Estímulo para a experiência de transformação pessoal,
inclusive:
a. Cura dos males que contribuíram para o comportamento
lesivo,
b. Oportunidades de tratamento para dependências quími-
cas e/ou outros problemas e
c. Aprimoramento de competêncías pessoais.
3. Estimulo e apoio para reintegração à comunidade.
4. Para alguns, detenção, ao menos temporária.
Comunidade
Os membros da comunidade têm necessidades advindas
do crime, e também-papéis-a-desempenhar-.-Defensores da
Justiça Restaurativa como o juiz Barry Stuart e Kay Pranis
argumentam que, quandoo Estado assumeolugardo cidadão,
isso termina por enfraquecer nosso sentidocomunitário.3 As
comunidades sofrem o impacto do crime e, em muitos casos,
deveriam ser consideradaspartes interessadas pois são víti-
mas secundárias.Os membros da comunidade-também têm
importantes papéis a desempenhar etalvez, ainda, responsa-
bilidades em relaçãoàs vítimas, aos ofensorese a simesmos.
Quando a comunidade se envolve com oprocesso, poderá
iniciar um fórum para discutir essas questões,..atividade que
vai, ao mesmo tempo, fortalecer aprópria comunidade. Este
assunto é igualmente muitovasto. Ositens a seguir sugerem
algumas áreas que merecematenção.
28
VISÃO GERAL
II
l n
As comunidadesprecisamque ajustiça ofereça:
1. Atenção às suas preocupações enquanto vítimas.
2. Oportunidades para construir um senso comunitário e de
responsabilidade mútua.
3. Estímulo para assumir suas obrigações em favor do bem-
-estar de seus membros, inclusive vítimas e ofensores, e
fomento das condições que promovam convívio saudável.
Muito mais poderiaserescrito- edefato foi- sobrequem
são as partes envolvidas em uni crime e suas necessidades
e papéis. Contudo, as questões básicas esboçadas acima -
quanto às suas necessidades e aos papéisdesempenhados por
vítimas, ofensores e membros da comunidade - continuam
a oferecer o foco central, tanto para a teoria quanto para a
prática da Justiça Kestaurativa.
Em resumo, os-serviços do sistema dejustiça criminal ou
penal estão centrados nos ofensores e na aplicação do casti-
-g.o_±^e_gar_anteni__que_eles.r_eceb_am_o que merecem. A Justiça
Restaurativa está mais centrada nas necessidades da vítima,
das comunidadese dosofensores.
29
PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS
A Justiça Restaurativa parte deuma concepçãomuito anti-
Zga de delito, baseada no senso comum. Mesmo queela
seja expressa de modo distinto em culturas diferentes, esta
abordagem provavelmente é comum a todas as sociedades
tradicionais. Para a maioria de nós, com raízes europeias,
constitui o modo como muitos de nossos ancestrais (mesmo
pais) compreendiam o comportamento socialmentenocivo:
• O crime-é-uma-violação- de pessoas e relacionamentos
interpessoais.
•—As-violações acarretam obrigações - --
• A principal obrigação é corrigir o mal praticado.
. Subjacente a esta visão do comportamento socialmen-
te nocivo, está um pressuposto sobre a vida social: estamos
todos interligados. Nas escrituras judaicas isto se expressa
no conceito de shalom: viver a vida imerso num sentido de
"retas relações" com os outros, com o Criador e com omeio
ambiente. Muitas culturas possuem uma palavra específica
para representar essa ideia da centralídade dosrelacionamen-
tos. Para osmaoris isto se expressa pelotermo whakapapa; para
os navajos, hozho; para muitos africanos apalavra ubuntu, do
idioma bantu. Embora o significado específico de cada uma
dessas palavrasvarie, elas comunicamuma mensagemsimilar:
31
HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA
todas as coisas estão ligadas umas às outras formando uma
teia de relacionamentos.
Dentro dessa cosmovisão, o crime representa uma chaga
na comunidade, um rompimento da teia de relacionamentos.
Significa que vínculos foram desfeitos. E tais situações são
tanto a causa como o efeito do crime. Muitas tradições ofere-
cem ditos populares no sentido de que o mal de um é omal de
todos. Um mal como o crime provoca ondas de repercussão
e acaba por perturbar a teia como um todo. Além do mais, o
comportamento socialmente nocivo é, via de regra, sintoma
de que algo está fora de equilíbrio-nessa teia.
Relações implicam em obrigaçõese responsabilidades mútu-
as. Assim, não é surpresa que essa visão do comportamento
socialmente nocivoenfatize aimportância de corrigir, consertar,
endireitar as coisas. Defato, tomar medidas para neutralizar o
mal cometidoé uma obrigação.Conquantoa ênfaseinicial esteja
nas obrigações do ofensor, o foco na interconexão social abre
a possibilidade de que outros - especialmente a comunidade
ampliada-possam-também-assumir-obrigações. - ----- -
Num nível ainda mais fundamental, esta visão do com-
portamento socialmente nocivoimplica em uma preocupação
com todos os envolvidos: as vítimas, sem dúvida alguma, mas
também os ofensores e a comunidade.
Corno fíca esta visão do crime se comparada àquela do sis-
temajurídico? As diferenças entre as duas abordagens podem
ser condensadas em três questões centrais que surgem na
busca pela justiça.
Numa passagem muito citada das escrituras judaico-cris-
tãs, o profeta Miqueias pergunta: "O que o Senhor exige de
ti?" E a resposta começa pelas palavras: "Nada mais do que
praticar ajustiça". Mas o que é necessário para que haja jus-
tiça? Como vimos acima, a resposta da sociedade ocidental
32
PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS
foi no sentido de garantir que os ofensores recebam o que
merecem. A Justiça Restaurativa responde de outra forma,
focalizando em primeiro lugar as necessidades da vítima e
consequentes obrigações do ofensor.
Duas Visões Diferentes
Justiça Criminal
O ci ime é uma violação da lei e
do Estado.
As violações geram_culpa.
A justiça exige que o Estado
deteimine a culpa e imponha
uma punição (sofrimento).
Foco central: os ofensores
devem rece"ber o que merecem.
JustiçaRestaurativa
O crime é uma violação depes-
soas e dêrelacionamentos.
As violaçõesgeram obiigações
Ajustiçaenvolvevítimas, ofen-
sores e membros dacomunida-
de num esforço comum para
corrigira.situação. •
•Foco central:'as necessidades
da vítima e a responsabilidade
do ofensor de leparaL o dano
cometido.
j Três Perguntas Diferentes
l-~ Justiça Criminal Justiça Reslaurativa
! • Quêleis foram infringidas? "j * Quemsofreu danos?
-•-Quem fez-isso?-- —-——^—«-Quais são suas necessidades?——
• O que o ofensor meiece? " • De quem é a obrigação de
(! suprir essas necessidades?
No Anexo l (pp. 77-81} o leitor encontrará um enunciado
mais extenso dos princípios da Justiça Restaurativa e suas
implicações, baseado diretamente no conceito acima expos-
to de comportamento socialmente nocivo. Mas, para nossos
33
HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA
propósitos imediatos, o conceito de inter-relacionamento
é básico à compreensão do motivo pelo qual necessidades,
papéis e obrigações são tão essenciais àJustiça Restaurativa.
OS TRÊS PILARES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Três pilares ou conceitos centrais merecem um exame mais
detido: danos e necessidades, obrigações e engajamento.
1. A Justiça Restaurativa tem foco no dano cometido.
A Justiça Restaurativavê o crime primordialmente como
um danocausado a pessoas e a comunidades. Nosso sistema
jurídico, com seu-foco em regras e leis e sua visão de que o
Estado é avítima,muitasvezesperde devista essa realidade.
Preocupado em dar aos ofensores o que eles merecem, o sis-
temajurídicoconsidera as vítimas, na melhor das hipóteses,
como preocupação secundária do processo penal. Mas na
Justiça Restauraíiva, ao colocar o foco no dano, surge uma
preocupação inerente comas necessidades da vítima e oseu
papei no processo.
Portanto, para_a.J_us_tica_Be_s_t_am:ati^a_o.^fa2er-justiça'lcome^.
ca na preocupação com a vítima e suas necessidades. Ela
procura, tanto quanto possível, reparar odano - concreta e
simbolicamente.Essa abordagemcentrada na vítima requer
que o processo judicial esteja preocupado em atender as
necessidades da vítima, mesmo quando o ofensor não foi
identificado ou detido.
Embora a primeirapreocupação devaser com o dano sofrido
pela vítima, a expressão "foco no dano" significa que deve-
mos também nos preocupar com o dano vivenciado pelo
ofensor e pela comunidade. E isto deve nos levar a contem-
plar as causas que deram origem ao crime. O objetivo da
Justiça Restaurativa éoferecer uma experiência reparadora
para todos os envolvidos.
34
PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS
2. Males ou danos resultam em obrigações.
Por isso, a Justiça Restaurativa enfatiza a imputação e a res-
ponsabilização do ofensor.
No âmbito lega], responsabilizar significa assegurar-se de
—que-o-ofensor-seja punido. No entanto, se o crime for visto
essencialmente como um dano, a responsabilização signi-
fica que o ofensor deve ser estimulado a compreender o
dano que causou. Os ofensores devem começar a entendei-
as consequências deseucomportamento.Além disso, devem
assumir aresponsabilidade de corrigir a situação na medida
do possível, tanto concreta como simbolicamente.
3. AJustiçaRestaurativapromoveengajamento ou participação.
O princípio do engajamentosugere que as partes afetadas
pelo crime-vítimas, ofensores emembros dacomunidade
- desempenhem papéis significativos no processo judicial.
Tais "detentores de interesses" precisam receber informa-
ções uns sobre os outros e envolver-sena decisão do que é
necessário para que sefaça justiça em cada caso específico.
—i
35
HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAUBATIVA
Em alguns casos, isto pode significar diálogo direto entre
as partes, como ocorre nos encontros entre vítimae ofensor.
Eles partilhamseus relatos e chegam a um consenso sobre
o que pode ser feito. Ern outros casos, o processo envolve
trocas indiretas, por intermédio de representantes, ouainda
outras formas de envolvimento.
Portanto, a Justiça Restaurativa se ergue sobre três
pilares ou elementos simples: os danos e as consequentes
necessidades (de vítimas em primeiro lugar, mas também
da comunidade e dos ofen-sores); as obrigações (do ofensor,
mas também da comunidade) que advêm do dano (e que
levaram ao dano);&oengajamento daqueles que detêmlegí-
timo interesse no caso e na sua solução (vítimas, ofensores
e membros da comunidade).
Eis, emresumo, um esqueleto sumário daJustiça Restaura-
tiva. Apesar de inadequado se considerado isoladamente, ele
oferece uma estrutura a partir da qual se pode construir uma
compreensão mais plena.-.. - — - — -
A Justiça Restaurativa requer, no mínimo,
que cuidemos dos danos sofridos pela vítima e
de suas necessidades; que seja atribuída ao ofensor
a responsabilidade de corrigir aqueles danos,
e que vítimas, ofensores e a comunidade
sejam envolvidos nesse processo.
O "QUEM" E O "COMO" SÃO IMPORTANTES .
As pessoas envolvidas no processo da justiça e o modo
como se dá esse envolvimento são dois elementos importantes
da Justiça Restaurativa.
36
PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS
O Processo -"ocomo"
O processo penal é um sistema adversarial conduzido por
profissionais que representam o ofensor e o Estado, tendo
como árbitro ojuiz. Oresultadoéimposto por instâncias-lei,
juizes ejúris- alheias ao conflito básico. Asvítimas, osmem-
bros da comunidade e mesmo os ofensores raramente parti-
cipam do processo de modo substancial.
Embora aJustiça Restaurativaem geralreconheçaa neces-
sidade de autoridades externas ao caso e, algumasvezes,'deci-
sões cogentes, ela dá preferência a processos colaborativos
e inclusivos e, na medida do possível, desfechos que tenham
sido alcançadospor consenso, aoinvés de decisões impostas.
Normalmente a Justiça Restaurativaadmite a abordagem
adversarial, reconhece o papel dos profissionais envolvidos
e do Estado.: No entanto, destaca a importância da partici-
pação daqueles que estão diretamente envolvidos, sofreram
o impacto, ou têm outro interesse
legítimo no eventolesivo ou delito.
Hyj Um encontro presencial, face
a face - precedido depreparação,
,Restaurativa
í?fí^efei;^^çtGe"ssos;":^' planejamento e salvaguarda ade-
•;í^tõ:-3r.í;5:.á;:-^-.V.- ' '
^tCmclusiy0S££$H"
•'i e~decisões
quados - viade regra constitui o
fórum ideal para a participação
das pessoas diretamente interes-
;: sadas. Como veremos resumida-
; mente mais adiante, este encon-
tro pode assumir diversasformas:
encontro entre vítima e ofensor, conferência de grupos fami-
liares, círculo restaurativo.
O encontro permite que vítima e ofensor ganhem feições,
façam perguntas um ao outro diretamente, e negociem um
modo de corrigir a situação. Trata-se de uma oportunidade
37
HOWARD ZEHR - JUSTIÇA BESTAURATIVA
para que a vítima conte em primeiramão ao ofensor qual foi
o impacto da ofensa, ou coloque suas perguntas. Ali oofensor
ouvirá e começará a compreender os efeitos de seu compor-
tamento. O encontro oferece a possibilidade de aceitação da
responsabilidade e de um pedido de desculpas. Muitas vítimas
e igualnúmero de ofensor es vêmdescobrindo que umdiálogo
dessa natureza constitui vivênciaforte e positiva.
Uni encontro - seja direto ou indireto - nem sempre é
possível e, em alguns casos, pode ser indesejável. Em certas
culturas uni diálogo presencial poderia ser até inadequado.
Os encontros indiretos,-razoavelmente eficazes sem serem
ofensivos, poderão tomar a fornia de uma carta, uni vídeo
gravado, ou ser rea-lisados através de um representante da
vítima. Em todas essas modalidades, devem ser envidados
esforços para oferecer o máximo de troca de informações e
envolvimento entre as partes interessadas.
As partes interessadas -"oquem."
Os principais mter-essadosí-é-clar.o/-Eão-a vítima e o ofensor -
imediatos. Membros da comunidadepoderão ter sido afetados
diretamente e, portanto, também têm interesse imediato-no
caso. Além desse primeiro círculo, há outros que guardam
graus variáveis de envolvimento
na situação. Dentre esses, temos
os membros da família da vítima,
seus amigos, as "vítimas secundá-
rias", a família e amigos do ofensor,
e outrosmembros dacomunidade.
Quem é a comunidade?
Dentro do campo da Justiça
Restaurativa tem havido alguma
•38-
"'"Entre.os . • •
/interessados,"
estão: as vítimas,.
. os ofefisorès e -
:"aircomuiiídã~des~
de cuidado. . •
PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS
controvérsia sobre o significado do termo "comunidade" e
como obter seu efetivo envolvimento nos processos. Aquestão
é especialmente problemática em culturas onde as comuni-
dades tradicionais não mais existem, caso de boa parte dos
Estados Unidos e grandes centros urbanos ocidentais. Além
disso, o termo "comunidade" pode expressar uni conceito
abstrato demais para ter utilidade prática. Aliás, a própria
comunidade pode ser vítima de abusos. A discussão dessas
questões vai alémdo escopo deste livro, mas algumas dbser-
vações podem ser úteis.2
Na prática, a Justiça Restaurativa tem tendido a se con-
centrar nas "comunidades de cuidado" ou microcomunida-
des. Há comunidades de lugar, nas quais interagem pessoas
que vivem próximas umas das outras; mas há também redes
de relacionamentos que não estão definidas geograficamen-
te. Para aJustiça Restaurativa as questões fundamentais são:
1) quem da comunidade se importa com essas pessoas ou
com a ofensa?, e 2) como envolvê-las no processo?
-~—É-iinpor-taiite-dist-mguir-entr-e "comunidade" e "socieda-
de". A Justiça Restaurativa tende a se concentrar nas rnicro-
comunidades de lugar ou relacionamento, que são direta-
mente afetadas pelas ofensas, mas em geral negligenciadas
pela "justiça estatal". Contudo, há preocupações e obriga-
ções maiores que dizem respeito à sociedade como uni todo,
transcendendo aquele grupo que tem interesse direto em
dado evento específico. Dentre estas estão: a preocupação
da sociedade com a segurança, os direitos humanos e o bem-
-estar de seus membros em geral. Muitos sustentam que o
Estado desempenha o importante e legítimo papel de cuidar
de tais questões de âmbito social.
39
6 3
.JU
HOWARD ZEHR -JUSTIÇA RESTAURATÍVA
A JUSTIÇA RESTAURATIVA VISA
ENDIREITAR AS COISAS
Até agoradiscutimosas necessidades e o papel dos inte-
ressados. Mas devemos dizer algumas palavras sobre os obje-
tivos dajustiça.
Tratar do ato lesivo
No cerneda JustiçaRestaurativa está a ideia de retificar as
coisas ou,para usar uma frase mais corrente, "endireitar" as
coisas. Como vimosacima, issoimplica numa responsabilida-
depor partedo ofensor que-deve; tantoquanto possível,tomar
medidas concretas para reparar o dano causado à vítima (e
possivelmente à comunidade afetada). Em casos como os de
assassinato, obviamente,o dano não pode ser reparado, no
entanto, passos simbólicos(como o reconhecimento da res-
ponsabilidade ou a indenização) poderão ajudar as vítimas,
e são responsabilidade do ofensor.
"Endireitar" sugerereparação, restauração ou recupera-
ção, mas estas palavras-COin-pcefixo—i-e-frequentemente se
mostram inadequadas. Quando um ato lesivo grave foicome-
tido, não há como reparar o mal on voltar atrás no tempo.
Como me disse Lynn Shiner,mãede duas crianças assassina-
das: "Agente precisa construir, criar uma vida inteiramente
nova. Algunspedaçosda vida anterior eu consegui manter e
encaixar na minha vidanova".
É possível que a vítimatenhamais probabilidade de res-
tabelecimento se o ofensor se esforçar para endireitar as
coisas -seja de fato ou simbolicamente. Muitas vítimas se
mostram ambivalentes quantoaotermo"cura", em virtude de
sua conotaçãode conclusãooutérmino.Este é um percurso
que somentea vítimapodetrilhar-ninguém pode fazê-lo em
seu lugar. Mas urn empenho para de alguma forma corrigir
40
PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS
o mal poderá ser um auxílio ao longo do restabelecimento,
mesmo que jamais se chegue à restauração plena do estado
anterior.
A obrigaçãode consertar as coisas é, em primeiro lugar,
do ofensor,masacomunidadepodeserresponsável também -
não só pelavítima, mas inclusive,possivelmente,pelo ofensor.
Para que este tenha sucesso 110 cumprimento de suas obri-
gações, poderá precisar do apoio e estímulo da comunidade.
Alem disso, esta tem responsabilidade pelas situações que
ocasionaram ou incentivaram o comportamento criminoso.
Idealmente, osprocessos de Justiça Restaurativa podem ser-
vir como catalisador ou fórum para examinar e definir tais
necessidades, responsabilidades e expectativas.
Tratar das causas
Para endireitar as coisas épreciso cuidar dos danos, mas
também é preciso abordar as causas do crime. A-inaior parte
das vítimas deseja exatamenteisso.Elas procuram saber que
—medidas-estão-sendo-tomadas para reduzir o perigo para si
e para os outros.
• -Nas conferências de grupos familiares da Nova Zelândia,
onde a Justiça Restaurativa é a norma, espera-se que os
participantes desenvolvam um plano consensual que todos
apoiarão e que contenha elementos de reparação epreven-
ção. Oplano precisa dar conta das necessidades das vítimas
e das obrigações do ofensor em relação ao atendimento
dessas necessidades. Mas o plano deve também contemplar
medidas necessárias para modificar o comportamento do
ofensor.
O ofensor tem o ónus de tratar as cansas de seucomporta-
mento, mas em geral não é capazde fazê-lo sem ajuda. Poderão
existir obrigações mais amplas emjogo além das do ofensor.
HOWARD ZSHR -JUSTIÇA RESTAURATIVA
por exemplo: injustiças sociais e outrasiniquidadesquelevam
ao crime ou promovem condições de insegurança. Não raro
outros, além do ofensor, são também responsáveis: as famílias,
a comunidade ampliada e a sociedade comoum todo.
Paracorrigir
a situaçãoé preciso...
...tratar dos danos ...tratar das causas.
O ofensor como vítima
Se e necessário tratar dos danos e das causas, é preciso
examinar os danos que o próprio ofensor sofreu.
Pesquisas mostram que muitos ofensores foram, elesmes-
mos, vítimas de traumassignificativos. Muitos deles seperce-
bem como vítimas..0_s majes s_afrjd_osjiu_pei:cebidos podem ter
contribuído de modo importantepara dar origem ao crime.
De fato, o psiquiatra Dr.James Gilligan, professorde Harvard
e pesquisador do sistema prisional,sustenta que toda vio-
lência é um esforço para conseguir justiça ou desfazer uma
injustiça.3 Em outras palavras, muitos crimes podemsurgir
como resposta a uma sensação de vitirnização e esforçopara
reverter essasituação.
A percepção de si como vítima não exime da responsa-
bilidade por comportamento socialmentenocivo. Contudo,
se o Dr. Gilligan está correto em suas conclusões, tampou-
co podemos esperar que tal comportamento cesse sem que
tenha sido tratado o sentido de vitímízação. De fato, via de
regra a punição reforça o sentido de vitimizaçãojá existente.
PRINCÍPIOS EESTAURATIVOS
Ocasionalmente os ofensores ficam satisfeitos quando sua
percepção de serem vítimas é reconhecida. Outras vezessua
percepção precisaserquestionada. Em certas ocasiões odano
perpetrado deve ser reparado antes que se possa esperar do
ofensor uma mudança de comportamento.
Estamos diante de um assunto controvertido e é fácil
entender porque isto constitui algo especialmentedifícilpara
muitas vítimas. Comfrequência esses argumentos racionais
soam como desculpas. Além do mais, por que algumas'pes-
soas vitimizadasse voltam para o crime e outras não?Estou
convencido de que qualquer tentativa demitigar as causas do
crime exigirá de nós uma análise da vivência devitimização
dos ofensores.
Nessa análise, ao invés de ^ò^li^s^ií-a.ii;^^^
utilizar a linguagem da vitimiza- ° ""'
cão, talvez seja mais útil falar de
"trauma". Em seu livro Creating
Sanctuary [Criando um santuário],
—-a-psiquiatra-Sandra Bloom argu-
menta que o trauma não resolvi-
do tende a ser reencenado na vida ^~-^;,^í::^-—r---::--
daqueles que o experimentaram vi^!Ul^-.-.-,--..•,.:.-: •.•/---„-"...;:
nas suas famílias e inclusive nas gerações seguintes.4
O trauma ê uma experiência central, não apenas para as
vítimas, mas também para muitos ofensores. Inúmeros epi-
sódios de violência podem ser, na realidade, uma reconstitui-
çao de traumas vivenciados anteriormente, aos quais não foi
possível reagir de modo adequado no passado. A sociedade
tende a reagir infligindo mais traumas na forma de penas
privativas de liberdade. Embora a realidade traumática não
possa ser usada como desculpa para o crime, ela deve ser
compreendida e tratada.
43
HowAfto ZEHR -JUSTIÇA RESTAURATIVA
Em resumo, o esforço para corrigir os males é o cerne e
o eixo da Justiça Restaurativa. A retificação dos males tem
duas dimensões: 1) tratar dos danos cometidos, e 2} tratar
suas causas, inclusiveos fatores negativos que contribuíram
para o comportamentosocialmentenocivo."
Já que a justiça deveria procurar endireitar as coisas, e
uma vez que as vítimas sofreram os danos, a abordagem res-
taurativa deve começar pelas vítimas.
No entanto, a Justiça Restaurativa se preocupa, em últi-
ma instância, coma restauração e reintegração de ambos:
vítima e ofensor, além-do-bem-estar-da comunidade como
um todo. Portanto, ela procura tratar de todas as partes
equilibradamente. -
A Justiça Restaurativa estimula
decisões que promovam responsabilidade,
reparação e restabelecimento para todos.
UMA LENTE RESTAURATIVA
A Justiça Restaurativaoferece uma estrutura alternativa
para pensar o crime e ajustiça.
Princípios
A lente ou filosofia restaurativa traz cinco princípios ou
ações-chave:
1.Focar os danos e consequentesnecessidades da vítima,
e também da comunidade e do ofensor.
2. Tratar das obrigações que resultam daqueles danos
(as obrigações dos ofensores, bem como da comunidade e
da sociedade).
3. Utilizar processos inclusivos, cooperativos.
44
PRINCÍPÍOS RESTAUBATIVOS
4.Envolver atodos que tenham legítimo interesse na situ-
ação, incluindo vítimas, ofensores, membros dacomunidade
e da sociedade.
5. Corrigir os males.
É possível esquematizar a Justiça Restaurativa como uma
roda. No centro está o foco principal: corrigir os danos e
males. Cadaum dos raios representa um dos elementos essen-
ciais citados acima: focar o dano e as necessidades, tratar das
obrigações que envolvem osinteressados (vítimas, ofensores
e comunidades de apoio) e, na medida do possível, fazê-lo
através de um processo cooperativo e inclusivo. Tudo isto, é
claro, numa atitude de respeito por todos os envolvidos.
Corrigindo
danos e
males
45
HOWAJÍD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA
Para utilizar uma imagem mais orgânica, podemos tam-
bém imaginar a Justiça Restaurativacomo uma flor. No cen-
tro está o foco principal: endireitar as coisas. Cada uma das
pétalas representa um dos princípios necessáriospara se obter
sucesso no propósito central.
tratar das
obrigações
focar nos danos
e necessidades—
Endireitai
as coisas
envolver os
interessados,
vítimas,
ofensores e
usar
processos
inclusivos e
cooperativos
comunidades
PRINCÍPIOS RESTAURATIVQS
Valores
Os princípios da Justiça Restaurativa são úteis apenas se
estiverem enraizados eni certos valores subjacentes. Muitas
vezes esses valoresnão são claramente enumerados e as pes-
soas presumem conhecê-los. Contudo,para aplicar os princí-
pios demodo coerente comseu espírito epropósito, devemos
ser explícitos em relação a esses valores. Caso contrário, por
exemplo, pode acontecerdeutilizarmos um processo baseado
na JustiçaRestaurativa,mas acabarmos chegando a decisões
não restaurativas.
Para que funcionem adequadamente, os princípios da
Justiça Restaurativa (o centro e os raios) devem ser cercados
por um cinturão de valores.
Para que floresçam, osprincípios que constituem aflor da
Justiça Restaurativa devemestar enraizados em certos valores.
. Subjacente à Justiça Restaurativa está a visão de inter-
conexão mencionada acima. Estamos todos ligados uns aos
outros e ao mundo em geral através de uma teia de relacio-
-namentosrQuando-essa-teia-se-ronipertodos são afetados.
Os elementos fundamentais da Justiça Restaurativa (dano e
necessidades, obrigações e participação) advêm dessa visão.
Mas estevalor dainterconexão deve ser equilibradopor um
apreço pela particularidade de cadaum. Ainda que estejamos
todos ligados, não somos todos iguais.5 A particularidade é a
riqueza da diversidade. Isto significa respeitar a individua-
lidade e o valor de cada pessoa, e tratar com consideração e
seriedade os contextos e situações específicos nos quais ela
se insere.
Ajustiça devereconhecer tanto nossa condição de interco-
nexão quanto anossa individualidade. Ovalor daparticulari-
dade nos adverte que o contexto, a cultura e a personalidade
são fatores importantes que devem ser respeitados.
47
I
-Restaurativa
-'"'ê respeito. --
HowArtD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATÍVA
Muito aindapoderia e deveria ser dito sobre os valores ine-
rentes à Justiça Restaurativa. De fato, talvez um dos maiores
atributos dessa modalidade dejustiça seja o modo como ela
nos incentiva a explorar nossos valores junto com os outros.
.,„...„-..;.-...-._______-,-,., Entretanto, no final das contas, um
único valorbásico é de suprema impor-
tãncia: o respeito. Se me fosse pedido
para resumir a Justiça Restaurativa em
uma palavra, escolheria "respeito"-res-
peito p0r todos, mesmo por aqueles que
-u-:. ,—-_~..-,---------- - são"~diferente"S"denós, mesmo por aque-
les que parecem ser nossos inimigos.
O respeito nos remete à nossa interconexão, mas também a
nossas diferenças. Orespeito exige que tenhamos uma preo-
cupação equilibrada comtodas as partes envolvidas.
Se praticarmos ajustiça como forma de respeito, estare-
mos sempre fazendo Justiça Restaurativa.
Quando não respeitamos os outros, não há Justiça Restau-
rativa, mesmo se adotarmos-fielrnente-os-seus-princípiosr- - - -
O valor do respeito permeia os princípios da Justiça
Restaurativa e deve orientar e dar forma à sua aplicação,
DEFININDO JUSTIÇA RESTAURATIVA
Como, então, devemos definir Justiça Restaurativa?
Embora haja um entendimento geral sobre seus contornos
básicos, os profissionais do ramo não conseguiram chegar
a um consenso quanto a seu significado específico. Alguns
de nós questionam a utilidade de uma definição, ou mesmo
duvidam da sabedoria de se fixar uma tal definição..Mesmo
reconhecendo a necessidade de princípios e critérios de qua-
lidade, preocupa-nos a arrogância e a finalidade de estabe-
lecer uma conceituação rígida. Com estas preocupações em
PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS
mente, ofereço a sugestão abaixo a título de definição para
fins operacionais:G
fins operacionais:
Justiça Restaurativa é um processo para envolver,
tanto quanto possível, todos aqueles que têm inte-
resse em determinada ofensa, num processo que
coletivamente identifica e trata os danos, necessi-
dades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de
promover o restabelecimento das pessoas e endi-
reitar as coisas, na medida do possível.
AS METAS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Em seu excelente manual Restorative Justice: A Vision for
HeaUng and Change, Susan Sharpe7 resume assim as metas
e tarefas da Justiça Restaurativa:
Os programas de Justiça Restaurativa objetívam:
"•"~"Cdlo"car~a"s"decisÕes-clTáve"nãs"itiãos daqueles"que"foram
mais afetados pelo crime,
• Fazer da justiça um processo mais curativo e,idealmente,
mais transformador, e
• Reduzir a probabilidadede futuras ofensas.
Para atingir estas metas é necessário:
• Queas vítimas estejamenvolvidas no processo e saiam dele
satisfeitas,
• Queos ofensores compreendamcomosuas ações afetaram
outras pessoas e assumam aresponsabilidadepor tais ações,
• Que o resultadofinal do processoajude a reparar os danose
trate das razões que levaram à ofensa (planosespeciais que
atendam às necessidades específicas de vítima e ofensor), e
49
HOWARD ZEIÍR-JUSTIÇA RESTAURATIVA
• Que vítima e ofensor cheguema uma sensação de "conclu-
são"8 ou "resolução" e sejam reintegrados à comunidade.
PERGUNTAS BALIZADORÁS DA
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Em últimaanáliseaJustiça Restauratíva se resume a uma
série de perguntas que precisamser feitas ao nos depararmos
com o ato lesivo.
Perguntas balizadoras da Justiça Restaurativa:
• Quem sofreu o dano?
• Quais são suas necessid"ãcles?~~"~~
• De quem é a obrigaçãode atendê-las?
• Quem são os legítimos interessados no caso?
• Qual o processo adequado para envolver os interessados
num esforço para consertar a situação?
Sepensarmos na JustiçaRestaurativa como um programa
específico, ouconjunto deprogramas,logo veremos que é difícil
aplicar programasjá existentes~aTmra~aTnpla~gania"de situações.
Por exemplo, usar as formas deencontro entre vítima eofensor
para crimes "comuns" pode ser difícil em casos de violência
coletiva ou social.Sem as devidassalvaguardas,os modelos de
Justiça Restaurativa quehojepraticamos podem ser perigosos
se utilizados em casos de violência doméstica.
Mas se, ao contrário,partirmosdasperguntas balizadoras
que dão forma à Justiça Restaurativa,veremos que elas são
aplicáveis a uma grande variedade de circunstâncias. Estas
perguntas podem nos ajudar a reenquadrar as situações, a
pensar além dos estreitos limitesque o sistema jurídico criou
para asociedade.
Essas perguntas balizadoras estão levando alguns advoga-
dos de defesa dos Estados Unidos a repensarem seus papéis
50
PRINCÍPIOS RESTAVRATIVQS
e obrigações nos casos de pena de morte. O "Apoio a Vítimas
Baseado na Defesa" surgiu como esforço para levar em consi-
deração as necessidades e preocupações dos sobreviventes no
contexto dos julgamentos e sentenças, e dando a eles acesso
aos profissionais encarregados da defesa e da acusação. Essa
abordagem também visa estimular os advogados de defesa a
assumirem a devida responsabilidade nesses casos. Muitos
acordos foram conseguidos visando atender as necessidades
das vítimas, e permitindo que os ofensor es aceitassem suas
responsabilidades.*
Em casos de violênciadoméstica, os advogados das víti-
mas mostram grande preocupação emrelação aoperigo de um
encontro entrevítima eofensor. Trata-se deumapreocupação
legítima em face do grande perigo desse encontro se trans-
formar em ocasião que perpetue opadrão de violência, ou um
processo sem o devido monitoramento por pessoas treinadas
para lidar com violência doméstica. Alguns dirão que nesses
casos um encontro nunca é a estratégia apropriada. Outros,
"~ínx:lusiveralgiim:as~7Ítimas "deviolência"domesticarsustentam
que os encontros são importantes epoderosos se forem feitos
dentro"de condições adequadas e com as devidas salvaguardas.
Sejam esses encontros adequados ou não aos casos de
violência doméstica, as perguntas balizadoras da Justiça
Restaurativa aindapodem nos ajudar a entender o que precisa
ser feito sem que nosvejamoslimitados -epresos - à pergun-
ta: "Que castigo merece esse ofensor?". Quando defrontado
com uma nova situação ou aplicação,frequentemente me volto
para as perguntas balizadoras a fim de encontrar um norte.
*N.T. No sistema norte-americano o advogado de defesa negocia com o pro-
motor um acordo quanto à declaração que fará diante da acusação em juízo.
Caso se declare culpado de um crime de pena menor, o réu poderá ficar livre
do julgamento pelo tribunal do júri.
51
HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA
Defato, essas perguntas podem ser vistas como um sumá-
rio da Justiça Restaurativa.
INDICADORES DE JUSTIÇARESTAURATIVA
Quando começamos a pensar nas aplicações práticas da
Justiça Restaurativa,outras balizas são oferecidas pelos dez
princípios ou indicadores abaixo. Esses princípios são espe-
cialmente úteis para projetar ou avaliar programas. Assim
como as perguntas balizadoras, eles podem servir para con-
ceber respostas a casos ou situaçõesespecíficos.
Indicadores deJustiça"Kêstãurãtívãi
1. Foco nos danos causados pelo crime ao invés de nas leis
que foram infringidas.
2. Ter igual preocupação e compromisso com vítimas e ofen-
sores, envolvendo a ambos no processo de fazer justiça.
3. Trabalhar pela recuperação das vítimas, empoderando-as
e atendendo às necessidades que elas manifestam.
4. Apoiar os ofensores e ao mesmo tempo encorajá-los a com-
preender, aceitar e cumprirsuasT)brigações.~
5. Reconhecer que,emboradifíceis, as obrigaçõesdo ofensor não
devem ser impostas comocastigo, eprecisam ser exequíveis.
6. Oferecer oportunidades de diálogo, direto ou indireto, entre
vitima e ofensor, conforme parecer adequado à situação.
7. Encontrar um modo significativo para envolver a comuni-
dade e tratar as causas comunitárias do crime.
8. Estimulara colaboração e reintegração de vítimas e ofen-
sores, ao invés de impor coerção e isolamento.
9. Dar atenção às consequências não intencionais e indeseja-
das das ações e programas de Justiça Restaurativa.
10.Mostrar respeito por todas as partes envolvidas: vítimas,
ofensores e colegas da áreajurídica.
Harry Mika eHoward Zehr9
52
PRÁTICASRESTAURATIVAS
conceito e a filosofia da Justiça Restaurativa surgiram
durante as décadas de 70 e 80 nos Estados Unidos e
Canadá, junto com a prática então chamada Programa de
Reconciliação Vítima-Ofensor (Víctim Offenderífeconciíiatjor)
Program - VOfíPJ. Desdeentão, esteprograma foi modificado
enovas formas de prática apareceram. Metodologias antigas
foram remodeladas e ganharam o nome de "restaurativas".
Quais são as principais abordagens ou práticas em uso cor-
rente no campo da justiça criminal ocidental? Devemos ter
-em-mente que as aplicações que-menciono abaixo de modo
algum abrangem a totalidade do cenário.
As escolas têm se tornado um local importante de apli-
cação das práticas restaurativas. Apesar de terem muitas
semelhanças com os programas de Justiça Restaurativa no
âmbito criminal, as abordagensutilizadas no contexto peda-
gógico devem necessariamente se amoldar aos contornos do
ambiente escolar.
Abordagens restaurativastambém estão sendo adaptadas
para utilização no local de trabalhoe em questões e processos
comunitáriosmais amplos.Nesse caso, também há afinidades
com os modelos descritos abaixo, mas, novamente, importan-
tes diferenças. A Justiça Restaurativa tem aparecido, ainda,
nas reflexões e debates sobre como fazer justiça apósconflitos
53
"l
J
-JVSTÍÇA RESTAURATIVA
ou comportamentos sociais nocivos d.elarga escala, muito
embora essa discussão seja mais teórica do que prática.
Para as sociedades que ainda mantêm um vínculo mais
próximo comos costumes tradicionais - como a africana,
ou as comunidades indígenas norte-americanas - a Justiça
Restaurativa serve de catalisador para reavaliar, ressuscitar,
legitimar e adaptar abordagens consuetudinárias antigas.
Durante o período colonial omodelojurídico ocidental muitas
vezes condenoue reprimiu as formas tradicionais de justiça
que, ainda quenão fossemperfeitas,funcionavam muito bem
para aquelas comunidadesr~ •
A Justiça Restaurativa pode oferecer uma estrutura
conceituai capaz dB afirmar e legitimar o que havia de bom
naquelas tradições e, em alguns casos, desenvolver modelos
adaptados que operem dentro da realidade do sistema jurí-
dico moderno.De fato, duas das mais importantes formas de
Justiça Restaurativa - asconferências familiares eos círculos
de construção de paz-são"adaptações (sem serem réplicas)
de processos tradicionais— —-—-—- - - -----
AJustiça Restaurativa proporciona, ainda, umaforma con-
creta de pensar sobre a justiça no âmbito da teoria e prática
da transformação de conflitos e construção da paz. De fato,
a maioriados conflitos orbita em torno de uma percepção de
injustiça, ou ao menos implica tal percepção. Mesmo que o
campo daresolução de conflitos ou transformação deconflitos
tenha, em certa medida, reconhecido esse fato, o conceito e a
prática dajustiça nessa área permanecem um tantovagos. Os
princípios daJustiçaRestaurativa oferecem unia estrutura con-
cretapara tratar as questões deinjustiça presentes no conflito.
Como exemplo, cito a experiência de vários profissionais
africanos que, depois de fazer o curso deJustiça Restaurativa
do Programa de Transformação de Conflitos da Eastern
54
PRÁTICAS RESTAURATIVAS
Mennonite University (emHarrisonburg, Virgínia), voltaram
para Gana a fim de trabalharem no conflito que ali se arras-
tava. Utilizandoa estrutura conceituai da JustiçaRestaurativa
foram capazes de, pela primeira vez, abordar as questões de
justiça presentes no conflito através de seu processo tradi-
cional dejustiça comunitária. Comoresultado, os esforços de
paz saíram do marasmo e começaram a progredir.
O campo da Justiça Restaurativa tornou-se diversificado
demais para ser retratado em qualquer classificação. O que
se segue é uma tentativa de oferecer uma breve visão geral
de algumas das práticas que vêmsurgindo dentro do campo
da justiça criminal ocidental,
O CERNE DAS ABORDAGENS GERALMENTE
ENVOLVE UM ENCONTRO
Três modelos distintos tendem a dominar a prática da
Justiça Restaurativa:os encontros vítima-ofensor, as conferên-
cias de gruposfamiliares, eos círculos deJustiça Restaurativa.
-No-entanto,-cada-vezmais esses modelos têm sido mesclados.
As conferências de grupos familiares por vezes utilizam um
círculo, enovas formas que aproveitam elementos de cada um
dos modelos acima têm sido desenvolvidas para circunstân-
cias específicas. Em alguns casos, vários modelos são utiliza-
dos num mesmo caso ou situação. Por exemplo, um encontro
entre vítima e ofensor pode ser promovido antes deumcírculo
de sentenciamento, e a título de preparação.
No entanto,todos essesmodelospossuem elementos impor-
tantes em comum. Por causa de suas semelhanças, são àsvezes
.agrupados como fornias distintas deJustiça Restaurativa.
Cada um desses modelos implica um encontro entre inte-
ressados-chave - nomínimo, entre vítima e ofensor, etalvez
incluindo outras pessoas da comunidade ou do meio jurídico.
55
l HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA
Quando é impossívelou inapropriado promover um encontro
da vítima específica com seu ofensor específico, represen-
tantes ou substitutos entram em seus lugares. Muitas vezes
utilizam-se cartas ou vídeoscomo preparação ou em substi-
tuição a um encontro face a face. Mas todos esses modelos
implicam algum tipo de encontro, de preferência, presencial.
Os encontros são lideradospor facilitadores que super-
visionam e orientam o processo, equilibrando o foco dado às
partes envolvidas.Diferente de árbitros, os facilitadores de
círculos ou encontros não impõem acordos. Todos os mode-
los abrem oportunidade-par-a-que-os-participantes explorem
fatos, sentimentos eresoluções. Eles são estimulados a contar
suas histórias, fazer perguntas, expressar seus sentimentos e
trabalhar a fim de chegar a uma decisão consensual.
Ron Classen, um profissional veterano da Justiça
Restaurativa, coloca a questão da seguinte fornia:para resol-
ver qualquer tipo de comportamento socialmentenocivo, três
coisas precisam acontecer:-
1. O mal cometido precisa_ser_.i:e.c.onhecido,— —- --
2. A equidade precisa ser restaurada,
3. É preciso tratar das intenções futuras.1
O encontro oferece a oportunidade para que as vítimas
falem do mal sofrido, e para que os ofensores o reconheçam
como tal. Decisões como restituição de bens ou pedidos de
desculpas ajudam a igualar o placar, ou seja, a restaurar a
equidade. Em geral é necessário também falar do futuro. O
ofensor fará isso de novo? Como viveremos juntos na mes-
ma comunidade? Como tocaremos a vida adiante? Todos os
modelos de encontro restaurativo abrem espaço para que tais
questões sejam abordadas através de um encontro sob orien-
tação de facilitadores.
56
PRATICAS RESTAURATIVAS
Em todos os modelos aparticipação da vítima deveser intei-
ramente voluntária.Da mesma forma, existe o pré-requisito
de que o ofensor reconheça, em alguma medida, sua respon-
sabilidade. Normalmente, não se Faz uma conferência quando
o ofensor nega sua culpa ou responsabilidade.São envidados
esforços para estimular a participação voluntária do ofensor.
Sem dúvida, o encontro não deve acontecer quando o ofensor
está recalcitrante. Na realidade, há sempre uma certa pres-
são sobre o ofensor no sentido de escolher o mal menor. Nas
entrevistas preliminares os ofensores em geral manifestam
que é difícil e assustador encarar aqueles a quem lesaram. De
fato, a maioria de nós preferiria evitar esse tipo de obrigação
sempre que possível.
Salvo pelas conferências de grupos familiares da Nova
Zelândia, os modelos descritos abaixo são aplicados discri-
cionariamente epor encaminhamento. Para ofensas menores
o encaminhamento em geral vem da comunidade, da escola
ou instituição religiosa. Por vezes a Iniciativa surge das pró-
—prias-par-tes .._..__ _._. . - _ . . . -. .-.
Mas a maioria vemdo sistemajudiciário,sendo que o agente
encaminhador varia segundo ocaso e a comunidade. Estepode
ser a polícia, ou o promotor de justiça, o oficial da condicio-
nal, o tribunal ou a vara criminal, ou até a penitenciária. No
caso dos tribunais, em geral aindicaçãoda prática restaurativa
vem depois da instrução e alegações finais e antes da sentença.
Nesses casos, ojuiz leva o resultado da conferência em consi-
deração ao sentenciar. Em alguns casos ou varas, ojuiz ordena
a restituição dos bens e pede que o valor devido seja decidido
através deum encontro restaurativo, quepassa a fazerparte da
sentença e/ou concessão do livramento condicional.
Os programas de encontro vítima-ofensor hoje em fun-
cionamento nos casos de violência grave são, na sua maioria,
57
m--
HOWAHD ZEHR-JUSTIÇA RESTAVRATIVA
externos ao sistemajudiciário formal e concebidospara serem,
ativados por iniciativa das partes, em geral a pedido dasvítimas.
OS MODELOS DIFEREM QUANTO
AO "QUEM" E AO "COMO"
Embora semelhantes emlinhasgerais, os modelos de prá-
tica restaurativa diferem quanto ao número e tipo de parti-
cipantes e, em alguns casos, quanto ao estilo de facilitação.
Encontros entre vítima e ofensor
Os encontros entre-vít-ima-e-ofensor-envolvembasicamente
vítimas e ofensores. Nos casos em que for indicado, trabalha-
-se com a vítima e Q ofensor em separado e, depois, havendo
consentimento para que continue o processo, acontece um
encontro ou diálogo entre os dois, organizado e conduzido
por um facilitador treinado que orienta o processo de maneira
equilibrada.
Em geral o resultado é-a-assinatura de um acordo de resti-
tuição de bens, salvonos.casos_dej/-iolència grave, quando isto
não costuma acontecer. Membros da família da vítima e do
ofensor poderão participar, mas normalmente essas pessoas
têm papéis de apoio secundários. Pessoas que representam
a comunidadepoderão ser envolvidas como facilítadoras ou
supervisoras do acordo selado, mas via de regra não partici-
pam do encontro.
Conferências de grupos familiares
Nesta prática temos a ampliação do círculo básico de parti-
cipantes, quepassaaincluirosfamiliares ououtras pessoas sig-
nificativas para as partes diretamente envolvidas. Essemodelo
vem se concentrando no apoioao ofensor,para que eleassuma a
responsabilidadeemudeseu comportamento, epor isso a família
58
PRATICAS RESTAURATIVAS
do ofensor e/ou pessoas relevantes da comunidadesão muito
importantes. No entanto, a família da vítima também deve ser
envolvida no processo. Em alguns casos, especialmente quando
o encontro tem opoder de afetar o desenlacedoprocesso penal,
um representante do Estado (como, por exemplo, umpolicial)
poderá também estar presente.
Duas modalidades de conferência de grupos familiares
ganharam especial destaque. "Um dos modelos que vem rece-
bendo bastante atenção nos Estados Unidos foidesenvolvido
inicialmente pelapolíciaaustraliana, combase em uma moda-
lidadenascida na Nova Zelândia. Geralmente essa abordagem
adota um modelo de facilitação padronizado ou "roteiriza-
do". Os facilitadores podem ser autoridades, como policiais
especialmente treinados para essa tarefa. Essa tradição ou
abordagem deu especial destaque à dinâmica da vergonha, e
trabalha ativamente para usar a vergonha de modo positivo.
O outro modelo de conferência de grupos familiares, com
o qual estou mais familiarizado, nasceu na Nova Zelândia e
-hoje sentornou-O-procêdimento normativo.para as .ofensas,sob
a jurisdição das varas da infância e juventude daquele país.
Como essa abordagem émenos conhecida nos Estados Unidos
do que o diálogo entre vítima e ofensor e do que os círculos
restaurativos (verp. 61-62), eu a descreverei em mais detalhe.
O governo da Nova Zelândia revolucionou seu sistema de
justiça para a infânciaejuventude em 1989. Esta ação foi uma
reação à crise vivida então na área do bem-estar do menor, e
também às críticas, por parte da população indígena maori,
de que as autoridades utilizavam um sistema colonial impos-
to e alheio à cultura local. Muito embora o sistema judicial
tenha sido mantido como retaguarda, o procedimento padrão
para a maioria dos crimes mais graves cometidos por meno-
res na Nova Zelândia é a conferência de grupos familiares,2
59
HOWABD ZEHR - JUSTIÇA RESTAURATÍVA
Em consequência, na Nova Zelândia estas conferências podem
ser consideradas tanto um processojudicial quanto um encon-
troinformal.
Elas são organizadas e facilitadas por assistentes sociais
pagos pelo Estado, chamados de Coordenadoresde Justiça do
Adolescente, Juntamente às famílias, é sua função ajudar os
participantes a determinarem quem deve estar presente no
encontro, ea criar o processo maisapropriado para aquelegru-
po em particular. Um dos objetivos do processo é sua adequa-
ção cultural, e a forma do encontroprecisa estar adaptada às
necessidades e à cultura das vit.ím.as_e_das famílias envolvidas.
Nesse caso, a facilitação não é roteirizada. Embora haja
uma progressão comum às conferências em geral, cada uma
sofre adaptações em função das partes envolvidas. Um dos
elementos comuns à maioria delas é a reunião de família que
acontece em dada altura do processo. O ofensor e a família
do ofensor se retiram para outra sala a fim de discutir o que
aconteceu até então, e desenvolver uma proposta que será
apresentada à vítima no restante da conferência^
Assim como os mediadores de encontros entre vítima e
ofensor, o coordenador da conferência de grupos familiares
procura ser imparcial, equilibrando os interesses e necessi-
dades das duaspartes. No entanto, eletern a incumbência de
garantir a elaboração de um plano que contemple as causas
e também a reparação, que responsabilize o ofensor e, por
fim, que seja realista.
Mesmo que a comunidade não esteja explicitamente incluí-
da, esses colóquios são mais inclusivos que os encontros entre
vítima e ofensor. Os familiares do ofensor são partes essen-
ciais edesempenhampapéis importantes -defato, o processo
é visto como modelode empoderamento familiar.As vítimas
podem trazer membrosda família ou advogados. Poderá estar
60
PRÁTICAS RESTAUBATIVAS
presente um procurador especial da vara da infância e da
juventude, e também outros profissionais assistenciais.Além
disso, e visto que a polícia desempenha o papel de acusa-
dor no processo penal neozelandês, também ela deve estar
representada.
As conferências de grupos.familiares ao estilo neoze-
landês não são concebidas simplesmente como oportunida-
de de expressar fatos e sentimentos e desenvolver acordos
de restituição de bens ou reparação moral. Em virtude de
normalmente fazerem o papel do tribunal, elas têm a função
de desenvolver um plano completo para o ofensor, um pla-
no que, além de reparações, inclua elementos de prevenção
e, por vezes, punição. Até mesmo as acusações podem ser
negociadas nessa reunião. Ê importante notar que o plano
precisa obter a concordância de todos os presentes. Avítima,
o ofensor, ou apolícia poderão vetar a decisão se algum deles
estiver insatisfeito.
Portanto, as conferências de grupos familiares podem
—Snifíliâlp. círculo.departicipantes,incluindo familiaresou pes-
soas significativas e, às vezes,funcionáriosdo poderjudiciário.
Ao menos na forma adotada na Nova Zelândia, a conferência
poderá incluir uma reunião familiar a portas fechadas, e um
papel ampliado para o facilitador, que talvez pareça menos
"neutro" se comparado ao do facilitador dos encontros vítinia-
-ofensor. Ocasionalmente intituladas "conferências comuni-
tárias ou de responsabilização", esses encontros estão sendo
adaptados e utilizadosexperimentalmente em vários países.
Círculos
As abordagens circulares surgiram nas comunidades abo-
rígínes do Canadá. Para descrever o processo, o juiz Barry
Stuart, em cuja vara um desses círculos foireconhecido pela
61
HQWARD ZEHK - JUSTIÇA RESTAURATIVA
primeira vez através de sentença judicial, escolheu o termo
"Círculos de Construção de Paz". Hoje os círculos têm inú-
meras aplicações. Além dos círculos de sentenciamento, que
objetívam determinar sentençaspara processos criminais, há
círculos de apoio [empreparaçãoa círculosde sentenciamen-
to), círculos para lidar comconflitos no ambiente de trabalho,
e até círculos comoforma de diálogocomunitário.
Nessa modalidade restaurativa osparticipantes se acomo-
dam em círculo. Um objeto chamado "bastão de fala" vai pas-
sando de mão emmão para quetodos tenham a oportunidade
de falar, um de cada_vez,_na_or_dem_em que estão sentados.
Faz parte do processouma declaração inicial em que são
explicitados certos,valores, ou mesmournafilosofia, que enfa-
tiza o respeito, o valor de cada participante, a integridade, a
importância de se expressar com sinceridade, etc.
Um ou dois "guardiãesdo círculo" servem de facilita dores.
Nas comunidades indígenas, os anciãos desempenham impor-
tante papelcomo líderes dos círculos, ou como conselheiros,
ou ainda trazendo percep^ões^ejnsjsrhts^
Os círculos ampliam intencionalmenteorol de seus parti-
cipantes. Vítimas, ofensores, familiares, e às vezes profissio-
nais do judiciário são incluídos,mas os membros da comu-
nidade são partes essenciais. Eles podem ser convidados em
função de sua ligaçãoouinteresse emuma infraçãoespecífica,
ou por iniciativa da vítima ou do ofensor. Muitas vezes os
membros são partes deum círculo permanente devoluntários
da comunidade.
Em virtude do envolvimento da comunidade, os diálo-
gos dentro do círculo são em geral mais abrangentes do que
em outros modelos de Justiça Restaurativa. Os participan-
tes podem abordar circunstâncias comunitárias que tal-
vez estejam propiciando violações, podem falar do apoio a
62
PRÁTICAS RESTAURATIVAS
necessidades de vítimas e ofensores, das responsabilidades
que a comunidade possa ter, das normas comunitárias, ou
outros assuntos relevantes para a comunidade.
Embora os círculos tenham surgido em comunidades
pequenas e homogéneas, hoje passaram a ser utilizados em
inúmeros contextos, inclusive nas grandes áreas urbanas e
para situações variadas fora do âmbito criminal.
Este livro não é o meio adequado para discutir as mui-
tas formas ou os méritos relativos dos inúmeros modelos
de Justiça Restaurativa. O que, sim, devemos frisar aqui é
que todos os modelos acima são formas de encontro. Eles
podem se diferenciar pelo número e tipo de participantes
ou interessados envolvidos, ou por seu método de facilita-
ção. No entanto, quanto mais essas modalidades vão sendo
mescladas, cada vezmenos significativas vão se mostrando
suas diferenças.
É digno denota quenem todas as abordagens restaurati-
vas envolvem um encontro direto, e que nem todas as neces-
"SÍdades-podem-ser atendidas através deum encontro. Mesmo
que as vítimas tenham algumas necessidades que envolvam
o ofensor, também apresentam outras que independem dele.
Da mesma forma,os ofensores têm necessidades e obrigações
que não guardam qualquer relação com a vítima. Portanto, a
tipologia que se segue inclui tanto os programas comencontro
quanto aqueles sem encontro,
OS MODELOS DIFEREM QUANTO
A SEUS OBJETIVOS
— O.utro_modo decompreender as diferenças entre as várias
abordagens restaurativas é examinar seus objetivos, que
podem ser separados em três categorias:
63
JUSTIÇA RESTAURATIVA - HOWARD ZEHR.pdf-C
JUSTIÇA RESTAURATIVA - HOWARD ZEHR.pdf-C
JUSTIÇA RESTAURATIVA - HOWARD ZEHR.pdf-C
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  • 1. _-„-. -,-t-i T. ii-riTi'i-ui-n—IITT r7~ionrii_niLLi.:jiiiLj '.J N.Cham, 341.5466 241J Autor: Zehr, Howard Tííulo: Justiça restaurativa
  • 2. Título original: The Líttle Book of Restorative Justice Copyright ©2010 Coordenação editorial: LiaDiskin Capa e projeto gráfico: Vera Rosenthal Produção e Diagramação: Tony Rodrigues Preparação de originais: Lídia Angela LaMarck Revisão: Lia Diskin Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP,Brasil) Zehr, Howard Justiça Restauraliva / Howard_Z_ehr; tradução Tônia Van Acker. - São Paulo: Palas Athena, 2012. Título origina!:The Little Book of RestorativeJustice 1.Criminosos-Reabilitação 2.Justiça criminal-Administração 3.Justiça restaurativa 4. Punição-Filosofia 5. Vítimas decrirnes I. Título. 12-04576 CDD-303.Ó8 índices^para catálogo sistemático: 1.Justiça restaurativa: Justiça penal: Criminologia; Problemassociais 364.68 1a edição, junho de 2012 Todos os direitos reservados e protegidos _pela_LeL9610_dejL£Lde_fe.v.ereir_o_deJ.998._ Ê proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sern a autorização prévia, por escrito, da Editora. Direitos adquiridos para a língua portuguesa por Paias Athena Editora Alameda Lorena, 355 - Jardim Paulista 01424-001- SãoPaulo, SP -Brasil Fone [11] 3266-6188 www.palasathena.org.br editora@palasathena.org.br CONTEÚDO Prefácio deLeoberto Brancher .-... 3 1. VISÃO GERAL 13 Por que este livro? 15 A Justiça Restaurativa não é 18 A Justiça Restaurativaéfocada em necessidades e papéis 24 2. PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS 31 Os três pilares da Justiça Restaurativa 34 -. —Q_íquem"-e-o "como" são-importantes 36 A Justiça Restaurativa visa endireitar as coisas 40 Uma lente restaurativa 44 Definindo Justiça Restaurativa 48 As metas da Justiça Restaurativa 49 Perguntas balizadoras da Justiça Restaurativa 50 Indicadores de Justiça Restaurativa 52 PRÁTICAS RESTAURATIVAS 53 O cerne das abordagens geralmente envolve um encontro 55 Os modelos diferem quanto ao "quem" e ao "como" ....53 Os modelos diferem quanto a seus objetivos 63 Um continuum restaurativo 66 " aí i
  • 3. HOWARD ZEHR -JUSTIÇA RESTAURATIVA 4. ISTO ou AQUILO? Justiça retributiva XJustiça Restaurativa? Justiça criminal XJustiça Restaurativa? ... A Justiça Restaurativa vista como um rio . ANEXO 1: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA .71 .71 ,72 .74 Notas Leituras Selecionadas 77 83 87 PREFÁCIO l~yaz poucos anos, menos de dez. Embora fôssemos todos já JL bastante crescidos, mais parecíamos garotos ávidos por alcançar o final de um conto de literatura juvenil.Assim era a atmosfera de encantamento emistério quando os primeiros "manuscritos" sobre Justiça Restaurativa começaram a apa- recer entre nós, que sofregamente nos debruçávamos sobre traduções improvisadas, às vezes confusas, embora nunca o --suficiente obscuras para nos retirar o entusiasmo, ou para encobrir a veia latejante da boa nova que traziam. Entre esses achados, destacavam-se fragmentos de textos do Prof. Howard Zehr- alguns que, aliás, agora podemos ver traduzidos neste livro. Não apenas pela mística de serem con- siderados parte importante dos "originais que deram início à série" mas, sobretudo, peia capacidade de expressão sintética. esquemática e visual,pelos recursos de linguagem capazes de objetivar insights, pela capacidade de transmitir, apesar das nossas mal traduzidaslinhas, a percepção da intensidade das emoções experimentadas apenas pelas pessoas que convivem concretamente com a aflição e a dor da violência e do crime, das algemase das cadeias que as cercam. Tabelas comparativas ("isto ou aquilo"); traduções do intraduzível ("o que a Justiça Restaurativa não á"), fórmulas
  • 4. HOWARD ZSHR-JUSTIÇA RESTAVBATIVA sintéticas e organizativas, como"princípios fundamentais de Justiça Restaurativa", que você vaiencontrarneste livro, eram ' recebidas e decifradas comofragmentos de um tesouro que se insinuava após uma busca até então sem norte e, por isso mesmo, longa, tormentosa edesnutrida- massempre persis- tente - em homenagem aosfiapos intuitivos deesperançacom 'os quais se costuma tecer o porvirhumano. Foi com matrizes essenciais como as que você vai encon- trar neste pequeno livro que se nutriram os primeiros pas- sos e encontros do Núcleode Estudos e Pesquisas em Justiça Restaurativa da Escola Superior da Magistratura da AJURIS - Associação dos Juizes do Rio Grande do Sul, espaço de aprendizagem e dereflexãoteórica que deu origem aoProjeto Justiça para o Século 21-Instituindo Práticas Restaurativas, desde o qualpassamos a submeter o cotidiano dos processos da Justiça Juvenil de Porto Alegre ao crivo das novas lentes reveladas por Howard Zehr: as lentes restaurativas. Não surgia aí apenas mais um espaço de estudos, senão que, corno diria Huinber-to-Maturanarabria-se-uma nova teia de conversações- inspirada epautada pelos princípios axio- lógicos danovidaderestaurativa, e compartilhada por juizes, promotores dejustiça, defensores públicos, policiais(embora, na verdade, não muitos), assistentes sociais, psicólogos, psí- quiatras, educadores sociais e_professore_s;__ Além de abarcar diferentes-facetas-do-mesmo objeto de trabalho - conflitos, violênciaseinfrações penais envolven- do crianças e adolescentes ~, esse grupo se identificava por compartilhar um sentimento comum de esgotamento e asfi- xia diante dos respectivos, sistemas institucionais e reper- tórios académicos, marcados por hierarquias autoritárias e suas certezas irredutíveis, na prática, tão arrogantes quanto reprodutoras de violências,violências certamente maiores do 4 PREFÁCIO que as atribuídas à maioria dos jovens submetidos aos seus mecanismos de controle e poder. • Nossoprimeiro teste das ideias sobre JustiçaRestaurativa ocorreria ainda em 2002. Na audiência de instrução, a vítima de um roubo a mão armada, uma senhora de 50 anos, foi soli- citada a fazer o reconhecimento de dois réus menores. Sua casa fora invadida por três rapazes (oterceiro era um maior, que conseguiufugir), mas logo cercadapela polícia,comtodos dentro e, felizmente, o desfecho foi a rendição. Ela fez pouco caso do vidro espelhado da sala de reconhecimentos. "Claro que conheço.Eles moram no mesmo condomínio. Esse aqui ~ disse apontando para um deles - eu conheço desde bebé. Carreguei ele muito no colo quando o ônibus estava lotado, pois a mãe dele embarcava umas paradas adiante da minha, ela tinha de viajar em pé e então eu levava ele no colo...". A manifestação dessa senhora, feita refém com sua filha de 21 anos e o neto de 8 meses dentro da própria casa, serviria de senha.para iniciar o primeiro círculo restaurativo realizado no Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre. Apesar dainexperiência e das dificuldadesmetodológicas, os encontros proporcionaram uma confirmação irreversível das hipóteses teóricas. Principalmente quando uni dos rapa- zes, ainda preso, aparentemente resistia às orientações da mediadora para que se desculpasse com as vítimas (ométo- do então era o da mediação da terapia familiar sistémica). O rapaz se levantou, pediu para pegar no colo o bebé, também presente ao encontro e, com a criança nos braços, colocou-se dejoelhos e, chorando, pediu perdão. Vista de fora, a cena podeparecer excessivamente teatral, até mesmo manipulatória. Mas para quem esteve ali,vivendo de dentro a força emotiva e a intimidade do encontro, não restaram dúvidas. Quem ali se prostrava e pedia perdão de
  • 5. HOWARD ZBHR - JUSTIÇA RESTAURATIVA joelhos não era mais o ladrão, o assaltante, o réu, o menor infrator. Era de novo aquele menino vizinho que a vítima - como ele agora com seu neto - há 17anos segurara cmseu colo. E desde esse nível incomensuravelmente profundo de .resgate e conexão, um novo futuro se abriria para todos. As vítimaspuderamsentir-se aliviadas do seu trauma e do seu temor. Afinal, os algozesno fundo não eram tão monstru- osos assim e, com certeza, nuncamais voltariam, elesmesmos, a tentar novamente assaltá-las. Aliás, uma das propostas de reparação feita pelos rapazes, mas recusada pelas vítimas, • era de que eles viessem todas as noites vigiar seu portão e dar-lhes segurança no horário de chegarem em casa. Ora, do ponto de vista das vítimas, aceitá-los agora comoseus "segu- ranças" seria prorrogar excessivamente a vivência traumáti- ca do assalto. Mas depois de todo o ocorrido, aqueles dois, com certeza, não as assaltariam outra vez. Ficara evidente que cada um desses jovens - agora confrontados comsua própria humanidadeatravés do espelho do reconhecimento do sofrimento e dahumanidade_das-V-ítimas,-e-dos próprios familiares integrados ao encontro - descera até oinferno do crime, mas para reencontrar a raiz da própria identidade e para dali ressurgir firmadonoutro sentido, noutro propósito, noutra perspectiva de vida.A experiência, ao final, por maior que tenha sido o sofinmentgjbld^i^siielt(^_r_esp_oiisabilidade_ e liberdade. E essa cena.do pedido.de.perdão resume uma vivência cuja intensidade e repercussão em termos de elabo- ração psíquica não poderia ser proporcionada por qualquer prisão-nem, talvez, psicanálise«do mundo. Valeressaltar que esse testemunhode resgate das relações de humanidadee proximidade, em que um conflito grave, ao ponto de tipificar um crime, acaba dando lugar a ama expe- riência de transcendência e enlevo, não fazparte da literatura 6 PREFÁCIO internacional, nem teve palcona Nova Zelândia,na Austrália, no Canadá ou nos Estados Unidos. Foi vivido e escrito no Brasil. Ocorreu aqui.em casa, conosco, tal como poderia ter acontecido na sua casa,com você,na sua instituição, escola ou comarca. Ou talvez aconteçam em breve através da sua ação. Depois de muito estudar e muito refletir a respeito de nossas práticas de justiça com infrator es menores de idade "sob as lentes restaurativas", e de realizar testes eventuais como o relatadoacima, em 2005iniciamosuma aplicaçãomais sistemática e estruturada. Comsubsídios do GovernoFederal (Secretaria da Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, e Secretaria Nacional de Direitos Humanos) e de agências das Nações Unidas (PNUD e UNESCO, esta com recursos do Programa Criança Esperança, da Rede Globo), surgiu o Projeto Justiça para o Século 21, com. o objetivo de difundir a aplicação dos princípios e práticas da Justiça Restaurativa na pacificação de conflitos e violências envolvendo crianças, adolescentes e seu entorno familiar ecomunitário, ""Ainda que a princípio centrada no Juizadoda Infância e da Juventude e nos atos infracionais e correspondentes proces- sos judiciais e medidas socioeducativas (modalidade de san- ção penal prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, aplicável a menores com idades entre 12 e 17anos), esse foco -ampliado-do4^i-ojeto-levQU-a-experiêncía_de_aplicacão das práticas restaurativas em outros espaços de atendimento a crianças ejovens, como escolas, abrigos e organizações não governamentais. Mensurar resultados é difícil quando se trata de avaliar um processo que envolve mudanças culturais e, sobretudo, quando se atua de forma difusa e capilarizada. Mas importa dizer que a qualidade das ideias que você encontrará resu- midas neste livro foisuficientepara gerar um interesse e um 7
  • 6. HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAUKATIVA despertar tão abrangentes que os grupos de leitura iniciais deram lugar a um processo que denominamos "encharca- mento de capacitações", dirigido apessoas e instituições que atuam comfoco em crianças e adolescentesna capital gaúcha. Entre 2005 e 2011,11.793pessoas participaram de atividades de sensibilização e formação promovidas díretamente pelo Justiça 21.Destas, 1.059 realizaram o Curso de Formação de Lideranças em Justiça Restaurativapromovido pela Escola Superior da Magistratura e 908participaram do nosso Curso de Formação de Coordenadores de Círculos Restaurativos. Um monitoramento feito pela Faculdade de Serviço Social da PUCRS acompanhou 380 casos atendidos no Juizado entre 2005 e 2007. Entrevistando os participantes, constatou-se que 95% das vítimas e 90% dos ofensores saíram satisfeitos de sua experiência de contato com a justiça após participarem deprocedimentos restaurai:vos. (Os índices internacionais de satisfação no contato com ajustiça criminal giram em torno de meros12 a 15%positivos]. Cerca de 90% dos acordos foram julgados cuinpridos—A-reiteraçãe-de-atos4nfracionais-entre os ofensoresparticipantes caiu em 23% comparativamente a outros quenão participaramdenenhum encontro restaurativo (a íntegra do relatório da pesquisa está disponível em www. justica21.org.br]. ^_s_s_ejes.temunho-tem-por-objetivo-dizer-^seja-bem--v-i-ndo— à Justiça Restaurativa, sinta-se em-casa;-você também pode". Porque fazpouco que chegamospor aqui com as mãos vazias, a mente assoladapor dúvidas,e o coração amargurado diante de tantos problemaspor resolvercomferramentas que sabida- mente não funcionam, além de_apresentar_em-ter.ríveis efeitos colaterais, como surrar crianças e aprisionar adolescentes. Para nosso alívio, porém, apareceria essa luzno fim dotúnel do crime.E,apropósito do alcancedas luzesrestaurativas, uma PREFÁCIO ressalva.Não seiludam os céticos com afalsa ideiade que Justiça Restaurativa só funcione restrita àjustiça juvenil. De fato, sua expansão no inundo vem tendo como carro-chefe essa área da jurisdição criminal -a dos crimes praticados por menores de idade. Aliás, aquijá podemos comemorar arecente introdução dos conceitos essenciais da Justiça Restaurativa nesse campo através da Lei12.594, de 18dejaneiro de 2012,que regulamentou o Sinase -Sistema NacionaldeAtendimento Socioeducativo -, abrindo as portas para construirmos uma justiça juvenil res- tauratíva para atender nossos adolescentes infratores. Mas essa vanguarda da justiçajuvenil em acolher a Justiça Restaurativa se devemais a fatores conjunturais do que à natureza em si do objeto dessa áreajmisdicional. Entre esses fatores, alinham-se a maior flexibilidade das normas processuais e dopróprio sancionamento, a histórica (e contraproducente, embora muitomais benéfica do que a mera punição] ênfase terapêutica-no tratamento do delinquente, a afeição a práticas interdisciplínares, amaior abertura e pesso- "alidade no trato comas partes envolvidasno processo, amaior benevolência com oinfrator menor de idade, a integração de familiares, comunidades e diversos serviços de atendimento, com efeito, que fazem, dajustiçajuvenil um canteiro fértil para as sementes restaurativas. Aliás, já bastariam essas carac- -ter-ísticas-para-en-sinai;-e-muito,-à-justiça-penal-de_adur£os:- precisamos processos e sanções mais flexíveis, intervenções iníerprofissionais, menos automatismo punitivo, maior dis- ponibilidade para a escuta das necessidades dos envolvidos, mais humanidade no trato com os infratores, e habilidade e agilidade na articulação de redes. Mas as ideias da Justiça Restaurativa não se esgotariam nesse conjuntojá conhecido derecomendações. Elaslevam ao âmago das próprias concepções do sistema, de modo a fazer 9
  • 7. HOWARD ZERR - JUSTIÇA RESTAURATIVA com que sua aplicaçãoexperimentale aparentemente inofen- siva no atendimentoa adolescentes infratores seja apenas um mote para iluminar e colocar em xeque a improdutividade dos mais arraigados pressupostos implícitosdo sistema penal tradicional, que podem ser resumidos nos conceitos estrutu- rantes de culpa, perseguição, imposição, castigo e coerção. O simples fato de operar ajustiça penal tentando substituir esses conceitos, respectivamente, pelos de responsabilidade, encontro, diálogo, reparação dodano e coesão social, mesmo que complexo e trabalhoso, e talvez por ora somente possí- vel de forma-tópica e ocasional,já é por si só atitude capaz de subverter e colapsar positivamenteum sistema obsoleto e oneroso cuja reprodução, definitivamente, não se justifica. Trata-se aqui de uma subversãonão apenas penetrante e capaz de desafiar osnúcleos conceituais do sistema, mas tam- bém transversal, ao ponto denos fazer ver que o sistema insti- tucional dejustiça não é senão reflexo de um padrão cultural, historicamente consensual, pautadopela crença na legitimida- de do emprego da violênda-Gomo-inst-r-umenta compensatório das injustiças e na eficácia pedagógica das estratégias puniti- vas. E essa crença, muito embora-cristalizada-e perfeitamente visível nos alicerces do sistema jurídico-penal, somente está ali porquereside insidiosamenteincrustada nas nossas mais sutis e cotidianas relações depoder - desde onde continua se PREFÁCIO Tamanha é a abrangência das ideias sintetizadas neste pequeno livroque, apesar denão ensinar exatamente o "como" [tal qualpossivelmente ninguémofaça), mostra muitoclaramen- te "emque" e"por que" uma abordagem restaurativa dos confli- tos e do crimepodefazer toda a diferençanessa encruzilhada da história em que a violênciae a insegurança transbordam e nos desafiam, transfiguradas em esfinges pós-modernas. Através de um texto leve, preciso e dinâmico, o decano da Justiça Restaurativa nos conduz a um encontro denso, embora descontraído, com as bases conceituais dessa inovadora pro- posta, ao mesmo tempo em que fornece elementos preciosos para fazermos nossos próprios juízos ereflexões sobretudo o que até aqui vimos falando efazendo em nome dajustiça. Aos que estiverem dispostos a um encontro despojado e honesto com suas crenças, com seus valores, com suas práticas de poder e, portanto, consigo mesmos, o processo que está por se iniciar com aleitura deste livro conduzirá a um irreversível e.emp.olgante resultado. .^^_Shalom para você e para todos os que possam vir a ajudar a libertar das prisões do crime e dos conflitos e, indissociáveis delas, das prisões do medo, da ignorância e do sofrimento. Leoherto Brancher ~ Juiz dê~DTreÍtò reproduzindo de forma sub-reptícia eJndiscriminada.- - - É nessa perspectiva que se pode compreender também porque os princípiosemétodosdaJustiçaRestaurativa, apesar de emergentes e radicados na justiça penal, possam ter apli- cação' eficiente ou, no mínimo, produjzi^jflexões_relevantes quando estendidos à resolução de conflitos sob diferentes molduras procedimentais ou em contextos ambientais diver- sos, enão somente no âmbito dajustiça formal. 10 11 Tjpfr/pip* Z*BLnTÍ9$
  • 8. VISÃO GERAL v Enquanto sociedade, como devemos reagir às ofensas? Quando acontece um crime ou quando é cometida uma injustiça, o que precisa ser feito? O que pede nosso senso de justiça? Para os norte-americanos a premência dessas questões intensificou-se comos eventos traumáticos de 11de setembro de 2001. Mas a discussão é antiga e, na verdade, tem abran- gência internacional. - - — .__.Quer_estejamós preocupados com. crimes ou outras ofen- -sasrnossa-reflexão-sobre tais questões foiprofundamente mol- dada pelo sistemajurídico ocidental-não apenas noOcidente, mas também em grande parte do outro lado do mundo. O sistema jurídico ocidental ou, mais especificamente, a justiça criminal, tem. importantes qualidades. No entanto, vem crescendo o rejionhecmientO-de^uasJimítacões-e-car-ên^- cias.Não raro, vítimas, ofensores e membros da comunidade sentem que o sistema deixa de atender adequadamente às suas necessidades. Osprofissionaisda área dajustiça -juizes, advogados, promotores, oficiais de condicional, funcionários do sistema prisional- amiúde expressam suafrustraçãocom o sistema. Muitos sentem que o processo judicial aprofunda as chagas e os conflitos sociais ao invés de contribuir para seu saneamento epacificação. 13 m
  • 9. HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA A Justiça Restaurativa procura tratar de algumas dessas necessidades e limitações. Desde os anos 70 vem surgindo vários programas e abordagensem centenas de comunidades de vários países do mundo. Com frequência são oferecidos como alternativas paralelas ou no âmbito mesmo do sistema jurídico vigente.No entanto, a partir de 1989, a Nova Zelândia fez daJustiçaRestaurativa o centrode todo o seu sistema penal para a infância e ajuventude. Atualmente, em muitaslocalidades, aJustiçaRestaurativa é consideradaum sinal de esperança eum rumo para o futuro. Resta saber se conseguiremosrealizar suas promessas. AJustiça Restaurativacomeçoucomo um esforçopara lidar com assaltos e outros1 crimes patrimoniais que em geral são vistos (em muitoscasosincorretamente) como ofensas menores. Hoje, contudo, as abordagens restaurativas estão disponíveis em algumas comunidadespara aplicação às modalidades mais violentas de crime: morte causada por embriaguez ao volante, agressão, estupro e mesmo homicídio. Á partir da experiência das Comissões de Verdade-e-ReGoneiliação-na -África do Sul, também vêmsendorealizadosesforçospara aplicar a estrutura da Justiça Restaurativa a situações de violência generalizada. Além disso, tais abordagens e práticas estão ultrapassan- do o sistema dejustiça criminale chegando a escolas, locais de trabalho einstituições religiosas.Alguns defendem a ideia de que abordagens restaurativas como-os-"círculos" (prática específica que nasceu nas comunidades indígenas canaden- ses) podemser usadas para trabalhar, resolver e transformar os conflitos em geral. Outros vêem as "conferências de gru- pos familiares" (modalidadecom ra_í.zes_jLa_No_ya^ Zelândia e Austrália, e também em encontros facilitados entre vítima e ofensor) comoum caminhopara construir e sanar comunida- des. KayPranis, destacada defensorada Justiça Restaurativa, 14 VISÃO GERAL afirma que os círculos são uma modalidade de democracia participativa que vaium passo além da regra da maioria sim- ples (veja as p. 61-62 para uma explicaçãomais detalhada dos círculos no contexto da Justiça Restaurativa}. Nas sociedades onde o sistema jurídico ocidental substi- tuiu ou suprimiu processos tradicionais dejustiça eresolução de conflitos, aJustiça Restaurativaoferece unia estrutura apta a reexaminar e, por vezes, reativar tais tradições. Embora o termo "Justiça Restaurativa" abarque uma ampla gama de programas e práticas, no seu cerne ela é um conjunto de princípios, uma filosofia, uma série alternativa de perguntas paradigmáticas. Em última análise, a Justiça Restaurativa oferece uma estrutura alternativa para pensar as ofensas. Examinarei esse arcabouço nas páginas que se seguem, explorando o modo como pode ser utilizado. -POR QUE ESTE LIVRO? - - . - -Neste.livro não-tentarei defender.a Justiça Restaurativa.- -Nern-explorarei as muitas impiicações dessa abordagem. Gostaria que ele fosse uma breve descrição ou resumo da Justiça Restaurativa. Ainda que apresente abaixo alguns dos programas epráticas, meufoco recairá principalmente sobre seus princípios ou filosofia. Este livro é para as pessoas que ouviram a expressão "Justiça Restaurativa" e estão curiosas sobre suas implica- ções. Também se destina àqueles que estão trabalhando nesse campo, mas têm dúvidas, ou estão perdendo a clareza quanto à sua missão. Espero poder oferecer esclarecimento sobre os legítimos rumos do comboio da Justiça Restaurativa e, em alguns casos, levar o trem de volta aos trilhos. Trata-se deuni empenho importantenos dias dehoje. Como toda tentativa demudança,aJustiçaRestaurativa muitasvezesse 15 m m i? i
  • 10. HowAítD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA desencaminhou no curso de seu desenvolvimentoe dissemina- ção. Na presença de cada vez,mais programas que se intitulam "Justiça Restaurativa", não raro osignificado desse termo se tor- na rarefeito ou confuso. Devido à inevitável pressão do trabalho no mundoreal, amiúdeaJustiçaRestaurativa tem sido sutilmente desviada ou cooptada, afastando-sedos princípios de origem. Essa questão vempreocupando de modo especial os gru- pos de defesa dos interesses das vítimas.AJustiça Restaurativa se diz orientada para as vítimas - mas será de fato? Essas associações devítimas temem que os esforços para promover a Justiça Restaurativasejam comfrequência motivados prin- cipalmente pelo desejo de trabalhar demaneira mais positiva com os ofensores. Ass"im sendo, aJustiça Restaurativa poderá se tornar apenas uma forma de lidar com os ofensores, tal como o sistema criminalque procura aprimorar ou substituir. Outros se perguntam se elade fato atendeu demodo ade- quado às necessidades dos ofensores e se seus esforços-são efetivamente restaurativos. Será que osprogramas de Justiça Restaurativa oferecemrap"oio-STifiàente-paTa-que os ofensores cumpram suas obrigações e mudem seus padrões de com- portamento? Será que de fato tratam"os nTales que levaram os ofensores a se tornarem quem são? Tais programas não estarão se tornando somente uma outra forma de punir os _-ofeiisoresr^ob-outro-pr-etexto?-E.a.comunidade_como-um.todo?_ Estará suficientementemotivada para-envolver-se e assumir suas obrigações em relação às vítimas, aos ofensores e a seus membros em geral? Experiências anteriores para promover mudanças no cam- po da justiça nos adyertem-de.gue-desv.ios-e-deformações acontecem inevitavelmente, apesar denossas melhores inten- ções. Se os defensores da mudança não estiverem dispostos a reconhecer e atacar esses prováveis desvios, seus esforços 16 VISÃO GEHAL poderão acabar produzindo algo muito diferente do que pre- tendiam. De fato, as "emendas" podem acabar sendo muito piores que o "soneto" que planejavamreformar ou substituir. Uma das salvaguardas mais importantes contra tais des- vios é dar a devida atenção aos princípios fundamentais.Se estivermos bem conscientes deles, se planejarmosnossos pro- gramas com' esses princípios em mente, se nos deixarmos avaliar por esses mesmos princípios, é bem mais provável que nos mantenhamos na trilha correia, A questão é que o campo daJustiça Restaurativa tem cres- cido comtanta rapidez e emtantas direções que às vezes não é fácil caminhar para o futuro com integridade e criativida- de. Somente uma visão clara dos princípios e metas poderá oferecer a bússola de que precisamos para encontrar o norte num caminho inevitavelmente tortuoso e incerto. Este livro é uma contribuição que procura articular os conceitos da Justiça Restaurativa em termos bem diretos. No entanto, devo admitir-que-existem limitações à estrutura que "^s]30çarei^ãquirSõu"cõhsidèfadõ~pbr muitos como uni dos pri- .meiros sistematizadoresedivulgadoresdaJustiça Restaurativa. Apesar determe esforçadobastante para manter uma abertura crítica, possuoum viésfavorável aesseideal.Além disso, apesar de meu empenho em contrário, escrevo do ponto de.vista de -minha-própr-ia—lenteVque-se-formou-a-partirdaquilo~que~sour urnhomembranco, de classemédia, descendente de europeus e cristão menonita.Talbiografia e ainda outros interesses neces- sariamente modelam minha voz e visão. Mesmo havendo certo consenso dentro do campo da Justiça Restaurativaquanto às grandes linhas que demarcam seus princípios, nem tudo passa sem contestação. Estas pági- nas retraíam a minha compreensão da Justiça Restaurativa, que deve ser testada pelas vozes de outros. 17
  • 11. HOIVAKD ZEHR - JUSTIÇA RESTAURATIVA Por fim, escrevi este livro no contexto da América do Norte. A terminologia, as questões levantadas, e mesmo o modo como o conceito foiformulado refletem em certa medida as realidades do meu ambiente. Mas espero que ele seja útil também para profissionais que atuam em outros contextos, mesmo que adaptações ou traduções sejam necessárias. Tendo em vista esse pano de fundo e essas qualificações, passemos agora à questão: o que é Justiça Restaurativa? Muitas ideias equivocadas cercam o termo epenso que ê cada vez mais importante definir aquilo que a Justiça Restaurativa não é. A JUSTIÇA RESTÁURATJVA NÃO É... * A Justiça Restaurativa não tem como objeto principal o perdão ou a reconciliação. Algumas vítimas e defensores de vítimas reagem negativa- mente à Justiça Restaurativa porque imaginam que o obje- tivo do programa seja o de estimular, ou mesmo forçar, a vítima a perdo"ar ou se reconCÍlisr~cum~o ofensor. Comoveremos mais adiante, operdão oua reconciliação não são o objetivo principalou o foco da Justiça Restaurativa.É verdade que a Justiça Restaurativaofereceum contexto em quenrn ou ambospodem vir a acontecer.Defato, algum grau -de-perdãorou-mesmo-de-reeoneiliação,-realmente-oeor-re- com mais frequência do que no ambiente litigioso do pro- cesso penal.Contudo,esta é urna escolhaque ficatotalmente a cargo dos participantes.Não deve haver pressão alguma no sentido de perdoar ou de buscar reconciliação. A Justiça Restaurativa não é mediação. Tal como os programas de mediação, muitos progra- mas de Justiça Restaurativasão desenhados em torno da 18 VISÃO GERAL possibilidade de um encontrofacilitado entre vítimas, ofen- sores e, possivelmente,membrosda comunidade. No entan- to, nem sempre se escolhe realizar o encontro, nem seria apropriado. Além disso, as abordagens restaurativas são importantes quando o ofensornão foipego ou quando uma das partes não se dispõe ou não pode participar. Portanto, a abordagem restaurativa não se limita a um encontro. Mas, mesmo quando o encontro acontece, o termo "media- ção" não constituiuma descrição adequada daquilo que vai acontecer. Num conflito mediadose presume que as partes atuem num mesmo nível ético, muitas vezes com responsa- bilidades que deverãoser partilhadas.Embora esseconceito de culpa partilhadaseja válido emcertos crimes,na maioria deles isso não ocorre. As vítimas de estupro ou mesmo de roubo não querem ser vistas como "partes de um conflito". Na realidade,podem estar em meio a uma luta interna contra a tendência de culparem a si mesmas. De-qualquer maneira, para participar de uni encontro de -Justiça-Restaurativa, na maioria dos casos o ofensor deve admitir algum grau de responsabilidade pela ofensa, e um elemento importante de tais programas é que se reconheça e se dê nome a tal ofensa. A linguagem neutra da mediação pode induzir ao erro, e chega a ser um insulto em certas -situações. Ainda que o termo "mediação" tenha sido adotado desde o início dentro do campo da Justiça Restaurativa, ele vem sendo cada vezmais substituído por termos como"encontro" ou "diálogo" pelos motivos expostos acima. A Justiça Restaurativa não tem por objetivo principal reduzir a reincidência ou as ofensas ern série. Num esforço para ganharaceitação,os programas de Justiça 19 !p h
  • 12. HOWARD ZEHR ~ JUSTIÇA RESTAURATIVA Resíaurativa muitas vezes são promovidos ou avaliados como maneiras de diminuir a reincidência ou os crimes em série. Há bons motivospara acreditar que tais programas redu- zem de fato a criminalidade. As pesquisas realizadas até o momento - com foco principalmente em ofenso- résjuvenis-são bastante animadoras em relação a esse quesito. No entanto, a redução da reincidência não é o motivo pelo qual se devam promover os programas de Justiça Restaurativa. A diminuição da criminalidade é um subproduto da Justiça Restaurativa, que deve ser administrada, em primeiro lugar, pelo fato de ser a coisa certa a fazer. As necessidades das vítimas precisam ser atendidas, os ofensores devem ser estimuladosa assumir responsabilidade por seus atos, e aqueles que foram afetados por seus atos devem estar envolvidos no processo - independente do fato de os ofen- sores caírem em si e abandonarem seu comportamento transgressor- ———- A Justiça Restaurativa não é um programa, ou projeto específico. Muitos programas adotam a Justiça Restaurativa em todo ou em parte. Contudo, não existe, um modelo puro que possa ser visto como ideal ou-passível-de implementação imediata em qualquer comunidade. Estamos ainda nurna fase de aprendizadomuito intenso nesse campo. As práti- cas mais interessantes que têm surgido nos últimos anos não passavam pela cabeça daqueles_guedjram início aos primeiros programas, e muitas ideias inovadoras surgirão em virtude do diálogo e experimentação futuros. 20 VISÃO GERAL .A Justiça - , Restaurativa é Tinia,Bússola e naorum..mapa.'' Vi. Do mesmo modo, todos os mode- los estão, em alguma medida, atrelados à cultura. Portanto a Justiça Restaurativa deve ser construída de baixo para cima, pelas comunidades, através do diálogo sobre suas necessidades e recursos, aplicando os princípios às situações que lhes são próprias. A Justiça Restaurativanão é um mapa, mas seus princípios podem ser vistos como uma bússola que aponta na direção desejada. No mínimo, a Justiça Restaurativa é um convite ao diálogo e à experimentação. A Justiça Restaurativa não foi concebida para ser apli- cada a ofensas" comparativamente menores ou ofensores - primários; _..._.- ... _ . "Talvez sejãlnTfsTácircõUsegúir d apoio da comunidade a programas que lidam com os chamados "casos de menor gravidade". No entanto, a experiência tem demonstrado que a Justiça Restaurativa pode produzir maior impacto nos casos de crimes mais graves. Alérn disso, se seus prin- _cíp_i_oJs_f_or_em_Ie_v_ados_a_sério,_a_necessidade-daabor-dagens- restaurativas fica muito clara no tocante aos casos mais graves. As perguntas balizadoras da Justiça Restaurativa (veja p. 50) podem ajudar a criar respostas judiciais a situa- ções muito difíceis. Á violênciadoméstica éprovavelmente a área de aplicaçãomais problemática e, nesse caso, acon- selho grande cautela. 21
  • 13. HOWARDZEHR -JUSTIÇA RESTAURATIVA * A Justiça Restaurativa não é algo novo nem se originou nos Estados Unidos. O moderno campo da Justiça Restaurativa de fato desen- volveu-se nos anos 70 a partir de experiências em comu- nidades norte-americanas com uma parte considerável de população menonita. Buscandoaplicar sua fé e visão de paz ao campo implacável da justiça criminal, os menonitas e outros profissionais de Ontário, Canadá, e depois deIndiana, Estados Unidos, experimentaramencontros entre ofensor e vítima dandoorigem a programas, nessas comunidades, que depois serviram de modelo "para projetos em outras partes do mundo. A teoria da Justiça Restaurativa desenvolveu-se inicialmente desses empenhes. Contudo, o movimento deve muito a esforços anteriores e a várias tradições culturais ereligiosas. Beneficiou-se enorme- mente do legado dos povos nativos da América do Norte e Nova Zelândia.Portanto, suas raízes e precedentes são bem mais amplosque a iniciativa menonitados anos70. Na verdade, essas raízes sãotãG^antiga^quanto^Mstóriada humanidade." • A Justiça Restaurativa não é Uma~páriacela nem neces- sariamente um substituto para o processo penal. A Justiça Restaurativa não é, de modo algum, resposta —para-todas-as-situações,-Neni-está-claro-que-deva-substi-- tuir o processo penal, mesmoTiunrmundo ideal. Muitos entendem que, mesmo que a Justiça Restaurativa pudesse ganhar ampla implementação,algum tipo de sistema jurí- dico ocidental(idealmente orientado por princípios restau- rativos) ainda seria necessário .como-salvaguarda e defesa dos direitos humanos fundamentais. De fato, esta é a fun- ção das varas de infância ejuventude no sistema de Justiça Restaurativa juvenil da Nova Zelândia. 22 VISÃO GERAL A maioria dos defensores da Justiça Restaurativa concor- da que o crime tem uma dimensão pública e uma priva- da. Creio que seria mais exato dizer que o crime tem uma dimensão social ao lado de uma mais local e pessoal. O sistema jurídico se preocupa com a dimensão pública, ou seja, os interesses e obrigações da sociedade representada pelo Estado. Mas esta ênfase relega ao segundo plano, ou chega a ignorar, os aspectos pessoais e interpessoais do crime. Ao colocar o foco sobre as dimensões privadas do crime, consequentemente valorizando seu papel, a Justiça Restaurativa procura oferecer um maior equilíbrio na maneira como vivenciamos a justiça. A Justiça Restaurativa não é necessariamente uma alter- nativa ao aprisionamento. A sociedade ocidental, e especialmente os EstadosUnidos, faz uso abusivo-dos presídios. Se aJustiça Restaurativa fosse levada a sério, nosso recurso ao aprisionamento seria -reduzido..e_a_natureza_dos .estabelecimentos prisionais mudaria significativamente. No entanto, as abordagens restaurativas podem também ser usadas em conjuntocom as sentenças de detenção, ou em paralelo a estas. Elas não são necessariamente uma alternativa à privação de liberdade. í fl A Justiça Restaurativa não se contrapõe necessariamente àjustiça retributiva. Apesar de minhas afirmações em obras anteriores, não vejo mais a Justiça Restaurativa como oposta à justiça retributiva. Esta questão será tratada em maior detalhe nas p. 71-72. i 23
  • 14. HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA A JUSTIÇA RESTAURATIVA E FOCADA EM NECESSIDADES E PAPÉIS O movimento de Justiça Restaurativa começou como uni esforço de repensar as necessidades que o crime gera e os papéis inerentes ao ato lesivo. Os defensores da Justiça Restaurativa examinaramas necessidades que não estavam sendo atendidas pelo processo legal corrente. Observaram também que é por demais restritiva a visão prevalente de quais são os legítimosparticipantesou detentores de interesse no processojudicial. A Justiça Restaurativa amplia-o círculo dos interessados no processo (aqueles que foram afetados ou têm uma posi- ção em relação ao evento ou ao caso) para além do Estado e do ofensor, incluindo também as vítimas e os membros da comunidade.' Como esta visão denecessidadesepapéis marcou a origem do movimento, e pelo fato de a estrutura de necessidades/ papéis ser tão inerente ao conceito, é importante começar nossa revisão desse-ponto^À-medida-que-O-campo da Justiça Restaurativa se desenvolveu, a análise dos detentores de inte- resse tornou-se maiscomplexae abrangente. A discussão que segue se limita a algumas das preocupações centrais que já se faziam presentes desde oinício do movimento e que conti- nuam a desempenhar um papelcentral. Ela também selimita VISÃO GERAL de justiça criminal. Não raro as vítimas se sentem ignora- das, negligenciadas ou até agredidas pelo processo penal. Isto acontece em parte devido à definiçãojurídica do crime, que não inclui a vítima.Ocrime é definido como atocometido contra o Estado, e por isso oEstado toma olugar da vítima no processo. No entanto, em geral as vítimas têm uma série de necessidades a serem atendidas pelo processo judicial. Devido à definiçãojurídica de crime e à natureza do pro- cesso penal, quatro tipos de necessidadeparecem estar sendo especialmente negligenciadas: 1. Informação. A vítima precisa de respostas às suas dúvidas sobre o ato lesivo - por que aconteceu e o que aconteceu depois? Precisa de informações reais, não especulações ou informações oficiais vindas de um julgamento ou dos autos do processo. Conseguir informações reais em geral requer que tenhamos acesso direto ou indireto ao ofensor que detém a.informação. _ 2. Falar a verdade. Uni elemento importante no processo de recuperação ou superação da vivência do crime é a oportu- nidade de narrar o acontecido. De fato, na maioria dos casos é importante que a vítima reconte sua história várias vezes. Há bons motivos terapêuticos para tanto. Parte do trauma .-* * ii às necessidades "judiciais"- necessidades dasvítimas, ofen- sores e membros da comunidade que podem ser atendidas, ao menos em parte, pelo sistemajudicial. Vítimas A Justiça Restaurativa se preocupa em especial, com as necessidades das vítimas de atosilícitos, aquelas necessidades que não estão sendo adequadamenteatendidas pelo sistema acarretado pelo crime advém da forma como ele perturba nossa visão sobre nós mesmos e o mundo, nossa história de vida. Transcender essa vivência implica em "recontar" nossa vida, narrando a história em contextos significativos, muitas vezes em situações onde receberá reconhecimento público. Com frequência éimportantepara avítima contar a história àqueles que causaram o dano, fazendo-os entender o impacto de suas ações. 25
  • 15. HOWARD ZEHR -JUSTIÇA RESTAURATIVA 3. Empoderamento. Em geral as vítimas sentem que a ofensa sofrida privou-lhesdocontrole -controle sobre suaproprie- dade, seu corpo, suas emoções, seus sonhos. Envolver-se com o processojudicial esuas váriasfases pode ser uma for- ma significativa de devolverum senso de poder às vítimas. 4. Restituição patrimonial ou vindicação.Arestituição patri- monial por parte do ofensor geralmente constitui elemento importante para as vítimas, por vezes, em virtudedas perdas reais sofridas mas, igualmente,devido ao reconhecimento simbólico que a restituição dos bens representa. Quando um ofensor faz um esforço para corrigir o dano cometido, mesmo que parcialmente, isto é uma forma de dizer "estou assumindo a responsabilidade, você não é culpado/a pelo que eu fiz". De fato, a restituição de bens é um sintoma ou sinal que representa umanecessidade mais básica - a de vindicação. Embora o conceito de vindicação esteja fora do escopo deste livro, estou convencido de que se trata de uma necessidade-básica-q-ue-todos-temos ao sermos tratados injustamente. A restituição de bens é uma dentre muitas outras maneiras de atender a essa necessidade de igualar o placar.Um pedido de desculpas também pode contribuir para satisfazer essa necessidade de ter reconhecido o mal que nos foi infligido. A teoriae apráticadaJustiça Restaurativa surgirame foram fortemente moldadaspelo esforço delevar a sério as necessi- dades das vítimas. Ofensor es O segundo maior foco depreocupação que motivaaJustiça Restaurativa é a responsabilidade do ofensor. 26 VISÃO GERAL O sistema dejustiça penal se preocupa com responsabilizar os ofensores, mas isto significa garantir que recebam a puni- ção que merecem.Oprocesso dificilmente estimulao ofensor a compreender as consequências de seus atos ou desenvolver empatia em.relaçãoà vítima.Pelocontrário, ojogo adversaríal exige que o ofensor defenda os próprios interesses. O ofensoré desestimulado areconhecersua responsabilidade e tem poucas oportunidades de agir de modo responsável concretamente. As estratégias neutralizadoras - estereótipos e raciona- lizações que os ofensores adotam para se distanciarem das pessoas que agrediram-nunca são contestadas. Assim, infe- lizmente, o senso de alienação social do ofensor só aumenta ao passar pelo processo penal e pela experiência prisional. Por vários motivos esse processo tende a dêsestimular a res- ponsabilidade e a empatiapor parte do ofensor. A Justiça Restaurativa tem promovido a conscientização sobre os limites e subprodutos negativos da punição. Mais do. que.isto, vem sustentando que a punição não constitui -real-responsabilização. A-verdadeira responsabilidade con- siste em olhar de frente para os atos que praticamos, significa estimular o ofensor a compreenderoimpacto de seu compor- tamento, os danos que causou - e instá-lo a adotar medidas para corrigir tudo o que for possível. Sustento que este tipo de responsabilidade é melhor para as vítimas, para a sociedade e para os ofensores. Além da sua responsabilidade para com as vítimas e a comunidade, o ofensor tem outras necessidades. Dentro dos parâmetros daJustiça Restaurativa,se queremos queassuma suas responsabilidades, mude de comportamento, torne-se um membro que contribuapara a comunidade, devemos também atender às suas necessidades. O assunto ultrapassa o escopo deste livro, mas as seguintes sugestões esboçam onecessário. 27
  • 16. HQWARD ZEHR - JUSTIÇA RESTAURATIVA Os ofensoresprecisam que ajustiçalhes ofereça: 1. Responsabilização que a. Cuide dos danos resultantes, b. Estimule a empatia e a responsabilidade e c. Transforme a vergonha.2 2. Estímulo para a experiência de transformação pessoal, inclusive: a. Cura dos males que contribuíram para o comportamento lesivo, b. Oportunidades de tratamento para dependências quími- cas e/ou outros problemas e c. Aprimoramento de competêncías pessoais. 3. Estimulo e apoio para reintegração à comunidade. 4. Para alguns, detenção, ao menos temporária. Comunidade Os membros da comunidade têm necessidades advindas do crime, e também-papéis-a-desempenhar-.-Defensores da Justiça Restaurativa como o juiz Barry Stuart e Kay Pranis argumentam que, quandoo Estado assumeolugardo cidadão, isso termina por enfraquecer nosso sentidocomunitário.3 As comunidades sofrem o impacto do crime e, em muitos casos, deveriam ser consideradaspartes interessadas pois são víti- mas secundárias.Os membros da comunidade-também têm importantes papéis a desempenhar etalvez, ainda, responsa- bilidades em relaçãoàs vítimas, aos ofensorese a simesmos. Quando a comunidade se envolve com oprocesso, poderá iniciar um fórum para discutir essas questões,..atividade que vai, ao mesmo tempo, fortalecer aprópria comunidade. Este assunto é igualmente muitovasto. Ositens a seguir sugerem algumas áreas que merecematenção. 28 VISÃO GERAL II l n As comunidadesprecisamque ajustiça ofereça: 1. Atenção às suas preocupações enquanto vítimas. 2. Oportunidades para construir um senso comunitário e de responsabilidade mútua. 3. Estímulo para assumir suas obrigações em favor do bem- -estar de seus membros, inclusive vítimas e ofensores, e fomento das condições que promovam convívio saudável. Muito mais poderiaserescrito- edefato foi- sobrequem são as partes envolvidas em uni crime e suas necessidades e papéis. Contudo, as questões básicas esboçadas acima - quanto às suas necessidades e aos papéisdesempenhados por vítimas, ofensores e membros da comunidade - continuam a oferecer o foco central, tanto para a teoria quanto para a prática da Justiça Kestaurativa. Em resumo, os-serviços do sistema dejustiça criminal ou penal estão centrados nos ofensores e na aplicação do casti- -g.o_±^e_gar_anteni__que_eles.r_eceb_am_o que merecem. A Justiça Restaurativa está mais centrada nas necessidades da vítima, das comunidadese dosofensores. 29
  • 17. PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS A Justiça Restaurativa parte deuma concepçãomuito anti- Zga de delito, baseada no senso comum. Mesmo queela seja expressa de modo distinto em culturas diferentes, esta abordagem provavelmente é comum a todas as sociedades tradicionais. Para a maioria de nós, com raízes europeias, constitui o modo como muitos de nossos ancestrais (mesmo pais) compreendiam o comportamento socialmentenocivo: • O crime-é-uma-violação- de pessoas e relacionamentos interpessoais. •—As-violações acarretam obrigações - -- • A principal obrigação é corrigir o mal praticado. . Subjacente a esta visão do comportamento socialmen- te nocivo, está um pressuposto sobre a vida social: estamos todos interligados. Nas escrituras judaicas isto se expressa no conceito de shalom: viver a vida imerso num sentido de "retas relações" com os outros, com o Criador e com omeio ambiente. Muitas culturas possuem uma palavra específica para representar essa ideia da centralídade dosrelacionamen- tos. Para osmaoris isto se expressa pelotermo whakapapa; para os navajos, hozho; para muitos africanos apalavra ubuntu, do idioma bantu. Embora o significado específico de cada uma dessas palavrasvarie, elas comunicamuma mensagemsimilar: 31
  • 18. HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA todas as coisas estão ligadas umas às outras formando uma teia de relacionamentos. Dentro dessa cosmovisão, o crime representa uma chaga na comunidade, um rompimento da teia de relacionamentos. Significa que vínculos foram desfeitos. E tais situações são tanto a causa como o efeito do crime. Muitas tradições ofere- cem ditos populares no sentido de que o mal de um é omal de todos. Um mal como o crime provoca ondas de repercussão e acaba por perturbar a teia como um todo. Além do mais, o comportamento socialmente nocivo é, via de regra, sintoma de que algo está fora de equilíbrio-nessa teia. Relações implicam em obrigaçõese responsabilidades mútu- as. Assim, não é surpresa que essa visão do comportamento socialmente nocivoenfatize aimportância de corrigir, consertar, endireitar as coisas. Defato, tomar medidas para neutralizar o mal cometidoé uma obrigação.Conquantoa ênfaseinicial esteja nas obrigações do ofensor, o foco na interconexão social abre a possibilidade de que outros - especialmente a comunidade ampliada-possam-também-assumir-obrigações. - ----- - Num nível ainda mais fundamental, esta visão do com- portamento socialmente nocivoimplica em uma preocupação com todos os envolvidos: as vítimas, sem dúvida alguma, mas também os ofensores e a comunidade. Corno fíca esta visão do crime se comparada àquela do sis- temajurídico? As diferenças entre as duas abordagens podem ser condensadas em três questões centrais que surgem na busca pela justiça. Numa passagem muito citada das escrituras judaico-cris- tãs, o profeta Miqueias pergunta: "O que o Senhor exige de ti?" E a resposta começa pelas palavras: "Nada mais do que praticar ajustiça". Mas o que é necessário para que haja jus- tiça? Como vimos acima, a resposta da sociedade ocidental 32 PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS foi no sentido de garantir que os ofensores recebam o que merecem. A Justiça Restaurativa responde de outra forma, focalizando em primeiro lugar as necessidades da vítima e consequentes obrigações do ofensor. Duas Visões Diferentes Justiça Criminal O ci ime é uma violação da lei e do Estado. As violações geram_culpa. A justiça exige que o Estado deteimine a culpa e imponha uma punição (sofrimento). Foco central: os ofensores devem rece"ber o que merecem. JustiçaRestaurativa O crime é uma violação depes- soas e dêrelacionamentos. As violaçõesgeram obiigações Ajustiçaenvolvevítimas, ofen- sores e membros dacomunida- de num esforço comum para corrigira.situação. • •Foco central:'as necessidades da vítima e a responsabilidade do ofensor de leparaL o dano cometido. j Três Perguntas Diferentes l-~ Justiça Criminal Justiça Reslaurativa ! • Quêleis foram infringidas? "j * Quemsofreu danos? -•-Quem fez-isso?-- —-——^—«-Quais são suas necessidades?—— • O que o ofensor meiece? " • De quem é a obrigação de (! suprir essas necessidades? No Anexo l (pp. 77-81} o leitor encontrará um enunciado mais extenso dos princípios da Justiça Restaurativa e suas implicações, baseado diretamente no conceito acima expos- to de comportamento socialmente nocivo. Mas, para nossos 33
  • 19. HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA propósitos imediatos, o conceito de inter-relacionamento é básico à compreensão do motivo pelo qual necessidades, papéis e obrigações são tão essenciais àJustiça Restaurativa. OS TRÊS PILARES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA Três pilares ou conceitos centrais merecem um exame mais detido: danos e necessidades, obrigações e engajamento. 1. A Justiça Restaurativa tem foco no dano cometido. A Justiça Restaurativavê o crime primordialmente como um danocausado a pessoas e a comunidades. Nosso sistema jurídico, com seu-foco em regras e leis e sua visão de que o Estado é avítima,muitasvezesperde devista essa realidade. Preocupado em dar aos ofensores o que eles merecem, o sis- temajurídicoconsidera as vítimas, na melhor das hipóteses, como preocupação secundária do processo penal. Mas na Justiça Restauraíiva, ao colocar o foco no dano, surge uma preocupação inerente comas necessidades da vítima e oseu papei no processo. Portanto, para_a.J_us_tica_Be_s_t_am:ati^a_o.^fa2er-justiça'lcome^. ca na preocupação com a vítima e suas necessidades. Ela procura, tanto quanto possível, reparar odano - concreta e simbolicamente.Essa abordagemcentrada na vítima requer que o processo judicial esteja preocupado em atender as necessidades da vítima, mesmo quando o ofensor não foi identificado ou detido. Embora a primeirapreocupação devaser com o dano sofrido pela vítima, a expressão "foco no dano" significa que deve- mos também nos preocupar com o dano vivenciado pelo ofensor e pela comunidade. E isto deve nos levar a contem- plar as causas que deram origem ao crime. O objetivo da Justiça Restaurativa éoferecer uma experiência reparadora para todos os envolvidos. 34 PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS 2. Males ou danos resultam em obrigações. Por isso, a Justiça Restaurativa enfatiza a imputação e a res- ponsabilização do ofensor. No âmbito lega], responsabilizar significa assegurar-se de —que-o-ofensor-seja punido. No entanto, se o crime for visto essencialmente como um dano, a responsabilização signi- fica que o ofensor deve ser estimulado a compreender o dano que causou. Os ofensores devem começar a entendei- as consequências deseucomportamento.Além disso, devem assumir aresponsabilidade de corrigir a situação na medida do possível, tanto concreta como simbolicamente. 3. AJustiçaRestaurativapromoveengajamento ou participação. O princípio do engajamentosugere que as partes afetadas pelo crime-vítimas, ofensores emembros dacomunidade - desempenhem papéis significativos no processo judicial. Tais "detentores de interesses" precisam receber informa- ções uns sobre os outros e envolver-sena decisão do que é necessário para que sefaça justiça em cada caso específico. —i 35
  • 20. HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAUBATIVA Em alguns casos, isto pode significar diálogo direto entre as partes, como ocorre nos encontros entre vítimae ofensor. Eles partilhamseus relatos e chegam a um consenso sobre o que pode ser feito. Ern outros casos, o processo envolve trocas indiretas, por intermédio de representantes, ouainda outras formas de envolvimento. Portanto, a Justiça Restaurativa se ergue sobre três pilares ou elementos simples: os danos e as consequentes necessidades (de vítimas em primeiro lugar, mas também da comunidade e dos ofen-sores); as obrigações (do ofensor, mas também da comunidade) que advêm do dano (e que levaram ao dano);&oengajamento daqueles que detêmlegí- timo interesse no caso e na sua solução (vítimas, ofensores e membros da comunidade). Eis, emresumo, um esqueleto sumário daJustiça Restaura- tiva. Apesar de inadequado se considerado isoladamente, ele oferece uma estrutura a partir da qual se pode construir uma compreensão mais plena.-.. - — - — - A Justiça Restaurativa requer, no mínimo, que cuidemos dos danos sofridos pela vítima e de suas necessidades; que seja atribuída ao ofensor a responsabilidade de corrigir aqueles danos, e que vítimas, ofensores e a comunidade sejam envolvidos nesse processo. O "QUEM" E O "COMO" SÃO IMPORTANTES . As pessoas envolvidas no processo da justiça e o modo como se dá esse envolvimento são dois elementos importantes da Justiça Restaurativa. 36 PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS O Processo -"ocomo" O processo penal é um sistema adversarial conduzido por profissionais que representam o ofensor e o Estado, tendo como árbitro ojuiz. Oresultadoéimposto por instâncias-lei, juizes ejúris- alheias ao conflito básico. Asvítimas, osmem- bros da comunidade e mesmo os ofensores raramente parti- cipam do processo de modo substancial. Embora aJustiça Restaurativaem geralreconheçaa neces- sidade de autoridades externas ao caso e, algumasvezes,'deci- sões cogentes, ela dá preferência a processos colaborativos e inclusivos e, na medida do possível, desfechos que tenham sido alcançadospor consenso, aoinvés de decisões impostas. Normalmente a Justiça Restaurativaadmite a abordagem adversarial, reconhece o papel dos profissionais envolvidos e do Estado.: No entanto, destaca a importância da partici- pação daqueles que estão diretamente envolvidos, sofreram o impacto, ou têm outro interesse legítimo no eventolesivo ou delito. Hyj Um encontro presencial, face a face - precedido depreparação, ,Restaurativa í?fí^efei;^^çtGe"ssos;":^' planejamento e salvaguarda ade- •;í^tõ:-3r.í;5:.á;:-^-.V.- ' ' ^tCmclusiy0S££$H" •'i e~decisões quados - viade regra constitui o fórum ideal para a participação das pessoas diretamente interes- ;: sadas. Como veremos resumida- ; mente mais adiante, este encon- tro pode assumir diversasformas: encontro entre vítima e ofensor, conferência de grupos fami- liares, círculo restaurativo. O encontro permite que vítima e ofensor ganhem feições, façam perguntas um ao outro diretamente, e negociem um modo de corrigir a situação. Trata-se de uma oportunidade 37
  • 21. HOWARD ZEHR - JUSTIÇA BESTAURATIVA para que a vítima conte em primeiramão ao ofensor qual foi o impacto da ofensa, ou coloque suas perguntas. Ali oofensor ouvirá e começará a compreender os efeitos de seu compor- tamento. O encontro oferece a possibilidade de aceitação da responsabilidade e de um pedido de desculpas. Muitas vítimas e igualnúmero de ofensor es vêmdescobrindo que umdiálogo dessa natureza constitui vivênciaforte e positiva. Uni encontro - seja direto ou indireto - nem sempre é possível e, em alguns casos, pode ser indesejável. Em certas culturas uni diálogo presencial poderia ser até inadequado. Os encontros indiretos,-razoavelmente eficazes sem serem ofensivos, poderão tomar a fornia de uma carta, uni vídeo gravado, ou ser rea-lisados através de um representante da vítima. Em todas essas modalidades, devem ser envidados esforços para oferecer o máximo de troca de informações e envolvimento entre as partes interessadas. As partes interessadas -"oquem." Os principais mter-essadosí-é-clar.o/-Eão-a vítima e o ofensor - imediatos. Membros da comunidadepoderão ter sido afetados diretamente e, portanto, também têm interesse imediato-no caso. Além desse primeiro círculo, há outros que guardam graus variáveis de envolvimento na situação. Dentre esses, temos os membros da família da vítima, seus amigos, as "vítimas secundá- rias", a família e amigos do ofensor, e outrosmembros dacomunidade. Quem é a comunidade? Dentro do campo da Justiça Restaurativa tem havido alguma •38- "'"Entre.os . • • /interessados," estão: as vítimas,. . os ofefisorès e - :"aircomuiiídã~des~ de cuidado. . • PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS controvérsia sobre o significado do termo "comunidade" e como obter seu efetivo envolvimento nos processos. Aquestão é especialmente problemática em culturas onde as comuni- dades tradicionais não mais existem, caso de boa parte dos Estados Unidos e grandes centros urbanos ocidentais. Além disso, o termo "comunidade" pode expressar uni conceito abstrato demais para ter utilidade prática. Aliás, a própria comunidade pode ser vítima de abusos. A discussão dessas questões vai alémdo escopo deste livro, mas algumas dbser- vações podem ser úteis.2 Na prática, a Justiça Restaurativa tem tendido a se con- centrar nas "comunidades de cuidado" ou microcomunida- des. Há comunidades de lugar, nas quais interagem pessoas que vivem próximas umas das outras; mas há também redes de relacionamentos que não estão definidas geograficamen- te. Para aJustiça Restaurativa as questões fundamentais são: 1) quem da comunidade se importa com essas pessoas ou com a ofensa?, e 2) como envolvê-las no processo? -~—É-iinpor-taiite-dist-mguir-entr-e "comunidade" e "socieda- de". A Justiça Restaurativa tende a se concentrar nas rnicro- comunidades de lugar ou relacionamento, que são direta- mente afetadas pelas ofensas, mas em geral negligenciadas pela "justiça estatal". Contudo, há preocupações e obriga- ções maiores que dizem respeito à sociedade como uni todo, transcendendo aquele grupo que tem interesse direto em dado evento específico. Dentre estas estão: a preocupação da sociedade com a segurança, os direitos humanos e o bem- -estar de seus membros em geral. Muitos sustentam que o Estado desempenha o importante e legítimo papel de cuidar de tais questões de âmbito social. 39 6 3 .JU
  • 22. HOWARD ZEHR -JUSTIÇA RESTAURATÍVA A JUSTIÇA RESTAURATIVA VISA ENDIREITAR AS COISAS Até agoradiscutimosas necessidades e o papel dos inte- ressados. Mas devemos dizer algumas palavras sobre os obje- tivos dajustiça. Tratar do ato lesivo No cerneda JustiçaRestaurativa está a ideia de retificar as coisas ou,para usar uma frase mais corrente, "endireitar" as coisas. Como vimosacima, issoimplica numa responsabilida- depor partedo ofensor que-deve; tantoquanto possível,tomar medidas concretas para reparar o dano causado à vítima (e possivelmente à comunidade afetada). Em casos como os de assassinato, obviamente,o dano não pode ser reparado, no entanto, passos simbólicos(como o reconhecimento da res- ponsabilidade ou a indenização) poderão ajudar as vítimas, e são responsabilidade do ofensor. "Endireitar" sugerereparação, restauração ou recupera- ção, mas estas palavras-COin-pcefixo—i-e-frequentemente se mostram inadequadas. Quando um ato lesivo grave foicome- tido, não há como reparar o mal on voltar atrás no tempo. Como me disse Lynn Shiner,mãede duas crianças assassina- das: "Agente precisa construir, criar uma vida inteiramente nova. Algunspedaçosda vida anterior eu consegui manter e encaixar na minha vidanova". É possível que a vítimatenhamais probabilidade de res- tabelecimento se o ofensor se esforçar para endireitar as coisas -seja de fato ou simbolicamente. Muitas vítimas se mostram ambivalentes quantoaotermo"cura", em virtude de sua conotaçãode conclusãooutérmino.Este é um percurso que somentea vítimapodetrilhar-ninguém pode fazê-lo em seu lugar. Mas urn empenho para de alguma forma corrigir 40 PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS o mal poderá ser um auxílio ao longo do restabelecimento, mesmo que jamais se chegue à restauração plena do estado anterior. A obrigaçãode consertar as coisas é, em primeiro lugar, do ofensor,masacomunidadepodeserresponsável também - não só pelavítima, mas inclusive,possivelmente,pelo ofensor. Para que este tenha sucesso 110 cumprimento de suas obri- gações, poderá precisar do apoio e estímulo da comunidade. Alem disso, esta tem responsabilidade pelas situações que ocasionaram ou incentivaram o comportamento criminoso. Idealmente, osprocessos de Justiça Restaurativa podem ser- vir como catalisador ou fórum para examinar e definir tais necessidades, responsabilidades e expectativas. Tratar das causas Para endireitar as coisas épreciso cuidar dos danos, mas também é preciso abordar as causas do crime. A-inaior parte das vítimas deseja exatamenteisso.Elas procuram saber que —medidas-estão-sendo-tomadas para reduzir o perigo para si e para os outros. • -Nas conferências de grupos familiares da Nova Zelândia, onde a Justiça Restaurativa é a norma, espera-se que os participantes desenvolvam um plano consensual que todos apoiarão e que contenha elementos de reparação epreven- ção. Oplano precisa dar conta das necessidades das vítimas e das obrigações do ofensor em relação ao atendimento dessas necessidades. Mas o plano deve também contemplar medidas necessárias para modificar o comportamento do ofensor. O ofensor tem o ónus de tratar as cansas de seucomporta- mento, mas em geral não é capazde fazê-lo sem ajuda. Poderão existir obrigações mais amplas emjogo além das do ofensor.
  • 23. HOWARD ZSHR -JUSTIÇA RESTAURATIVA por exemplo: injustiças sociais e outrasiniquidadesquelevam ao crime ou promovem condições de insegurança. Não raro outros, além do ofensor, são também responsáveis: as famílias, a comunidade ampliada e a sociedade comoum todo. Paracorrigir a situaçãoé preciso... ...tratar dos danos ...tratar das causas. O ofensor como vítima Se e necessário tratar dos danos e das causas, é preciso examinar os danos que o próprio ofensor sofreu. Pesquisas mostram que muitos ofensores foram, elesmes- mos, vítimas de traumassignificativos. Muitos deles seperce- bem como vítimas..0_s majes s_afrjd_osjiu_pei:cebidos podem ter contribuído de modo importantepara dar origem ao crime. De fato, o psiquiatra Dr.James Gilligan, professorde Harvard e pesquisador do sistema prisional,sustenta que toda vio- lência é um esforço para conseguir justiça ou desfazer uma injustiça.3 Em outras palavras, muitos crimes podemsurgir como resposta a uma sensação de vitirnização e esforçopara reverter essasituação. A percepção de si como vítima não exime da responsa- bilidade por comportamento socialmentenocivo. Contudo, se o Dr. Gilligan está correto em suas conclusões, tampou- co podemos esperar que tal comportamento cesse sem que tenha sido tratado o sentido de vitímízação. De fato, via de regra a punição reforça o sentido de vitimizaçãojá existente. PRINCÍPIOS EESTAURATIVOS Ocasionalmente os ofensores ficam satisfeitos quando sua percepção de serem vítimas é reconhecida. Outras vezessua percepção precisaserquestionada. Em certas ocasiões odano perpetrado deve ser reparado antes que se possa esperar do ofensor uma mudança de comportamento. Estamos diante de um assunto controvertido e é fácil entender porque isto constitui algo especialmentedifícilpara muitas vítimas. Comfrequência esses argumentos racionais soam como desculpas. Além do mais, por que algumas'pes- soas vitimizadasse voltam para o crime e outras não?Estou convencido de que qualquer tentativa demitigar as causas do crime exigirá de nós uma análise da vivência devitimização dos ofensores. Nessa análise, ao invés de ^ò^li^s^ií-a.ii;^^^ utilizar a linguagem da vitimiza- ° ""' cão, talvez seja mais útil falar de "trauma". Em seu livro Creating Sanctuary [Criando um santuário], —-a-psiquiatra-Sandra Bloom argu- menta que o trauma não resolvi- do tende a ser reencenado na vida ^~-^;,^í::^-—r---::-- daqueles que o experimentaram vi^!Ul^-.-.-,--..•,.:.-: •.•/---„-"...;: nas suas famílias e inclusive nas gerações seguintes.4 O trauma ê uma experiência central, não apenas para as vítimas, mas também para muitos ofensores. Inúmeros epi- sódios de violência podem ser, na realidade, uma reconstitui- çao de traumas vivenciados anteriormente, aos quais não foi possível reagir de modo adequado no passado. A sociedade tende a reagir infligindo mais traumas na forma de penas privativas de liberdade. Embora a realidade traumática não possa ser usada como desculpa para o crime, ela deve ser compreendida e tratada. 43
  • 24. HowAfto ZEHR -JUSTIÇA RESTAURATIVA Em resumo, o esforço para corrigir os males é o cerne e o eixo da Justiça Restaurativa. A retificação dos males tem duas dimensões: 1) tratar dos danos cometidos, e 2} tratar suas causas, inclusiveos fatores negativos que contribuíram para o comportamentosocialmentenocivo." Já que a justiça deveria procurar endireitar as coisas, e uma vez que as vítimas sofreram os danos, a abordagem res- taurativa deve começar pelas vítimas. No entanto, a Justiça Restaurativa se preocupa, em últi- ma instância, coma restauração e reintegração de ambos: vítima e ofensor, além-do-bem-estar-da comunidade como um todo. Portanto, ela procura tratar de todas as partes equilibradamente. - A Justiça Restaurativa estimula decisões que promovam responsabilidade, reparação e restabelecimento para todos. UMA LENTE RESTAURATIVA A Justiça Restaurativaoferece uma estrutura alternativa para pensar o crime e ajustiça. Princípios A lente ou filosofia restaurativa traz cinco princípios ou ações-chave: 1.Focar os danos e consequentesnecessidades da vítima, e também da comunidade e do ofensor. 2. Tratar das obrigações que resultam daqueles danos (as obrigações dos ofensores, bem como da comunidade e da sociedade). 3. Utilizar processos inclusivos, cooperativos. 44 PRINCÍPÍOS RESTAUBATIVOS 4.Envolver atodos que tenham legítimo interesse na situ- ação, incluindo vítimas, ofensores, membros dacomunidade e da sociedade. 5. Corrigir os males. É possível esquematizar a Justiça Restaurativa como uma roda. No centro está o foco principal: corrigir os danos e males. Cadaum dos raios representa um dos elementos essen- ciais citados acima: focar o dano e as necessidades, tratar das obrigações que envolvem osinteressados (vítimas, ofensores e comunidades de apoio) e, na medida do possível, fazê-lo através de um processo cooperativo e inclusivo. Tudo isto, é claro, numa atitude de respeito por todos os envolvidos. Corrigindo danos e males 45
  • 25. HOWAJÍD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA Para utilizar uma imagem mais orgânica, podemos tam- bém imaginar a Justiça Restaurativacomo uma flor. No cen- tro está o foco principal: endireitar as coisas. Cada uma das pétalas representa um dos princípios necessáriospara se obter sucesso no propósito central. tratar das obrigações focar nos danos e necessidades— Endireitai as coisas envolver os interessados, vítimas, ofensores e usar processos inclusivos e cooperativos comunidades PRINCÍPIOS RESTAURATIVQS Valores Os princípios da Justiça Restaurativa são úteis apenas se estiverem enraizados eni certos valores subjacentes. Muitas vezes esses valoresnão são claramente enumerados e as pes- soas presumem conhecê-los. Contudo,para aplicar os princí- pios demodo coerente comseu espírito epropósito, devemos ser explícitos em relação a esses valores. Caso contrário, por exemplo, pode acontecerdeutilizarmos um processo baseado na JustiçaRestaurativa,mas acabarmos chegando a decisões não restaurativas. Para que funcionem adequadamente, os princípios da Justiça Restaurativa (o centro e os raios) devem ser cercados por um cinturão de valores. Para que floresçam, osprincípios que constituem aflor da Justiça Restaurativa devemestar enraizados em certos valores. . Subjacente à Justiça Restaurativa está a visão de inter- conexão mencionada acima. Estamos todos ligados uns aos outros e ao mundo em geral através de uma teia de relacio- -namentosrQuando-essa-teia-se-ronipertodos são afetados. Os elementos fundamentais da Justiça Restaurativa (dano e necessidades, obrigações e participação) advêm dessa visão. Mas estevalor dainterconexão deve ser equilibradopor um apreço pela particularidade de cadaum. Ainda que estejamos todos ligados, não somos todos iguais.5 A particularidade é a riqueza da diversidade. Isto significa respeitar a individua- lidade e o valor de cada pessoa, e tratar com consideração e seriedade os contextos e situações específicos nos quais ela se insere. Ajustiça devereconhecer tanto nossa condição de interco- nexão quanto anossa individualidade. Ovalor daparticulari- dade nos adverte que o contexto, a cultura e a personalidade são fatores importantes que devem ser respeitados. 47 I
  • 26. -Restaurativa -'"'ê respeito. -- HowArtD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATÍVA Muito aindapoderia e deveria ser dito sobre os valores ine- rentes à Justiça Restaurativa. De fato, talvez um dos maiores atributos dessa modalidade dejustiça seja o modo como ela nos incentiva a explorar nossos valores junto com os outros. .,„...„-..;.-...-._______-,-,., Entretanto, no final das contas, um único valorbásico é de suprema impor- tãncia: o respeito. Se me fosse pedido para resumir a Justiça Restaurativa em uma palavra, escolheria "respeito"-res- peito p0r todos, mesmo por aqueles que -u-:. ,—-_~..-,---------- - são"~diferente"S"denós, mesmo por aque- les que parecem ser nossos inimigos. O respeito nos remete à nossa interconexão, mas também a nossas diferenças. Orespeito exige que tenhamos uma preo- cupação equilibrada comtodas as partes envolvidas. Se praticarmos ajustiça como forma de respeito, estare- mos sempre fazendo Justiça Restaurativa. Quando não respeitamos os outros, não há Justiça Restau- rativa, mesmo se adotarmos-fielrnente-os-seus-princípiosr- - - - O valor do respeito permeia os princípios da Justiça Restaurativa e deve orientar e dar forma à sua aplicação, DEFININDO JUSTIÇA RESTAURATIVA Como, então, devemos definir Justiça Restaurativa? Embora haja um entendimento geral sobre seus contornos básicos, os profissionais do ramo não conseguiram chegar a um consenso quanto a seu significado específico. Alguns de nós questionam a utilidade de uma definição, ou mesmo duvidam da sabedoria de se fixar uma tal definição..Mesmo reconhecendo a necessidade de princípios e critérios de qua- lidade, preocupa-nos a arrogância e a finalidade de estabe- lecer uma conceituação rígida. Com estas preocupações em PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS mente, ofereço a sugestão abaixo a título de definição para fins operacionais:G fins operacionais: Justiça Restaurativa é um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles que têm inte- resse em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessi- dades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento das pessoas e endi- reitar as coisas, na medida do possível. AS METAS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA Em seu excelente manual Restorative Justice: A Vision for HeaUng and Change, Susan Sharpe7 resume assim as metas e tarefas da Justiça Restaurativa: Os programas de Justiça Restaurativa objetívam: "•"~"Cdlo"car~a"s"decisÕes-clTáve"nãs"itiãos daqueles"que"foram mais afetados pelo crime, • Fazer da justiça um processo mais curativo e,idealmente, mais transformador, e • Reduzir a probabilidadede futuras ofensas. Para atingir estas metas é necessário: • Queas vítimas estejamenvolvidas no processo e saiam dele satisfeitas, • Queos ofensores compreendamcomosuas ações afetaram outras pessoas e assumam aresponsabilidadepor tais ações, • Que o resultadofinal do processoajude a reparar os danose trate das razões que levaram à ofensa (planosespeciais que atendam às necessidades específicas de vítima e ofensor), e 49
  • 27. HOWARD ZEIÍR-JUSTIÇA RESTAURATIVA • Que vítima e ofensor cheguema uma sensação de "conclu- são"8 ou "resolução" e sejam reintegrados à comunidade. PERGUNTAS BALIZADORÁS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA Em últimaanáliseaJustiça Restauratíva se resume a uma série de perguntas que precisamser feitas ao nos depararmos com o ato lesivo. Perguntas balizadoras da Justiça Restaurativa: • Quem sofreu o dano? • Quais são suas necessid"ãcles?~~"~~ • De quem é a obrigaçãode atendê-las? • Quem são os legítimos interessados no caso? • Qual o processo adequado para envolver os interessados num esforço para consertar a situação? Sepensarmos na JustiçaRestaurativa como um programa específico, ouconjunto deprogramas,logo veremos que é difícil aplicar programasjá existentes~aTmra~aTnpla~gania"de situações. Por exemplo, usar as formas deencontro entre vítima eofensor para crimes "comuns" pode ser difícil em casos de violência coletiva ou social.Sem as devidassalvaguardas,os modelos de Justiça Restaurativa quehojepraticamos podem ser perigosos se utilizados em casos de violência doméstica. Mas se, ao contrário,partirmosdasperguntas balizadoras que dão forma à Justiça Restaurativa,veremos que elas são aplicáveis a uma grande variedade de circunstâncias. Estas perguntas podem nos ajudar a reenquadrar as situações, a pensar além dos estreitos limitesque o sistema jurídico criou para asociedade. Essas perguntas balizadoras estão levando alguns advoga- dos de defesa dos Estados Unidos a repensarem seus papéis 50 PRINCÍPIOS RESTAVRATIVQS e obrigações nos casos de pena de morte. O "Apoio a Vítimas Baseado na Defesa" surgiu como esforço para levar em consi- deração as necessidades e preocupações dos sobreviventes no contexto dos julgamentos e sentenças, e dando a eles acesso aos profissionais encarregados da defesa e da acusação. Essa abordagem também visa estimular os advogados de defesa a assumirem a devida responsabilidade nesses casos. Muitos acordos foram conseguidos visando atender as necessidades das vítimas, e permitindo que os ofensor es aceitassem suas responsabilidades.* Em casos de violênciadoméstica, os advogados das víti- mas mostram grande preocupação emrelação aoperigo de um encontro entrevítima eofensor. Trata-se deumapreocupação legítima em face do grande perigo desse encontro se trans- formar em ocasião que perpetue opadrão de violência, ou um processo sem o devido monitoramento por pessoas treinadas para lidar com violência doméstica. Alguns dirão que nesses casos um encontro nunca é a estratégia apropriada. Outros, "~ínx:lusiveralgiim:as~7Ítimas "deviolência"domesticarsustentam que os encontros são importantes epoderosos se forem feitos dentro"de condições adequadas e com as devidas salvaguardas. Sejam esses encontros adequados ou não aos casos de violência doméstica, as perguntas balizadoras da Justiça Restaurativa aindapodem nos ajudar a entender o que precisa ser feito sem que nosvejamoslimitados -epresos - à pergun- ta: "Que castigo merece esse ofensor?". Quando defrontado com uma nova situação ou aplicação,frequentemente me volto para as perguntas balizadoras a fim de encontrar um norte. *N.T. No sistema norte-americano o advogado de defesa negocia com o pro- motor um acordo quanto à declaração que fará diante da acusação em juízo. Caso se declare culpado de um crime de pena menor, o réu poderá ficar livre do julgamento pelo tribunal do júri. 51
  • 28. HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA Defato, essas perguntas podem ser vistas como um sumá- rio da Justiça Restaurativa. INDICADORES DE JUSTIÇARESTAURATIVA Quando começamos a pensar nas aplicações práticas da Justiça Restaurativa,outras balizas são oferecidas pelos dez princípios ou indicadores abaixo. Esses princípios são espe- cialmente úteis para projetar ou avaliar programas. Assim como as perguntas balizadoras, eles podem servir para con- ceber respostas a casos ou situaçõesespecíficos. Indicadores deJustiça"Kêstãurãtívãi 1. Foco nos danos causados pelo crime ao invés de nas leis que foram infringidas. 2. Ter igual preocupação e compromisso com vítimas e ofen- sores, envolvendo a ambos no processo de fazer justiça. 3. Trabalhar pela recuperação das vítimas, empoderando-as e atendendo às necessidades que elas manifestam. 4. Apoiar os ofensores e ao mesmo tempo encorajá-los a com- preender, aceitar e cumprirsuasT)brigações.~ 5. Reconhecer que,emboradifíceis, as obrigaçõesdo ofensor não devem ser impostas comocastigo, eprecisam ser exequíveis. 6. Oferecer oportunidades de diálogo, direto ou indireto, entre vitima e ofensor, conforme parecer adequado à situação. 7. Encontrar um modo significativo para envolver a comuni- dade e tratar as causas comunitárias do crime. 8. Estimulara colaboração e reintegração de vítimas e ofen- sores, ao invés de impor coerção e isolamento. 9. Dar atenção às consequências não intencionais e indeseja- das das ações e programas de Justiça Restaurativa. 10.Mostrar respeito por todas as partes envolvidas: vítimas, ofensores e colegas da áreajurídica. Harry Mika eHoward Zehr9 52 PRÁTICASRESTAURATIVAS conceito e a filosofia da Justiça Restaurativa surgiram durante as décadas de 70 e 80 nos Estados Unidos e Canadá, junto com a prática então chamada Programa de Reconciliação Vítima-Ofensor (Víctim Offenderífeconciíiatjor) Program - VOfíPJ. Desdeentão, esteprograma foi modificado enovas formas de prática apareceram. Metodologias antigas foram remodeladas e ganharam o nome de "restaurativas". Quais são as principais abordagens ou práticas em uso cor- rente no campo da justiça criminal ocidental? Devemos ter -em-mente que as aplicações que-menciono abaixo de modo algum abrangem a totalidade do cenário. As escolas têm se tornado um local importante de apli- cação das práticas restaurativas. Apesar de terem muitas semelhanças com os programas de Justiça Restaurativa no âmbito criminal, as abordagensutilizadas no contexto peda- gógico devem necessariamente se amoldar aos contornos do ambiente escolar. Abordagens restaurativastambém estão sendo adaptadas para utilização no local de trabalhoe em questões e processos comunitáriosmais amplos.Nesse caso, também há afinidades com os modelos descritos abaixo, mas, novamente, importan- tes diferenças. A Justiça Restaurativa tem aparecido, ainda, nas reflexões e debates sobre como fazer justiça apósconflitos 53 "l J
  • 29. -JVSTÍÇA RESTAURATIVA ou comportamentos sociais nocivos d.elarga escala, muito embora essa discussão seja mais teórica do que prática. Para as sociedades que ainda mantêm um vínculo mais próximo comos costumes tradicionais - como a africana, ou as comunidades indígenas norte-americanas - a Justiça Restaurativa serve de catalisador para reavaliar, ressuscitar, legitimar e adaptar abordagens consuetudinárias antigas. Durante o período colonial omodelojurídico ocidental muitas vezes condenoue reprimiu as formas tradicionais de justiça que, ainda quenão fossemperfeitas,funcionavam muito bem para aquelas comunidadesr~ • A Justiça Restaurativa pode oferecer uma estrutura conceituai capaz dB afirmar e legitimar o que havia de bom naquelas tradições e, em alguns casos, desenvolver modelos adaptados que operem dentro da realidade do sistema jurí- dico moderno.De fato, duas das mais importantes formas de Justiça Restaurativa - asconferências familiares eos círculos de construção de paz-são"adaptações (sem serem réplicas) de processos tradicionais— —-—-—- - - ----- AJustiça Restaurativa proporciona, ainda, umaforma con- creta de pensar sobre a justiça no âmbito da teoria e prática da transformação de conflitos e construção da paz. De fato, a maioriados conflitos orbita em torno de uma percepção de injustiça, ou ao menos implica tal percepção. Mesmo que o campo daresolução de conflitos ou transformação deconflitos tenha, em certa medida, reconhecido esse fato, o conceito e a prática dajustiça nessa área permanecem um tantovagos. Os princípios daJustiçaRestaurativa oferecem unia estrutura con- cretapara tratar as questões deinjustiça presentes no conflito. Como exemplo, cito a experiência de vários profissionais africanos que, depois de fazer o curso deJustiça Restaurativa do Programa de Transformação de Conflitos da Eastern 54 PRÁTICAS RESTAURATIVAS Mennonite University (emHarrisonburg, Virgínia), voltaram para Gana a fim de trabalharem no conflito que ali se arras- tava. Utilizandoa estrutura conceituai da JustiçaRestaurativa foram capazes de, pela primeira vez, abordar as questões de justiça presentes no conflito através de seu processo tradi- cional dejustiça comunitária. Comoresultado, os esforços de paz saíram do marasmo e começaram a progredir. O campo da Justiça Restaurativa tornou-se diversificado demais para ser retratado em qualquer classificação. O que se segue é uma tentativa de oferecer uma breve visão geral de algumas das práticas que vêmsurgindo dentro do campo da justiça criminal ocidental, O CERNE DAS ABORDAGENS GERALMENTE ENVOLVE UM ENCONTRO Três modelos distintos tendem a dominar a prática da Justiça Restaurativa:os encontros vítima-ofensor, as conferên- cias de gruposfamiliares, eos círculos deJustiça Restaurativa. -No-entanto,-cada-vezmais esses modelos têm sido mesclados. As conferências de grupos familiares por vezes utilizam um círculo, enovas formas que aproveitam elementos de cada um dos modelos acima têm sido desenvolvidas para circunstân- cias específicas. Em alguns casos, vários modelos são utiliza- dos num mesmo caso ou situação. Por exemplo, um encontro entre vítima e ofensor pode ser promovido antes deumcírculo de sentenciamento, e a título de preparação. No entanto,todos essesmodelospossuem elementos impor- tantes em comum. Por causa de suas semelhanças, são àsvezes .agrupados como fornias distintas deJustiça Restaurativa. Cada um desses modelos implica um encontro entre inte- ressados-chave - nomínimo, entre vítima e ofensor, etalvez incluindo outras pessoas da comunidade ou do meio jurídico. 55
  • 30. l HOWARD ZEHR-JUSTIÇA RESTAURATIVA Quando é impossívelou inapropriado promover um encontro da vítima específica com seu ofensor específico, represen- tantes ou substitutos entram em seus lugares. Muitas vezes utilizam-se cartas ou vídeoscomo preparação ou em substi- tuição a um encontro face a face. Mas todos esses modelos implicam algum tipo de encontro, de preferência, presencial. Os encontros são lideradospor facilitadores que super- visionam e orientam o processo, equilibrando o foco dado às partes envolvidas.Diferente de árbitros, os facilitadores de círculos ou encontros não impõem acordos. Todos os mode- los abrem oportunidade-par-a-que-os-participantes explorem fatos, sentimentos eresoluções. Eles são estimulados a contar suas histórias, fazer perguntas, expressar seus sentimentos e trabalhar a fim de chegar a uma decisão consensual. Ron Classen, um profissional veterano da Justiça Restaurativa, coloca a questão da seguinte fornia:para resol- ver qualquer tipo de comportamento socialmentenocivo, três coisas precisam acontecer:- 1. O mal cometido precisa_ser_.i:e.c.onhecido,— —- -- 2. A equidade precisa ser restaurada, 3. É preciso tratar das intenções futuras.1 O encontro oferece a oportunidade para que as vítimas falem do mal sofrido, e para que os ofensores o reconheçam como tal. Decisões como restituição de bens ou pedidos de desculpas ajudam a igualar o placar, ou seja, a restaurar a equidade. Em geral é necessário também falar do futuro. O ofensor fará isso de novo? Como viveremos juntos na mes- ma comunidade? Como tocaremos a vida adiante? Todos os modelos de encontro restaurativo abrem espaço para que tais questões sejam abordadas através de um encontro sob orien- tação de facilitadores. 56 PRATICAS RESTAURATIVAS Em todos os modelos aparticipação da vítima deveser intei- ramente voluntária.Da mesma forma, existe o pré-requisito de que o ofensor reconheça, em alguma medida, sua respon- sabilidade. Normalmente, não se Faz uma conferência quando o ofensor nega sua culpa ou responsabilidade.São envidados esforços para estimular a participação voluntária do ofensor. Sem dúvida, o encontro não deve acontecer quando o ofensor está recalcitrante. Na realidade, há sempre uma certa pres- são sobre o ofensor no sentido de escolher o mal menor. Nas entrevistas preliminares os ofensores em geral manifestam que é difícil e assustador encarar aqueles a quem lesaram. De fato, a maioria de nós preferiria evitar esse tipo de obrigação sempre que possível. Salvo pelas conferências de grupos familiares da Nova Zelândia, os modelos descritos abaixo são aplicados discri- cionariamente epor encaminhamento. Para ofensas menores o encaminhamento em geral vem da comunidade, da escola ou instituição religiosa. Por vezes a Iniciativa surge das pró- —prias-par-tes .._..__ _._. . - _ . . . -. .-. Mas a maioria vemdo sistemajudiciário,sendo que o agente encaminhador varia segundo ocaso e a comunidade. Estepode ser a polícia, ou o promotor de justiça, o oficial da condicio- nal, o tribunal ou a vara criminal, ou até a penitenciária. No caso dos tribunais, em geral aindicaçãoda prática restaurativa vem depois da instrução e alegações finais e antes da sentença. Nesses casos, ojuiz leva o resultado da conferência em consi- deração ao sentenciar. Em alguns casos ou varas, ojuiz ordena a restituição dos bens e pede que o valor devido seja decidido através deum encontro restaurativo, quepassa a fazerparte da sentença e/ou concessão do livramento condicional. Os programas de encontro vítima-ofensor hoje em fun- cionamento nos casos de violência grave são, na sua maioria, 57 m--
  • 31. HOWAHD ZEHR-JUSTIÇA RESTAVRATIVA externos ao sistemajudiciário formal e concebidospara serem, ativados por iniciativa das partes, em geral a pedido dasvítimas. OS MODELOS DIFEREM QUANTO AO "QUEM" E AO "COMO" Embora semelhantes emlinhasgerais, os modelos de prá- tica restaurativa diferem quanto ao número e tipo de parti- cipantes e, em alguns casos, quanto ao estilo de facilitação. Encontros entre vítima e ofensor Os encontros entre-vít-ima-e-ofensor-envolvembasicamente vítimas e ofensores. Nos casos em que for indicado, trabalha- -se com a vítima e Q ofensor em separado e, depois, havendo consentimento para que continue o processo, acontece um encontro ou diálogo entre os dois, organizado e conduzido por um facilitador treinado que orienta o processo de maneira equilibrada. Em geral o resultado é-a-assinatura de um acordo de resti- tuição de bens, salvonos.casos_dej/-iolència grave, quando isto não costuma acontecer. Membros da família da vítima e do ofensor poderão participar, mas normalmente essas pessoas têm papéis de apoio secundários. Pessoas que representam a comunidadepoderão ser envolvidas como facilítadoras ou supervisoras do acordo selado, mas via de regra não partici- pam do encontro. Conferências de grupos familiares Nesta prática temos a ampliação do círculo básico de parti- cipantes, quepassaaincluirosfamiliares ououtras pessoas sig- nificativas para as partes diretamente envolvidas. Essemodelo vem se concentrando no apoioao ofensor,para que eleassuma a responsabilidadeemudeseu comportamento, epor isso a família 58 PRATICAS RESTAURATIVAS do ofensor e/ou pessoas relevantes da comunidadesão muito importantes. No entanto, a família da vítima também deve ser envolvida no processo. Em alguns casos, especialmente quando o encontro tem opoder de afetar o desenlacedoprocesso penal, um representante do Estado (como, por exemplo, umpolicial) poderá também estar presente. Duas modalidades de conferência de grupos familiares ganharam especial destaque. "Um dos modelos que vem rece- bendo bastante atenção nos Estados Unidos foidesenvolvido inicialmente pelapolíciaaustraliana, combase em uma moda- lidadenascida na Nova Zelândia. Geralmente essa abordagem adota um modelo de facilitação padronizado ou "roteiriza- do". Os facilitadores podem ser autoridades, como policiais especialmente treinados para essa tarefa. Essa tradição ou abordagem deu especial destaque à dinâmica da vergonha, e trabalha ativamente para usar a vergonha de modo positivo. O outro modelo de conferência de grupos familiares, com o qual estou mais familiarizado, nasceu na Nova Zelândia e -hoje sentornou-O-procêdimento normativo.para as .ofensas,sob a jurisdição das varas da infância e juventude daquele país. Como essa abordagem émenos conhecida nos Estados Unidos do que o diálogo entre vítima e ofensor e do que os círculos restaurativos (verp. 61-62), eu a descreverei em mais detalhe. O governo da Nova Zelândia revolucionou seu sistema de justiça para a infânciaejuventude em 1989. Esta ação foi uma reação à crise vivida então na área do bem-estar do menor, e também às críticas, por parte da população indígena maori, de que as autoridades utilizavam um sistema colonial impos- to e alheio à cultura local. Muito embora o sistema judicial tenha sido mantido como retaguarda, o procedimento padrão para a maioria dos crimes mais graves cometidos por meno- res na Nova Zelândia é a conferência de grupos familiares,2 59
  • 32. HOWABD ZEHR - JUSTIÇA RESTAURATÍVA Em consequência, na Nova Zelândia estas conferências podem ser consideradas tanto um processojudicial quanto um encon- troinformal. Elas são organizadas e facilitadas por assistentes sociais pagos pelo Estado, chamados de Coordenadoresde Justiça do Adolescente, Juntamente às famílias, é sua função ajudar os participantes a determinarem quem deve estar presente no encontro, ea criar o processo maisapropriado para aquelegru- po em particular. Um dos objetivos do processo é sua adequa- ção cultural, e a forma do encontroprecisa estar adaptada às necessidades e à cultura das vit.ím.as_e_das famílias envolvidas. Nesse caso, a facilitação não é roteirizada. Embora haja uma progressão comum às conferências em geral, cada uma sofre adaptações em função das partes envolvidas. Um dos elementos comuns à maioria delas é a reunião de família que acontece em dada altura do processo. O ofensor e a família do ofensor se retiram para outra sala a fim de discutir o que aconteceu até então, e desenvolver uma proposta que será apresentada à vítima no restante da conferência^ Assim como os mediadores de encontros entre vítima e ofensor, o coordenador da conferência de grupos familiares procura ser imparcial, equilibrando os interesses e necessi- dades das duaspartes. No entanto, eletern a incumbência de garantir a elaboração de um plano que contemple as causas e também a reparação, que responsabilize o ofensor e, por fim, que seja realista. Mesmo que a comunidade não esteja explicitamente incluí- da, esses colóquios são mais inclusivos que os encontros entre vítima e ofensor. Os familiares do ofensor são partes essen- ciais edesempenhampapéis importantes -defato, o processo é visto como modelode empoderamento familiar.As vítimas podem trazer membrosda família ou advogados. Poderá estar 60 PRÁTICAS RESTAUBATIVAS presente um procurador especial da vara da infância e da juventude, e também outros profissionais assistenciais.Além disso, e visto que a polícia desempenha o papel de acusa- dor no processo penal neozelandês, também ela deve estar representada. As conferências de grupos.familiares ao estilo neoze- landês não são concebidas simplesmente como oportunida- de de expressar fatos e sentimentos e desenvolver acordos de restituição de bens ou reparação moral. Em virtude de normalmente fazerem o papel do tribunal, elas têm a função de desenvolver um plano completo para o ofensor, um pla- no que, além de reparações, inclua elementos de prevenção e, por vezes, punição. Até mesmo as acusações podem ser negociadas nessa reunião. Ê importante notar que o plano precisa obter a concordância de todos os presentes. Avítima, o ofensor, ou apolícia poderão vetar a decisão se algum deles estiver insatisfeito. Portanto, as conferências de grupos familiares podem —Snifíliâlp. círculo.departicipantes,incluindo familiaresou pes- soas significativas e, às vezes,funcionáriosdo poderjudiciário. Ao menos na forma adotada na Nova Zelândia, a conferência poderá incluir uma reunião familiar a portas fechadas, e um papel ampliado para o facilitador, que talvez pareça menos "neutro" se comparado ao do facilitador dos encontros vítinia- -ofensor. Ocasionalmente intituladas "conferências comuni- tárias ou de responsabilização", esses encontros estão sendo adaptados e utilizadosexperimentalmente em vários países. Círculos As abordagens circulares surgiram nas comunidades abo- rígínes do Canadá. Para descrever o processo, o juiz Barry Stuart, em cuja vara um desses círculos foireconhecido pela 61
  • 33. HQWARD ZEHK - JUSTIÇA RESTAURATIVA primeira vez através de sentença judicial, escolheu o termo "Círculos de Construção de Paz". Hoje os círculos têm inú- meras aplicações. Além dos círculos de sentenciamento, que objetívam determinar sentençaspara processos criminais, há círculos de apoio [empreparaçãoa círculosde sentenciamen- to), círculos para lidar comconflitos no ambiente de trabalho, e até círculos comoforma de diálogocomunitário. Nessa modalidade restaurativa osparticipantes se acomo- dam em círculo. Um objeto chamado "bastão de fala" vai pas- sando de mão emmão para quetodos tenham a oportunidade de falar, um de cada_vez,_na_or_dem_em que estão sentados. Faz parte do processouma declaração inicial em que são explicitados certos,valores, ou mesmournafilosofia, que enfa- tiza o respeito, o valor de cada participante, a integridade, a importância de se expressar com sinceridade, etc. Um ou dois "guardiãesdo círculo" servem de facilita dores. Nas comunidades indígenas, os anciãos desempenham impor- tante papelcomo líderes dos círculos, ou como conselheiros, ou ainda trazendo percep^ões^ejnsjsrhts^ Os círculos ampliam intencionalmenteorol de seus parti- cipantes. Vítimas, ofensores, familiares, e às vezes profissio- nais do judiciário são incluídos,mas os membros da comu- nidade são partes essenciais. Eles podem ser convidados em função de sua ligaçãoouinteresse emuma infraçãoespecífica, ou por iniciativa da vítima ou do ofensor. Muitas vezes os membros são partes deum círculo permanente devoluntários da comunidade. Em virtude do envolvimento da comunidade, os diálo- gos dentro do círculo são em geral mais abrangentes do que em outros modelos de Justiça Restaurativa. Os participan- tes podem abordar circunstâncias comunitárias que tal- vez estejam propiciando violações, podem falar do apoio a 62 PRÁTICAS RESTAURATIVAS necessidades de vítimas e ofensores, das responsabilidades que a comunidade possa ter, das normas comunitárias, ou outros assuntos relevantes para a comunidade. Embora os círculos tenham surgido em comunidades pequenas e homogéneas, hoje passaram a ser utilizados em inúmeros contextos, inclusive nas grandes áreas urbanas e para situações variadas fora do âmbito criminal. Este livro não é o meio adequado para discutir as mui- tas formas ou os méritos relativos dos inúmeros modelos de Justiça Restaurativa. O que, sim, devemos frisar aqui é que todos os modelos acima são formas de encontro. Eles podem se diferenciar pelo número e tipo de participantes ou interessados envolvidos, ou por seu método de facilita- ção. No entanto, quanto mais essas modalidades vão sendo mescladas, cada vezmenos significativas vão se mostrando suas diferenças. É digno denota quenem todas as abordagens restaurati- vas envolvem um encontro direto, e que nem todas as neces- "SÍdades-podem-ser atendidas através deum encontro. Mesmo que as vítimas tenham algumas necessidades que envolvam o ofensor, também apresentam outras que independem dele. Da mesma forma,os ofensores têm necessidades e obrigações que não guardam qualquer relação com a vítima. Portanto, a tipologia que se segue inclui tanto os programas comencontro quanto aqueles sem encontro, OS MODELOS DIFEREM QUANTO A SEUS OBJETIVOS — O.utro_modo decompreender as diferenças entre as várias abordagens restaurativas é examinar seus objetivos, que podem ser separados em três categorias: 63