1. Desembargador Paulo Rangel: “A pior audiência da minha vida”
A minha carreira de Promotor de Justiça foi pautada sempre pelo princípio da importância
(inventei agora esse princípio), isto é, priorizava aquilo que realmente era significante diante
da quantidade de fatos graves que ocorriam na Comarca em que trabalhava. Até porque eu
era o único promotor da cidade e só havia um único juiz. Se nós fôssemos nos preocupar com
furto de galinha do vizinho; briga no botequim de bêbado sem lesão grave e noivo que largou a
noiva na porta da igreja nós não iríamos dar conta de tudo de mais importante que havia para
fazer e como havia (crimes violentos, graves, como estupros, homicídios, roubos, etc).
Era simples. Não há outro meio de você conseguir fazer justiça se você não priorizar aquilo
que, efetivamente, interessa à sociedade. Talvez esteja aí um dos males do Judiciário quando
se trata de “emperramento da máquina judiciária”. Pois bem. O Procurador Geral de Justiça
(Chefe do Ministério Público) da época me ligou e pediu para eu colaborar com uma colega da
comarca vizinha que estava enrolada com os processos e audiências dela. Lá fui eu prestar
solidariedade à colega. Cheguei, me identifiquei a ela (não a conhecia) e combinamos que eu
ficaria com os processos criminais e ela faria as audiências e os processos cíveis. Foi quando ela
pediu para, naquele dia, eu fazer as audiências, aproveitando que já estava ali. Tudo bem. Fui à
sala de audiências e me sentei no lugar reservado aos membros do Ministério Público: ao lado
direito do juiz.
E eis que veio a primeira audiência do dia: um crime de ato obsceno cuja lei diz:
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
O detalhe era: qual foi o ato obsceno que o cidadão praticou para estar ali, sentado no banco
dos réus? Para que o Estado movimentasse toda a sua estrutura burocrática para fazer valer a
lei? Para que todo aquele dinheiro gasto com ar condicionado, luz, papel, salário do juiz, do
promotor, do defensor, dos policiais que estão de plantão, dos oficiais de justiça e demais
funcionários justificasse aquela audiência? Ele, literalmente, cometeu uma ventosidade
intestinal em local público, ou em palavras mais populares, soltou um pum, dentro de uma
agência bancária e o guarda de segurança que estava lá para tomar conta do patrimônio da
empresa, incomodado, deu voz de prisão em flagrante ao cliente peidão porque entendeu que
ele fez aquilo como forma de deboche da figura do segurança, de sua autoridade, ou seja, lá
estava eu, assoberbado de trabalho na minha comarca, trabalhando com o princípio inventado
agora da importância, tendo que fazer audiência por causa de um peidão e de um guarda que
não tinha o que fazer. E mais grave ainda: de uma promotora e um juiz que acharam que isso
fosse algo relevante que pudesse autorizar o Poder Judiciário a gastar rios de dinheiro com um
2. processo para que aquele peidão, quando muito mal educado, pudesse ser punido nas “penas
da lei”.
Ponderei com o juiz que aquilo não seria um problema do Direito Penal, mas sim, quando
muito, de saúde, de educação, de urbanidade, enfim… Ponderei, ponderei, mas bom senso
não se compra na esquina, nem na padaria, não é mesmo? Não se aprende na faculdade. Ou
você tem, ou não tem. E nem o juiz, nem a promotora tinham ao permitir que um pum se
transformasse num litígio a ser resolvido pelo Poder Judiciário.
Imagina se todo pum do mundo se transformasse num processo? O cheiro dos fóruns seria
insuportável.
O problema é que a audiência foi feita e eu tive que ficar ali ouvindo tudo aquilo que, óbvio,
passou a ser engraçado. Já que ali estava, eu iria me divertir. Aprendi a me divertir com as
coisas que não tem mais jeito. Aquela era uma delas. Afinal o que não tem remédio,
remediado está.
O réu era um homem simples, humilde, mas do tipo forte, do campo, mas com idade
avançada, aproximadamente, uns 70 anos.
Eis a audiência:
Juiz – Consta aqui da denúncia oferecida pelo Ministério Público que o senhor no dia x, do mês
e ano tal, a tantas horas, no bairro h, dentro da agência bancária Y, o senhor, com vontade
livre e consciente de ultrajar o pudor público, praticou ventosidade intestinal, depois de olhar
para o guarda de forma debochada, causando odor insuportável a todas as pessoas daquela
agência bancária, fato, que, por si só, impediu que pessoas pudessem ficar na fila, passando o
senhor a ser o primeiro da fila.
Esses fatos são verdadeiros?
Réu – Não entendi essa parte da ventosidade…. o que mesmo?
Juiz – Ventosidade intestinal.
Réu – Ah sim, ventosidade intestinal. Então, essa parte é que eu queria que o senhor me
explicasse direitinho.
3. Juiz – Quem tem que me explicar aqui é o senhor que é réu. Não eu. Eu cobro explicações. E
então.. São verdadeiros ou não os fatos?
O juiz se sentiu ameaçado em sua autoridade. Como se o réu estivesse desafiando o juiz
e mandando ele se explicar. Não percebeu que, em verdade, o réu não estava
entendendo nada do que ele estava dizendo.
Réu – O guarda estava lá, eu estava na agência, me lembro que ninguém mais ficou na fila,
mas eu não roubei ventosidade de ninguém não senhor. Eu sou um homem honesto e
trabalhador, doutor juiz “meretrício”.
Na altura da audiência eu já estava rindo por dentro porque era claro e óbvio que o homem
por ser um homem simples ele não sabia o que era ventosidade intestinal e o juiz por
pertencer a outra camada da sociedade não entendia algo óbvio: para o povo o que ele
chamava de ventosidade intestinal aquele homem simples do povo chama de PEIDO. E mais: o
juiz se ofendeu de ser chamado de meretrício. E continuou a audiência.
Juiz – Em primeiro lugar, eu não sou meretrício, mas sim meritíssimo. Em segundo, ninguém
está dizendo que o senhor roubou no banco, mas que soltou uma ventosidade intestinal. O
senhor está me entendendo?
Réu – Ahh, agora sim. Entendi sim. Pensei que o senhor estivesse me chamando de ladrão.
Nunca roubei nada de ninguém. Sou trabalhador.
E puxou do bolso uma carteira de trabalho velha e amassada para fazer prova de trabalho.
Juiz – E então, são verdadeiros ou não esses fatos.
Réu – Quais fatos?
O juiz nervoso como que perdendo a paciência e alterando a voz repetiu.
Juiz – Esses que eu acabei de narrar para o senhor. O senhor não está me ouvindo?
Réu – To ouvindo sim, mas o senhor pode repetir, por favor. Eu não prestei bem atenção.
O juiz, visivelmente irritado, repetiu a leitura da denúncia e insistiu na tal da ventosidade
intestinal, mas o réu não alcançava o que ele queria dizer. Resolvi ajudar, embora não devesse,
pois não fui eu quem ofereceu aquela denúncia estapafúrdia e descabida. Típica de quem não
tinha o que fazer.
EU – Excelência, pela ordem. Permite uma observação?
O juiz educado, do tipo que soltou pipa no ventilador de casa e jogou bola de gude
no tapete persa do seu apartamento, permitiu, prontamente, minha manifestação.
Juiz – Pois não, doutor promotor. Pode falar. À vontade.
4. Eu – É só para dizer para o réu que ventosidade intestinal é um peido. Ele não esta
entendendo o significado da palavra técnica daquilo que todos nós fazemos: soltar um pum. É
disso que a promotora que fez essa denúncia está acusando o senhor.
O juiz ficou constrangido com minhas palavras diretas e objetivas, mas deu aquele riso de
canto de boca e reiterou o que eu disse e perguntou, de novo, ao réu se tudo aquilo era
verdade e eis que veio a confissão.
Réu – Ahhh, agora sim que eu entendi o que o senhor “meretrício” quer dizer.
O juiz o interrompeu e corrigiu na hora.
Juiz – Meretrício não, meritíssimo.
Pensei comigo: o cara não sabe o que é um peido vai saber o que é um adjetivo (meritíssimo)?
Não dá. É muita falta de sensibilidade, mas vamos fazer a audiência. Vamos ver onde isso vai
parar. E continuou o juiz.
Juiz – Muito bem. Agora que o doutor Promotor já explicou para o senhor de que o senhor é
acusado o que o senhor tem para me dizer sobre esses fatos? São verdadeiros ou não?
Juiz adora esse negócio de verdade real. Ele quer porque quer saber da verdade, sei lá do que.
Réu – Ué, só porque eu soltei um pum o senhor quer me condenar? Vai dizer que o meretrício
nunca peidou? Que o Promotor nunca soltou um pum? Que a dona moça aí do seu lado nunca
peidou? (ele se referia a secretária do juiz que naquela altura já estava peidando de tanto rir
como todos os presentes à audiência).
O juiz, constrangido, pediu a ele que o respeitasse e as pessoas que ali estavam, mas ele
insistiu em confessar seu crime.
Réu – Quando eu tentei entrar no banco o segurança pediu para eu abrir minha bolsa quando
a porta giratória travou, eu abri. A porta continuou travada e ele pediu para eu levantar a
minha blusa, eu levantei. A porta continuou travada. Ele pediu para eu tirar os sapatos eu tirei,
mas a porta continuou travada. Aí ele pediu para eu tirar o cinto da calça, eu tirei, mas a porta
não abriu. Por último, ele pediu para eu tirar todos os metais que tinha no bolso e a porta
continuou não abrindo. O gerente veio e disse que ele podia abrir a porta, mas que ele me
revistasse. Eu não sou bandido. Protestei e eles disseram que eu só entraria na agência se
fosse revistado e aí eu fingi que deixaria só para poder entrar. Quando ele veio botar a mão
em cima de mim me revistando, passando a mão pelo meu corpo, eu fiquei nervoso e, sem
querer, soltei um pum na cara dele e ele ficou possesso de raiva e me prendeu. Por isso que
estou aqui, mas não fiz de propósito e sim de nervoso. Passei mal com todo aquele
constrangimento das pessoas ficarem me olhando como seu eu fosse um bandido e eu não
sou. Sou um trabalhador. Peidão sim, mas trabalhador e honesto.
O réu prestou o depoimento constrangido e emocionado e o juiz encerrou o interrogatório.
Olhei para o defensor público e percebi que o réu foi muito bem orientado. Tipo: “assume o
5. que fez e joga o peido no ventilador. Conta toda a verdade”. O juiz quis passar a oitiva das
testemunhas de acusação e eu alertei que estava satisfeito com a prova produzida até então.
Em outras palavras: eu não iria ficar ali sentado ouvindo testemunhas falando sobre um cara
peidão e um segurança maluco que não tinha o que fazer junto com um gerente despreparado
que gosta de constranger os clientes e um juiz que gosta de ouvir sobre o peido alheio. Eu
tinha mais o que fazer. Aliás, eu estava até com vontade de soltar um pum, mas precisava ir ao
banheiro porque meu pum as vezes pesa e aí já viu, né?
No fundo eu já estava me solidarizando com o pum do réu, tamanho foi o abuso do segurança
e do gerente e pior: por colocarem no banco dos réus um homem simples porque praticou
uma ventosidade intestinal.
É o cúmulo da falta do que fazer e da burocracia forense, além da distorção do Direito Penal
sendo usado como instrumento de coação moral. Nunca imaginei fazer uma audiência por
causa de uma, como disse a denúncia, ventosidade intestinal. Até pum neste País está sendo
tratado como crime com tanto bandido, corrupto, ladrão andando pelas ruas o judiciário parou
para julgar um pum.
Resultado: pedi a absolvição do réu alegando que o fato não era crime, sob pena de termos
que ser todos, processados, criminalmente, neste País, inclusive, o juiz que recebeu a
denúncia e a promotora que a fez. O juiz, constrangido, absolveu o réu, mas ainda quis fazer
discurso chamando a atenção dele, dizendo que não fazia aquilo em público, ou seja, ele é o
único ser humano que está nas ruas e quando quer peidar vai em casa rápido, peida e volta
para audiência, por exemplo.
É um cara politicamente correto. É o tipo do peidão covarde, ou seja, o que tem medo de
peidar. Só peida no banheiro e se não tem banheiro ele se contorce, engole o peido, cruza as
perninhas e continua a fazer o que estava fazendo como se nada tivesse acontecido. Afinal,
juiz é juiz.
Moral da história: perdemos 3 horas do dia com um processo por causa de um peido. Se
contar isso na Inglaterra, com certeza, a Rainha jamais irá acreditar porque ela também,
mesmo sendo Rainha… Você sabe.
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2012.
Paulo Rangel (Desembargador do Tribunal de Justica do Rio de Janeiro).
Fonte: http://www.blogdodanielmotta.com.br/2012/05/desembargador-paulo-rangel-a-pior-
audiencia-da-minha-vida/