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99
Cepêda, Vera Alves. Trajetórias do Corporativismo no Brasil: teoria social, problemas
econômicos e efeitos políticos. IN: ABREU, Luciano Arone de; SANTOS, Paula
Borges. A Era do Corporativismo: regimes, representações e debates no Brasil e em
Portugal. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2017, p. 99-149.
_________________________________________________
TRAJETÓRIAS DO CORPORATIVISMO NO BRASIL:
TEORIA SOCIAL, PROBLEMAS ECONÔMICOS E
EFEITOS POLÍTICOS
_________________________________________________
Vera Alves Cepêda1
Este trabalho tem como objeto de reflexão as trajetórias do
corporativismo no Brasil, concebido enquanto uma ideia e um
fenômeno plural, dotado de mais de uma faceta e momento de
existência na vida pública nacional. Ao longo do texto, tentarei
demonstrar alguns pontos importantes sobre a forma e as
funções específicas do corporativismo adaptado ao nosso
contexto e que, exatamente em sua recepção aplicada,
promoveu uma trajetória particular que só ganha sentido se
percebida em seus nexos com a teoria social do “atraso
brasileiro” e com a identificação das disfunções do liberalismo
econômico (primário-exportador) e político (elites oligárquico-
regionais). A hipótese. É que aqui o corporativismo encontrou
terreno fértil para sua adoção, sintonizada com o debate da
interpretação sobre a formação nacional, com o problema de
sua insuficiência social e com sua consecutiva evolução para
insuficiência econômica (como sua recepção em Alberto
Torres, Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Roberto Simonsen,
1
Professora do Departamento de Ciência Sociais e do Programa de Pós-
Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São
Carlos/(UFSCAR).
100
entre outros autores coetâneos2
) e que, exatamente por esse
cenário particular, forjou um corporativismo sui generis. Essa
hipótese só ser sustentada no campo de análise do pensamento
Social e político, observando a incorporação do modelo
corporativista (uma ontologia social, somada a um projeto
político e pautada em meios específico, de ação) na trajetória do
debate intelectual nacional.
Assim, o corporativismo, tão destacado como base
conceitual e programática dos anos de 1930/1945, tem raízes
anteriores a esse momento em uma linhagem que foi acentuando-
se e ganhando contornos novos - o idealismo orgânico. Essa
linhagem origina-se na teoria social sobre os dilemas de formação
do Brasil anterior à Revolução de 1930, caracterizada por visão
negativa da nossa sociedade, apreendida como frágil, amorfa ou
inconclusa. Esse diagnóstico afastaria, racionalmente a opção
pela arquitetura política liberal alheia e muito distante de nossa
realidade — como provariam as disfunções e o desvirtuamento
atribuído às instituições da Primeira República, gerando um
primeiro elemento de aproximação entre um debate nacional —,
pelo tema: pela lógica do argumento - com o corporativismo
mundial.
Problemas específicos exigem resoluções específicas,
assim, o corporativismo que se aplicou no Brasil foi diverso
daquele original. O ajuste de uma trajetória longa e o
cinzelamento de um momento pleno da linhagem do idealismo
orgânico também deixariam legado incorporado em momentos
posteriores de ressignificação dessa linhagem - como o
desenvolvimentismo que emerge no Brasil exatamente ao final do
ciclo comumente associado ao corporativismo de 1930/1945 e
que durou, pelo menos, mais três décadas.3
2
Como Plínio Salgado, Miguel Reale, Gustavo Barroso, intelectuais do grupo integralista da AIB
3
Sobre a duração, permanência e metamorfose do desenvolvimentismo enquanto interpretação social e projeto
político, ver: CEPÊDA, Vera Alves. Inclusão, democracia e novo desenvolvimentismo – um balanço
histórico. Revista de Estudos Avançados. São Paulo, v. 26, p.77-90, 2012.
101
O trabalho está articulado em quatro seções, além desta
introdução e das considerações finais: a primeira procura isolar
uma definição mínima de corporativismo; a segunda mostra sua
aplicação ao caso brasileiro, de maneira factual e ampla, com
destaque para a centralidade da obra de Alberto Torres e Olive
Viana; a terceira investiga os nexos do corporativismo com as
teses da formação nacional como déficit e seu ajuste na passagem
para a teoria do subcapitalismo (subdesenvolvimento), com
destaque para a produção seminal de Roberto Cochrane
Simonsen; e na quarta, são apresentados como instrumentos de
filiação à teoria corporativista a representação clássica e a
estratégia do planejamento estatal, finalizando com uma breve
reflexão sobre a permanência da do corporativismo na posterior
fase nacional-desenvolvimentista.
Corporativismo: entre o conceito e o fato histórico
|
O corporativismo foi tese e experimento político importante na
trajetória política brasileira, geralmente associado ao período
varguista de 1930-1945, sendo indicado como seu auge a
implantação do Estado Novo em 1937. No entanto, o
corporativismo moderno, de formulação europeia e exponencial
no fascismo, assumiu no contexto da história brasileira contornos
próprios e aplicados às demandas e gramática política do período
de sua emergência. Para exame da forma sui generis do
corporativismo no Brasil, é necessário primeiro entender o que se
denomina, de forma ampla e geral, por corporativismo,
enfrentando de saída a questão de sua trajetória histórica longeva,
sua ressignificação no contexto moderno (i) sua dupla conotação
enquanto arranjo teórico (uma ontologia social)
Corporativismo corresponde a um conceito de longa
duração, tendo sua origem, enquanto sistema socioeconômico,
atrelado as Corporações de Ofício na Idade Média. Naquele
momento, sua natureza era a da organização de grupos sociais
ligados ao trabalho (ofícios), em especial aqueles
102
que operavam algum tipo de expertise ou conhecimento diverso
da técnica agrária, orientada para produção de manufaturas e
geradora de uma situação societal diversa do dualismo) servo-
senhor (expressão da dimensão agrário-terratenente). Funcional e
sociologicamente, o corporativismo
apareceria associado a uma visão de mundo organicista baseada
na sociabilidade estabelecida pela complementaridade da divisão
do trabalho social com predomínio do "coletivo sobre as partes".
Historicamente, o corporativismo clássico pertenceria às formas
tradicionais de sociedade e de concepção orgânica da ordem
política, distante das; formas modernas.
Visto dessa maneira, sintética e generalizante, o
corporativismo clássico estaria condenado a desaparecer quando
da passagem para a fase moderna, marcada pela valorização
crescente do individualismo, pela ideia da política enquanto
construção (pautada na potência da liberdade individual, no
jusnaturalismo e no primado da inovação decisória estabelecida
pelo contratualismo), pela ordenação das distintas formas da
divisão do trabalho definidas pelo Mercado (apagando e diluindo
a consciência dos papéis sociais e reciprocidade humana na
organização do trabalho - orientados agora pelo princípio do
preço como articulador da produção e das trocas, na preciosa
afirmação da "lei da oferta e da procura" do economista Jean-
Baptista Say) e pela liberação da organização do trabalho via os
princípios do laissez faire e do laissez passeur.
O capitalismo, a filosofia e as instituições liberais construiriam
uma nova representação de mundo onde a ordem do coletivo
estaria subsumida à ordem do individual e, muito importante,
onde a sociabilidade e as decisões políticas seriam arranjos ex
post das demandas e decisões racionais do indivíduo possessivo:
a) Crente das virtudes do progresso, explicado pelo postulado
smithiano dos "vícios privados, benefícios públicos”.
b) Incorporando o paulatino afastamento da política dos
princípios do "bem comum" ou da "vontade geral" em direção
à "vontade da maioria" ou felicidade geral dos utilitaristas.
103
c) Subsequentemente, até aversão competitiva entre as elites
postulada exemplarmente na teoria schumpeteriana.4
Nessa nova engenharia social. pouco espaço foi deixado
para princípios coletivistas em função da avalanche do ethos
individualista em todas as frentes da organização da vida social -
na economia, na filosofia e na política – e a radicalização do
interesse próprio como base do mercado político (e disruptivo do
telos da res publica).
No entanto, e curiosamente, um novo corporativismo surge em
várias frentes de resistência à modernidade capitalista, fortemente
ressignificado. O corporativismo moderno retoma duas
características do modelo clássico: a articulação social via posições
do mundo do trabalho e a ideia de uma vida pública de bases
coletivas, centralizada em categorias amplas e abstratas como
nação, povo, Estado, no primado do nós, e não do eu. Em sua tônica
de coletivismo (papéis sociais de produção, circulação e consumo,
como forma simultânea do social, do econômico e do político), essa
percepção aparece associada a várias versões do socialismo e,
muito especialmente, de conotações religiosas. Como exemplo
dessas conotações estão as correntes do cristianismo como o
fabianismo, o gildismo e, mais fortemente, a posição declarada da
Igreja Católica quanto à "questão social" da contenção da miséria
e resposta às demandas dos trabalhadores diante da expansão e do
agravamento da exploração do capitalismo. A atuação católica,
nesse aspecto, parte da proposição do ordenamento da vida social
pela articulação de "entes orgânicos" como família, Estado e Igreja,
ancorada em uma visão societal hierárquica, fraterna e submissa a
um coletivismo avesso ao hedonismo e as disfunções plutocráticas.
A posição da Igreja Católica, modernizadora e ressignificadora de
um corporativismo de tipo moderno (já incluindo a tensão
capital/trabalho, mas de base religiosa, caritativa e de bem comum)
4
Introdutora de uma nova tensão no processo político com o surgimento de novas
categoria de atores: elites (capacitadas a exercerem o poder para a proteção de seus
interesses) versus as massas (alienadas de seu interesse bem compreendido e dirigidas
pelas elites).
104
é explicitada nas duas Encíclicas Papais: a Rerum Novarum (1891)
e a versão ampliada da Encíclica Quadragésimo Anno (1930).
Em outra direção, o corporativismo seria configurado como
um projeto racional e laico centralizado no Estado e orientado pela
pressão oriunda das tensões de classes à expansão do capitalismo
(em fase monopolista e imperialista).
Em sua tônica de arranjo sociopolítico, tanto o
corporativismo comunitarista-religioso quanto a versão laica
reconheciam o contexto da vida moderna marcada pela luta de
classes, pelos efeitos disruptivos do mercado autorregulado e pela
progressiva aceleração da competitividade defendida pelo
liberalismo - quer dentro das nações quer entre as nações. O
corporativismo, em termos mundiais e entre o final do século XIX
e o final da Segunda Guerra Mundial, pautaria o fortalecimento da
centralização da vida pública no eixo estatal, com destacada
presença dos problemas econômicos e gerando mais de um modelo
político ou vertente política.
Em termos limítrofes, o corporativismo moderno responde à recusa
de dois campos dos quais pretende afastar-se: o marxismo de um
lado e o liberalismo de outro. Tendo que reconhecer o "trabalho
moderno suas demandas, acaba propondo, como corpos
intermediários da engenharia social e política, as organizações
sindicais de trabalhadores e de patrões, articuladoras de um novo
tipo de solidariedade orgânica, coletiva, cooperativa e nacional.
Somente na Europa, no período dos entreguerras o corporativismo
esteve presente nas encíclicas católicas, no fascismo italiano, na
proposta de Manoilescu e nas versões autoritárias.5
5 Costa Pinto nos diz que o corporativismo surge nas primeiras décadas do século XX caracterizado
pelo arranjo e pela integração de instituições de interesses organizados (principalmente sindicatos
independentes) no Estado, quanto como um tipo “orgânico-estatal” de representação alternativa à
democracia liberal (PINTO,Antônio Costa. O corporativismo nas ditaduras da época do Fascismo.
Varia História: Belo Horizonte, v. 30, n.52, jan/abr, 2014.p.17).
105
O conjunto de elementos subsumidos no tipo/modelo
corporativismo muito amplo e inclui questões como: papel e
organização do trabalho; as fronteiras entre Estado e
sociedade6
; o tipo, as encarnações e os objetivos do
nacionalismo7
; os obstáculos indicados como base do
problema nacional; o ancoramento mais forte ou fraco com a
economia (interna ou externa) ou com a política (interna ou
externa). Estes são elementos que farão muita diferença na
expressão particular do corporativismo em cada trajetória e
contexto nacional. Assim, reforça-se a consideração de
Fernando Rosas8
de que "o estudo do corporativismo,
considerado enquanto fenômeno histórico e categoria
conceptual histórica, social e política [...] só entendível no
contexto histórico que o produziu".9
Podemos associar ao corporativismo moderno um
conjunto de vetores complexos como: a) ser uma categoria
conceitual, na medida em que expressa uma teoria ou tese
social e/ou política, que configurou uma escola ou paradigma;
b) que nessa condição circulou internacionalmente enquanto
uma ideia-força, sendo recebida, apropriada e ressignificada
6 Onde o apagamento das fronteiras entre uma dimensão e outra tenderiam à configuração de outros
modelos como totalitarismo (Estado forte, sociedade inexistente ou assimilada) ou liberalismo de
Estádio Mínimo (Estado fraco diante de uma Sociedade ou Mercado forte).
7 Ernest Gellner, em sua tipologia dos nacionalismos, aponta a existência de um modelo que a
nação como “resultado”, e não causa. O tipo clássico seria aquele em que um povo, dotado de
nacionalidade preexistente, almeja, luta e constrói uma forma política soberana de representação
(Estado-nação) que a exprima. Em outro modelo, a nação faz-se em movimento, em direção a algo
que seja não apenas um resultado, mas o modus operandi de sua própria consubstanciação (como
veremos adiante, penso que seja esta a grande função exercida peio nacionalismo no caso
brasileiro) (GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismos. Lisboa Gradiva, 1993).
8 Cf. trabalho de Rosas no capítulo 1 deste livro.
9 Conformar o corporativismo como uma ideia-força capaz de assumir expressões distintas em
diferentes contextos nos impõe como tarefas de análise identificar um conjunto ou unidade
conceitual no termo e, na sequência, adequá-lo às circunstâncias particulares de sua configuração,
Esse método, de historicizar e contextualizar os conceitos, teses e paradigmas, é importante para
dar conta da multiplicidade de conformações que uma percepção em sua unidade conceitual
desdobra-se no fluxo diacrónico e na variação sincrônica.Ao invés de enfraquecer o conceito, essa
opção de ressignificação contextual o dinamiza e possibilita trabalhá-lo como uma linhagem ou
trajetória, multiplicada e fortalecida em sua existência social e política concreta nas adequações
que recebe de sua apropriação.
106
em contextos sociais específicos; e c) ser um fenômeno
histórico, entendido enquanto fato, arranjo ou momento
histórico real, originado em situações nacionais concretas.
Corporativismo(s) no Brasil
O corporativismo no Brasil, tomando como recorte desta análise
o período nuclear dos anos de 1930-1945, apresenta, de saída, um
conjunto adicional de características diferenciais. Em uma análise
ampla dessa fase da história social e política brasileira, podemos
indicar como aspectos que precisam ser levados e em
consideração no esforço de compreensão da forma assumida aqui
pelo corporativismo:
1. O processo de centralização política e o aumento exacerbado
dos poderes do Estado, em especial com a diminuição das
capacidades da sociedade civil, com correlata fragilização dos
aspectos de autorrepresentação e controle do poder político
por parte dos grupos sociais e partidos, bem como a tendência
ao exercício de um poder autocrático – portanto com clara
identificação com modelos autoritários e distantes do
liberalismo. Nos quinze anos do recorte temporal, os arranjos
políticos assumiriam configurações diversas, a maioria
associada a mecanismos de concentração de autoridade como
momento revolucionário, governo provisório, interregno
constitucional (com parte da representação política cabendo I
representações orgânico-corporativistas como os deputados
classistas) e a ditadura varguista Estado Novo. Essa fase
aliaria ao fortalecimento do poder do governo federal o
surgimento de uma poderosa aparelhagem da burocracia
pública e dos monopólios estatais fundamentais (solo,
recursos naturais, tributação e justiça federalizadas, controle
cambial e de empréstimos internacionais, segurança,
primeiras inversões em indústria de base e infraestrutura).
Desse contexto de centralização e hipercapacitação do
107
aparelho de governo central emergiria a face do Leviatã
brasileiro, dotado de gramática própria.10
2. Seu enraizamento e vínculo com o agravamento da disputa de
poder envolvendo o controle hegemônico das oligarquias
primário-exportadoras sobre a esfera política e a emergência
de um novo projeto nacional orientado para a modernização
econômica de tipo urbano-industrial sequioso de assumir o
controle político. Essa contradição expressava uma
radicalização e crescente aumento na pressão pelo fim do
monopólio político das oligarquias regionais do
ultrafederalismo que caracterizava a Primeira República
(1889-1930), em especial o período posterior ao Convênio de
Taubaté de 1906. Afórmula do corporativismo no Brasil desse
período deve muito à sua adoção como estratégia de
enfrentamento de um capitalismo (ou subcapitalismo, como
diria Simonsen) agrário-exportador, obstáculo ao
desenvolvimento e gerador de tensões sociais gravíssimas por
sua capacidade de impor a "socialização das perdas do café".
3. Um movimento progressivo de deslocamento do paradigma
econômico da vocação agrária, perfilada à tese do laissez-
faire e das vantagens comparativas do liberalismo clássico de
Adam Smith e David Ricardo, para a vocação industrial,
apoiada em elementos difusos no entorno do surgimento do
problema do desenvolvimento econômico retardatário. Na
10 LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na Primeira
República: Uma interpretação. In: FAUSTO, Boris (Org.). História Geral da Civilização Brasileira,
Tomo III, v. 9, São Paulo: DIFEL, 1985: GOMES, Ângela de Castro. Regionalismo e centralização
política. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980; SALLUM, Brasílio. Metamorfoses do Estado
brasileiro no final do século XX. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, ANPOCS-
RBCS, 2003, V. 18, n. 52, p. 35-54: DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1985: PAIVA, Carlos Henrique Assunção. A burocracia no Brasil: as bases da
administração pública nacional em perspectiva histórica (1920-19 45). História, São Paulo, 2009,
n. 28, v. 2, p. 775-796; NUNES, Edson. A gramática política do Brasil: clientelismo,
corporativismos e insulamento burocrático. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
108
Europa, autores como Georg List11
e Manoilescu12
promoviam, desde a segunda metade do século XIX, duras
críticas sobre a eficiência dos princípios liberais na promoção
do progresso das nações retardatárias, sobre as contradições,
e desigualdades de expansão do capitalismo mundial e
também sobre os processos artificiais de aceleração ou
proteção necessários ao desenvolvimento nacional. Na
periferia pós-colonial, a América Latina produziria uma teoria
própria, mais avançada que os takes off de Rostow e Nurske,
denominada Teoria do Subdesenvolvimento e elaborada pelo
grupo cepalino. Desse esforço participaram, em momentos e
fases distintas. autores Como Roberto Simonsen (com
trabalhos precursores na década de 1930), Raul Prebisch em
seu Manifesto dos Periféricos (publicado em 1949 como
marco fundador da linha de reflexões da recém-criada
CEPAL) e Celso Furtado (coma produção da segunda metade
dos anos de 1950 em diante). As "inquirições" sobre a
promoção da riqueza das nações nesse contexto esboçavam
uma percepção inédita sobre o peso que as situações
retardatárias, ou de assimetria de posição no Comércio
Internacional, impactavam no processo de promoção da
riqueza econômica.
4. A presença de argumentos da ordem da ontologia social
entendendo a estratégia do corporativismo como instrumento
de superação de uma forma de atraso e condensada em
variadas teses sobre a interpretação da formação social
brasileira elaboradas por autores como Alberto Torres,
Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Francisco Campos e o
próprio Getúlio Vargas13
). Nessa chave, o corporativismo
11 LIST, Georg F. Sistema Nacional de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
12 MANOILESCU, Mikail. O século do corporativismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938;
MANOILESCU, Mikail. Teoria do Protecionismo e da permuta Internacional. São Paulo: Escolas
Profissionais do Liceu coração de Jesus, 1931.
13 A percepção de Vargas é examinada a partir da compilação de seus discursos e textos em:
VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: da Aliança Liberal às realizações do primeiro ano
de Governo (1930-1931), v 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938; VARGAS, Getúlio. A nova
política do Brasil: O Ano de 1932 – A Revolução e o Norte – 1933, v 2. Rio de Janeiro: José
109
É apresentado como uma forma de transformação social capaz
de superar a inorganicidade, os déficits estruturais e a herança da
formação histórica nacional em direção à constituição de uma
sociedade autônoma, moderna, autossuficiente e capaz. O
corporativismo, aqui, é mais que um arranjo político: é a chave
da construção nacional.
5. O corporativismo aparece em duas Constituições Federais, a de
1934 e a de 1937, com características e funções bastante
distintas. A Constituição Federal de 1934, resultante de um
complexo processo de elaboração que abrigou o Anteprojeto do
Itamaraty, a realização de eleições e a instalação de um
Congresso Constituinte até a promulgação da Carta final, é
entendida no contexto constitucional brasileiro (malgrada sua
curtíssima duração) como um pacto com forte inclinação para os
direitos sociais e como expressão de um ajuste político inédito:
aquele expressivo de uma agenda de contradições e demandas
modernas que surgiram com base nas profundas transformações
sociais e econômicas nas primeiras décadas do século XX no
Brasil (expansão urbana, aumento das atividades industriais,
crescimento do contingente de trabalhadores assalariados,
multiplicação das frações burguesas com o enfraquecimento da
vocação agrária, por exemplo). Seu momento histórico
modernizava muito a Constituição Federal de 1934 em relação à
primeira Constituição republicana, de 1891, no que concerne à
agenda de problemas, atores, interesses e compreensão do papel
do Estado. Muitos
Olympio, 1938; VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: A realidade Nacional de 1933 -
retrospecto das realizações do Governo em 1934. v. 3. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938;
VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: Retorno à terra natal - confraternização sul-
americana – A Revolução Comunista - novembro de 1934 a julho de 1937. v. 4. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1938; VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: O Estado Novo - 10 de
novembro de 1937 a 25 de julho de 1938. v. 5. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938; VARGAS,
Getúlio. A nova política do Brasil: Realizações do Estado Novo - 1 de agosto de 1938 a 7 de
setembro de 1939. v. 6. Rio Janeiro: José Olympio, 1938; VARGAS, Getúlio. A nova política do
Brasil: No limiar de uma nova era - 20 de outubro de 1939 a 29 de junho de 1940. V. 7. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1940; VARGAS, Getúlio. Diário, 2 volumes. São Paulo: Siciliano; Rio de
Janeiro: FGV, 1995.
;
110
estudiosos indicam que os arranjos referentes aos direitos do
trabalho, à questão social e, muito especialmente, à adoção da
representação profissional (como contrapeso a retorno da
representação eleitoral pela via da organização e competição
partidária clássica) definiriam a filiação corporativista como
essencial nessa Carta Magna14
. No caso da Constituição de
1937- conhecida como Polaca e que desenha os contornos do
Estado Novo de Vargas -, autores também a definem como
corporativista, mas o pacto político nela contido,
especialmente no que tange a direitos civis e políticos,
democracia e função do Estado central, é completamente
diverso daquele encontrado na Constituição de 1934. Se esta
última se associa o epíteto de "social-democrata" por sua
filiação à Constituição de Weimar de 1919 e aos direitos
previstos pelas diretrizes da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), à Polaca associa-se um radical formato
autoritário, próximo da fórmula do fascismo: tutto nello Stato,
niente contra lo Stato, null al di fuori dello Stato.15
Com esse breve apanhado de elementos16
de
contextualização histórica e conceitual, podemos perceber a
multiplicidade de enfoques e dimensões assumidas pelo
corporativismo na experiência política brasileira, oscilando,
conforme pretende-se como foco de análise neste trabalho, entre
a interpretação do atraso (I), os obstáculos à modernização.
14 LIMA, R. Pinheiro. A representação profissional no Brasil (Discursos). Rio de Janeiro: Irmãos
Pongetti, 1934: CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Anotações. In: BONNARD. Roger.
Sindicalismo, corporativismo e Estado corporativo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 19:8, p. a12-
126; CEPÉDA, Vera Alves. Contexto político e crítica à democracia liberal: a proposta da
representação classista na Constituinte de 1934. In: MOTA, C. G.; SALINAS, N. (Orgs.) Os
Juristas na formação do Estado- Nação brasileiro: de 1930 aos dias atuais. São Paulo: Saraiva,
Fundação Getúlio Vargas, 2010. p. 195-222.
15 Síntese do modelo político fascista italiano apresentado por Mussolini no famoso discurso no
Scala de Milão.
16 Ressalvo que poderíamos incluir aqui as diversas matrizes ideológicas que se filiaram ao grande
campo do corporativismo. Não adentrei, por exemplo, à leitura do integralismo, movimento
político fundamental no período e que produziu, inclusive, um constructo teórico próprio, de forte
inclinação autoritária.
111
e construção da nação (II), permeadas ambas pela questão
econômica e pelo papel atribuído ao Estado (III) como
determinações da trajetória brasileira. As marcações entre
parêntesis (I, Il e II) correspondem à indicação das balizas de
pesquisa que entendo como apropriadas para a análise das teses
corporativistas no caso brasileiro.
Como hipótese central, penso que a principal
característica do corporativismo brasileiro, e que o distingue do
paradigma17
europeu18
, foi a de funcionar como instrumento de
construção da modernidade nacional (econômica, em especial)
em forte orientação para a superação do passado colonial em seu
desdobramento nas formas oligárquicas da Primeira República –
lembrando que as bases das oligarquias da I República estavam
alicerçadas em sua hegemonia econômica, derivada do latifúndio
exportador como precondição de seu monopólio político, por
debaixo do republicanismo da época (uma ideia ou uma
instituição fora de lugar como já queriam assinalar seus críticos à
época19
). Assim, ao invés do questionamento dos excessos
17 Para Reinhard Bendix, em Construção Nacional e cidadania, não é apenas o paradigma
"moderno" que é europeu, mas também as formulações teóricas que o acompanham e procuram
decifrá-lo e que foram estendidos para o mundo: "As mudanças sociais e políticas das sociedades
europeias forneceram o contexto no qual os conceitos da moderna sociologia foram formulados.
Quando nos concentramos atualmente nos problemas de desenvolvimento no mundo não
ocidental, empregamos conceitos que possuem derivação ocidental (BENDIX, Reinhard.
Construção nacional e cidadania. São Paulo: EDUSP, 1996. p. 36).
18 Na versão de O século do corporativismo, seu tradutor, Azevedo Amaral, insere a crítica à
associação imediata entre entes corporativos do trabalho e o fascismo como um equívoco. Para
Amaral, no fascismo, a cooperação positiva dos corpos orgânicos à vida social teria sido
substituída por uma absorção e coordenação excessiva do Estado (MANOILESCU, Mikail. O
século do corporativismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938).
19 A esse respeito, ver o conjunto de artigos compilados em: CARDOSO, Vicente Licínio (Org). A
margem da história da República. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. Esta obra
contém a análise de importantes intelectuais (ou que viriam a sê-lo) como Carneiro Leão (Os
deveres das novas gerações brasileiras), Celso Vieira (Evolução do pensamento Republicano no
Brasil), Gilberto Amado (Instituições políticas e o meio social no Brasil), José
Antônio Nogueira (O ideal brasileiro desenvolvido na República), Oliveira Viana (O idealismo da
Constituição), Pontes de Miranda (Preliminares para a reforma constitucional), Ronald e Carvalho
(Bases da nacionalidade brasileira: uma síntese histórica), Tasso da Silveira (A consciência
brasileira), além de outros trabalhos de Jonathas Serrano, Nuno Pinheiro, Tristão de Ataíde e do
próprio Vicente Licínio Cardoso.
112
ou desvios do capitalismo, com ênfase nas disfunções do mercado
de concorrência imperfeito (monopolista e/ou imperialista), das
tensões oriundas da luta de classes ou no individualismo liberal-
capitalista, no caso brasileiro as questões e os obstáculos a serem
enfrentados eram de outra natureza. Impediam a formação da
nação brasileira o individualismo político, ancorado nas
disfunções de uma democracia partidarizada pelos grupos
regionais vinculados à hegemonia do café e que pediam um outro
arranjo estatal, distante do ultrafederalismo.
Desde o final da década de 1920, outro elemento se
somaria a esse cenário: o reconhecimento que os limites
estruturais da economia agrária, monocultora e dependente dos
mercados internacionais impunham à constituição de uma nação
soberana. Nesse diapasão emergiriam as críticas ao latifúndio, ao
partidarismo regionalista e ao modelo mercantil-exportador como
expressões de um passado a ser superado, de onde provinham
males como a visão localista, redutivista e patrimonialista de
política, com excessos personalistas e formação da cultura do
povo-massa, por um lado, e de elites não modernas (não racionais
e pautadas pelo ethos do trabalho) de outro. Essa crítica surge por
diferentes ângulos e grupos, desde a evolução do projeto político
do movimento tenentista (atingindo a formulação mais avançada
e clara no Esboço do Programa Revolucionário de Reconstrução
Política e Social do Brasil, de 1932) à crítica das instituições em
Alberto Torres20
, nos limites da formação social e no idealismo
constitucional de Oliveira Viana21
, no contraponto ao liberalismo
20 TORRES, Alberto. A organização nacional. São Paulo: Editora Nacional, 1978; TORRES,
Alberto. O programa nacional brasileiro: introdução a um programa de organização nacional. 3 ed.
São Paulo: Cia. Editora Nacional; Brasília: INL, 1978.
21 VIANNA, E. J. Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados,
1981 [1920]; VIANNA, E. J. Oliveira. Evolução do povo brasileiro. São Paulo: Monteiro Lobato
& Co, 1923.
113
e na nova concepção de democracia/autoridade em Azevedo
Amaral22
, nos autores que problematizaram e pensaram a
proposta da representação classista23
, bem como a guinada para a
internalização do argumento econômico e de um novo papel para
a centralização política aberta pela obra de Roberto Simonsen24
.
Como sintetizado por Caio Prado25
, essas disfunções ocorriam
como parte da formação do sentido da colonização - produtor de
uma forma simultaneamente moderna/não moderna herdada do
processo colonial.
A exigência de uma interpretação sobre a formação
histórica autóctone, pautada na percepção de um modelo
diferencial, diverso da trajetória da modernização e da
estruturação dos estados nacionais europeus (tido como o
"modelo" original e, posteriormente, somado ao modelo norte-
americano), apontava na elaboração de duas importantes
novidades: uma de natureza conceitual e outra de natureza
aplicada. No campo teórico, a gestação de uma explicação
ajustada aos dilemas da periferia pós-colonial estaria no centro da
fabricação de uma versão histórica particular, na qual elementos
como ocupação, transplante de raças e sua simbiose, clima e
geografia, instituições, cultura e ethos surgiriam como elementos
centrais da constelação de uma sociedade artificialmente
constituída. Aqui o contato da Expansão Ultramarina traria, como
salientou Caio Prado Jr., forças sociais e econômicas avançadas
(do núcleo mercantilista e pré-industrial) que moldariam as
estruturas sociais da extensão colonial, complementares de
interesses e dinâmicas, originadas no centro e impositoras de
22 AMARAL, Azevedo.A aventura política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1935;
AMARAL, Azevedo. O Estado autoritário e a realidade nacional. Brasília: UNB, 1981.
23 AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráfica, 1931.
24 SIMONSEN, Roberto. As crises no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora, 1930; SIMONSEN,
Roberto. As finanças e a indústria. São Paulo: São Paulo Editora, 1931; SIMONSEN, Roberto.
Ordem econômica, padrão de vida e algumas realidades brasileiras. São Paulo: São Paulo Editora,
1934.
25 PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense;
Publifolha, 2000.
114
arranjos na periferia. Nota importante de ressalva é que essa
mescla entre uma energia moderna em associação com a
“fabricação” das colônias geraria um tipo singular de sociedade.
Nela última, a terra (sua propriedade e ocupação, por exemplo)
não assumiria a condição de um problema típico de passado pré-
moderno, feudal (como na revolução europeia e parte do desenho
do Áncien Regime), Ao contrário, sua condição seria, desde o
advento da Descoberta, a implementação da ação do cálculo
capitalista, empresarial e racional, de um desdobramento então
diferencial do capitalismo mercantil pela imposição do papel de
economia complementar e fadada a produção de bens primários
para exportação, A evolução dessas economias, na forma dos
“ciclos” descritos por Furtado26
, promoveria, na periferia de
economia reflexa, uma forma limitada e subalterna de
capitalismo, incapaz e impeditivo de evolução para as formas de
capitalismo avançado (industrial, tecnológico) e de constituição
de nações autónomas econômica e politicamente, Estas seriam as
condições do subdesenvolvimento27
ou modelos híbridos e
limitados de Revolução Burguesa.28
Nas economias periféricas e agrário-exportadoras, a
propriedade da terra aparece como concentrada, monopolizada,
porém sua lógica não é estamental ou de produção de
subsistência. Ao contrário, o latifúndio significa a terra como uma
mercadoria e um ativo econômico, capaz de produzir riqueza,
constituindo na sua propriedade e realização econômica um tipo
político especial: uma burguesia agraria, dependente e colonial29
.
A burguesia agrária em situação primar-exportadora é dotada de
uma lógica social adversa do tipo esperado na evolução
capitalista, à qual pertence pela inserção na divisão do trabalho
26 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1995.
27 FURTADO, Celso. Dialética do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964.
28 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1975.
29 Cf. tipologia de POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de
Janeiro: Zahar, 1975.
115
internacional que acarretaria no modelo de revolução liberal-
burguesa. Ao invés de configurar o clássico (e tipo ideal) modelo
de grupo social pautado no trabalho, no cálculo racional, na
acumulação e defesa de um mercado nacional sob o controle do
Estado30
, a burguesia colonial e agrária exportadora modelaria
uma forma social de isolamento rural, práticas e cultura política
personalista e patrimonialista, acrescida da baixa propensão ao
cálculo racional (em especial pelo longo ciclo de exploração da
mão de obra escrava).31
Reproduz-se no caso brasileiro uma mesma tensão entre
passado e futuro, mas não sob a oposição entre o pré-moderno
(feudal) versus moderno (urbano industrial). Há, sim, uma
situação de antagonismo entre a estrutura do modelo primário-
exportador (vocação agrária e herança colonial) e passagem para
formas avançadas de economia e sociedade (industriais, urbanas,
com mercado interno e capaz de constituir as bases reais de um
Estado nacional soberano). A ressignificação de temas como
liberalismo, tradicionalismo, democracia, luta de classes e
desenvolvimento residiu, em grande medida, no fornecimento das
condições próprias e específicas da periferia. Nesse contexto, as
grandes expressões da teoria social, económica e política
sofreriam um giro semântico na sua apropriação local. Para
Christian Lynch:
Os males crônicos do continente se enraízam nesse
passado colonial, caracterizado pela exploração
metropolitana pelo patrimonialismo, pelo
escravismo, pelo latifúndio. O passado, portanto, se
erige em verdadeiro espantalho da nacionalidade, que
precisa ser exorcizado e superado para que o país
30 Cf. categoria formulada por: TILLY, Charles. Coerção, capital e Estados europeus, São Paulo:
EDUSP, 1996.
31 A esse respeito conferir: NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema
colonial 1777-1805. São Paulo: Hucitec, 1995: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens na
ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983.
116
que o país alcance aquele patamar de
desenvolvimento compatível com um padrão
civilizatório dos países centrais, como os Estados
Unidos, a França e a Inglaterra.32
Não é apenas o corporativismo que, enquanto ideia força,
pede esse tratamento. Como seria possível imobilizar definição
única termos como direitos, democracia, liberalismo,
autoritarismo, conservadorismo, Estado, desenvolvimento, entre
outros temas que foram sendo relapidados e atualizados cormo
resposta as exigências concretas da variação histórica e das
particularidades de cada contexto de sua utilização? Importante
lembrar que o corporativismo na Europa, em período próximo à
experiência brasileira dos anos de 1930 inclinou-se para um
arranjo contrário à democracia liberal devido a excessos e às
crises provocadas pela trajetória do capitalismo, em forte conexão
com o fascismo e o totalitarismo, apoiado na tensão provocada
pela agudização da luta de classes33
. Na condição tardo periférica
brasileira, o corporativismo, como crítica ao liberalismo,
amparou-se no reconhecimento deste último, no campo político e
econômico, como o obstáculo à modernização capitalista, e não
sua regulação ou superação. Tratou-se, portanto, de uma forma
particular de arranjo político para implantação do capitalismo
industrial e de estratégia de implosão da organização oligárquicas
regional e primário-exportadora.
O cerne do modelo de corporativismo brasileiro expressa
uma articulação entre uma ontologia social, produzida como
resposta intelectual ao problema do passado, particularmente
marcada pelo problema da identidade e do apontamento da
nacionalidade como algo por construir, com a adoção de
instrumentos para correção dessa rota e invenção do futuro. O
fortalecimento do Estado como ente capaz de produzir os nexos
32 LYNCH, Christian C. O pensamento conservador ibero-americano na Era das Independências
(1808-1850), Lua Nova, São Paulo, 20o8, n. 74. p. 59.
33 Cf. PINTO, António Costa, O corporativismo nas ditaduras da época do Fascismo. Varia
História, Belo Horizonte, V. 30, n 52, Jan./abr, 2014, p. 17.
117
de solidariedade social ainda inexistentes e de acelerar a
constituição de um projeto nacional apartado dos desvios do
liberalismo à brasileira34
serão as condições de absorção e
ressignificação do corporativismo. A aliança entre setores
produtivos, a geração de espaços paraestatais (mix entre aparelho
público e organizações/representações da sociedade civil),
adoção de conceitos de democracia de tipo "não liberal-
competitiva e o fortalecimento de conceitos genéticos como povo
e nação como base do compromisso social constituem-se como
meios de desmanche do legado da I República e sua conformação
oligárquico-agrária. Nesse projeto/processo, todas as variáveis-
chave da equação da modernidade deveriam ser flexionadas:
• No ajustamento dos códigos teóricos e intelectuais às
condições concretas da experiência histórica nacional,
recusando cânones ou ressignificando-os quando necessário.
Essa seria a tarefa de uma geração - aquela dos homens que
nasceram com a República e que nunca viram o Imperador ou
um escravo35
, mas que vivenciaram toda a transformação
nacional das primeiras décadas do século XX e sobre a qual
recaía a exigência de pensar e agir sob as novas condições
sociais.
• Na busca de uma via própria, inovadora e específica, ajustada
ao nosso cenário social, econômico e mental, distante do
bacharelismo, do mimetismo e da cópia de modelos e das
experiências estrangeiras, que até esse momento apenas
assimilaram os pressupostos liberais (claro que adaptados à
forma colônia).
• No primado da construção, da mudança orientada da
sociedade brasileira, elegendo, como motor principal dessa
mudança, um ator diverso do espontaneísmo e autorregulação
34 Cf. BOSI.Alfredo. Dialética da colonização, São Paulo: Companhia das Letras, 1992; SANTOS,
Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
35 CARDOSO, Vicente Licínio (Org). A margem da história da República. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1951.
118
do mercado econômico e político (nem o progresso como
resultado dos vícios privados, nem a política como concorrência
competitiva entre indivíduos) - a esfera estatal e, nesta,
valorizada a ideia de projeto (prognóstico) e de atuação
consciente e racional de elites esclarecidas.
• No delineamento de uma fórmula nacional própria para revisão
dos pontos nevrálgicos do conflito social em nosso contexto,
fora do formato da luta de classes, permitindo (ou exigindo) a
conformação de uma saída com pactuação e aliança entre os
grupos ligados ao trabalho, entre capital e trabalho diluídos no
semióforo da nação e mediados/articulados pelo Estado e pela
ideia de progresso. Essa pactuação proporia a transferência do
conflito da ordem privada para a ordem pública, por meio do
direito, mas associado ao surgimento de canais de participação
direta desses interesses organizados em corpus políticos, tais
como os sindicatos (percebidos como a forma social mais
avançada que indivíduos e partidos) e os Conselhos Técnicos.
Sobre a regulação estatal, Vianna afirmaria como positiva essa
intermediação capaz de dirimir o "conflito das disputas sociais":
O Estado tutelar transforma em funções técnico-
jurídicas as relações mercantis, apresentando-se a suma
ratio da sociedade civil. A sociedade e o mercado de
trabalho em particular são recobertos pela legislação,
como fim de solidarizar seus componentes num todo
orgânico, incapazes isoladamente de conviverem em
harmonia. Tudo que é privado se reveste de um caráter
público, conformando um ramo do direito que se
pretende autonomizar das relações mantidas pela
sociedade civil, com isso, impede-se a percepção da
sociedade como um mercado, embora legitime-se o
indivíduo possessivo.36
36 VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1989. p. 172.
119
Na próxima seção, passo a analisar duas dimensões do
corporativismo brasileiro: sua adequação ao debate em curso na
reflexão intelectual e política da Primeira República até o período
Vargas de 1930-1945, apoiada no argumento do amorfismo social
e crítica ao liberalismo e, na sequência, na sua permanência no
projeto de enfrentamento das oligarquias primário-exportadoras e
apoio ao projeto industrialista.
A teoria social do atraso, subcapitalismo e a recepção do
corporativismo no debate intelectual brasileiro
A estrutura argumentativa da interpretação da formação
social brasileira anterior à década de 1930 pautou-se na
investigação das causas das debilidades, insolidarismo e
insuficiências societais que impediriam a realização da nação e
do progresso entre nós. Por outro lado, geraria uma confluência
intelectual propensa a fortalecer os projetos políticos de
construção social e nacional filiados ao idealismo orgânico, com
centralização política e protagonismo do Estado, e que se
inclinariam, pari passu, à boa recepção obtida pelo modelo de
organização corporativa da sociedade.
Essa trajetória intelectual adquire clareza conceitual com
as obras de Alberto Torres e Oliveira Viana, perpassando as
formulações do período Vargas com Azevedo Amaral e o próprio
projeto defendido publicamente por Getúlio Vargas37
. A partir da
década de 1930, a tese sobre o atraso na formação histórica
brasileira passaria a invocar a questão econômica como base
explicativa, com a contribuição original e seminal do empresário,
líder empresarial e intelectual Roberto Simonsen. Com Simonsen
ocorre uma ressignificação radical na tese da fragilidade e do
déficit nacional: a matriz do atraso é resultado do passado colonial
na estruturação econômica, e somente a partir da superação da
vocação agrária as condições da nação estariam asseguradas. Na
37 A Nova Política do Brasil, 9 volumes.
120
tese simonsiniana, a ação centralizada de Estado como
instrumento de transformação social, a recusa dos pressupostos
liberais e a associação concertada entre capital e trabalho (na
síntese de progresso e da paz social) são pontos centrais e
inclinam sua tela para a gramática do corporativismo.
Em boa medida, as concepções de Oliveira Viana e
Roberto Simonsen podem ser entendidas como próximas,
especialmente quando avaliamos que o ponto original de ambos
é a associação entre um problema estrutural da formação social
brasileira (uma insuficiência), o que exige a elaboração de uma
estratégia ou projeto próprio para sua superação. Nas teses dos
dois autores também esta presente uma crítica acerba aos
automatismos sociais e econômicos de extração liberal, com
enfática defesa de um projeto de transformação social artificial,
racional e dotado de vontade política com aspiração nacional,
radicada na ação do Estado. Essas duas características colocam
Viana e Simonsen no campo do idealismo orgânico (uma
sociedade ou Mercado fraco versus um Estado hipertrofiado e
forte) e que associadas a uma percepção de aliança necessária
entre capital e trabalho, leia-se sindicatos de empresários e de
assalariados em prol da realização do objetivo do alcançamento
do progresso e da autonomia nacional, expressariam o vínculo
com as formulações do corporativismo, ajustado ao contexto
brasileiro.
No entanto, recuperando a hipótese anteriormente
assinalada da injunção entre a interpretação dos males do Brasil à
adoção e ressignificação da gramática do corporativismo no
entorno dos anos de 1930/1940, a diferença entre os dois autores
residiria exatamente no ponto de origem dessa articulação de
teoria-prática: originada na formação social ou na formação
econômica. No caso de Oliveira Viana, é bom lembrarmos que
sua produção intelectual remonta a uma linhagem com existência
longa no debate nacional, pretérito à própria reflexão desse autor,
estruturada no inventário das causas do atraso e dos dilemas da
identidade brasileira
121
que assinalava como temas das debilidades da sociedade o clima,
o meio, a raça, a mentalidade ou o translado e o perfil das
instituições políticas. Comum a esse campo seria o
reconhecimento de que por variados caminhos da história
colonial, da inserção e ocupação do, do surgimento dos tipos
humanos e da cultura social e política a eles associados, brotaria
uma sociedade amorfa, insolidária, descapacitada para o
reconhecimento da individualidade (entendida como self
moderno) e para a construção de: arranjos coletivos.
Essa agenda de problemas é ampla e longa, mas em
Oliveira Viana ganha uma configuração síntese de um diagnóstico
do passado somada a um projeto de futuro. Viana, a partir de
Populações meridionais38
, apontava que a inorganicidade
societal, o insolidarismo e a impossibilidade de agregação
coletiva haviam sido herdados da ocupação do insulamento rural
e do patriarcalismo da formação colonial. Nos textos
subsequentes, vai avançando na delimitação de instrumentos de
mudança social, paulatinamente políticos, estatais e organicistas.
Essa inclinação para a perspectiva corporativista, friso, possui,
como virtudes e especificidades, o reposicionamento do amplo
debate originado no século XIX sobre a relação entre costumes e
instituições, ajustando uma tese sociológica (a interpretação) à
elaboração de estratégias políticas de transformação (ação). Dois
elementos dignos de nota são a migração evolutiva do campo da
teoria social para a dimensão política (vide esforço hercúleo
presente em Instituições Políticas no Brasil) e o momento de
fortuna, que permitiram que a discussão vianniana, em especial
no redesenho das funções do Estado e no ajuste fino do
corporativismo "à brasileira", transformasse-se em propostas com
capacidade efetiva de realização histórica. Viana pertenceria ao
grupo de intelectuais capazes de intervenção em processos reais,
38 VIANA, F. J. Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização, psicologia. 7
ed. Belo Horizonte: Itatiaia, Niterói: EdUFF, 1987.
122
habilitados a se comportarem como state makers, intelectuais
públicos ou do Estado, ou como intelligentsia.
A possibilidade de compreender a obra de Viana como
uma síntese da trajetória intelectual pregressa remonta ao cenário
aberto pela discussão sobre o papel dos costumes e das condições
sociais e culturais brasileiras na opção pela forma liberal ou
conservadora do Estado ainda no Império. Segundo Ferreira39
,
podemos localizar o momento de tensão entre as "linhagens"
políticas liberais versus conservadora no debate entre Tavares
Bastos e Visconde de Uruguai, em 1860, que partiria da
problemática tocquevilliana em A democracia na América40
texto
que aponta os nexos indissociáveis entre formação da sociedade,
valores e definição de suas instituições políticas. Para Tavares
Bastos as leis teriam precedência sobre os costumes, enquanto
para Uruguai os costumes teriam precedência sobre as leis,
separando o liberalismo41
do primeiro e o centralismo unitário do
Estado do segundo. Esse problema de adequação entre a natureza
da sociedade e a natureza das instituições seria relegado ao
segundo plano com a instauração da República, mas não
despareceria da agenda da reflexão, sendo progressivamente
retomada e aprofundada, em especial a partir da década de 1910,
com destaque para a obra de Alberto Torres.
Torres e eu, o que um e outro fizemos - em relação ao
conhecimento cientifico da nossa evolução e
formação social, do ponto de vista especialmente da
evolução das instituições políticas e da estrutura do
Estado – consistiu aqui, nesta objetividade
39 FERREIRA, G.N.A relação entre leis e costumes no pensamento político e social brasileiro. In:
CEDEC et al. I Relatório Científico do projeto temático "Linhagens do pensamento político-social
brasileiro". São Paulo, apresentado à FAPESP em fevereiro de 2009.
40 TOOQUEVILLE Alexis de. A democracia na América. São Paulo: Editora Nacional, 1969.
41 Para Tavares Bastos "boas leis seriam capazes de produzir a boa sociedade", em uma monarquia
federativa (apud FERREIRA, G. N. Arelação entre leis e costumes no pensamento político e social
brasileiro. In: CEDEC et al. I Relatório Científico do projeto temático “Linhagens do pensamento
político-social brasileiro". São Paulo, apresentado à FAPESP fevereiro de 2009).
123
metodológica: considerar os problemas do Estado ou,
melhor, os problemas políticos e constitucionais do
Brasil, não apenas simples problemas de especulação
doutrinária ou filosófica – como então se fazia e como
era o método de Rui; mas como problemas objetivos,
vinculados à realidade cultural do povo e,
consequentemente, como problemas de comportamento
do homem brasileiro na sociedade brasileira.42
O vínculo entre a produção intelectual de Torres e de Viana
é muito estreito e ventilado francamente pelo último. Pesa nessa
conexão, muito fortemente, o método adotado, a partir do qual toda
forma de posicionamento político origina-se da análise das
condições sociais reais. O conhecimento sociológico não pode ser
absenteísta, uma "investigação pela investigação", mas deve, sim,
perseguir o objetivo da "orientação pragmática, como um processo
de coleta de dados concretos, sobre os quais se deveria apoiar a
solução objetiva e realística dos problemas nacionais"43
, imperativos
para o desenvolvimento social e de clara natureza política aplicada:
Torres era antes de tudo um "político", entendida essa
palavra não no baixo sentido de "político de partido";
mas, no alto e nobre sentido que ela comporta; digamos:
no seu sentido aristotélico. Daí, para ele, no que
concerne à metodologia científica, todas as
investigações, estudos e observações da nossa realidade
social deveriam ser conduzidas para este fim superior:
encontrar neles a chave para a solução de todos os
problemas da nossa organização social e econômica e
da direção política e administrativa do país. Ele punha,
assim, a Ciência Social a serviço da Ciência Política.
42 VIANA, F. J. Oliveira. Problemas de política objetiva. Rio de Janeiro: Record, 1974- p.64.
43 VIANA, F. J. Oliveira. Problemas de política objetiva. Rio de Janeiro: Record, 1974.
124
Há nesse aspecto uma curiosa contradição: a percepção
original dos condicionantes concretos inclinaria as teses de Torres
e Viana para um realismo pragmático, no entanto, o resultado da
formulação desses dois autores assume a feição do idealismo
orgânico. Examinemos essa questão com mais vagar. Em O
idealismo da Constituição, Oliveira Viana44
indica as duas
"espécies" de idealismo político no Brasil: o de tipo utópico e o
de tipo orgânico. Seria utópico "todo e qualquer sistema
doutrinário, todo e qualquer conjunto de aspirações políticas em
íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade
que pretende reger e dirigir45
; e seriam orgânicos aqueles que
"nascem da própria evolução orgânica da sociedade e não são
outra coisa senão visões antecipadas de uma evolução futura"46
A
grande distinção seria o reconhecimento dos dados da experiência
concreta e real de um povo, um meio, uma trajetória, exigências
para a tomada de decisões políticas e criação de instituições
eficazes, não quimeras transplantadas do mimetismo de tradições
e ideias exógenas47
. Viana afirma que a história brasileira teria
sido marcada pelo idealismo utópico48
o que teria constituído a
razão única de nossa debilidade por não permitir “realizar a
definitiva organização social e política de nosso povo.49
44 44 VIANA, F. J. Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, Vicente Licínio (Org.).
À margem da história da República. Brasília: Universidade de Brasília, 1981: VIANA F. J.
Oliveira. O idealismo da constituição. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1927: VIANA, F. J. Oliveira.
O idealismo na Constituição. São Paulo: Editora Nacional, 1939.
45 VIANA, F.J. Oliveira. O idealismo na Constituição. São Paulo: Editora Nacional, 1939. p. 10.
46 VIANA, F. J. Oliveira. O idealismo na Constituição. São Paulo: Editora Nacional, 1939. p. 11.
47 Não há uma só instituição no Brasil, como também, provavelmente, em quase todas, senão em
todas, as outras repúblicas sul-americanas, que se assente sobre bases próprias, para um
crescimento evolutivo e regular" (TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução
2 um programa de organização nacional. 3. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional: Brasília: INL,
1978. p. 44).
48 A nossa elite intelectual vive "entre duas 'culturas': uma - a do seu povo, que lhes forma o
subconsciente coletivo; outra - a europeia ou norte-americana, que lhes dá as ideias, as diretrizes
do pensamento, os paradigmas constitucionais, os critérios do julgamento político (VIANA, F. J.
Oliveira. Instituições políticas brasileiras, v. 2. São Paulo: EDUSP; Niterói: Universidade Federal
Fluminense, 1974. p. 19).
49 VIANA, F. J. Oliveira. O idealismo na Constituição. São Paulo: Editora Nacional, 1939, p. 13.
125
A contradição seria derivada de um profundo respeito às
condições do real, na formação específica e particular da
realidade nacional e, ao mesmo tempo, a adoção de atos da
vontade política que reinventariam ou promoveriam a mudança
social. Talvez por esse motivo, do cruzamento entre um realismo
analítico com um projeto político orientado de transformação
social, Oliveira Viana tenha adotado o termo "idealismo" como
base para dois modelos distintos - o utópico e o orgânico. Para o
autor, as ideias ou ideais são fundamentais, pois o mundo político
move-se por idealismos, como atos de vontade política. Assim, o
problema que separaria os idealismos seria sua finalidade distinta:
a) De imposição à sociedade um modelo incapaz de cumprir sua
função política precípua de ferramenta pela autonomia nacional,
pela realização de seu progresso - tipologia do idealismo utópico,
ajustado apenas à vontade de uma elite alheia aos interesses
nacionais e coletivos.
b) Pela adoção de um modelo que respeitando as condições
práticas da sociedade brasileira, detectando suas mazelas e
problemas, tenha como objetivo a superação dessa situação pela
adoção de instrumentos políticos apropriados a essa condição –
idealismo orgânico.
Nesse ponto penso que o elemento mais importante de
separação entre os dois idealismos resida na tensão entre
conservar/dominar (utópico50
) versus transformar/autonomizar
(orgânico).
A tendência de atrelamento de situações históricas
singulares, função/destino social do conhecimento e o uso de
estratégias políticas na concretização de trajetórias diferenciais
dos Estados Nacionais era uma invenção nossa, assim como a
crítica à hegemonia dos pressupostos liberais e aos limites do
capitalismo autorregulado.
50 Conceito de Utopia muito diverso da tese de Karl Mannheim, para quem a Utopia tem
significado oposto.
126
Esses temas compunham uma agenda intelectual e política
pautada na ideia de crise que circulava na produção mundial e que
gerou uma gama vasta de alternativas e arranjos sociopolíticos
distintos.
No Brasil, esses elementos surgiram em contexto próprio
e no interregno do governo Vargas, ganharam um formato
centralizador e corporativista que foi, em grande medida,
associado ao autoritarismo. Tomando como exemplo a obra de
Viana, Amaral, Torres e Campos, esse formato foi entendido
como um autoritarismo instrumental51
ou como uma vocação
autoritária stricto senso52
. Para este último, o complexo
intelectual formado por esses autores delineava o "pensamento
político autoritário", uma ideologia calcada nos superpoderes
atribuídos ao Estado diante da sociedade e do Mercado, no
enorme papel atribuído às elites técnicas, em uma visão
paternalista e autoritária do conflito social. Internalização da
mediação social para as arenas estatais. Desse conjunto surgiria
um Leviatã Benevolente, ventríloquo e condutor da sociedade
civil amesquinhada e apequenada em sua vitalidade, com a
substituição dos conflitos sociais (de classes, da regulação do
mundo do trabalho e de antagonismos setoriais) pelo
paternalismo autoritário legitimado em sua ação na realização da
"verdadeira" liberdade: a liberdade civil.
Tensionando as duas proposições, a linhagem do
idealismo orgânico, muito especialmente a produzida nas três
primeiras décadas do século XX, pode ser compreendida em outra
chave ou ajuste: na fórmula específica e pragmática da formação
nacional. Independentemente de ser meio ou instrumento para
alcançamento de um progresso nacional, a ontologia social que
baseia a gramática corporativa no Brasil indica ser esta a via
51 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas
Cidades, 1978.
52 LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na Primeira
República. Uma interpretação. In: FAUSTO, Boris (Org). História Geral da Civilizado Brasileira.
Tomo III, v. 9, São Paulo DIPEL, 1985.
127
possível e necessária para a realização da sociedade. Segundo o
raciocínio de Alberto Torres, o problema brasileiro era o de
desorganização, de uma penúria estranha a uma nação possuidora
de vasto território, porém incapaz de produzir o necessário para
subsistência de seu povo, sem ethos do trabalho e miserável
situação educacional, com proprietários "irregulares" e que no
conjunto perderia feio na comparação com outros países. Um país
a que faltam tais requisitos
não é uma nação, e não é mesmo uma soberania,
senão no rótulo jurídico. Nós carecemos de
organização, e precisamos nos reorganizar, não como
instituição jurídica, segundo os modelos de outros,
mas como nacional, como corpo social e econômico,
não devendo copiar nem criar instituições, mas fazê-
las surgir dos próprios materiais do país: traduzir em
leis suas tendências, dando corretivo a seus defeitos e
desvios de evolução.53
Assim, o problema brasileiro residiria em uma
nacionalidade
dispersa, amorfa, em estado quase líquido, sem
elementos de condensação e resistência; um
composto de admiráveis caracteres individuais,
moralmente unidos, sem caráter social: um conjunto
de raças e de tipos, sem modelo nacional: uma nação,
sem nacionalidade (grifos do original).54
Contribuiriam para explicação desse quadro a dispersão e
forma de organização produtiva, elites reprodutoras de ideias e
padrões exógenos, instituições inadequadas, lutas partidárias
53 TORRES, Alberto. A organização nacional. São Paulo: Editora Nacional, 1978. p.167.
54 TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução a um programa de organização
nacional. 3ª. ed. São Paulo: Cia Editora Nacional: INL, 1978, p. 127.
128
sectárias e sem sentido, falta de propósito comum e inexistência
de formas de solidariedade social e política. A vida pública seria,
assim, a contrapartida de uma sociedade plástica e
hipossuficiente:
A separação da política e da vida social atingiu, em
nossa Pátria, o máximo da distância. A política é, de
alto a baixo, um mecanismo alheio à sociedade,
perturbador da sua ordem: governos, partidos e
políticos sucedem-se e alternam-se, levantando e
combatendo desordens, criando e destruindo coisas
inúteis e embaraçosas. Os governantes chegam à
situação de perder de vista os fatos e os homens
envolvidos entre agitados e enredos pessoais.55
O método e boa parte dos argumentos de Torres são retomados
por Viana, modificando a "nossa gente" para o "povo-massa",
aprofundando a análise da ocupação (descritiva e
antropogeográfica), a formação de caráter cultural e a
organização econômica e institucional. Na tese do regime do clã,
sua origem e inevitabilidade está na "extrema miserabilidade das
nossas classes inferiores", já que o campônio não possuiria força
pecuniária, material e social que lhe permitisse "reagir contra o
arbítrio que o ataca, ou o expropria, ou o oprime".56
De outro lado,
mesmo seu arranjo mais moderno ou evoluído ainda conformaria
uma debilidade, pois o Brasil seria um país descontínuo,
ganglionar e de isolamento de grupos societais:
O que eu vejo nele, no seu conjunto, é uma série
número e variada de núcleos orgânicos ou gânglios
regionais, distintos, pela formação e estrutura social,
uns dos outros e que, por sua vez, se subdividem em
55 TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução a um programa de organização
nacional. 3. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional; Brasília: INL, 1978. p. 88.
56 VIANA, F. J. Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização, psicologia. 7.
ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói, EdUFE, 1987. p. 145.
129
núcleos menores, separados (insisto em frisar este
traço) por enormes espaços desertos, lacunas
intermediárias", como diria La Blanche. Núcleos
estes praticamente destituídos de circulação material
e espiritual e vivendo, por isto mesmo em regime de
insulamento. Insulamento que tende a particularizá-
los cada vez mais em grupos culturais próprios, pela
sua quase ausência de contatos com os Outros grupos
e os centros civilizadores do litoral.57
Adicionado a esses problemas estruturais de formação
colonial, matriz do amorfismo social, do insolidarismo, do
aparecimento de elites descoladas da realidade social (incapazes,
também, de dirigir a sociedade para a autonomia nacional),
produtoras de um conjunto de valores e práticas sociais que
acentuariam o atraso e a distância de outros exemplos mundiais,
haveria ainda o desajuste grave das dessas instituições, na
constituição do Estado e nas possibilidades da democracia.
Quanto às instituições, o maior problema era a distância entre o
"país real" e o "país legal". pelo transplante de cânones adversos
às práticas costumeiras e comuns que oscilavam entre o regime
de clã, o povo-massa, o insulamento ganglionar e a cegueira das
elites.58
Quanto à organização administrativa e política chamada
Estado, esta aqui formou-se alheia ao processo americano,
caracterizado por emergir da decisão consciente dos indivíduos.
Entre nós, ao contrário, era uma espécie de
carapaça disforme, vinda de fora, importada. Vasta.
complexa, pesadíssima, não está pela enormidade da
sua massa, em correspondência com a rarefação e o
tamanho da população que subordina. Perfeitamente
adequada a uma sociedade que possuísse o grau de
57 Viana. F. J. Oliveira. Instituições políticas brasileiras. v.1. São Paulo: EDUSP: Niterói:
Universidade Federal Fluminense, 1974. P. 79.
58 Cf. teses presentes em O idealismo na Constituição, versões 1927 e 1939, e na análise mais
madura de Viana em Instituições políticas brasileiras.
130
complexidade de qualquer sociedade europeia, em
fase adiantada de evolução, é flagrante a sua
disparidade com uma sociedade, como a brasileira do
período colonial, de fisionomia ganglionar, rarefeita,
dispersa, em estado de dissociação intensa.59
Da mesma forma que as instituições precisariam de um
giro de adaptação para as condições reais - e não quiméricas - da
forma social brasileira, a democracia na experiência brasileira
teria que assumir como ponto vital não o sufrágio "liberalizado a
todo mundo", mas a
garantia efetiva do homem do povo-massa, campônio
ou operário, contra o arbítrio dos que "estão de cima"
– dos que detêm o poder, dos que "são governo".
Pouco importa, para a democracia no Brasil, sejam
estas autoridades locais eleitas diretamente pelo
povo-massa ou nomeadas por investidura
carismática: se elas forem efetivamente contidas e
impedidas do arbítrio - a democracia estará
realizada.60
O conjunto da seleta de pontos das obras de Torres e Viana -
ressaltando o tema nevrálgico da necessária adequação funcional
entre as condições sociais reais, caracterizadas por variados
elementos de amorfismo, insulamento geográfico e econômico,
insolidarismo e formas singulares da dominação por elites e clãs,
e a natureza e as tarefas esperadas das instituições políticas de
transformação desse cenário – pretende reforçar o argumento de
que, para esses autores, a adoção da saída corporativista e da
centralidade do papel do Estado dificulta não só sua identificação
imediata enquanto uma ideologia autoritária, mas também torna
59 VIANA, F. J. Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização, psicologia. 7.
ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói, EdUFF, 1987, p. 245.
60 VIANA, F. J. Oliveira. Instituições políticas brasileiras. v. 2. São Paulo: EDUSP; Niterói:
Universidade Federal Fluminense, 1974. p. 174.
131
mais complexa a compreensão de seu caráter instrumental. Uma
saída para esse imbróglio reside na compreensão do elo intrínseco
entre a interpretação, enquanto expressão da particular ontologia
social brasileira, e a definição pragmática de arranjos políticos
específicos para essa situação histórica diferencial. Assim, na
construção de uma modernidade própria e particular, a via de
construção da nação autônoma seria pavimentada por um modelo
autóctone - no qual a recepção do corporativismo seria
incorporada e ressignificada.
Adotar a hipótese da proximidade e funcionalidade do
corporativismo no debate intelectual e político brasileiro no
entorno da década de 1930 facilita compreender como ele pode
aparecer em programas ideológicos tão distintos dos integralistas,
dos state makers do staff varguista e do nascituro projeto
industrialista. Nesse diapasão, destaco a permanência do
corporativismo na produção intelectual de Simonsen, bastante
distante do arcabouço conceitual do pensamento de Alberto
Torres, Oliveira Viana e outros intelectuais próximos ao que
Lamounier convencionou chamar de ideólogos do pensamento
autoritário.
A interrogação sobre o atraso, identificado como um
processo específico da formação histórica nacional, é elemento
das trajetórias de Torres e Viana e que permanece na obra de
Roberto Simonsen, abraçando agora uma explicação de tipo
econômico, tanto para a formação colonial que nos coloca em
situação de atraso (subcapitalismo) quanto para os obstáculos da
fase 1930/1945, em que o planejamento, a força centralizadora do
Estado e o arranjo de pactuação entre as classes seriam
fundamentais para o progresso e a constituição de um projeto
nacional autossuficiente.61
61
O reconhecimento da originalidade da tese do subcapitalismo e do afastamento da vocação
agrária é relevante, dada a visão de conjunto da posição do autor, já que Simonsen, na primeira
fase de sua obra (1918/1928), parece ser um liberal, submisso à vocação primário-exportadora. Na
década seguinte, Simonsen torna-se um keynesiano ou algo mais avançado – um
desenvolvimentista - de qualquer forma, um antiliberal do ponto de vista económico, um defensor
radical do planejamento e do projeto de industrialização.
132
Roberto Simonsen62
foi pioneiro na afirmação da condição
estrutural do atraso em nossa economia, condição inicial da qual
todos os demais problemas sociais seriam derivações. Percebe-se,
analisando a cronologia e o conteúdo de seus trabalhos, uma
progressão analítica que tenta abarcar o sentido desse problema
primeiro como pobreza, depois como pauperismo e, por último,
como subcapitalismo (versão embrionária de subdesenvolvimento).
É também no pensamento Simonseano que encontramos a passagem
conceitual do antigo protecionismo industrial para o planejamento
econômico.
O estudo sobre as condições da pobreza brasileira surge na
agenda de reflexão de Simonsen desde o texto de 1930, em que
afirma que a questão da carestia de vida e seu vínculo com o
"inexistente" protecionismo eram uma miragem - mesmo porque, a
rigor, nunca houve protecionismo no Brasil (pelo menos despendido
de fato à indústria). Simonsen conclama os espíritos lúcidos ao real
problema da sociedade brasileira, o seu baixo poder aquisitivo,
diferente aqui daquele do estágio mais primitivo descrito por List (o
da agricultura de subsistência) ou aquele imerecido pelo
agravamento do processo de concentração e espoliação do capital
(como o que ocorre nos países com desenvolvimento industrial mais
antigo e onde a posição gananciosa e irascível dos patrões leva os
indivíduos ao embate de classes).
Verifica-se, porém, que a origem da existência desses
baixos níveis é bem diversa do que se constata em
alguns grandes países de densa população, de fartos
recursos econômicos e de grande progresso material.
Ali, muita vez, existe a miséria imerecida, proveniente
da má distribuição dos proventos do trabalho aqui,
apura-se que, em larga escala, a pobreza decorre da
62 SIMONSEN, Roberto. As crises no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora, 1930; SIMONSEN,
Roberto. As finanças e a indústria. São Paulo: São Paulo Editora, 1931: SIMONSEN, Roberto.
Ordem econômica, padrão de vida e algumas realidades brasileiras. São Paulo: São Paulo Editora,
1934; SIMONSEN, Roberto Aspectos da política econômica nacional. São Paulo, 1935;
SIMONSEN, Roberto. A indústria em face da economia nacional. São Paulo: Empresa Gráfica da
Revista dos Tribunais, 1937.
133
insuficiência da produção, do atraso e da instabilidade
do meio. O problema do salário está
indissoluvelmente ligado ao da produção. Todos
ansiamos - patrões e empregados do Brasil - que aqui
se estabeleça uma justa remuneração do trabalho, que
todos possam viver a vida digna [...] mas se a
retribuição do homem é fixada em grande parte pela
própria produção; se esta é de pequeno valor em
relação ao volume de mão de obra disponível, como
obter um elevado quociente se o divisor é fraco e o
dividendo cresce continuadamente? O nosso grande
mal, atingindo todas as classes, principalmente a dos
trabalhadores, é a insuficiência de ganho.63
Esse argumento permeia toda a produção simonseana até
seu último trabalho, mas em nenhum de seus textos a questão foi
tão clara e cruamente exposta quanto no trabalho apresentado ao
plenário da Assembleia Constituinte, em 1934, quando assevera
que o Brasil é um país pobre com uma população pobre. A
afirmação, nada simpática, vinha acompanhada de um apanhado
de dados e indicadores preocupantes, apresentados a uma plateia
representativa de todos os interesses nacionais (talvez o mais
seleto e importante grupo de ouvintes a que Simonsen já tivera
acesso):
Ernest Wagemann, presidente do Departamento de
Estatística e do Instituto para o Estudo de Conjuntura
da Alemanha, na classificação dos povos, que adotou,
inclui o Brasil na zona neocapitalista, de acordo com
determinados índices econômicos. Nessa mesma
zona estão compreendidas a Austrália, a África do
Sul, a América Central, a América do Sul e parte do
Canadá. Como índices de ordenação, tomou
densidade da população por quilometro quadrado, o
63 SIMINSEN, Roberto. Níveis de vida e economia nacional. São Paulo, 1940, p. 14.
134
valor do consumo de máquinas por habitante, a
extensão das vias férreas, o número de trabalhadores
industriais em percentagem da população
economicamente ativa e o valor do comércio exterior
por habitante. Esses índices médios, para toda a zona
neocapitalista, em conjunto, foram encontrados como
sendo de: densidade de população: 3,1 hab. Por km²;
consumo de máquinas: 32$000 por hab.; extensão das
vias férreas: 21,8 km² por 10.000 hab; existência de
vagões: 27: percentagem de operários industriais: 19;
índice do comércio exterior: 684$o00 por hab. Para o
Brasil, especialmente, esses índices seriam os
seguintes: densidade de população: 5,2 hab. por km²;
consumo de máquinas: 16$00o por hab.; extensão das
vias férreas: 7,5 km² por 10.000 hab; existência de
vagões: 10 por 10.000 hab.; percentagem de operários
industriais: 10; índice do comércio exterior: 185$000
por habitantes.64
Pelos indicadores utilizados pelo Instituto alemão, o
Brasil, mesmo fazendo parte da denominada zona neocapitalista,
uma vez estabelecidos os valores médios encontrados em todo o
conjunto de países que faziam parte desse vasto grupo, está
provavelmente colocado na fimbria dessa classificação. Além dos
indicadores quantitativos, Simonsen qualifica a pobreza brasileira
não só em termos de uma baixa renda per capita, mas também em
relação aos indicadores da baixa escolaridade e participação
política da população. As rendas do Estado brasileiro
acompanhavam a insuficiência do ganho e, com um quadro já tão
adverso, parecia ainda pior o prognóstico do futuro:
64 SIMONSEN, Roberto. Ordem econômica, padrão de vida e algumas realidades brasileiras. São
Paulo: São Paulo Editora, 1934, p. 16.
135
O Brasil está classificado entre os países em que a
criação de novos capitais é inferior às necessidades da
amortização de suas dívidas sendo, portanto, forçado
a cobrir o déficit por importação de capitais ou
lançamentos de empréstimos no exterior. Calcula-se
que essa diferença necessária corresponde a 6% do
rendimento nacional. Todos esses elementos, Sr.
Presidente, denunciam esta dura realidade: o Brasil é
um país pobre, habitado por uma população pobre.65
Ou seja, o ritmo da geração de riqueza do país era inferior ao
tamanho de sua dívida, e esta distância aumentaria ainda mais
pelo tradicional método de cobrir o déficit com novo
endividamento. A afirmação de Simonsen, ao fundo desse
cenário, é que não somente o país era pobre como tendia a ser
cada vez mais pobre - provém daí o teor imperativo de sua
cruzada contra o pauperismo. A afirmação de Simonsen criou,
naquele momento, uma celeuma no plenário, desembocando nos
apartes feitos sobre a riqueza inata do país. Simonsen era acusado,
indiretamente, de desprezar as condições naturais e mesológicas
que davam sustentação e uma perspectiva de futuro para a
economia nacional. Não só a discordância de Simonsen devia-se
à convicção de que o desenvolvimento econômico só poderia ser
gerado a partir do crescimento das atividades industriais e do
desenvolvimento interno, como a questão da pobreza brasileira
funcionava como uma peça estratégica da crítica ao modelo
vigente, responsável pelos indicadores do período, e como uma
recusa ao argumento de uma "natureza potencial" que colocaria
de lado os três problemas que o autor queria realçar: a crítica do
modelo vigente, a necessidade de mudança e a importância da
vontade de implementar as transformações necessárias longe de
uma perspectiva espontânea ou natural.
65 SIMONSEN, Roberto. Ordem econômica, padrão de vida e algumas realidades brasileiras. São
Paulo: São Paulo Editora, 1934, p. 18.
136
Ao longo desse extenso debate (mais de dez páginas
transcritas nos anais da Constituinte), Simonsen apontaria
sempre a mesma condicionante: um país pobre e com uma
tendência a empobrecer mais; e uma única saída: apostar no
desenvolvimento de uma economia de base industrial. O único
consolo que apresenta aos ouvintes é que nossos males
resultavam do atraso do país que ainda não adentrara ao
modelo industrial. Se esse atraso era lamentável, pelo menos
nos habilitaria a ingressar na era do desenvolvimento sem
conviver com a mesma quantidade de problemas que marcara
a evolução sombria de outros povos -"crescemos menos,
erramos menos".
O conjunto da reflexão apresentada no plenário da
assembleia incidia em alguns pontos importantes para o projeto
industrial: evidenciava uma situação de pobreza crônica,
devido as suas características, originária dos momentos
anteriores da economia; condenava o custo dos direitos sociais
que incidiriam nas atividades produtoras; pregava o
crescimento da economia primeiro e a distribuição de riquezas
depois; acentuava as defasagens sociais (ausência de educação,
de condições de higidez e de acesso a bens serviços básicos por
parte da maioria da população brasileira); apresentava como
dado a estagnação do ritmo das exportações e apontava, ao
contrário, a aceleração da tendência ao endividamento; incitava
as elites a abandonarem suas ideias exóticas e a aferrarem-se
aos verdadeiros problemas nacionais, colocava o estímulo ao
desenvolvimento do comércio e da indústria como caminho
para sair da condição de pobreza.
O conhecimento acumulado sobre a experiência
histórica de outras nações nos indicava um caminho mais
seguro para trilhar, desde que tivéssemos a sábia atitude de não
repetir os erros nelas praticados e de não importarmos modelos
sem a preocupação de verificar a validade e aplicabilidade
deles ao quadro brasileiro.
137
A situação de hoje em dia é esta: a nação nova, tem
de ser protegida, pois não dispõe dos aparelhamentos
econômicos dos países adiantados, e os países fracos,
os que não dispuserem de tais aparelhamentos,
fatalmente terão de perecer na concorrência
internacional. Assim, temos de compensar a fraqueza
das nações novas com proteção apropriada.66
Nesse aspecto, a proposição de protecionismo à indústria
e sua necessidade diante da competição internacional revelam a
influência das teses de Manoilescu (que Simonsen havia lido e
que é citado em apenas algumas de suas obras).
Outra contribuição original encontrada em As crises no Brasil67
é
uma percepção crítica sobre a dinâmica do desenvolvimento
capitalista. Tomando como tipo original de sucesso econômico o
modelo inglês e a revolução tecnológica norte-americana
(destacando o forte protecionismo que marcou esses sólidos
exemplos da economia liberal), Simonsen é o primeiro a apontar
a existência de um descompasso entre economias já
desenvolvidas e as subcapitalizadas, não podendo as primeiras
servir de modelo eficiente para as segundas. A cópia do padrão de
economia natural (escola clássica) não poderia garantir êxito em
economias atrasadas, especialmente em razão da função essencial
da inovação. Para Simonsen, mesmo os Estados Unidos não
transladaram a estrutura da economia inglesa, mas diferenciaram-
se dela pela inovação tecnológica, pela administração racional do
processo produtivo e pela modificação da estrutura do seu parque
industrial. Outro exemplo sobre a diversidade econômica era o
caso alemão, no qual a "vantagem competitiva" fundamental fora
a ação interventora do Estado como ente que forçara
racionalização extrema, tanto da produção empresarial quanto
66 ANNAES da Assembleia Nacional Constituinte de 1933. v. VII, 1935, p. 117.
67 SIMONSEN, Roberto. As crises no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora., 1930.
138
da econômica enquanto um sistema integrado (modelo da
economia nacional proposto por Georg List).
Em síntese, Simonsen traça um quadro diferente para as
deficiências brasileiras, alinhadas ao problema da vocação agrária
e da conformação de nossa inserção subalterna na divisão
internacional do trabalho. A razão do nosso atraso é econômica,
presa a uma pobreza resultante de nossa baixa capacidade de
produção. Nesse cenário, a adesão ao liberalismo econômico fora
parte da formação do atraso, e sua permanência um meio rápido
para o colapso social. Seria necessária a construção de um projeto
nacional, acima dos interesses particulares e capaz de promover a
riqueza nacional – ponto de partida para uma melhor divisão da
elevação da produtividade (movimento primário) no conjunto dos
grupos sociais que a produziram (movimento secundário).
O projeto de desenvolvimento simonseano brota, como as demais
ideologias corporativistas brasileiras do período, do
reconhecimento de uma causa estrutural de nossas insuficiências
e na proposição de uma vontade organizada e condutora da
construção nacional. Nessa proposição, o livre mercado, o
individualismo político, os sectarismos partidários deveriam ser
subsumidos a um pacto ou compromisso social, articulado entre
trabalhadores e empregadores - as forças vitais da nação - e
coordenado pelo Estado, a partir de um conhecimento científico
e racional, planejador da mudança social. Simonsen, nesses
termos, é um intelectual da linhagem do idealismo orgânico. Não
é à toa que em sua trajetória de constituição da ideologia do
industrialismo em condições de subcapitalismo tenha se
aproximado e paulatinamente, participado das estratégias
corporativistas adotadas por Vargas - a quem se opusera em
momentos anteriores, como na Aliança Nacional Libertadora, na
Revolução de 1930, na guerra paulista de 1932 e, menos
abertamente, nos trabalhos da Constituinte de 1933/1934 (em que
chegara na condição de deputado classista).
139
A engenharia corporativista em ação - as estratégias de
Vargas
Os ideólogos do corporativismo interpretaram os males do Brasil
tecendo um grande rol de problemas que anelavam a dimensão
social com as disfunções institucionais. Meio, raça, vínculos de
solidariedade social, insulamento regional, organização das
atividades produtivas e unidades terratenentes produziam
corolários políticos como patrimonialismo, elitismo
desenraizado, Estado fraco e nação fragilizada. Essas
interpretações, geradas antes ou logo depois da Revolução de
1930, aparecem no fundo de tela das ações do governo Vargas,
mais acentuadamente nos desdobramentos do governo provisório,
momento constitucional e Estado Novo, com destaque para a
crítica da estrutura partidária, a arquitetura do Estado e suas
funções na Primeira República. Durante esses quinze anos houve
um movimento de fortalecimento progressivo da proposta
corporativista como único meio de solução dos problemas
nacionais, envolvendo as capacidades do Estado de agir em prol
da realização do projeto nacional e, nessa tarefa, impedindo que
os distúrbios do partidarismo oligárquico, das elites sem
responsabilidade social, de um capitalismo sem direção e
acelerador de tensões sociais ou mesmo do revival das energias
da Primeira Republica pudessem abortar as metas instauradas
pela revolução de 30. A leitura dos discursos de Vargas em A nova
politica do Brasil revela o altíssimo nível de adesão à gramática
do corporativismo, à constituição de uma democracia econômica
e organicista em oposição ao liberalismo, tanto econômico quanto
político. Essa evolução em direção a novas bases da organização
política e da vida pública nacional fora obra da Revolução, na
preservação de seu caráter original, exigente de superação das
sequelas ainda renitentes de um federalismo mal compreendido e
mal executado na República."68
68 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: O ano de 1932 – A Revolução e o Norte – 1933.
v. 2, Rio de Janeiro: José Olympio, 1932, p. 149.
140
A revolução não fora obra de um partido, e sim um amplo
movimento de opinião, difuso e complexo, sem ter para "guiar-
lhe a ação reconstrutora, princípios orientadores, nem postulados
ideológicos definidos e propagados".69
Seu caráter heterogêneo,
compósito de inúmeras correntes e energias sociais de "difícil
aglutinação" impulsionou o governo provisório a "colocar-se
acima das competições partidárias ou facciosas, para não trair os
compromissos assumidos com a Nação"70
, integrando o país nas
"concepções do Estado moderno, onde as preocupações
partidárias ocupam lugar subalterno"71
. Para escapar das cisões
facciosas dos partidos da Primeira República, Vargas invocaria a
visão antinômica da cooperação das classes, das mediações dos
Conselhos Técnicos e de uma nova forma de articulação da
representação política de molde orgânico, baseado nos corpos
representativos das classes produtoras (empregados e
empregadores) - a representação classista, utilizada no processo
eleitoral de 1933 para composição do colegiado que definiria a
nova Constituição Brasileira. Em discurso proferido na instalação
da Assembleia Constituinte de 1933, Vargas declarava como fato
incontroverso:
a decadência da democracia liberal e individualista e
a predominância dos governos de autoridade, em
consequência do natural alargamento do poder de
intervenção do Estado, imposto pela necessidade de
atender a maior soma de interesses coletivos e de
garantir estavelmente com o recurso das
compreensões violentas, a manutenção da ordem
pública, condição essencial para o equilíbrio de todos
os fatores preponderantes no desenvolvimento do
progresso social. Achave de toda organização política
69 ANNAES da Assembleia Nacional Constituinte de 1933. v. VII, 1935, p 52.
70 ANNAES da Assembleia Nacional Constituinte de 1933. v. VII, 1935, p 117.
71 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: A realidade Nacional de 1933 - retrospecto das
realizações do Governo, em 1934. v. 3. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.
141
moderna é a segurança e eficiência desse equilíbrio.
Onde ele falta, há perturbação, entrechoques e
dispersão de energias, Se é verdade, como se afirma,
que o principio de coexistência social evoluiu,
deslocando-se do indivíduo para a coletividade, o
máximo que se deve aspirar, nos momentos
conturbados e incertos do mundo atual, é a ordem
para o trabalho e o respeito para o cidadão, visando
conciliar, no interesse de todos, a liberdade com a
responsabilidade (grifos meus).72
Nessa empreitada, surge como necessário encontrar uma
nova forma social capaz de concertar e equilibrar as tensões
econômicas e sociais, com base no "princípio orgânico e justo da
colaboração e da cooperação"73
, e, por outro lado, afastar a
ameaça do retorno das artimanhas políticas dos grupos e partidos
vencidos em 1930. Nesse ponto, Vargas demonstrou um segundo
caráter para a adoção das estratégias do corporativismo: funcionar
acima das classes, dos grupos, dos regionalismos e da forma
tradicional do liberalismo em seu formato nacional - alinhado às
forças retrógradas do passado do amorfismo social, das elites a
serviço das tiranias das oligarquias mercantil-exportadoras, da
desagregação política. Trata-se de uma adaptação do
corporativismo, em seu projeto nacional e modus operandi
orgânico distinto do privatismo individualista, ajustado aos
conflitos políticos modernos, porém aqui ressignificado pelos
contornos específicos de nossa trajetória - tema exaustivamente
tratado pelos intelectuais da linhagem orgânica na interpretação
social da formação brasileira. Essa adaptação corresponde
exatamente ao desafio indicado explicitamente por Vargas de
72 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. O ano de 1932 - A Revolução e o Norte -1933. v.
2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 149.
73 Que para realizar-se exigiria "desprezo aos preconceitos, desapegos dos bens materiais, em
suma, espírito de sacrifício social, tudo isso impondo uma grande transformação de mentalidade"
(VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Da Aliança Liberal às realizações do primeiro ano
de Governo (1930-1931). v. 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 147).
142
governar a partir de um projeto amplo que os grupos e
movimentos sociais que o geraram.74
Apoiou-se, fortemente, em
duas estratégias: a representação profissional e os Conselhos
Técnicos.
A proposta da representação classista criava atores
políticos concorrentes das elites tradicionais por estarem fora dos
partidos e dos interesses regionais e setoriais (como as elites
latifundiárias, exportadoras e da economia do café), funcionando
em uma lógica diversa. da diferença e complementaridade das
classes laborais: trabalhadores assalariados, industriais ou
comerciais, empresários industriais e comerciantes e o
funcionalismo público). Seu objetivo era o de
[...] congregar todas as classes, em uma colaboração
efetiva e inteligente. Ao direito cumpre dar expressão
e forma a essa aliança capaz de evitar a derrocada
final. Tão alevantado propósito será atingido quando
encontrarmos, reunidos numa mesma assembleia,
plutocratas e proletários, patrões e sindicalistas, todos
os representantes das corporações de classe,
integrados, assim, no organismo político do Estado.75
Com a criação dos Conselhos Técnicos, grupos de apoio
do governo federal (que eram nomeados metade pelo governo e
metade pela associação dos trabalhadores das diversas
profissões), Vargas implementou mais uma instância funcional
orgânico-corporativista, trazendo para dentro do Estado a
74 A revolução não fora processo demorado e apoiada nas "forças vivas da nacionalidade. A
chamada Aliança Liberal não foi um partido político, no conceito comum da expressão. Nela
entraram vários agrupamentos partidários de programas diferentes e, sobretudo, avolumou-se a
corrente de opinião pública brasileira, fora dos partidos e acimas deles, em cujo espírito se
arraigara o ideal renovador dos velhos moldes da política nacional" (VARGAS.
Getúlio. A nova política do Brasil. Da Aliança Liberal às realizações do primeiro ano de Governo
(1930-1931). v. 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 82).
75 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Da Aliança Liberal às realizações do primeiro ano
de Governo (1930-1931). v. 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 118.
143
a representação, a participação e a competência de influenciar a
agenda governamental grupos sociais ligados diretamente ao
mundo da produção, investidos agora de uma capacidade política
não liberal-competitiva, de tipo eleitoral partidária. Outro fato
importante é que o critério de legitimidade desses atores advinha
de um saber técnico, de uma expertise necessária em um modelo
político que pretende dirigir a mudança social a partir do Estado
e de suas instituições. Conselhos Técnicos e o surgimento de uma
burocracia pública funcional com a criação do DASP transferiam,
paulatinamente, a dinâmica do poder político da articulação e
competição da sociedade civil e dos partidos para dentro das
arenas estatais, sob a égide da racionalidade econômica. Soma-se
à engenharia corporativista de Vargas, acelerada com a
implantação do Estado Novo, o papel fundamental da estrutura
econômica enquanto um problema (origem de tensões sociais
graves, de disrupturas perigosas como a luta de classes), o
reconhecimento da autonomia econômica como condição
necessária da autonomia e soberania política nacional e, por
último, como estratégia de resolução dos problemas do
amorfismo social (apontado por Torres, Viana, Amaral) e do
subcapitalismo (apontado por Simonsen - de quem Vargas se
aproximaria muito, após a implementação dos Conselhos
Técnicos e na guinada industrialista pós-1935/1937, como base
do modelo de desenvolvimento nacional).
A democracia de tipo liberal clássica, de partidos e
eleições, no caso brasileiro, não cabia mais nos imperativos de
uma sociedade em ebulição76
e em nova configuração:
76 "Na hora presente, os homens de responsabilidade pública não podem nem devem esquecer que
as questões de natureza econômica e os imperativos da ordem social sobrelevam às preocupações
meramente políticas" (VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Retorno à terra natal -
confraternização sul-americana - A Revolução Comunista – novembro de 1934 a julho de 1937. v.
4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 197).
144
Quando os partidos políticos tinham objetivos de caráter
meramente político [...] as suas agitações ainda podiam
processar-se à superfície da vida social, sem perturbar
as atividades do trabalho e da produção. Hoje. porém,
quando a influência e o controle do Estado sobre a
economia tendem a crescer, a competição política tem
por objetivo o domínio das forças econômicas, e a
perspectiva da luta civil. que espia, a todo o momento,
os regimes dependentes das flutuações partidárias, é
substituída pela perspectiva incomparavelmente mais
sombria da luta de classes.77
O progressivo aprofundamento da perspectiva corporativista
do governo Vargas avançaria da crítica do liberalismo da Primeira
República, apoiada na tese de condições particulares de nossa
formação e da criação de um quadro político e institucional
adequado a essa particularidade, passando pelas estratégias de
enfrentamento da herança do regime de derrocado em 193o, até um
projeto nacional robusto, pautado pela questão da industrialização e
modernização econômica como base a questão nacional. Em todos
esses momentos, de perfil não liberal, estariam presentes elementos
da gramática política do corporativismo, em especial na versão
nacionalizada dos elementos do conflito social ( em parte moderno,
porque capitalista; e em parte de modernidade hibrida em função do
legado econômico, social e político da formação colonial), o
nacionalismo voltado para o futuro, como projeto social, e a
cooperação entre as classes produtoras em arranjo singular da
promoção artificial do desenvolvimento econômico via
planejamento e condução estatal.
Esse repertório, com a significativa modernização conceitual
promovida por Roberto Simonsen, é que permitiria que os elementos
do corporativismo permanecessem, adiante, nas elaborações do
nacional-desenvolvimentismo - forma expressiva e ressignificada da
77 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. O Estado Novo - 10 de novembro de 1937 a 25 de
julho de 1938. v. 5. Rio de Janeiro: José Olympio,1938. p. 22.
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  • 1. 99 Cepêda, Vera Alves. Trajetórias do Corporativismo no Brasil: teoria social, problemas econômicos e efeitos políticos. IN: ABREU, Luciano Arone de; SANTOS, Paula Borges. A Era do Corporativismo: regimes, representações e debates no Brasil e em Portugal. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2017, p. 99-149. _________________________________________________ TRAJETÓRIAS DO CORPORATIVISMO NO BRASIL: TEORIA SOCIAL, PROBLEMAS ECONÔMICOS E EFEITOS POLÍTICOS _________________________________________________ Vera Alves Cepêda1 Este trabalho tem como objeto de reflexão as trajetórias do corporativismo no Brasil, concebido enquanto uma ideia e um fenômeno plural, dotado de mais de uma faceta e momento de existência na vida pública nacional. Ao longo do texto, tentarei demonstrar alguns pontos importantes sobre a forma e as funções específicas do corporativismo adaptado ao nosso contexto e que, exatamente em sua recepção aplicada, promoveu uma trajetória particular que só ganha sentido se percebida em seus nexos com a teoria social do “atraso brasileiro” e com a identificação das disfunções do liberalismo econômico (primário-exportador) e político (elites oligárquico- regionais). A hipótese. É que aqui o corporativismo encontrou terreno fértil para sua adoção, sintonizada com o debate da interpretação sobre a formação nacional, com o problema de sua insuficiência social e com sua consecutiva evolução para insuficiência econômica (como sua recepção em Alberto Torres, Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Roberto Simonsen, 1 Professora do Departamento de Ciência Sociais e do Programa de Pós- Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos/(UFSCAR).
  • 2. 100 entre outros autores coetâneos2 ) e que, exatamente por esse cenário particular, forjou um corporativismo sui generis. Essa hipótese só ser sustentada no campo de análise do pensamento Social e político, observando a incorporação do modelo corporativista (uma ontologia social, somada a um projeto político e pautada em meios específico, de ação) na trajetória do debate intelectual nacional. Assim, o corporativismo, tão destacado como base conceitual e programática dos anos de 1930/1945, tem raízes anteriores a esse momento em uma linhagem que foi acentuando- se e ganhando contornos novos - o idealismo orgânico. Essa linhagem origina-se na teoria social sobre os dilemas de formação do Brasil anterior à Revolução de 1930, caracterizada por visão negativa da nossa sociedade, apreendida como frágil, amorfa ou inconclusa. Esse diagnóstico afastaria, racionalmente a opção pela arquitetura política liberal alheia e muito distante de nossa realidade — como provariam as disfunções e o desvirtuamento atribuído às instituições da Primeira República, gerando um primeiro elemento de aproximação entre um debate nacional —, pelo tema: pela lógica do argumento - com o corporativismo mundial. Problemas específicos exigem resoluções específicas, assim, o corporativismo que se aplicou no Brasil foi diverso daquele original. O ajuste de uma trajetória longa e o cinzelamento de um momento pleno da linhagem do idealismo orgânico também deixariam legado incorporado em momentos posteriores de ressignificação dessa linhagem - como o desenvolvimentismo que emerge no Brasil exatamente ao final do ciclo comumente associado ao corporativismo de 1930/1945 e que durou, pelo menos, mais três décadas.3 2 Como Plínio Salgado, Miguel Reale, Gustavo Barroso, intelectuais do grupo integralista da AIB 3 Sobre a duração, permanência e metamorfose do desenvolvimentismo enquanto interpretação social e projeto político, ver: CEPÊDA, Vera Alves. Inclusão, democracia e novo desenvolvimentismo – um balanço histórico. Revista de Estudos Avançados. São Paulo, v. 26, p.77-90, 2012.
  • 3. 101 O trabalho está articulado em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais: a primeira procura isolar uma definição mínima de corporativismo; a segunda mostra sua aplicação ao caso brasileiro, de maneira factual e ampla, com destaque para a centralidade da obra de Alberto Torres e Olive Viana; a terceira investiga os nexos do corporativismo com as teses da formação nacional como déficit e seu ajuste na passagem para a teoria do subcapitalismo (subdesenvolvimento), com destaque para a produção seminal de Roberto Cochrane Simonsen; e na quarta, são apresentados como instrumentos de filiação à teoria corporativista a representação clássica e a estratégia do planejamento estatal, finalizando com uma breve reflexão sobre a permanência da do corporativismo na posterior fase nacional-desenvolvimentista. Corporativismo: entre o conceito e o fato histórico | O corporativismo foi tese e experimento político importante na trajetória política brasileira, geralmente associado ao período varguista de 1930-1945, sendo indicado como seu auge a implantação do Estado Novo em 1937. No entanto, o corporativismo moderno, de formulação europeia e exponencial no fascismo, assumiu no contexto da história brasileira contornos próprios e aplicados às demandas e gramática política do período de sua emergência. Para exame da forma sui generis do corporativismo no Brasil, é necessário primeiro entender o que se denomina, de forma ampla e geral, por corporativismo, enfrentando de saída a questão de sua trajetória histórica longeva, sua ressignificação no contexto moderno (i) sua dupla conotação enquanto arranjo teórico (uma ontologia social) Corporativismo corresponde a um conceito de longa duração, tendo sua origem, enquanto sistema socioeconômico, atrelado as Corporações de Ofício na Idade Média. Naquele momento, sua natureza era a da organização de grupos sociais ligados ao trabalho (ofícios), em especial aqueles
  • 4. 102 que operavam algum tipo de expertise ou conhecimento diverso da técnica agrária, orientada para produção de manufaturas e geradora de uma situação societal diversa do dualismo) servo- senhor (expressão da dimensão agrário-terratenente). Funcional e sociologicamente, o corporativismo apareceria associado a uma visão de mundo organicista baseada na sociabilidade estabelecida pela complementaridade da divisão do trabalho social com predomínio do "coletivo sobre as partes". Historicamente, o corporativismo clássico pertenceria às formas tradicionais de sociedade e de concepção orgânica da ordem política, distante das; formas modernas. Visto dessa maneira, sintética e generalizante, o corporativismo clássico estaria condenado a desaparecer quando da passagem para a fase moderna, marcada pela valorização crescente do individualismo, pela ideia da política enquanto construção (pautada na potência da liberdade individual, no jusnaturalismo e no primado da inovação decisória estabelecida pelo contratualismo), pela ordenação das distintas formas da divisão do trabalho definidas pelo Mercado (apagando e diluindo a consciência dos papéis sociais e reciprocidade humana na organização do trabalho - orientados agora pelo princípio do preço como articulador da produção e das trocas, na preciosa afirmação da "lei da oferta e da procura" do economista Jean- Baptista Say) e pela liberação da organização do trabalho via os princípios do laissez faire e do laissez passeur. O capitalismo, a filosofia e as instituições liberais construiriam uma nova representação de mundo onde a ordem do coletivo estaria subsumida à ordem do individual e, muito importante, onde a sociabilidade e as decisões políticas seriam arranjos ex post das demandas e decisões racionais do indivíduo possessivo: a) Crente das virtudes do progresso, explicado pelo postulado smithiano dos "vícios privados, benefícios públicos”. b) Incorporando o paulatino afastamento da política dos princípios do "bem comum" ou da "vontade geral" em direção à "vontade da maioria" ou felicidade geral dos utilitaristas.
  • 5. 103 c) Subsequentemente, até aversão competitiva entre as elites postulada exemplarmente na teoria schumpeteriana.4 Nessa nova engenharia social. pouco espaço foi deixado para princípios coletivistas em função da avalanche do ethos individualista em todas as frentes da organização da vida social - na economia, na filosofia e na política – e a radicalização do interesse próprio como base do mercado político (e disruptivo do telos da res publica). No entanto, e curiosamente, um novo corporativismo surge em várias frentes de resistência à modernidade capitalista, fortemente ressignificado. O corporativismo moderno retoma duas características do modelo clássico: a articulação social via posições do mundo do trabalho e a ideia de uma vida pública de bases coletivas, centralizada em categorias amplas e abstratas como nação, povo, Estado, no primado do nós, e não do eu. Em sua tônica de coletivismo (papéis sociais de produção, circulação e consumo, como forma simultânea do social, do econômico e do político), essa percepção aparece associada a várias versões do socialismo e, muito especialmente, de conotações religiosas. Como exemplo dessas conotações estão as correntes do cristianismo como o fabianismo, o gildismo e, mais fortemente, a posição declarada da Igreja Católica quanto à "questão social" da contenção da miséria e resposta às demandas dos trabalhadores diante da expansão e do agravamento da exploração do capitalismo. A atuação católica, nesse aspecto, parte da proposição do ordenamento da vida social pela articulação de "entes orgânicos" como família, Estado e Igreja, ancorada em uma visão societal hierárquica, fraterna e submissa a um coletivismo avesso ao hedonismo e as disfunções plutocráticas. A posição da Igreja Católica, modernizadora e ressignificadora de um corporativismo de tipo moderno (já incluindo a tensão capital/trabalho, mas de base religiosa, caritativa e de bem comum) 4 Introdutora de uma nova tensão no processo político com o surgimento de novas categoria de atores: elites (capacitadas a exercerem o poder para a proteção de seus interesses) versus as massas (alienadas de seu interesse bem compreendido e dirigidas pelas elites).
  • 6. 104 é explicitada nas duas Encíclicas Papais: a Rerum Novarum (1891) e a versão ampliada da Encíclica Quadragésimo Anno (1930). Em outra direção, o corporativismo seria configurado como um projeto racional e laico centralizado no Estado e orientado pela pressão oriunda das tensões de classes à expansão do capitalismo (em fase monopolista e imperialista). Em sua tônica de arranjo sociopolítico, tanto o corporativismo comunitarista-religioso quanto a versão laica reconheciam o contexto da vida moderna marcada pela luta de classes, pelos efeitos disruptivos do mercado autorregulado e pela progressiva aceleração da competitividade defendida pelo liberalismo - quer dentro das nações quer entre as nações. O corporativismo, em termos mundiais e entre o final do século XIX e o final da Segunda Guerra Mundial, pautaria o fortalecimento da centralização da vida pública no eixo estatal, com destacada presença dos problemas econômicos e gerando mais de um modelo político ou vertente política. Em termos limítrofes, o corporativismo moderno responde à recusa de dois campos dos quais pretende afastar-se: o marxismo de um lado e o liberalismo de outro. Tendo que reconhecer o "trabalho moderno suas demandas, acaba propondo, como corpos intermediários da engenharia social e política, as organizações sindicais de trabalhadores e de patrões, articuladoras de um novo tipo de solidariedade orgânica, coletiva, cooperativa e nacional. Somente na Europa, no período dos entreguerras o corporativismo esteve presente nas encíclicas católicas, no fascismo italiano, na proposta de Manoilescu e nas versões autoritárias.5 5 Costa Pinto nos diz que o corporativismo surge nas primeiras décadas do século XX caracterizado pelo arranjo e pela integração de instituições de interesses organizados (principalmente sindicatos independentes) no Estado, quanto como um tipo “orgânico-estatal” de representação alternativa à democracia liberal (PINTO,Antônio Costa. O corporativismo nas ditaduras da época do Fascismo. Varia História: Belo Horizonte, v. 30, n.52, jan/abr, 2014.p.17).
  • 7. 105 O conjunto de elementos subsumidos no tipo/modelo corporativismo muito amplo e inclui questões como: papel e organização do trabalho; as fronteiras entre Estado e sociedade6 ; o tipo, as encarnações e os objetivos do nacionalismo7 ; os obstáculos indicados como base do problema nacional; o ancoramento mais forte ou fraco com a economia (interna ou externa) ou com a política (interna ou externa). Estes são elementos que farão muita diferença na expressão particular do corporativismo em cada trajetória e contexto nacional. Assim, reforça-se a consideração de Fernando Rosas8 de que "o estudo do corporativismo, considerado enquanto fenômeno histórico e categoria conceptual histórica, social e política [...] só entendível no contexto histórico que o produziu".9 Podemos associar ao corporativismo moderno um conjunto de vetores complexos como: a) ser uma categoria conceitual, na medida em que expressa uma teoria ou tese social e/ou política, que configurou uma escola ou paradigma; b) que nessa condição circulou internacionalmente enquanto uma ideia-força, sendo recebida, apropriada e ressignificada 6 Onde o apagamento das fronteiras entre uma dimensão e outra tenderiam à configuração de outros modelos como totalitarismo (Estado forte, sociedade inexistente ou assimilada) ou liberalismo de Estádio Mínimo (Estado fraco diante de uma Sociedade ou Mercado forte). 7 Ernest Gellner, em sua tipologia dos nacionalismos, aponta a existência de um modelo que a nação como “resultado”, e não causa. O tipo clássico seria aquele em que um povo, dotado de nacionalidade preexistente, almeja, luta e constrói uma forma política soberana de representação (Estado-nação) que a exprima. Em outro modelo, a nação faz-se em movimento, em direção a algo que seja não apenas um resultado, mas o modus operandi de sua própria consubstanciação (como veremos adiante, penso que seja esta a grande função exercida peio nacionalismo no caso brasileiro) (GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismos. Lisboa Gradiva, 1993). 8 Cf. trabalho de Rosas no capítulo 1 deste livro. 9 Conformar o corporativismo como uma ideia-força capaz de assumir expressões distintas em diferentes contextos nos impõe como tarefas de análise identificar um conjunto ou unidade conceitual no termo e, na sequência, adequá-lo às circunstâncias particulares de sua configuração, Esse método, de historicizar e contextualizar os conceitos, teses e paradigmas, é importante para dar conta da multiplicidade de conformações que uma percepção em sua unidade conceitual desdobra-se no fluxo diacrónico e na variação sincrônica.Ao invés de enfraquecer o conceito, essa opção de ressignificação contextual o dinamiza e possibilita trabalhá-lo como uma linhagem ou trajetória, multiplicada e fortalecida em sua existência social e política concreta nas adequações que recebe de sua apropriação.
  • 8. 106 em contextos sociais específicos; e c) ser um fenômeno histórico, entendido enquanto fato, arranjo ou momento histórico real, originado em situações nacionais concretas. Corporativismo(s) no Brasil O corporativismo no Brasil, tomando como recorte desta análise o período nuclear dos anos de 1930-1945, apresenta, de saída, um conjunto adicional de características diferenciais. Em uma análise ampla dessa fase da história social e política brasileira, podemos indicar como aspectos que precisam ser levados e em consideração no esforço de compreensão da forma assumida aqui pelo corporativismo: 1. O processo de centralização política e o aumento exacerbado dos poderes do Estado, em especial com a diminuição das capacidades da sociedade civil, com correlata fragilização dos aspectos de autorrepresentação e controle do poder político por parte dos grupos sociais e partidos, bem como a tendência ao exercício de um poder autocrático – portanto com clara identificação com modelos autoritários e distantes do liberalismo. Nos quinze anos do recorte temporal, os arranjos políticos assumiriam configurações diversas, a maioria associada a mecanismos de concentração de autoridade como momento revolucionário, governo provisório, interregno constitucional (com parte da representação política cabendo I representações orgânico-corporativistas como os deputados classistas) e a ditadura varguista Estado Novo. Essa fase aliaria ao fortalecimento do poder do governo federal o surgimento de uma poderosa aparelhagem da burocracia pública e dos monopólios estatais fundamentais (solo, recursos naturais, tributação e justiça federalizadas, controle cambial e de empréstimos internacionais, segurança, primeiras inversões em indústria de base e infraestrutura). Desse contexto de centralização e hipercapacitação do
  • 9. 107 aparelho de governo central emergiria a face do Leviatã brasileiro, dotado de gramática própria.10 2. Seu enraizamento e vínculo com o agravamento da disputa de poder envolvendo o controle hegemônico das oligarquias primário-exportadoras sobre a esfera política e a emergência de um novo projeto nacional orientado para a modernização econômica de tipo urbano-industrial sequioso de assumir o controle político. Essa contradição expressava uma radicalização e crescente aumento na pressão pelo fim do monopólio político das oligarquias regionais do ultrafederalismo que caracterizava a Primeira República (1889-1930), em especial o período posterior ao Convênio de Taubaté de 1906. Afórmula do corporativismo no Brasil desse período deve muito à sua adoção como estratégia de enfrentamento de um capitalismo (ou subcapitalismo, como diria Simonsen) agrário-exportador, obstáculo ao desenvolvimento e gerador de tensões sociais gravíssimas por sua capacidade de impor a "socialização das perdas do café". 3. Um movimento progressivo de deslocamento do paradigma econômico da vocação agrária, perfilada à tese do laissez- faire e das vantagens comparativas do liberalismo clássico de Adam Smith e David Ricardo, para a vocação industrial, apoiada em elementos difusos no entorno do surgimento do problema do desenvolvimento econômico retardatário. Na 10 LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República: Uma interpretação. In: FAUSTO, Boris (Org.). História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, v. 9, São Paulo: DIFEL, 1985: GOMES, Ângela de Castro. Regionalismo e centralização política. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980; SALLUM, Brasílio. Metamorfoses do Estado brasileiro no final do século XX. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, ANPOCS- RBCS, 2003, V. 18, n. 52, p. 35-54: DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985: PAIVA, Carlos Henrique Assunção. A burocracia no Brasil: as bases da administração pública nacional em perspectiva histórica (1920-19 45). História, São Paulo, 2009, n. 28, v. 2, p. 775-796; NUNES, Edson. A gramática política do Brasil: clientelismo, corporativismos e insulamento burocrático. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
  • 10. 108 Europa, autores como Georg List11 e Manoilescu12 promoviam, desde a segunda metade do século XIX, duras críticas sobre a eficiência dos princípios liberais na promoção do progresso das nações retardatárias, sobre as contradições, e desigualdades de expansão do capitalismo mundial e também sobre os processos artificiais de aceleração ou proteção necessários ao desenvolvimento nacional. Na periferia pós-colonial, a América Latina produziria uma teoria própria, mais avançada que os takes off de Rostow e Nurske, denominada Teoria do Subdesenvolvimento e elaborada pelo grupo cepalino. Desse esforço participaram, em momentos e fases distintas. autores Como Roberto Simonsen (com trabalhos precursores na década de 1930), Raul Prebisch em seu Manifesto dos Periféricos (publicado em 1949 como marco fundador da linha de reflexões da recém-criada CEPAL) e Celso Furtado (coma produção da segunda metade dos anos de 1950 em diante). As "inquirições" sobre a promoção da riqueza das nações nesse contexto esboçavam uma percepção inédita sobre o peso que as situações retardatárias, ou de assimetria de posição no Comércio Internacional, impactavam no processo de promoção da riqueza econômica. 4. A presença de argumentos da ordem da ontologia social entendendo a estratégia do corporativismo como instrumento de superação de uma forma de atraso e condensada em variadas teses sobre a interpretação da formação social brasileira elaboradas por autores como Alberto Torres, Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Francisco Campos e o próprio Getúlio Vargas13 ). Nessa chave, o corporativismo 11 LIST, Georg F. Sistema Nacional de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 12 MANOILESCU, Mikail. O século do corporativismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938; MANOILESCU, Mikail. Teoria do Protecionismo e da permuta Internacional. São Paulo: Escolas Profissionais do Liceu coração de Jesus, 1931. 13 A percepção de Vargas é examinada a partir da compilação de seus discursos e textos em: VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: da Aliança Liberal às realizações do primeiro ano de Governo (1930-1931), v 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938; VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: O Ano de 1932 – A Revolução e o Norte – 1933, v 2. Rio de Janeiro: José
  • 11. 109 É apresentado como uma forma de transformação social capaz de superar a inorganicidade, os déficits estruturais e a herança da formação histórica nacional em direção à constituição de uma sociedade autônoma, moderna, autossuficiente e capaz. O corporativismo, aqui, é mais que um arranjo político: é a chave da construção nacional. 5. O corporativismo aparece em duas Constituições Federais, a de 1934 e a de 1937, com características e funções bastante distintas. A Constituição Federal de 1934, resultante de um complexo processo de elaboração que abrigou o Anteprojeto do Itamaraty, a realização de eleições e a instalação de um Congresso Constituinte até a promulgação da Carta final, é entendida no contexto constitucional brasileiro (malgrada sua curtíssima duração) como um pacto com forte inclinação para os direitos sociais e como expressão de um ajuste político inédito: aquele expressivo de uma agenda de contradições e demandas modernas que surgiram com base nas profundas transformações sociais e econômicas nas primeiras décadas do século XX no Brasil (expansão urbana, aumento das atividades industriais, crescimento do contingente de trabalhadores assalariados, multiplicação das frações burguesas com o enfraquecimento da vocação agrária, por exemplo). Seu momento histórico modernizava muito a Constituição Federal de 1934 em relação à primeira Constituição republicana, de 1891, no que concerne à agenda de problemas, atores, interesses e compreensão do papel do Estado. Muitos Olympio, 1938; VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: A realidade Nacional de 1933 - retrospecto das realizações do Governo em 1934. v. 3. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938; VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: Retorno à terra natal - confraternização sul- americana – A Revolução Comunista - novembro de 1934 a julho de 1937. v. 4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938; VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: O Estado Novo - 10 de novembro de 1937 a 25 de julho de 1938. v. 5. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938; VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: Realizações do Estado Novo - 1 de agosto de 1938 a 7 de setembro de 1939. v. 6. Rio Janeiro: José Olympio, 1938; VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: No limiar de uma nova era - 20 de outubro de 1939 a 29 de junho de 1940. V. 7. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940; VARGAS, Getúlio. Diário, 2 volumes. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: FGV, 1995. ;
  • 12. 110 estudiosos indicam que os arranjos referentes aos direitos do trabalho, à questão social e, muito especialmente, à adoção da representação profissional (como contrapeso a retorno da representação eleitoral pela via da organização e competição partidária clássica) definiriam a filiação corporativista como essencial nessa Carta Magna14 . No caso da Constituição de 1937- conhecida como Polaca e que desenha os contornos do Estado Novo de Vargas -, autores também a definem como corporativista, mas o pacto político nela contido, especialmente no que tange a direitos civis e políticos, democracia e função do Estado central, é completamente diverso daquele encontrado na Constituição de 1934. Se esta última se associa o epíteto de "social-democrata" por sua filiação à Constituição de Weimar de 1919 e aos direitos previstos pelas diretrizes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), à Polaca associa-se um radical formato autoritário, próximo da fórmula do fascismo: tutto nello Stato, niente contra lo Stato, null al di fuori dello Stato.15 Com esse breve apanhado de elementos16 de contextualização histórica e conceitual, podemos perceber a multiplicidade de enfoques e dimensões assumidas pelo corporativismo na experiência política brasileira, oscilando, conforme pretende-se como foco de análise neste trabalho, entre a interpretação do atraso (I), os obstáculos à modernização. 14 LIMA, R. Pinheiro. A representação profissional no Brasil (Discursos). Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1934: CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Anotações. In: BONNARD. Roger. Sindicalismo, corporativismo e Estado corporativo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 19:8, p. a12- 126; CEPÉDA, Vera Alves. Contexto político e crítica à democracia liberal: a proposta da representação classista na Constituinte de 1934. In: MOTA, C. G.; SALINAS, N. (Orgs.) Os Juristas na formação do Estado- Nação brasileiro: de 1930 aos dias atuais. São Paulo: Saraiva, Fundação Getúlio Vargas, 2010. p. 195-222. 15 Síntese do modelo político fascista italiano apresentado por Mussolini no famoso discurso no Scala de Milão. 16 Ressalvo que poderíamos incluir aqui as diversas matrizes ideológicas que se filiaram ao grande campo do corporativismo. Não adentrei, por exemplo, à leitura do integralismo, movimento político fundamental no período e que produziu, inclusive, um constructo teórico próprio, de forte inclinação autoritária.
  • 13. 111 e construção da nação (II), permeadas ambas pela questão econômica e pelo papel atribuído ao Estado (III) como determinações da trajetória brasileira. As marcações entre parêntesis (I, Il e II) correspondem à indicação das balizas de pesquisa que entendo como apropriadas para a análise das teses corporativistas no caso brasileiro. Como hipótese central, penso que a principal característica do corporativismo brasileiro, e que o distingue do paradigma17 europeu18 , foi a de funcionar como instrumento de construção da modernidade nacional (econômica, em especial) em forte orientação para a superação do passado colonial em seu desdobramento nas formas oligárquicas da Primeira República – lembrando que as bases das oligarquias da I República estavam alicerçadas em sua hegemonia econômica, derivada do latifúndio exportador como precondição de seu monopólio político, por debaixo do republicanismo da época (uma ideia ou uma instituição fora de lugar como já queriam assinalar seus críticos à época19 ). Assim, ao invés do questionamento dos excessos 17 Para Reinhard Bendix, em Construção Nacional e cidadania, não é apenas o paradigma "moderno" que é europeu, mas também as formulações teóricas que o acompanham e procuram decifrá-lo e que foram estendidos para o mundo: "As mudanças sociais e políticas das sociedades europeias forneceram o contexto no qual os conceitos da moderna sociologia foram formulados. Quando nos concentramos atualmente nos problemas de desenvolvimento no mundo não ocidental, empregamos conceitos que possuem derivação ocidental (BENDIX, Reinhard. Construção nacional e cidadania. São Paulo: EDUSP, 1996. p. 36). 18 Na versão de O século do corporativismo, seu tradutor, Azevedo Amaral, insere a crítica à associação imediata entre entes corporativos do trabalho e o fascismo como um equívoco. Para Amaral, no fascismo, a cooperação positiva dos corpos orgânicos à vida social teria sido substituída por uma absorção e coordenação excessiva do Estado (MANOILESCU, Mikail. O século do corporativismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938). 19 A esse respeito, ver o conjunto de artigos compilados em: CARDOSO, Vicente Licínio (Org). A margem da história da República. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. Esta obra contém a análise de importantes intelectuais (ou que viriam a sê-lo) como Carneiro Leão (Os deveres das novas gerações brasileiras), Celso Vieira (Evolução do pensamento Republicano no Brasil), Gilberto Amado (Instituições políticas e o meio social no Brasil), José Antônio Nogueira (O ideal brasileiro desenvolvido na República), Oliveira Viana (O idealismo da Constituição), Pontes de Miranda (Preliminares para a reforma constitucional), Ronald e Carvalho (Bases da nacionalidade brasileira: uma síntese histórica), Tasso da Silveira (A consciência brasileira), além de outros trabalhos de Jonathas Serrano, Nuno Pinheiro, Tristão de Ataíde e do próprio Vicente Licínio Cardoso.
  • 14. 112 ou desvios do capitalismo, com ênfase nas disfunções do mercado de concorrência imperfeito (monopolista e/ou imperialista), das tensões oriundas da luta de classes ou no individualismo liberal- capitalista, no caso brasileiro as questões e os obstáculos a serem enfrentados eram de outra natureza. Impediam a formação da nação brasileira o individualismo político, ancorado nas disfunções de uma democracia partidarizada pelos grupos regionais vinculados à hegemonia do café e que pediam um outro arranjo estatal, distante do ultrafederalismo. Desde o final da década de 1920, outro elemento se somaria a esse cenário: o reconhecimento que os limites estruturais da economia agrária, monocultora e dependente dos mercados internacionais impunham à constituição de uma nação soberana. Nesse diapasão emergiriam as críticas ao latifúndio, ao partidarismo regionalista e ao modelo mercantil-exportador como expressões de um passado a ser superado, de onde provinham males como a visão localista, redutivista e patrimonialista de política, com excessos personalistas e formação da cultura do povo-massa, por um lado, e de elites não modernas (não racionais e pautadas pelo ethos do trabalho) de outro. Essa crítica surge por diferentes ângulos e grupos, desde a evolução do projeto político do movimento tenentista (atingindo a formulação mais avançada e clara no Esboço do Programa Revolucionário de Reconstrução Política e Social do Brasil, de 1932) à crítica das instituições em Alberto Torres20 , nos limites da formação social e no idealismo constitucional de Oliveira Viana21 , no contraponto ao liberalismo 20 TORRES, Alberto. A organização nacional. São Paulo: Editora Nacional, 1978; TORRES, Alberto. O programa nacional brasileiro: introdução a um programa de organização nacional. 3 ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional; Brasília: INL, 1978. 21 VIANNA, E. J. Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, 1981 [1920]; VIANNA, E. J. Oliveira. Evolução do povo brasileiro. São Paulo: Monteiro Lobato & Co, 1923.
  • 15. 113 e na nova concepção de democracia/autoridade em Azevedo Amaral22 , nos autores que problematizaram e pensaram a proposta da representação classista23 , bem como a guinada para a internalização do argumento econômico e de um novo papel para a centralização política aberta pela obra de Roberto Simonsen24 . Como sintetizado por Caio Prado25 , essas disfunções ocorriam como parte da formação do sentido da colonização - produtor de uma forma simultaneamente moderna/não moderna herdada do processo colonial. A exigência de uma interpretação sobre a formação histórica autóctone, pautada na percepção de um modelo diferencial, diverso da trajetória da modernização e da estruturação dos estados nacionais europeus (tido como o "modelo" original e, posteriormente, somado ao modelo norte- americano), apontava na elaboração de duas importantes novidades: uma de natureza conceitual e outra de natureza aplicada. No campo teórico, a gestação de uma explicação ajustada aos dilemas da periferia pós-colonial estaria no centro da fabricação de uma versão histórica particular, na qual elementos como ocupação, transplante de raças e sua simbiose, clima e geografia, instituições, cultura e ethos surgiriam como elementos centrais da constelação de uma sociedade artificialmente constituída. Aqui o contato da Expansão Ultramarina traria, como salientou Caio Prado Jr., forças sociais e econômicas avançadas (do núcleo mercantilista e pré-industrial) que moldariam as estruturas sociais da extensão colonial, complementares de interesses e dinâmicas, originadas no centro e impositoras de 22 AMARAL, Azevedo.A aventura política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1935; AMARAL, Azevedo. O Estado autoritário e a realidade nacional. Brasília: UNB, 1981. 23 AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráfica, 1931. 24 SIMONSEN, Roberto. As crises no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora, 1930; SIMONSEN, Roberto. As finanças e a indústria. São Paulo: São Paulo Editora, 1931; SIMONSEN, Roberto. Ordem econômica, padrão de vida e algumas realidades brasileiras. São Paulo: São Paulo Editora, 1934. 25 PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000.
  • 16. 114 arranjos na periferia. Nota importante de ressalva é que essa mescla entre uma energia moderna em associação com a “fabricação” das colônias geraria um tipo singular de sociedade. Nela última, a terra (sua propriedade e ocupação, por exemplo) não assumiria a condição de um problema típico de passado pré- moderno, feudal (como na revolução europeia e parte do desenho do Áncien Regime), Ao contrário, sua condição seria, desde o advento da Descoberta, a implementação da ação do cálculo capitalista, empresarial e racional, de um desdobramento então diferencial do capitalismo mercantil pela imposição do papel de economia complementar e fadada a produção de bens primários para exportação, A evolução dessas economias, na forma dos “ciclos” descritos por Furtado26 , promoveria, na periferia de economia reflexa, uma forma limitada e subalterna de capitalismo, incapaz e impeditivo de evolução para as formas de capitalismo avançado (industrial, tecnológico) e de constituição de nações autónomas econômica e politicamente, Estas seriam as condições do subdesenvolvimento27 ou modelos híbridos e limitados de Revolução Burguesa.28 Nas economias periféricas e agrário-exportadoras, a propriedade da terra aparece como concentrada, monopolizada, porém sua lógica não é estamental ou de produção de subsistência. Ao contrário, o latifúndio significa a terra como uma mercadoria e um ativo econômico, capaz de produzir riqueza, constituindo na sua propriedade e realização econômica um tipo político especial: uma burguesia agraria, dependente e colonial29 . A burguesia agrária em situação primar-exportadora é dotada de uma lógica social adversa do tipo esperado na evolução capitalista, à qual pertence pela inserção na divisão do trabalho 26 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1995. 27 FURTADO, Celso. Dialética do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964. 28 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1975. 29 Cf. tipologia de POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
  • 17. 115 internacional que acarretaria no modelo de revolução liberal- burguesa. Ao invés de configurar o clássico (e tipo ideal) modelo de grupo social pautado no trabalho, no cálculo racional, na acumulação e defesa de um mercado nacional sob o controle do Estado30 , a burguesia colonial e agrária exportadora modelaria uma forma social de isolamento rural, práticas e cultura política personalista e patrimonialista, acrescida da baixa propensão ao cálculo racional (em especial pelo longo ciclo de exploração da mão de obra escrava).31 Reproduz-se no caso brasileiro uma mesma tensão entre passado e futuro, mas não sob a oposição entre o pré-moderno (feudal) versus moderno (urbano industrial). Há, sim, uma situação de antagonismo entre a estrutura do modelo primário- exportador (vocação agrária e herança colonial) e passagem para formas avançadas de economia e sociedade (industriais, urbanas, com mercado interno e capaz de constituir as bases reais de um Estado nacional soberano). A ressignificação de temas como liberalismo, tradicionalismo, democracia, luta de classes e desenvolvimento residiu, em grande medida, no fornecimento das condições próprias e específicas da periferia. Nesse contexto, as grandes expressões da teoria social, económica e política sofreriam um giro semântico na sua apropriação local. Para Christian Lynch: Os males crônicos do continente se enraízam nesse passado colonial, caracterizado pela exploração metropolitana pelo patrimonialismo, pelo escravismo, pelo latifúndio. O passado, portanto, se erige em verdadeiro espantalho da nacionalidade, que precisa ser exorcizado e superado para que o país 30 Cf. categoria formulada por: TILLY, Charles. Coerção, capital e Estados europeus, São Paulo: EDUSP, 1996. 31 A esse respeito conferir: NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial 1777-1805. São Paulo: Hucitec, 1995: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983.
  • 18. 116 que o país alcance aquele patamar de desenvolvimento compatível com um padrão civilizatório dos países centrais, como os Estados Unidos, a França e a Inglaterra.32 Não é apenas o corporativismo que, enquanto ideia força, pede esse tratamento. Como seria possível imobilizar definição única termos como direitos, democracia, liberalismo, autoritarismo, conservadorismo, Estado, desenvolvimento, entre outros temas que foram sendo relapidados e atualizados cormo resposta as exigências concretas da variação histórica e das particularidades de cada contexto de sua utilização? Importante lembrar que o corporativismo na Europa, em período próximo à experiência brasileira dos anos de 1930 inclinou-se para um arranjo contrário à democracia liberal devido a excessos e às crises provocadas pela trajetória do capitalismo, em forte conexão com o fascismo e o totalitarismo, apoiado na tensão provocada pela agudização da luta de classes33 . Na condição tardo periférica brasileira, o corporativismo, como crítica ao liberalismo, amparou-se no reconhecimento deste último, no campo político e econômico, como o obstáculo à modernização capitalista, e não sua regulação ou superação. Tratou-se, portanto, de uma forma particular de arranjo político para implantação do capitalismo industrial e de estratégia de implosão da organização oligárquicas regional e primário-exportadora. O cerne do modelo de corporativismo brasileiro expressa uma articulação entre uma ontologia social, produzida como resposta intelectual ao problema do passado, particularmente marcada pelo problema da identidade e do apontamento da nacionalidade como algo por construir, com a adoção de instrumentos para correção dessa rota e invenção do futuro. O fortalecimento do Estado como ente capaz de produzir os nexos 32 LYNCH, Christian C. O pensamento conservador ibero-americano na Era das Independências (1808-1850), Lua Nova, São Paulo, 20o8, n. 74. p. 59. 33 Cf. PINTO, António Costa, O corporativismo nas ditaduras da época do Fascismo. Varia História, Belo Horizonte, V. 30, n 52, Jan./abr, 2014, p. 17.
  • 19. 117 de solidariedade social ainda inexistentes e de acelerar a constituição de um projeto nacional apartado dos desvios do liberalismo à brasileira34 serão as condições de absorção e ressignificação do corporativismo. A aliança entre setores produtivos, a geração de espaços paraestatais (mix entre aparelho público e organizações/representações da sociedade civil), adoção de conceitos de democracia de tipo "não liberal- competitiva e o fortalecimento de conceitos genéticos como povo e nação como base do compromisso social constituem-se como meios de desmanche do legado da I República e sua conformação oligárquico-agrária. Nesse projeto/processo, todas as variáveis- chave da equação da modernidade deveriam ser flexionadas: • No ajustamento dos códigos teóricos e intelectuais às condições concretas da experiência histórica nacional, recusando cânones ou ressignificando-os quando necessário. Essa seria a tarefa de uma geração - aquela dos homens que nasceram com a República e que nunca viram o Imperador ou um escravo35 , mas que vivenciaram toda a transformação nacional das primeiras décadas do século XX e sobre a qual recaía a exigência de pensar e agir sob as novas condições sociais. • Na busca de uma via própria, inovadora e específica, ajustada ao nosso cenário social, econômico e mental, distante do bacharelismo, do mimetismo e da cópia de modelos e das experiências estrangeiras, que até esse momento apenas assimilaram os pressupostos liberais (claro que adaptados à forma colônia). • No primado da construção, da mudança orientada da sociedade brasileira, elegendo, como motor principal dessa mudança, um ator diverso do espontaneísmo e autorregulação 34 Cf. BOSI.Alfredo. Dialética da colonização, São Paulo: Companhia das Letras, 1992; SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978. 35 CARDOSO, Vicente Licínio (Org). A margem da história da República. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1951.
  • 20. 118 do mercado econômico e político (nem o progresso como resultado dos vícios privados, nem a política como concorrência competitiva entre indivíduos) - a esfera estatal e, nesta, valorizada a ideia de projeto (prognóstico) e de atuação consciente e racional de elites esclarecidas. • No delineamento de uma fórmula nacional própria para revisão dos pontos nevrálgicos do conflito social em nosso contexto, fora do formato da luta de classes, permitindo (ou exigindo) a conformação de uma saída com pactuação e aliança entre os grupos ligados ao trabalho, entre capital e trabalho diluídos no semióforo da nação e mediados/articulados pelo Estado e pela ideia de progresso. Essa pactuação proporia a transferência do conflito da ordem privada para a ordem pública, por meio do direito, mas associado ao surgimento de canais de participação direta desses interesses organizados em corpus políticos, tais como os sindicatos (percebidos como a forma social mais avançada que indivíduos e partidos) e os Conselhos Técnicos. Sobre a regulação estatal, Vianna afirmaria como positiva essa intermediação capaz de dirimir o "conflito das disputas sociais": O Estado tutelar transforma em funções técnico- jurídicas as relações mercantis, apresentando-se a suma ratio da sociedade civil. A sociedade e o mercado de trabalho em particular são recobertos pela legislação, como fim de solidarizar seus componentes num todo orgânico, incapazes isoladamente de conviverem em harmonia. Tudo que é privado se reveste de um caráter público, conformando um ramo do direito que se pretende autonomizar das relações mantidas pela sociedade civil, com isso, impede-se a percepção da sociedade como um mercado, embora legitime-se o indivíduo possessivo.36 36 VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 172.
  • 21. 119 Na próxima seção, passo a analisar duas dimensões do corporativismo brasileiro: sua adequação ao debate em curso na reflexão intelectual e política da Primeira República até o período Vargas de 1930-1945, apoiada no argumento do amorfismo social e crítica ao liberalismo e, na sequência, na sua permanência no projeto de enfrentamento das oligarquias primário-exportadoras e apoio ao projeto industrialista. A teoria social do atraso, subcapitalismo e a recepção do corporativismo no debate intelectual brasileiro A estrutura argumentativa da interpretação da formação social brasileira anterior à década de 1930 pautou-se na investigação das causas das debilidades, insolidarismo e insuficiências societais que impediriam a realização da nação e do progresso entre nós. Por outro lado, geraria uma confluência intelectual propensa a fortalecer os projetos políticos de construção social e nacional filiados ao idealismo orgânico, com centralização política e protagonismo do Estado, e que se inclinariam, pari passu, à boa recepção obtida pelo modelo de organização corporativa da sociedade. Essa trajetória intelectual adquire clareza conceitual com as obras de Alberto Torres e Oliveira Viana, perpassando as formulações do período Vargas com Azevedo Amaral e o próprio projeto defendido publicamente por Getúlio Vargas37 . A partir da década de 1930, a tese sobre o atraso na formação histórica brasileira passaria a invocar a questão econômica como base explicativa, com a contribuição original e seminal do empresário, líder empresarial e intelectual Roberto Simonsen. Com Simonsen ocorre uma ressignificação radical na tese da fragilidade e do déficit nacional: a matriz do atraso é resultado do passado colonial na estruturação econômica, e somente a partir da superação da vocação agrária as condições da nação estariam asseguradas. Na 37 A Nova Política do Brasil, 9 volumes.
  • 22. 120 tese simonsiniana, a ação centralizada de Estado como instrumento de transformação social, a recusa dos pressupostos liberais e a associação concertada entre capital e trabalho (na síntese de progresso e da paz social) são pontos centrais e inclinam sua tela para a gramática do corporativismo. Em boa medida, as concepções de Oliveira Viana e Roberto Simonsen podem ser entendidas como próximas, especialmente quando avaliamos que o ponto original de ambos é a associação entre um problema estrutural da formação social brasileira (uma insuficiência), o que exige a elaboração de uma estratégia ou projeto próprio para sua superação. Nas teses dos dois autores também esta presente uma crítica acerba aos automatismos sociais e econômicos de extração liberal, com enfática defesa de um projeto de transformação social artificial, racional e dotado de vontade política com aspiração nacional, radicada na ação do Estado. Essas duas características colocam Viana e Simonsen no campo do idealismo orgânico (uma sociedade ou Mercado fraco versus um Estado hipertrofiado e forte) e que associadas a uma percepção de aliança necessária entre capital e trabalho, leia-se sindicatos de empresários e de assalariados em prol da realização do objetivo do alcançamento do progresso e da autonomia nacional, expressariam o vínculo com as formulações do corporativismo, ajustado ao contexto brasileiro. No entanto, recuperando a hipótese anteriormente assinalada da injunção entre a interpretação dos males do Brasil à adoção e ressignificação da gramática do corporativismo no entorno dos anos de 1930/1940, a diferença entre os dois autores residiria exatamente no ponto de origem dessa articulação de teoria-prática: originada na formação social ou na formação econômica. No caso de Oliveira Viana, é bom lembrarmos que sua produção intelectual remonta a uma linhagem com existência longa no debate nacional, pretérito à própria reflexão desse autor, estruturada no inventário das causas do atraso e dos dilemas da identidade brasileira
  • 23. 121 que assinalava como temas das debilidades da sociedade o clima, o meio, a raça, a mentalidade ou o translado e o perfil das instituições políticas. Comum a esse campo seria o reconhecimento de que por variados caminhos da história colonial, da inserção e ocupação do, do surgimento dos tipos humanos e da cultura social e política a eles associados, brotaria uma sociedade amorfa, insolidária, descapacitada para o reconhecimento da individualidade (entendida como self moderno) e para a construção de: arranjos coletivos. Essa agenda de problemas é ampla e longa, mas em Oliveira Viana ganha uma configuração síntese de um diagnóstico do passado somada a um projeto de futuro. Viana, a partir de Populações meridionais38 , apontava que a inorganicidade societal, o insolidarismo e a impossibilidade de agregação coletiva haviam sido herdados da ocupação do insulamento rural e do patriarcalismo da formação colonial. Nos textos subsequentes, vai avançando na delimitação de instrumentos de mudança social, paulatinamente políticos, estatais e organicistas. Essa inclinação para a perspectiva corporativista, friso, possui, como virtudes e especificidades, o reposicionamento do amplo debate originado no século XIX sobre a relação entre costumes e instituições, ajustando uma tese sociológica (a interpretação) à elaboração de estratégias políticas de transformação (ação). Dois elementos dignos de nota são a migração evolutiva do campo da teoria social para a dimensão política (vide esforço hercúleo presente em Instituições Políticas no Brasil) e o momento de fortuna, que permitiram que a discussão vianniana, em especial no redesenho das funções do Estado e no ajuste fino do corporativismo "à brasileira", transformasse-se em propostas com capacidade efetiva de realização histórica. Viana pertenceria ao grupo de intelectuais capazes de intervenção em processos reais, 38 VIANA, F. J. Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização, psicologia. 7 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, Niterói: EdUFF, 1987.
  • 24. 122 habilitados a se comportarem como state makers, intelectuais públicos ou do Estado, ou como intelligentsia. A possibilidade de compreender a obra de Viana como uma síntese da trajetória intelectual pregressa remonta ao cenário aberto pela discussão sobre o papel dos costumes e das condições sociais e culturais brasileiras na opção pela forma liberal ou conservadora do Estado ainda no Império. Segundo Ferreira39 , podemos localizar o momento de tensão entre as "linhagens" políticas liberais versus conservadora no debate entre Tavares Bastos e Visconde de Uruguai, em 1860, que partiria da problemática tocquevilliana em A democracia na América40 texto que aponta os nexos indissociáveis entre formação da sociedade, valores e definição de suas instituições políticas. Para Tavares Bastos as leis teriam precedência sobre os costumes, enquanto para Uruguai os costumes teriam precedência sobre as leis, separando o liberalismo41 do primeiro e o centralismo unitário do Estado do segundo. Esse problema de adequação entre a natureza da sociedade e a natureza das instituições seria relegado ao segundo plano com a instauração da República, mas não despareceria da agenda da reflexão, sendo progressivamente retomada e aprofundada, em especial a partir da década de 1910, com destaque para a obra de Alberto Torres. Torres e eu, o que um e outro fizemos - em relação ao conhecimento cientifico da nossa evolução e formação social, do ponto de vista especialmente da evolução das instituições políticas e da estrutura do Estado – consistiu aqui, nesta objetividade 39 FERREIRA, G.N.A relação entre leis e costumes no pensamento político e social brasileiro. In: CEDEC et al. I Relatório Científico do projeto temático "Linhagens do pensamento político-social brasileiro". São Paulo, apresentado à FAPESP em fevereiro de 2009. 40 TOOQUEVILLE Alexis de. A democracia na América. São Paulo: Editora Nacional, 1969. 41 Para Tavares Bastos "boas leis seriam capazes de produzir a boa sociedade", em uma monarquia federativa (apud FERREIRA, G. N. Arelação entre leis e costumes no pensamento político e social brasileiro. In: CEDEC et al. I Relatório Científico do projeto temático “Linhagens do pensamento político-social brasileiro". São Paulo, apresentado à FAPESP fevereiro de 2009).
  • 25. 123 metodológica: considerar os problemas do Estado ou, melhor, os problemas políticos e constitucionais do Brasil, não apenas simples problemas de especulação doutrinária ou filosófica – como então se fazia e como era o método de Rui; mas como problemas objetivos, vinculados à realidade cultural do povo e, consequentemente, como problemas de comportamento do homem brasileiro na sociedade brasileira.42 O vínculo entre a produção intelectual de Torres e de Viana é muito estreito e ventilado francamente pelo último. Pesa nessa conexão, muito fortemente, o método adotado, a partir do qual toda forma de posicionamento político origina-se da análise das condições sociais reais. O conhecimento sociológico não pode ser absenteísta, uma "investigação pela investigação", mas deve, sim, perseguir o objetivo da "orientação pragmática, como um processo de coleta de dados concretos, sobre os quais se deveria apoiar a solução objetiva e realística dos problemas nacionais"43 , imperativos para o desenvolvimento social e de clara natureza política aplicada: Torres era antes de tudo um "político", entendida essa palavra não no baixo sentido de "político de partido"; mas, no alto e nobre sentido que ela comporta; digamos: no seu sentido aristotélico. Daí, para ele, no que concerne à metodologia científica, todas as investigações, estudos e observações da nossa realidade social deveriam ser conduzidas para este fim superior: encontrar neles a chave para a solução de todos os problemas da nossa organização social e econômica e da direção política e administrativa do país. Ele punha, assim, a Ciência Social a serviço da Ciência Política. 42 VIANA, F. J. Oliveira. Problemas de política objetiva. Rio de Janeiro: Record, 1974- p.64. 43 VIANA, F. J. Oliveira. Problemas de política objetiva. Rio de Janeiro: Record, 1974.
  • 26. 124 Há nesse aspecto uma curiosa contradição: a percepção original dos condicionantes concretos inclinaria as teses de Torres e Viana para um realismo pragmático, no entanto, o resultado da formulação desses dois autores assume a feição do idealismo orgânico. Examinemos essa questão com mais vagar. Em O idealismo da Constituição, Oliveira Viana44 indica as duas "espécies" de idealismo político no Brasil: o de tipo utópico e o de tipo orgânico. Seria utópico "todo e qualquer sistema doutrinário, todo e qualquer conjunto de aspirações políticas em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretende reger e dirigir45 ; e seriam orgânicos aqueles que "nascem da própria evolução orgânica da sociedade e não são outra coisa senão visões antecipadas de uma evolução futura"46 A grande distinção seria o reconhecimento dos dados da experiência concreta e real de um povo, um meio, uma trajetória, exigências para a tomada de decisões políticas e criação de instituições eficazes, não quimeras transplantadas do mimetismo de tradições e ideias exógenas47 . Viana afirma que a história brasileira teria sido marcada pelo idealismo utópico48 o que teria constituído a razão única de nossa debilidade por não permitir “realizar a definitiva organização social e política de nosso povo.49 44 44 VIANA, F. J. Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, Vicente Licínio (Org.). À margem da história da República. Brasília: Universidade de Brasília, 1981: VIANA F. J. Oliveira. O idealismo da constituição. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1927: VIANA, F. J. Oliveira. O idealismo na Constituição. São Paulo: Editora Nacional, 1939. 45 VIANA, F.J. Oliveira. O idealismo na Constituição. São Paulo: Editora Nacional, 1939. p. 10. 46 VIANA, F. J. Oliveira. O idealismo na Constituição. São Paulo: Editora Nacional, 1939. p. 11. 47 Não há uma só instituição no Brasil, como também, provavelmente, em quase todas, senão em todas, as outras repúblicas sul-americanas, que se assente sobre bases próprias, para um crescimento evolutivo e regular" (TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução 2 um programa de organização nacional. 3. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional: Brasília: INL, 1978. p. 44). 48 A nossa elite intelectual vive "entre duas 'culturas': uma - a do seu povo, que lhes forma o subconsciente coletivo; outra - a europeia ou norte-americana, que lhes dá as ideias, as diretrizes do pensamento, os paradigmas constitucionais, os critérios do julgamento político (VIANA, F. J. Oliveira. Instituições políticas brasileiras, v. 2. São Paulo: EDUSP; Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1974. p. 19). 49 VIANA, F. J. Oliveira. O idealismo na Constituição. São Paulo: Editora Nacional, 1939, p. 13.
  • 27. 125 A contradição seria derivada de um profundo respeito às condições do real, na formação específica e particular da realidade nacional e, ao mesmo tempo, a adoção de atos da vontade política que reinventariam ou promoveriam a mudança social. Talvez por esse motivo, do cruzamento entre um realismo analítico com um projeto político orientado de transformação social, Oliveira Viana tenha adotado o termo "idealismo" como base para dois modelos distintos - o utópico e o orgânico. Para o autor, as ideias ou ideais são fundamentais, pois o mundo político move-se por idealismos, como atos de vontade política. Assim, o problema que separaria os idealismos seria sua finalidade distinta: a) De imposição à sociedade um modelo incapaz de cumprir sua função política precípua de ferramenta pela autonomia nacional, pela realização de seu progresso - tipologia do idealismo utópico, ajustado apenas à vontade de uma elite alheia aos interesses nacionais e coletivos. b) Pela adoção de um modelo que respeitando as condições práticas da sociedade brasileira, detectando suas mazelas e problemas, tenha como objetivo a superação dessa situação pela adoção de instrumentos políticos apropriados a essa condição – idealismo orgânico. Nesse ponto penso que o elemento mais importante de separação entre os dois idealismos resida na tensão entre conservar/dominar (utópico50 ) versus transformar/autonomizar (orgânico). A tendência de atrelamento de situações históricas singulares, função/destino social do conhecimento e o uso de estratégias políticas na concretização de trajetórias diferenciais dos Estados Nacionais era uma invenção nossa, assim como a crítica à hegemonia dos pressupostos liberais e aos limites do capitalismo autorregulado. 50 Conceito de Utopia muito diverso da tese de Karl Mannheim, para quem a Utopia tem significado oposto.
  • 28. 126 Esses temas compunham uma agenda intelectual e política pautada na ideia de crise que circulava na produção mundial e que gerou uma gama vasta de alternativas e arranjos sociopolíticos distintos. No Brasil, esses elementos surgiram em contexto próprio e no interregno do governo Vargas, ganharam um formato centralizador e corporativista que foi, em grande medida, associado ao autoritarismo. Tomando como exemplo a obra de Viana, Amaral, Torres e Campos, esse formato foi entendido como um autoritarismo instrumental51 ou como uma vocação autoritária stricto senso52 . Para este último, o complexo intelectual formado por esses autores delineava o "pensamento político autoritário", uma ideologia calcada nos superpoderes atribuídos ao Estado diante da sociedade e do Mercado, no enorme papel atribuído às elites técnicas, em uma visão paternalista e autoritária do conflito social. Internalização da mediação social para as arenas estatais. Desse conjunto surgiria um Leviatã Benevolente, ventríloquo e condutor da sociedade civil amesquinhada e apequenada em sua vitalidade, com a substituição dos conflitos sociais (de classes, da regulação do mundo do trabalho e de antagonismos setoriais) pelo paternalismo autoritário legitimado em sua ação na realização da "verdadeira" liberdade: a liberdade civil. Tensionando as duas proposições, a linhagem do idealismo orgânico, muito especialmente a produzida nas três primeiras décadas do século XX, pode ser compreendida em outra chave ou ajuste: na fórmula específica e pragmática da formação nacional. Independentemente de ser meio ou instrumento para alcançamento de um progresso nacional, a ontologia social que baseia a gramática corporativa no Brasil indica ser esta a via 51 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978. 52 LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República. Uma interpretação. In: FAUSTO, Boris (Org). História Geral da Civilizado Brasileira. Tomo III, v. 9, São Paulo DIPEL, 1985.
  • 29. 127 possível e necessária para a realização da sociedade. Segundo o raciocínio de Alberto Torres, o problema brasileiro era o de desorganização, de uma penúria estranha a uma nação possuidora de vasto território, porém incapaz de produzir o necessário para subsistência de seu povo, sem ethos do trabalho e miserável situação educacional, com proprietários "irregulares" e que no conjunto perderia feio na comparação com outros países. Um país a que faltam tais requisitos não é uma nação, e não é mesmo uma soberania, senão no rótulo jurídico. Nós carecemos de organização, e precisamos nos reorganizar, não como instituição jurídica, segundo os modelos de outros, mas como nacional, como corpo social e econômico, não devendo copiar nem criar instituições, mas fazê- las surgir dos próprios materiais do país: traduzir em leis suas tendências, dando corretivo a seus defeitos e desvios de evolução.53 Assim, o problema brasileiro residiria em uma nacionalidade dispersa, amorfa, em estado quase líquido, sem elementos de condensação e resistência; um composto de admiráveis caracteres individuais, moralmente unidos, sem caráter social: um conjunto de raças e de tipos, sem modelo nacional: uma nação, sem nacionalidade (grifos do original).54 Contribuiriam para explicação desse quadro a dispersão e forma de organização produtiva, elites reprodutoras de ideias e padrões exógenos, instituições inadequadas, lutas partidárias 53 TORRES, Alberto. A organização nacional. São Paulo: Editora Nacional, 1978. p.167. 54 TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução a um programa de organização nacional. 3ª. ed. São Paulo: Cia Editora Nacional: INL, 1978, p. 127.
  • 30. 128 sectárias e sem sentido, falta de propósito comum e inexistência de formas de solidariedade social e política. A vida pública seria, assim, a contrapartida de uma sociedade plástica e hipossuficiente: A separação da política e da vida social atingiu, em nossa Pátria, o máximo da distância. A política é, de alto a baixo, um mecanismo alheio à sociedade, perturbador da sua ordem: governos, partidos e políticos sucedem-se e alternam-se, levantando e combatendo desordens, criando e destruindo coisas inúteis e embaraçosas. Os governantes chegam à situação de perder de vista os fatos e os homens envolvidos entre agitados e enredos pessoais.55 O método e boa parte dos argumentos de Torres são retomados por Viana, modificando a "nossa gente" para o "povo-massa", aprofundando a análise da ocupação (descritiva e antropogeográfica), a formação de caráter cultural e a organização econômica e institucional. Na tese do regime do clã, sua origem e inevitabilidade está na "extrema miserabilidade das nossas classes inferiores", já que o campônio não possuiria força pecuniária, material e social que lhe permitisse "reagir contra o arbítrio que o ataca, ou o expropria, ou o oprime".56 De outro lado, mesmo seu arranjo mais moderno ou evoluído ainda conformaria uma debilidade, pois o Brasil seria um país descontínuo, ganglionar e de isolamento de grupos societais: O que eu vejo nele, no seu conjunto, é uma série número e variada de núcleos orgânicos ou gânglios regionais, distintos, pela formação e estrutura social, uns dos outros e que, por sua vez, se subdividem em 55 TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução a um programa de organização nacional. 3. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional; Brasília: INL, 1978. p. 88. 56 VIANA, F. J. Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização, psicologia. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói, EdUFE, 1987. p. 145.
  • 31. 129 núcleos menores, separados (insisto em frisar este traço) por enormes espaços desertos, lacunas intermediárias", como diria La Blanche. Núcleos estes praticamente destituídos de circulação material e espiritual e vivendo, por isto mesmo em regime de insulamento. Insulamento que tende a particularizá- los cada vez mais em grupos culturais próprios, pela sua quase ausência de contatos com os Outros grupos e os centros civilizadores do litoral.57 Adicionado a esses problemas estruturais de formação colonial, matriz do amorfismo social, do insolidarismo, do aparecimento de elites descoladas da realidade social (incapazes, também, de dirigir a sociedade para a autonomia nacional), produtoras de um conjunto de valores e práticas sociais que acentuariam o atraso e a distância de outros exemplos mundiais, haveria ainda o desajuste grave das dessas instituições, na constituição do Estado e nas possibilidades da democracia. Quanto às instituições, o maior problema era a distância entre o "país real" e o "país legal". pelo transplante de cânones adversos às práticas costumeiras e comuns que oscilavam entre o regime de clã, o povo-massa, o insulamento ganglionar e a cegueira das elites.58 Quanto à organização administrativa e política chamada Estado, esta aqui formou-se alheia ao processo americano, caracterizado por emergir da decisão consciente dos indivíduos. Entre nós, ao contrário, era uma espécie de carapaça disforme, vinda de fora, importada. Vasta. complexa, pesadíssima, não está pela enormidade da sua massa, em correspondência com a rarefação e o tamanho da população que subordina. Perfeitamente adequada a uma sociedade que possuísse o grau de 57 Viana. F. J. Oliveira. Instituições políticas brasileiras. v.1. São Paulo: EDUSP: Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1974. P. 79. 58 Cf. teses presentes em O idealismo na Constituição, versões 1927 e 1939, e na análise mais madura de Viana em Instituições políticas brasileiras.
  • 32. 130 complexidade de qualquer sociedade europeia, em fase adiantada de evolução, é flagrante a sua disparidade com uma sociedade, como a brasileira do período colonial, de fisionomia ganglionar, rarefeita, dispersa, em estado de dissociação intensa.59 Da mesma forma que as instituições precisariam de um giro de adaptação para as condições reais - e não quiméricas - da forma social brasileira, a democracia na experiência brasileira teria que assumir como ponto vital não o sufrágio "liberalizado a todo mundo", mas a garantia efetiva do homem do povo-massa, campônio ou operário, contra o arbítrio dos que "estão de cima" – dos que detêm o poder, dos que "são governo". Pouco importa, para a democracia no Brasil, sejam estas autoridades locais eleitas diretamente pelo povo-massa ou nomeadas por investidura carismática: se elas forem efetivamente contidas e impedidas do arbítrio - a democracia estará realizada.60 O conjunto da seleta de pontos das obras de Torres e Viana - ressaltando o tema nevrálgico da necessária adequação funcional entre as condições sociais reais, caracterizadas por variados elementos de amorfismo, insulamento geográfico e econômico, insolidarismo e formas singulares da dominação por elites e clãs, e a natureza e as tarefas esperadas das instituições políticas de transformação desse cenário – pretende reforçar o argumento de que, para esses autores, a adoção da saída corporativista e da centralidade do papel do Estado dificulta não só sua identificação imediata enquanto uma ideologia autoritária, mas também torna 59 VIANA, F. J. Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização, psicologia. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói, EdUFF, 1987, p. 245. 60 VIANA, F. J. Oliveira. Instituições políticas brasileiras. v. 2. São Paulo: EDUSP; Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1974. p. 174.
  • 33. 131 mais complexa a compreensão de seu caráter instrumental. Uma saída para esse imbróglio reside na compreensão do elo intrínseco entre a interpretação, enquanto expressão da particular ontologia social brasileira, e a definição pragmática de arranjos políticos específicos para essa situação histórica diferencial. Assim, na construção de uma modernidade própria e particular, a via de construção da nação autônoma seria pavimentada por um modelo autóctone - no qual a recepção do corporativismo seria incorporada e ressignificada. Adotar a hipótese da proximidade e funcionalidade do corporativismo no debate intelectual e político brasileiro no entorno da década de 1930 facilita compreender como ele pode aparecer em programas ideológicos tão distintos dos integralistas, dos state makers do staff varguista e do nascituro projeto industrialista. Nesse diapasão, destaco a permanência do corporativismo na produção intelectual de Simonsen, bastante distante do arcabouço conceitual do pensamento de Alberto Torres, Oliveira Viana e outros intelectuais próximos ao que Lamounier convencionou chamar de ideólogos do pensamento autoritário. A interrogação sobre o atraso, identificado como um processo específico da formação histórica nacional, é elemento das trajetórias de Torres e Viana e que permanece na obra de Roberto Simonsen, abraçando agora uma explicação de tipo econômico, tanto para a formação colonial que nos coloca em situação de atraso (subcapitalismo) quanto para os obstáculos da fase 1930/1945, em que o planejamento, a força centralizadora do Estado e o arranjo de pactuação entre as classes seriam fundamentais para o progresso e a constituição de um projeto nacional autossuficiente.61 61 O reconhecimento da originalidade da tese do subcapitalismo e do afastamento da vocação agrária é relevante, dada a visão de conjunto da posição do autor, já que Simonsen, na primeira fase de sua obra (1918/1928), parece ser um liberal, submisso à vocação primário-exportadora. Na década seguinte, Simonsen torna-se um keynesiano ou algo mais avançado – um desenvolvimentista - de qualquer forma, um antiliberal do ponto de vista económico, um defensor radical do planejamento e do projeto de industrialização.
  • 34. 132 Roberto Simonsen62 foi pioneiro na afirmação da condição estrutural do atraso em nossa economia, condição inicial da qual todos os demais problemas sociais seriam derivações. Percebe-se, analisando a cronologia e o conteúdo de seus trabalhos, uma progressão analítica que tenta abarcar o sentido desse problema primeiro como pobreza, depois como pauperismo e, por último, como subcapitalismo (versão embrionária de subdesenvolvimento). É também no pensamento Simonseano que encontramos a passagem conceitual do antigo protecionismo industrial para o planejamento econômico. O estudo sobre as condições da pobreza brasileira surge na agenda de reflexão de Simonsen desde o texto de 1930, em que afirma que a questão da carestia de vida e seu vínculo com o "inexistente" protecionismo eram uma miragem - mesmo porque, a rigor, nunca houve protecionismo no Brasil (pelo menos despendido de fato à indústria). Simonsen conclama os espíritos lúcidos ao real problema da sociedade brasileira, o seu baixo poder aquisitivo, diferente aqui daquele do estágio mais primitivo descrito por List (o da agricultura de subsistência) ou aquele imerecido pelo agravamento do processo de concentração e espoliação do capital (como o que ocorre nos países com desenvolvimento industrial mais antigo e onde a posição gananciosa e irascível dos patrões leva os indivíduos ao embate de classes). Verifica-se, porém, que a origem da existência desses baixos níveis é bem diversa do que se constata em alguns grandes países de densa população, de fartos recursos econômicos e de grande progresso material. Ali, muita vez, existe a miséria imerecida, proveniente da má distribuição dos proventos do trabalho aqui, apura-se que, em larga escala, a pobreza decorre da 62 SIMONSEN, Roberto. As crises no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora, 1930; SIMONSEN, Roberto. As finanças e a indústria. São Paulo: São Paulo Editora, 1931: SIMONSEN, Roberto. Ordem econômica, padrão de vida e algumas realidades brasileiras. São Paulo: São Paulo Editora, 1934; SIMONSEN, Roberto Aspectos da política econômica nacional. São Paulo, 1935; SIMONSEN, Roberto. A indústria em face da economia nacional. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1937.
  • 35. 133 insuficiência da produção, do atraso e da instabilidade do meio. O problema do salário está indissoluvelmente ligado ao da produção. Todos ansiamos - patrões e empregados do Brasil - que aqui se estabeleça uma justa remuneração do trabalho, que todos possam viver a vida digna [...] mas se a retribuição do homem é fixada em grande parte pela própria produção; se esta é de pequeno valor em relação ao volume de mão de obra disponível, como obter um elevado quociente se o divisor é fraco e o dividendo cresce continuadamente? O nosso grande mal, atingindo todas as classes, principalmente a dos trabalhadores, é a insuficiência de ganho.63 Esse argumento permeia toda a produção simonseana até seu último trabalho, mas em nenhum de seus textos a questão foi tão clara e cruamente exposta quanto no trabalho apresentado ao plenário da Assembleia Constituinte, em 1934, quando assevera que o Brasil é um país pobre com uma população pobre. A afirmação, nada simpática, vinha acompanhada de um apanhado de dados e indicadores preocupantes, apresentados a uma plateia representativa de todos os interesses nacionais (talvez o mais seleto e importante grupo de ouvintes a que Simonsen já tivera acesso): Ernest Wagemann, presidente do Departamento de Estatística e do Instituto para o Estudo de Conjuntura da Alemanha, na classificação dos povos, que adotou, inclui o Brasil na zona neocapitalista, de acordo com determinados índices econômicos. Nessa mesma zona estão compreendidas a Austrália, a África do Sul, a América Central, a América do Sul e parte do Canadá. Como índices de ordenação, tomou densidade da população por quilometro quadrado, o 63 SIMINSEN, Roberto. Níveis de vida e economia nacional. São Paulo, 1940, p. 14.
  • 36. 134 valor do consumo de máquinas por habitante, a extensão das vias férreas, o número de trabalhadores industriais em percentagem da população economicamente ativa e o valor do comércio exterior por habitante. Esses índices médios, para toda a zona neocapitalista, em conjunto, foram encontrados como sendo de: densidade de população: 3,1 hab. Por km²; consumo de máquinas: 32$000 por hab.; extensão das vias férreas: 21,8 km² por 10.000 hab; existência de vagões: 27: percentagem de operários industriais: 19; índice do comércio exterior: 684$o00 por hab. Para o Brasil, especialmente, esses índices seriam os seguintes: densidade de população: 5,2 hab. por km²; consumo de máquinas: 16$00o por hab.; extensão das vias férreas: 7,5 km² por 10.000 hab; existência de vagões: 10 por 10.000 hab.; percentagem de operários industriais: 10; índice do comércio exterior: 185$000 por habitantes.64 Pelos indicadores utilizados pelo Instituto alemão, o Brasil, mesmo fazendo parte da denominada zona neocapitalista, uma vez estabelecidos os valores médios encontrados em todo o conjunto de países que faziam parte desse vasto grupo, está provavelmente colocado na fimbria dessa classificação. Além dos indicadores quantitativos, Simonsen qualifica a pobreza brasileira não só em termos de uma baixa renda per capita, mas também em relação aos indicadores da baixa escolaridade e participação política da população. As rendas do Estado brasileiro acompanhavam a insuficiência do ganho e, com um quadro já tão adverso, parecia ainda pior o prognóstico do futuro: 64 SIMONSEN, Roberto. Ordem econômica, padrão de vida e algumas realidades brasileiras. São Paulo: São Paulo Editora, 1934, p. 16.
  • 37. 135 O Brasil está classificado entre os países em que a criação de novos capitais é inferior às necessidades da amortização de suas dívidas sendo, portanto, forçado a cobrir o déficit por importação de capitais ou lançamentos de empréstimos no exterior. Calcula-se que essa diferença necessária corresponde a 6% do rendimento nacional. Todos esses elementos, Sr. Presidente, denunciam esta dura realidade: o Brasil é um país pobre, habitado por uma população pobre.65 Ou seja, o ritmo da geração de riqueza do país era inferior ao tamanho de sua dívida, e esta distância aumentaria ainda mais pelo tradicional método de cobrir o déficit com novo endividamento. A afirmação de Simonsen, ao fundo desse cenário, é que não somente o país era pobre como tendia a ser cada vez mais pobre - provém daí o teor imperativo de sua cruzada contra o pauperismo. A afirmação de Simonsen criou, naquele momento, uma celeuma no plenário, desembocando nos apartes feitos sobre a riqueza inata do país. Simonsen era acusado, indiretamente, de desprezar as condições naturais e mesológicas que davam sustentação e uma perspectiva de futuro para a economia nacional. Não só a discordância de Simonsen devia-se à convicção de que o desenvolvimento econômico só poderia ser gerado a partir do crescimento das atividades industriais e do desenvolvimento interno, como a questão da pobreza brasileira funcionava como uma peça estratégica da crítica ao modelo vigente, responsável pelos indicadores do período, e como uma recusa ao argumento de uma "natureza potencial" que colocaria de lado os três problemas que o autor queria realçar: a crítica do modelo vigente, a necessidade de mudança e a importância da vontade de implementar as transformações necessárias longe de uma perspectiva espontânea ou natural. 65 SIMONSEN, Roberto. Ordem econômica, padrão de vida e algumas realidades brasileiras. São Paulo: São Paulo Editora, 1934, p. 18.
  • 38. 136 Ao longo desse extenso debate (mais de dez páginas transcritas nos anais da Constituinte), Simonsen apontaria sempre a mesma condicionante: um país pobre e com uma tendência a empobrecer mais; e uma única saída: apostar no desenvolvimento de uma economia de base industrial. O único consolo que apresenta aos ouvintes é que nossos males resultavam do atraso do país que ainda não adentrara ao modelo industrial. Se esse atraso era lamentável, pelo menos nos habilitaria a ingressar na era do desenvolvimento sem conviver com a mesma quantidade de problemas que marcara a evolução sombria de outros povos -"crescemos menos, erramos menos". O conjunto da reflexão apresentada no plenário da assembleia incidia em alguns pontos importantes para o projeto industrial: evidenciava uma situação de pobreza crônica, devido as suas características, originária dos momentos anteriores da economia; condenava o custo dos direitos sociais que incidiriam nas atividades produtoras; pregava o crescimento da economia primeiro e a distribuição de riquezas depois; acentuava as defasagens sociais (ausência de educação, de condições de higidez e de acesso a bens serviços básicos por parte da maioria da população brasileira); apresentava como dado a estagnação do ritmo das exportações e apontava, ao contrário, a aceleração da tendência ao endividamento; incitava as elites a abandonarem suas ideias exóticas e a aferrarem-se aos verdadeiros problemas nacionais, colocava o estímulo ao desenvolvimento do comércio e da indústria como caminho para sair da condição de pobreza. O conhecimento acumulado sobre a experiência histórica de outras nações nos indicava um caminho mais seguro para trilhar, desde que tivéssemos a sábia atitude de não repetir os erros nelas praticados e de não importarmos modelos sem a preocupação de verificar a validade e aplicabilidade deles ao quadro brasileiro.
  • 39. 137 A situação de hoje em dia é esta: a nação nova, tem de ser protegida, pois não dispõe dos aparelhamentos econômicos dos países adiantados, e os países fracos, os que não dispuserem de tais aparelhamentos, fatalmente terão de perecer na concorrência internacional. Assim, temos de compensar a fraqueza das nações novas com proteção apropriada.66 Nesse aspecto, a proposição de protecionismo à indústria e sua necessidade diante da competição internacional revelam a influência das teses de Manoilescu (que Simonsen havia lido e que é citado em apenas algumas de suas obras). Outra contribuição original encontrada em As crises no Brasil67 é uma percepção crítica sobre a dinâmica do desenvolvimento capitalista. Tomando como tipo original de sucesso econômico o modelo inglês e a revolução tecnológica norte-americana (destacando o forte protecionismo que marcou esses sólidos exemplos da economia liberal), Simonsen é o primeiro a apontar a existência de um descompasso entre economias já desenvolvidas e as subcapitalizadas, não podendo as primeiras servir de modelo eficiente para as segundas. A cópia do padrão de economia natural (escola clássica) não poderia garantir êxito em economias atrasadas, especialmente em razão da função essencial da inovação. Para Simonsen, mesmo os Estados Unidos não transladaram a estrutura da economia inglesa, mas diferenciaram- se dela pela inovação tecnológica, pela administração racional do processo produtivo e pela modificação da estrutura do seu parque industrial. Outro exemplo sobre a diversidade econômica era o caso alemão, no qual a "vantagem competitiva" fundamental fora a ação interventora do Estado como ente que forçara racionalização extrema, tanto da produção empresarial quanto 66 ANNAES da Assembleia Nacional Constituinte de 1933. v. VII, 1935, p. 117. 67 SIMONSEN, Roberto. As crises no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora., 1930.
  • 40. 138 da econômica enquanto um sistema integrado (modelo da economia nacional proposto por Georg List). Em síntese, Simonsen traça um quadro diferente para as deficiências brasileiras, alinhadas ao problema da vocação agrária e da conformação de nossa inserção subalterna na divisão internacional do trabalho. A razão do nosso atraso é econômica, presa a uma pobreza resultante de nossa baixa capacidade de produção. Nesse cenário, a adesão ao liberalismo econômico fora parte da formação do atraso, e sua permanência um meio rápido para o colapso social. Seria necessária a construção de um projeto nacional, acima dos interesses particulares e capaz de promover a riqueza nacional – ponto de partida para uma melhor divisão da elevação da produtividade (movimento primário) no conjunto dos grupos sociais que a produziram (movimento secundário). O projeto de desenvolvimento simonseano brota, como as demais ideologias corporativistas brasileiras do período, do reconhecimento de uma causa estrutural de nossas insuficiências e na proposição de uma vontade organizada e condutora da construção nacional. Nessa proposição, o livre mercado, o individualismo político, os sectarismos partidários deveriam ser subsumidos a um pacto ou compromisso social, articulado entre trabalhadores e empregadores - as forças vitais da nação - e coordenado pelo Estado, a partir de um conhecimento científico e racional, planejador da mudança social. Simonsen, nesses termos, é um intelectual da linhagem do idealismo orgânico. Não é à toa que em sua trajetória de constituição da ideologia do industrialismo em condições de subcapitalismo tenha se aproximado e paulatinamente, participado das estratégias corporativistas adotadas por Vargas - a quem se opusera em momentos anteriores, como na Aliança Nacional Libertadora, na Revolução de 1930, na guerra paulista de 1932 e, menos abertamente, nos trabalhos da Constituinte de 1933/1934 (em que chegara na condição de deputado classista).
  • 41. 139 A engenharia corporativista em ação - as estratégias de Vargas Os ideólogos do corporativismo interpretaram os males do Brasil tecendo um grande rol de problemas que anelavam a dimensão social com as disfunções institucionais. Meio, raça, vínculos de solidariedade social, insulamento regional, organização das atividades produtivas e unidades terratenentes produziam corolários políticos como patrimonialismo, elitismo desenraizado, Estado fraco e nação fragilizada. Essas interpretações, geradas antes ou logo depois da Revolução de 1930, aparecem no fundo de tela das ações do governo Vargas, mais acentuadamente nos desdobramentos do governo provisório, momento constitucional e Estado Novo, com destaque para a crítica da estrutura partidária, a arquitetura do Estado e suas funções na Primeira República. Durante esses quinze anos houve um movimento de fortalecimento progressivo da proposta corporativista como único meio de solução dos problemas nacionais, envolvendo as capacidades do Estado de agir em prol da realização do projeto nacional e, nessa tarefa, impedindo que os distúrbios do partidarismo oligárquico, das elites sem responsabilidade social, de um capitalismo sem direção e acelerador de tensões sociais ou mesmo do revival das energias da Primeira Republica pudessem abortar as metas instauradas pela revolução de 30. A leitura dos discursos de Vargas em A nova politica do Brasil revela o altíssimo nível de adesão à gramática do corporativismo, à constituição de uma democracia econômica e organicista em oposição ao liberalismo, tanto econômico quanto político. Essa evolução em direção a novas bases da organização política e da vida pública nacional fora obra da Revolução, na preservação de seu caráter original, exigente de superação das sequelas ainda renitentes de um federalismo mal compreendido e mal executado na República."68 68 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: O ano de 1932 – A Revolução e o Norte – 1933. v. 2, Rio de Janeiro: José Olympio, 1932, p. 149.
  • 42. 140 A revolução não fora obra de um partido, e sim um amplo movimento de opinião, difuso e complexo, sem ter para "guiar- lhe a ação reconstrutora, princípios orientadores, nem postulados ideológicos definidos e propagados".69 Seu caráter heterogêneo, compósito de inúmeras correntes e energias sociais de "difícil aglutinação" impulsionou o governo provisório a "colocar-se acima das competições partidárias ou facciosas, para não trair os compromissos assumidos com a Nação"70 , integrando o país nas "concepções do Estado moderno, onde as preocupações partidárias ocupam lugar subalterno"71 . Para escapar das cisões facciosas dos partidos da Primeira República, Vargas invocaria a visão antinômica da cooperação das classes, das mediações dos Conselhos Técnicos e de uma nova forma de articulação da representação política de molde orgânico, baseado nos corpos representativos das classes produtoras (empregados e empregadores) - a representação classista, utilizada no processo eleitoral de 1933 para composição do colegiado que definiria a nova Constituição Brasileira. Em discurso proferido na instalação da Assembleia Constituinte de 1933, Vargas declarava como fato incontroverso: a decadência da democracia liberal e individualista e a predominância dos governos de autoridade, em consequência do natural alargamento do poder de intervenção do Estado, imposto pela necessidade de atender a maior soma de interesses coletivos e de garantir estavelmente com o recurso das compreensões violentas, a manutenção da ordem pública, condição essencial para o equilíbrio de todos os fatores preponderantes no desenvolvimento do progresso social. Achave de toda organização política 69 ANNAES da Assembleia Nacional Constituinte de 1933. v. VII, 1935, p 52. 70 ANNAES da Assembleia Nacional Constituinte de 1933. v. VII, 1935, p 117. 71 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil: A realidade Nacional de 1933 - retrospecto das realizações do Governo, em 1934. v. 3. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.
  • 43. 141 moderna é a segurança e eficiência desse equilíbrio. Onde ele falta, há perturbação, entrechoques e dispersão de energias, Se é verdade, como se afirma, que o principio de coexistência social evoluiu, deslocando-se do indivíduo para a coletividade, o máximo que se deve aspirar, nos momentos conturbados e incertos do mundo atual, é a ordem para o trabalho e o respeito para o cidadão, visando conciliar, no interesse de todos, a liberdade com a responsabilidade (grifos meus).72 Nessa empreitada, surge como necessário encontrar uma nova forma social capaz de concertar e equilibrar as tensões econômicas e sociais, com base no "princípio orgânico e justo da colaboração e da cooperação"73 , e, por outro lado, afastar a ameaça do retorno das artimanhas políticas dos grupos e partidos vencidos em 1930. Nesse ponto, Vargas demonstrou um segundo caráter para a adoção das estratégias do corporativismo: funcionar acima das classes, dos grupos, dos regionalismos e da forma tradicional do liberalismo em seu formato nacional - alinhado às forças retrógradas do passado do amorfismo social, das elites a serviço das tiranias das oligarquias mercantil-exportadoras, da desagregação política. Trata-se de uma adaptação do corporativismo, em seu projeto nacional e modus operandi orgânico distinto do privatismo individualista, ajustado aos conflitos políticos modernos, porém aqui ressignificado pelos contornos específicos de nossa trajetória - tema exaustivamente tratado pelos intelectuais da linhagem orgânica na interpretação social da formação brasileira. Essa adaptação corresponde exatamente ao desafio indicado explicitamente por Vargas de 72 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. O ano de 1932 - A Revolução e o Norte -1933. v. 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 149. 73 Que para realizar-se exigiria "desprezo aos preconceitos, desapegos dos bens materiais, em suma, espírito de sacrifício social, tudo isso impondo uma grande transformação de mentalidade" (VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Da Aliança Liberal às realizações do primeiro ano de Governo (1930-1931). v. 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 147).
  • 44. 142 governar a partir de um projeto amplo que os grupos e movimentos sociais que o geraram.74 Apoiou-se, fortemente, em duas estratégias: a representação profissional e os Conselhos Técnicos. A proposta da representação classista criava atores políticos concorrentes das elites tradicionais por estarem fora dos partidos e dos interesses regionais e setoriais (como as elites latifundiárias, exportadoras e da economia do café), funcionando em uma lógica diversa. da diferença e complementaridade das classes laborais: trabalhadores assalariados, industriais ou comerciais, empresários industriais e comerciantes e o funcionalismo público). Seu objetivo era o de [...] congregar todas as classes, em uma colaboração efetiva e inteligente. Ao direito cumpre dar expressão e forma a essa aliança capaz de evitar a derrocada final. Tão alevantado propósito será atingido quando encontrarmos, reunidos numa mesma assembleia, plutocratas e proletários, patrões e sindicalistas, todos os representantes das corporações de classe, integrados, assim, no organismo político do Estado.75 Com a criação dos Conselhos Técnicos, grupos de apoio do governo federal (que eram nomeados metade pelo governo e metade pela associação dos trabalhadores das diversas profissões), Vargas implementou mais uma instância funcional orgânico-corporativista, trazendo para dentro do Estado a 74 A revolução não fora processo demorado e apoiada nas "forças vivas da nacionalidade. A chamada Aliança Liberal não foi um partido político, no conceito comum da expressão. Nela entraram vários agrupamentos partidários de programas diferentes e, sobretudo, avolumou-se a corrente de opinião pública brasileira, fora dos partidos e acimas deles, em cujo espírito se arraigara o ideal renovador dos velhos moldes da política nacional" (VARGAS. Getúlio. A nova política do Brasil. Da Aliança Liberal às realizações do primeiro ano de Governo (1930-1931). v. 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 82). 75 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Da Aliança Liberal às realizações do primeiro ano de Governo (1930-1931). v. 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 118.
  • 45. 143 a representação, a participação e a competência de influenciar a agenda governamental grupos sociais ligados diretamente ao mundo da produção, investidos agora de uma capacidade política não liberal-competitiva, de tipo eleitoral partidária. Outro fato importante é que o critério de legitimidade desses atores advinha de um saber técnico, de uma expertise necessária em um modelo político que pretende dirigir a mudança social a partir do Estado e de suas instituições. Conselhos Técnicos e o surgimento de uma burocracia pública funcional com a criação do DASP transferiam, paulatinamente, a dinâmica do poder político da articulação e competição da sociedade civil e dos partidos para dentro das arenas estatais, sob a égide da racionalidade econômica. Soma-se à engenharia corporativista de Vargas, acelerada com a implantação do Estado Novo, o papel fundamental da estrutura econômica enquanto um problema (origem de tensões sociais graves, de disrupturas perigosas como a luta de classes), o reconhecimento da autonomia econômica como condição necessária da autonomia e soberania política nacional e, por último, como estratégia de resolução dos problemas do amorfismo social (apontado por Torres, Viana, Amaral) e do subcapitalismo (apontado por Simonsen - de quem Vargas se aproximaria muito, após a implementação dos Conselhos Técnicos e na guinada industrialista pós-1935/1937, como base do modelo de desenvolvimento nacional). A democracia de tipo liberal clássica, de partidos e eleições, no caso brasileiro, não cabia mais nos imperativos de uma sociedade em ebulição76 e em nova configuração: 76 "Na hora presente, os homens de responsabilidade pública não podem nem devem esquecer que as questões de natureza econômica e os imperativos da ordem social sobrelevam às preocupações meramente políticas" (VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Retorno à terra natal - confraternização sul-americana - A Revolução Comunista – novembro de 1934 a julho de 1937. v. 4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 197).
  • 46. 144 Quando os partidos políticos tinham objetivos de caráter meramente político [...] as suas agitações ainda podiam processar-se à superfície da vida social, sem perturbar as atividades do trabalho e da produção. Hoje. porém, quando a influência e o controle do Estado sobre a economia tendem a crescer, a competição política tem por objetivo o domínio das forças econômicas, e a perspectiva da luta civil. que espia, a todo o momento, os regimes dependentes das flutuações partidárias, é substituída pela perspectiva incomparavelmente mais sombria da luta de classes.77 O progressivo aprofundamento da perspectiva corporativista do governo Vargas avançaria da crítica do liberalismo da Primeira República, apoiada na tese de condições particulares de nossa formação e da criação de um quadro político e institucional adequado a essa particularidade, passando pelas estratégias de enfrentamento da herança do regime de derrocado em 193o, até um projeto nacional robusto, pautado pela questão da industrialização e modernização econômica como base a questão nacional. Em todos esses momentos, de perfil não liberal, estariam presentes elementos da gramática política do corporativismo, em especial na versão nacionalizada dos elementos do conflito social ( em parte moderno, porque capitalista; e em parte de modernidade hibrida em função do legado econômico, social e político da formação colonial), o nacionalismo voltado para o futuro, como projeto social, e a cooperação entre as classes produtoras em arranjo singular da promoção artificial do desenvolvimento econômico via planejamento e condução estatal. Esse repertório, com a significativa modernização conceitual promovida por Roberto Simonsen, é que permitiria que os elementos do corporativismo permanecessem, adiante, nas elaborações do nacional-desenvolvimentismo - forma expressiva e ressignificada da 77 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. O Estado Novo - 10 de novembro de 1937 a 25 de julho de 1938. v. 5. Rio de Janeiro: José Olympio,1938. p. 22.