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ELEFANTES E URSOS
Artur Azevedo


Era uma delícia ouvir o coronel Ferraz contar as suas façanhas de caça; mas ele
só vibrava, e só era verdadeiramente genial a inventar carapetões quando tinha
um bom auditório, quando via em volta de si olhos espantados e bocas abertas.


Dizem que na intimidade, conversando com um amigo, ou mesmo dois, era
incapaz de pregar uma peta.


Ora, uma ocasião estava ele no meio de um grupo de vinte pessoas, em que
estavam representados ambos os sexos e todas as idades.


As palavras do coronel, proferidas com aquela voz reboante e áspera, feita para
comandar exércitos, eram avidamente bebidas. Apenas um rapaz do grupo, o
Miranda, o maior estróina que Deus pusera no mundo, tinha na fisionomia um ar
de mofa e parecia não tomar a sério as proezas cinegéticas do nosso herói.


Mas isso não foi nada - dizia este retorcendo as pontas dos seus enormes
bigodes grisalhos. - Isso não foi nada à vista do que me aconteceu numa aldeia
do Ganges, aonde me levou a minha vida aventurosa. Um casal de elefantes
corria atrás de um moço que lhes maltratara o filho, um elefantinho deste
tamanho (e o coronel indicou o tamanho de um elefantão). O macho ia atingir o
moço com a tromba, quando o abati com um tiro da minha espingarda, que
nunca falhou. Mas restava a fêmea... A arma estroa descarregada, mas eu,
carioca da gema, lembrei-me do nosso jogo de capoeira, e passei-lhe uma
rasteira tão na regra, que a prostrei por terra! Antes que se erguesse aquela
pesada massa, tive tempo de carregar a espingarda e mandá-la passear no
outro mundo. O moço estava salvo.


Houve no auditório um murmúrio de admiração. O coronel continuou:


- O moço, mal o sabia eu, era um príncipe, filho de um rajá, ou coisa que o valha,
muito estimado na localidade: por isso, ergueram sobre o corpo do elefante
macho uma espécie de trono em que me colocaram, deram-me a beber um licor
sagrado, investiram-me não sei de que dignidade oficial, e fizeram-me assistir a
umas danças intermináveis. Foi uma festa a que concorreram mais de vinte mil
pessoas.


Passado o frêmito do auditório, o Miranda tomou a palavra:


- O coronel foi mais feliz no Ganges do que eu em Ceilão.
- Você já esteve em Ceilão? - perguntou o coronel.


- Ora! Onde não tenho estado? Um dia, estando a caçar - sim, porque também
sou caçador! - saiu-me pela frente um enorme urso, que avançou para mim. Quis
levar a mão à espingarda, mas tremia tanto, que não consegui pegá-la. E o urso
a avançar! Nisto, senti um bafo no meu cachaço. Olhei para trás: era outro urso,
de goela aberta e dentes arreganhados!


- E que fez você? - perguntou o coronel, interessado deveras.


- Não fiz nada - respondeu o Miranda. - Fui comido!

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  • 1. ELEFANTES E URSOS Artur Azevedo Era uma delícia ouvir o coronel Ferraz contar as suas façanhas de caça; mas ele só vibrava, e só era verdadeiramente genial a inventar carapetões quando tinha um bom auditório, quando via em volta de si olhos espantados e bocas abertas. Dizem que na intimidade, conversando com um amigo, ou mesmo dois, era incapaz de pregar uma peta. Ora, uma ocasião estava ele no meio de um grupo de vinte pessoas, em que estavam representados ambos os sexos e todas as idades. As palavras do coronel, proferidas com aquela voz reboante e áspera, feita para comandar exércitos, eram avidamente bebidas. Apenas um rapaz do grupo, o Miranda, o maior estróina que Deus pusera no mundo, tinha na fisionomia um ar de mofa e parecia não tomar a sério as proezas cinegéticas do nosso herói. Mas isso não foi nada - dizia este retorcendo as pontas dos seus enormes bigodes grisalhos. - Isso não foi nada à vista do que me aconteceu numa aldeia do Ganges, aonde me levou a minha vida aventurosa. Um casal de elefantes corria atrás de um moço que lhes maltratara o filho, um elefantinho deste tamanho (e o coronel indicou o tamanho de um elefantão). O macho ia atingir o moço com a tromba, quando o abati com um tiro da minha espingarda, que nunca falhou. Mas restava a fêmea... A arma estroa descarregada, mas eu, carioca da gema, lembrei-me do nosso jogo de capoeira, e passei-lhe uma rasteira tão na regra, que a prostrei por terra! Antes que se erguesse aquela pesada massa, tive tempo de carregar a espingarda e mandá-la passear no outro mundo. O moço estava salvo. Houve no auditório um murmúrio de admiração. O coronel continuou: - O moço, mal o sabia eu, era um príncipe, filho de um rajá, ou coisa que o valha, muito estimado na localidade: por isso, ergueram sobre o corpo do elefante macho uma espécie de trono em que me colocaram, deram-me a beber um licor sagrado, investiram-me não sei de que dignidade oficial, e fizeram-me assistir a umas danças intermináveis. Foi uma festa a que concorreram mais de vinte mil pessoas. Passado o frêmito do auditório, o Miranda tomou a palavra: - O coronel foi mais feliz no Ganges do que eu em Ceilão.
  • 2. - Você já esteve em Ceilão? - perguntou o coronel. - Ora! Onde não tenho estado? Um dia, estando a caçar - sim, porque também sou caçador! - saiu-me pela frente um enorme urso, que avançou para mim. Quis levar a mão à espingarda, mas tremia tanto, que não consegui pegá-la. E o urso a avançar! Nisto, senti um bafo no meu cachaço. Olhei para trás: era outro urso, de goela aberta e dentes arreganhados! - E que fez você? - perguntou o coronel, interessado deveras. - Não fiz nada - respondeu o Miranda. - Fui comido!