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A AlegriA
Rubem Alves




 Imagens de João Parassu
Pouco antes de morrer, Roland Barthes pronunciou a sua
conferência inaugural como professor do College de France.
Sabia que estava ficando velho, mas saudava a velhice como
      tempo de recomeço, o início de uma “vita nuova”.
E ao terminar sua fala fez uma confissão pessoal espantosa.
  Disse que havia chegado o momento de entregar-se ao
         esquecimento de tudo o que aprendera.
                 Tempo de desaprender.
As cobras, para continuarem a viver, têm de abandonar
                     a casca velha.
 Também ele tinha de abandonar os saberes com que
                a tradição envolvera.
Somente assim a vida poderia brotar de novo, fresca,
 do seu corpo, como a água brota das profundezas
             onde estivera enterrada.
E disse então que este era o sentido de ficar sábio:

    Nada de poder; um pouquinho de saber;
       e o máximo possível de sabor...
Ele dizia que era isto que pretendia ser, daquele
                momento para frente:




um mestre do prazer, aquele que se dedica a ensinar
   a seus jovens alunos o gosto bom das coisas!
Quem toma uma decisão como esta está afirmando que o prazer
   é a única coisa que vale a pena. Vivemos para o prazer.




   O que é espantoso é que tal revelação lhe tenha sido feita
     quando ele já deixara para trás os anos da juventude.
Talvez que a sabedoria seja coisa crepuscular.




Há pessoas que só conseguem ver direito depois
             que a velhice chega.
É preciso muito pouco.
       A alegria está muito próxima. Mora no momento.

Nós a perdemos porque pensamos que ela virá no futuro, depois
    de algum evento portentoso que mudará a nossa vida.
E a gente fica esperando que ela haverá de chegar depois da
   formatura, do casamento, do nascimento, da viagem, da
promoção, da loteria, da eleição , da casa nova, da separação,
 da morte do marido, da morte da mulher, da aposentadoria...
E ela não chega porque a alegria não mora no futuro
                 mas só no agora.
   Ela está lá, modesta e fiel, no espaço da casa,
                  no espaço da rua.
Se não a encontramos, não é culpa dela é culpa nossa.
Nossos pensamentos andam muito longe dos lugares onde
   ela mora e, por isso, nossos olhos não a podem ver.
Velhice é quando se percebe que não existe no futuro
    nenhum evento portentoso por que esperar,
              como início da felicidade.
    Mas isso não será verdadeiro da vida inteira?
Por isso, talvez, os jovens devessem aprender com os velhos
     que é preciso viver cada dia como se fosse o último.

A alegria mora muito perto. Basta esticar a mão para colhê-la,
                    sem nenhum esforço.
Mas, para isso, seria necessário que os nossos olhos
     fossem iluminados pela luz do crepúsculo.


                 Rubem Alves
Formatação
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A alegria está muito próxima

  • 1. A AlegriA Rubem Alves Imagens de João Parassu
  • 2. Pouco antes de morrer, Roland Barthes pronunciou a sua conferência inaugural como professor do College de France. Sabia que estava ficando velho, mas saudava a velhice como tempo de recomeço, o início de uma “vita nuova”.
  • 3. E ao terminar sua fala fez uma confissão pessoal espantosa. Disse que havia chegado o momento de entregar-se ao esquecimento de tudo o que aprendera. Tempo de desaprender.
  • 4. As cobras, para continuarem a viver, têm de abandonar a casca velha. Também ele tinha de abandonar os saberes com que a tradição envolvera.
  • 5. Somente assim a vida poderia brotar de novo, fresca, do seu corpo, como a água brota das profundezas onde estivera enterrada.
  • 6. E disse então que este era o sentido de ficar sábio: Nada de poder; um pouquinho de saber; e o máximo possível de sabor...
  • 7. Ele dizia que era isto que pretendia ser, daquele momento para frente: um mestre do prazer, aquele que se dedica a ensinar a seus jovens alunos o gosto bom das coisas!
  • 8. Quem toma uma decisão como esta está afirmando que o prazer é a única coisa que vale a pena. Vivemos para o prazer. O que é espantoso é que tal revelação lhe tenha sido feita quando ele já deixara para trás os anos da juventude.
  • 9. Talvez que a sabedoria seja coisa crepuscular. Há pessoas que só conseguem ver direito depois que a velhice chega.
  • 10. É preciso muito pouco. A alegria está muito próxima. Mora no momento. Nós a perdemos porque pensamos que ela virá no futuro, depois de algum evento portentoso que mudará a nossa vida.
  • 11. E a gente fica esperando que ela haverá de chegar depois da formatura, do casamento, do nascimento, da viagem, da promoção, da loteria, da eleição , da casa nova, da separação, da morte do marido, da morte da mulher, da aposentadoria...
  • 12. E ela não chega porque a alegria não mora no futuro mas só no agora. Ela está lá, modesta e fiel, no espaço da casa, no espaço da rua.
  • 13. Se não a encontramos, não é culpa dela é culpa nossa. Nossos pensamentos andam muito longe dos lugares onde ela mora e, por isso, nossos olhos não a podem ver.
  • 14. Velhice é quando se percebe que não existe no futuro nenhum evento portentoso por que esperar, como início da felicidade. Mas isso não será verdadeiro da vida inteira?
  • 15. Por isso, talvez, os jovens devessem aprender com os velhos que é preciso viver cada dia como se fosse o último. A alegria mora muito perto. Basta esticar a mão para colhê-la, sem nenhum esforço.
  • 16. Mas, para isso, seria necessário que os nossos olhos fossem iluminados pela luz do crepúsculo. Rubem Alves