SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 1
Quando lhe disseram para ficar, ela olhou para trás
e não viu a estrada que tinha percorrido para ali chegar.
Atrás de si, só existiam as pedras em que havia tropeçado e os silvados que havia saltado.
Já nem vislumbrava os tufos de erva onde tantas vezes sentiu lençóis de cetim,
nem os ribeiros, agora secos, onde bebeu águas de amor.
Se ao menos soubesse em que momento devia ter dito
o que queria com a alma e o coração,
talvez encontrasse o segundo em que a cegueira e as asas a afastaram da estrada.
Perdeu-se do passado e escondeu-se do futuro.
De tanto recordar o que é de "outras vidas", perdeu a biografia. Vestiu-se de indiferença.
Quando se voltou de novo para a frente também já não existia estrada.
Os joelhos latejavam de dor por tantas vezes cair.
As pernas sangravam golpeadas pelo mato.
Os cabelos nervosos arranhavam-lhe a cara e os olhos, confusos,
não viam para além de um palmo.
O receio martelava-lhe os intestinos, atava-lhe as pernas e
decepava-lhe as mãos.
Levantara-se sempre, como um urso que acorda depois de hibernar -
fraco mas cheio de vigor!
Afinal como havia de quantificar o tempo sem uma estrada para percorrer.
Naquela paisagem, naquela casa submersa,
não anoitecia nem amanhecia.
Sem tempo, o pensamento ficara suspenso, entalando o eixo da Terra.
O presente era um ponto onde não queria permanecer, e afogava-se.

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Quando lhe disseram para ficar, perdeu a estrada

Eugenio Andrade 4
Eugenio Andrade 4Eugenio Andrade 4
Eugenio Andrade 4Helena
 
Eugenio Andrade
Eugenio AndradeEugenio Andrade
Eugenio Andradefrutinha
 
Pablo Neruda Vinte poemas de amor e uma cancao desesperada
Pablo Neruda Vinte poemas de amor e uma cancao desesperadaPablo Neruda Vinte poemas de amor e uma cancao desesperada
Pablo Neruda Vinte poemas de amor e uma cancao desesperadaCarlos Elson Cunha
 
Proet@sias, livrozine de Odé Amorim
Proet@sias, livrozine de Odé AmorimProet@sias, livrozine de Odé Amorim
Proet@sias, livrozine de Odé Amorimoficinativa
 
Ameopoema jun 2017 - Ed 0050
Ameopoema jun 2017 - Ed 0050Ameopoema jun 2017 - Ed 0050
Ameopoema jun 2017 - Ed 0050AMEOPOEMA Editora
 
Poemas
PoemasPoemas
Poemasxyagox
 
Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, Pablo Neruda
Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, Pablo NerudaVinte poemas de amor e uma canção desesperada, Pablo Neruda
Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, Pablo NerudaZanah
 

Semelhante a Quando lhe disseram para ficar, perdeu a estrada (8)

Dois
DoisDois
Dois
 
Eugenio Andrade 4
Eugenio Andrade 4Eugenio Andrade 4
Eugenio Andrade 4
 
Eugenio Andrade
Eugenio AndradeEugenio Andrade
Eugenio Andrade
 
Pablo Neruda Vinte poemas de amor e uma cancao desesperada
Pablo Neruda Vinte poemas de amor e uma cancao desesperadaPablo Neruda Vinte poemas de amor e uma cancao desesperada
Pablo Neruda Vinte poemas de amor e uma cancao desesperada
 
Proet@sias, livrozine de Odé Amorim
Proet@sias, livrozine de Odé AmorimProet@sias, livrozine de Odé Amorim
Proet@sias, livrozine de Odé Amorim
 
Ameopoema jun 2017 - Ed 0050
Ameopoema jun 2017 - Ed 0050Ameopoema jun 2017 - Ed 0050
Ameopoema jun 2017 - Ed 0050
 
Poemas
PoemasPoemas
Poemas
 
Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, Pablo Neruda
Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, Pablo NerudaVinte poemas de amor e uma canção desesperada, Pablo Neruda
Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, Pablo Neruda
 

Quando lhe disseram para ficar, perdeu a estrada

  • 1. Quando lhe disseram para ficar, ela olhou para trás e não viu a estrada que tinha percorrido para ali chegar. Atrás de si, só existiam as pedras em que havia tropeçado e os silvados que havia saltado. Já nem vislumbrava os tufos de erva onde tantas vezes sentiu lençóis de cetim, nem os ribeiros, agora secos, onde bebeu águas de amor. Se ao menos soubesse em que momento devia ter dito o que queria com a alma e o coração, talvez encontrasse o segundo em que a cegueira e as asas a afastaram da estrada. Perdeu-se do passado e escondeu-se do futuro. De tanto recordar o que é de "outras vidas", perdeu a biografia. Vestiu-se de indiferença. Quando se voltou de novo para a frente também já não existia estrada. Os joelhos latejavam de dor por tantas vezes cair. As pernas sangravam golpeadas pelo mato. Os cabelos nervosos arranhavam-lhe a cara e os olhos, confusos, não viam para além de um palmo. O receio martelava-lhe os intestinos, atava-lhe as pernas e decepava-lhe as mãos. Levantara-se sempre, como um urso que acorda depois de hibernar - fraco mas cheio de vigor! Afinal como havia de quantificar o tempo sem uma estrada para percorrer. Naquela paisagem, naquela casa submersa, não anoitecia nem amanhecia. Sem tempo, o pensamento ficara suspenso, entalando o eixo da Terra. O presente era um ponto onde não queria permanecer, e afogava-se.