1. Chamo-
Chamo-Te Senhor
Chamo-Te porque tudo ainda está no princípio Senhor se da tua pura justiça
E suportar é o tempo mais comprido. Nascem os monstros que em minha roda eu vejo
É porque alguém te venceu ou desviou
Peço-Te que venhas e me dês a liberdade Em não sei que penumbra os teus caminhos
Que um só dos Teus olhares me purifique e acabe.
Foram talvez os anjos revoltados.
Há muitas coisas que eu não quero ver. Muito tempo antes de eu ter vindo
Já se tinha a tua obra dividido
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo. E em vão eu busco a tua face antiga
E que o Teu reino antes do tempo venha És sempre um deus que nunca tem um rosto
E se derrame sobre a terra
Em Primavera feroz precipitado Por muito que eu te chame e te persiga
O Anjo
Dia de hoje
O anjo que em meu redor passa e me espia
Ó dia de hoje, ó dia de horas claras E cruel me combate, nesse dia
Florindo nas ondas, cantando nas florestas, Veio sentar-se ao lado do meu leito
No teu ar brilham transparentes festas E embalou-me, cantando, no seu peito.
E o fantasma das maravilhas raras
Visita, uma por uma, as tuas horas Ele que indiferente olha e me escuta
Em que há por vezes súbitas demoras Sofrer, ou que, feroz comigo luta,
Plenas como as pausas dum verso. Ele que me entregara à solidão,
Poisava a sua mão na minha mão.
Ó dia de hoje, ó dia de horas leves
Bailando na doçura E foi como se tudo se extinguisse,
E na amargura Como se o mundo inteiro se calasse,
De serem perfeitas e de serem breves. E o meu ser liberto enfim florisse,
E um perfeito silêncio me embalasse.
Sophia de Mello Breyner
A Equipa da Biblioteca Escolar