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O Estranho Mundo de Tim Burton
CORTEZ, Anna Emília; MUDADO, Gabriela; NORBIM, Oswaldo;
PAULA, Marina de; SÁ, Soraia Casal de.
Belo Horizonte, PUCMG, 2006.
Orientadora: Roberta Veiga
Supervisor: Márcio Serelle
Projeto Experimental (Graduação) – Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais – Faculdade de Comunicação e Artes – Graduação em
Publicidade e Propaganda.
Introdução – Timothy William Burton – Vendendo o fantástico –
Semelhanças, influências ou apropriações – A marca de um autor –
Dissolução do sujo – Mise en scène – Conclusão – Referências
Bibliográficas - Filmografia
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Faculdade de Comunicação e Artes
O Estranho Mundo de Tim Burton
Por:
Anna Emília Cortez
Gabriela Mudado
Marina de Paula
Oswaldo Norbim
Soraia Casal de Sá
Projeto Experimental apresentado à Faculdade de
Comunicação de Artes da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito para a
obtenção do título de bacharel em Publicidade e
Propaganda.
Orientadora: Roberta Veiga
Supervisor: Márcio Serelle
Belo Horizonte
2º Semestre de 2006
6
Resumo:
Nosso objetivo, neste estudo, foi apontar e caracterizar o trabalho do
diretor de cinema Tim Burton em termos do conceito de autoria
cinematográfica desenvolvido na década de 1950 na França. Além
disso, buscamos destacar os elementos formadores de seu gesto
autoral: matriz e mise en scène.
Palavras-chave: Autoria no cinema
Tim Burton
Matriz e mise en scène
Abstract:
Our goal, in this study, was to point out and characterize the work
of the movie director Tim Burton on the terms of the concept of
authorship in cinema developed on the 1950’s in France. Besides, we
sought to highlight the elements that form his author gesture:
argument and mise en scène.
Key-words: Authorship in cinema
Tim Burton
Argument and mise en scène
7
Agradecimentos
Aos nossos pais,
À orientadora e ao supervisor,
Anna Emilia:
Aos meus irmãos,
à Gabriela
e à Soraia
Gabriela:
À Soraia,
ao Danilo
e ao Henrique
Marina:
Ao Luís Carlos,
à Daniela
e ao Marcelo
Oswaldo:
À Raquel
Soraia:
À Gabriela
À Geny Sá (in memorian)
8
9
Sumário
Introdução 11
Timothy William Burton 13
A Fantástica Fábrica de Filmes 21
Semelhanças, influências ou apropriações 31
A marca de um autor 43
Os Estranhos de Divertem 55
Mise en scène 87
Conclusão 119
Referências bibliográficas 122
Filmografia 127
Imagens 133
10
11
Introdução
O presente trabalho optou pela obra do cineasta Tim Burton
como objeto de estudo. Ao fazer esta escolha, o grupo
imediatamente encontrou uma deficiência bibliográfica não só
em relação à obra deste cineasta, mas também a dos seus
contemporâneos. Seria mais fácil para um projeto experimental
que trata de cinema trabalhar com os grandes cineastas
consagrados, já que existem inúmeras dissertações, trabalhos e
livros a respeito dos mesmos. Entretanto, escolhemos o diretor
Tim Burton pelo desafio de compreender a forma com a qual ele
se estabelece como um diretor dono de uma assinatura capaz de
refletir-se em todos os seus filmes e, por este motivo,
transformar-se em um autor de cinema.
Ao pensar em Tim Burton, rapidamente constatamos que o
diretor é capaz de conquistar a simpatia tanto do público quanto
da crítica, além de ocupar um lugar de destaque raro no contexto
hollywoodiano. Foi pensando nisso que a primeira questão foi
levantada: o que tem de tão especial em suas realizações? E, a
partir desta, como é produzida a assinatura burtonesca nos filmes?
É baseado nestas indagações que este estudo apresenta seus seis
capítulos seguintes.
O conceito da autoria no cinema foi criado na década de 50, ou
seja, o auge do cinema moderno, e será retomado nessa análise
por ser capaz de abranger a obra de Burton, um diretor
essencialmente pós-moderno, sem, no entanto, limitá-la. Para
apontar a autoria cinematográfica de Tim Burton, optamos pelo
auxílio da teoria de Jean-Claude Bernardet, pensador de cinema e
defensor da teoria do autor de cinema. Baseando-nos neste
12
conceito, pretendemos mostrar algumas das características
latentes na obra de Burton que configuram a criação de um
trabalho único na sétima arte. É necessário ressaltar, no entanto,
que compreendemos que esta é uma tarefa bastante ambiciosa
para um estudo como o projeto experimental e que temos
consciência de nossas limitações acadêmicas e imaturidade
teórica, bem como a escassez de tempo disposto para este
trabalho.
Nesta iniciativa de O capítulo “Timothy William Burton” é
dedicado a apresentar o homem responsável pelo mundo
burtonesco, ou seja, o próprio diretor e seus atributos
profissionais.
Em “A Fantástica Fábrica de Filmes”, o objetivo é demonstrar
e esclarecer, através de elementos que regem a indústria
hollywoodiana, a forma como Tim Burton se encontra inserido e
bem posicionado no âmbito comercial do cinema atual.
No capítulo intitulado “Semelhanças, influências ou
apropriações”, pretende-se apontar algumas características das
correntes cinematográficas que mais se destacam na obra do
cineasta, sendo vistas como formadoras da característica híbrida
do cinema burtonesco que se apropria de elementos produzidos
no decorrer da história cinematográfica na produção de um
trabalho inédito.
O capítulo “A marca de um autor”, baseado em Bernardet,
define traços na obra de Burton que o configuram como autor, e
os dois capítulos seguintes, como mera formalidade didática
existente na própria teoria, foram divididos entre os dois
elementos formadores de um gesto autoral: matriz e mise en scène.
Sendo que a matriz, aqui chamada de “Os Estranhos de
Divertem”, é apresentada através da análise de todo o conjunto
narrativo da obra de Burton; e a mise en scène focada nos aspectos
visuais de sua filmografia.
13
Timothy William Burton
Timothy William Burton, mais conhecido como Tim Burton,
nasceu em 25 de agosto de 1958, na pequena cidade de Burbank,
no estado da Califórnia, Estados Unidos. Algumas fontes que
tratam sobre sua vida afirmam que Tim teve uma infância
conturbada e ela é a origem de sua criatividade bizarra e de sua
personalidade excêntrica. Entretanto, o próprio Burton declara
que em sua infância não existiram muitos eventos peculiares, ele
possuía amigos e brincava como qualquer outra criança.
A primeira coisa que as pessoas perguntam quando eu
menciono que conheço o Tim Burton é: ‘Ele é estranho?’
(...) sim, ele é o que alguns chamam de ligeiramente
excêntrico (...) mas após passar um tempo na companhia de
Burton você pode começar a ter a sensação de que talvez,
só talvez, todos nós é que somos os estranhos, e ele, o único
completamente são.
(MILLS, 2002:147)
O cineasta não possui nenhuma biografia oficial, mas algumas
de suas declarações revelam um pouco da sua história,
principalmente, no livro “Burton on Burton”, no qual, em
entrevista a Mark Salisbury, Burton explica um pouco mais sobre
sua vida pessoal e seu trabalho como diretor.
Ainda jovem, Burton tinha problemas em aceitar o subúrbio
onde morava, o que se tornou referência recorrente e
reconhecível em seu trabalho. Burbank é conhecida como a cidade
que acolhe os grandes estúdios de Hollywood, ela faz parte da
14
Grande Los Angeles, mas mantém características de cidades
interioranas. Apesar da proximidade com uma grande capital,
“Burbank é um arquétipo de um subúrbio de classe trabalhadora
americana. Ambiente no qual Burton se sentia alienado desde a
juventude, o que, mais tarde, é retratado em Edward Mãos de Tesoura”
(BURTON; SALISBURY, 2000:1).
Burton, desde muito jovem, já demonstrava um gosto pelo
cinema e uma criatividade de destaque. Era um estudante
‘preguiçoso’ que nunca leu um livro como tarefa e, para
conseguir pontos, fazia pequenos filmes sobre os assuntos
tratados na matéria. Quando perguntado se pensava em ser
cineasta, Tim Burton diz: “Eu, na verdade, nunca pensei em
realmente fazer filmes como um meio de vida. Talvez em algum lugar
bem guardado, mas eu nunca conscientemente disse que queria ser um
diretor. Eu gostava de fazer filmes. E me ajudava a passar na escola”
(BURTON; SALISBURY, 2000:6). Além dos filmes, Burton
demonstrava um interesse grande por desenho, sendo que, na
época de halloween ganhava dinheiro pintando decorações como
vampiros, esqueletos e abóboras nas janelas dos vizinhos de
Burbank.
Ainda na infância, assistia com freqüência aos chamados filmes
lado b1, tais como: “Godzilla” (1954), “Frankenstein” (1931),
“Jasão e o Velo de Ouro” (1963), “The Brain That Wouldn’t Die”
(1962), “King Kong”, (1933) “O Monstro da Lagoa Negra” (1954),
entre outros. Mas, segundo Burton, os estrelados por Vincent
Price são os “que me tocaram especificamente por alguma razão. (...)
Vincent Price era alguém com quem eu conseguia me identificar, talvez
da mesma forma que Gary Cooper ou John Wayne para outras pessoas”
1 Filmes lado b: o termo surgiu em Hollywood quando havia apresentações duplas, e o segundo
filme, de menos valor, era chamado de B. Os filmes classificados como lado b, ou apenas filmes-b,
atualmente, são aqueles cujo orçamento para realização é muito baixo comparado aos filmes
realizados no circuito hollywoodiano. Algumas vezes, o termo pode ser utilizado como sinônimo de
cult, mas, na maioria dos casos designa filmes de baixa qualidade e/ou pouca visualização
mercadológica. (WIKIPEDIA, s.d.)
15
16
17
(BURTON; SALISBURY, 2000:4,5). A admiração de Burton pelo
ator é notória, sendo que Price foi homenageado pelo título de
seu primeiro curta, “Vincent” (Vincent, 1982), e, anos depois,
atuou no filme “Edward Mãos de Tesoura” (Edward Scissorhands,
1990) como o criador de Edward.
Existe também um rumor sobre o relacionamento de Burton
com seus pais ser conturbado. Alguns especulam que
desentendimentos entre Tim e o pai (Bill) podem ser a razão pela
qual, ainda aos doze anos de idade, ele mudou-se para a casa de
sua avó. Bill Burton faleceu em 2003, antes das gravações de
“Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish), sem que
ele e Tim voltassem a se falar. O diretor é relutante ao tratar
sobre o assunto, mas afirma que o filme sobre o relacionamento
de pai e filho serviu como uma forma de terapia para ele
(BURTON, 2003).
Detalhes da sua vida pessoal à parte, Tim Burton foi bolsista
no Instituto de Artes da Califórnia (Cal Arts), criado pela Disney
com o objetivo de incentivar novos profissionais em animação.
Em 1979, no seu terceiro ano no Instituto, Burton foi selecionado
pelos estúdios Disney e contratado como animador. A
padronização dos desenhos fez com que Burton deixasse o
emprego, ele alega que quando cria-se formas específicas para
produzir arte, a criatividade e liberdade do artista é limitada.
Entretanto, sua experiência nos Estúdios de Animação Disney
incluiu em seu currículo trabalhos como animador, desenhista e
fotógrafo, e, foi através dela que Burton foi contratado para
realizar seu primeiro longa-metragem: “As Grandes Aventuras
de Pee-Wee” (Pee-Wee’s Big Adventure, 1985).
Tim Burton também possui alguns trabalhos como escritor. Ele
é autor de contos infantis, como “A Melancólica Morte do
Menino Ostra” (The Melancholic Death of Oyster Boy), lançado em
1997; de algumas das histórias usadas em seus filmes: “Vincent”
18
(Vincent, 1982), “Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem”
(Beetlejuice, 1988), “Edward Mãos de Tesoura” (Edward
Scissorhands, 1990), “O Estranho Mundo de Jack” (Nightmare
Before Christmas, 1993); e, também, co-autor de um livro sobre seu
trabalho como diretor de cinema, “Burton on Burton” de Mark
Salisbury (1995), já mencionado aqui; além de várias coletâneas
de entrevistas do diretor sobre a produção e realização de seus
filmes.
Burton também é um produtor respeitado em Hollywood,
assinando a produção de quinze filmes, sendo cinco deles para
televisão, um em animação gráfica e nove feitos para o cinema.
Em sua carreira, Burton assina, como diretor, doze longas-
metragens, três curtas e três filmes para TV. Entre seus filmes
mais conhecidos estão: “Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem”
(Beetlejuice, 1988), “Batman” (Batman, 1989), “Edward, Mãos de
Tesoura” (Edward Scissorhands, 1990), “Ed Wood” (Ed Wood,
1994), “Marte Ataca!” (Mars Attacks!, 1996), “A Lenda do
Cavaleiro Sem Cabeça” (Sleepy Hollow, 1999), “Peixe Grande e
Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish, 2003), “A Fantástica
Fábrica de Chocolate” (Charlie and the Chocolate Factory, 2005) e,
mais recentemente, “A Noiva-Cadáver” (Tim Burton’s Corpse
Bride, 2005). [ver quadro p. 19]
O crítico de cinema William Arnold (2005), do Seattle Poster-
Intelligencer, apesar de depreciar alguns filmes da obra de Tim
Burton, ele diz que o trabalho do diretor possui uma “magia
especial” e é uma contribuição à arte do cinema.
19
Filmografia de Tim Burton
Longas-Metragens Ano Função
A Noiva-Cadáver (Tim Burton’s Corpse Bride) 2005 Direção e Produção
A Fantástica Fábrica de Chocolate (Charlie and the
Chocolate Factory) 2005 Direção
Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas (Big Fish) 2003 Direção
Planeta dos Macacos (Planet of the Apes) 2001 Direção
A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (Sleepy Hollow) 1999 Direção
James e o Pêssego Gigante (James and the Giant
Peach) 1996 Produção
Marte Ataca! (Mars Attacks!) 1996 Direção e Produção
Batman Eternamente (Batman Forever) 1995 Produção
Ed Wood (Ed Wood) 1994 Direção e Produção
Cabin Boy (Cabin Boy) 1994 Produção
O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before
Christmas) 1993 Produção e História
Batman - O Retorno (Batman Returns) 1992 Direção e Produção
Edward Mãos de Tesouras (Edward Scissorhands) 1990 Direção, Produção e História
Batman (Batman) 1989 Direção
Beetlejuice, Os Fantasmas se Divertem (Beetlejuice) 1988 Direção e História
As Grandes Aventuras de Pee-Wee (Pee-Wee's Big
Adventure) 1985 Direção
O Caldeirão Mágico (The Black Cauldron) 1985 Concepção Artística
Tron 1982 Animação
O Cão e a Raposa (The Fox And The Hound) 1981 Animação
Curtas-Metragens Ano Função
The World of Stainboy 2000 Direção, Produção e História
Frankenweenie 1984 Direção, História e Storyboard
Vincent 1982 Direção, História e Design
Filmes para TV Ano Função
Lost in Oz 2000 Produção Executiva
Family Dog (Spielberg's Amazing Stories) 1992 Produção Executiva
Beetlejuice - Série de TV 1989 Produção Executiva e Criação
Joãozinho e Maria (esp. Disney: Hansel and Gretel) 1982 Direção e História
Luau (participação como ator) 1982 Direção, Produção, História
Stalk of The Celery 1979
Direção, Produção, História e
Animação
Fonte: IMDB - Internet Movie Database
20
21
A Fantástica Fábrica de
Filmes
Tim Burton é um diretor atual que para criar seu trabalho
enfrenta as condições impostas pelo status do cinema
contemporâneo: a transformação dos filmes em produtos e dos
espectadores em clientes. Apesar disso, o diretor é capaz de criar
películas que se destacam em um meio tão competitivo, que
conquistam grandes públicos e possuem uma espécie de
assinatura diferenciada. Um mundo fantástico é criado e vendido
com sucesso no mercado hollywoodiano. Sob tantas interferências e
tantos interesses em jogo (principalmente o financeiro), Burton
deixa sua marca no produto-arte do cinema atual.
Segundo Costa (1989), o “cinema é aquilo que se decide que ele seja
numa sociedade, num determinado período histórico, num certo estágio
de seu desenvolvimento, numa determinada conjuntura político-
cultural ou em um determinado grupo social”. Ele se constitui, ao
mesmo tempo, como técnica, indústria, arte, espetáculo,
divertimento – cultura.
Ao observar o status da cultura atual, percebe-se que é
necessário levar em consideração alguns aspectos viabilizados
pelo desenvolvimento técnico da humanidade e que se tornam
influências para a criação cinematográfica como, por exemplo, a
onipresença da televisão e das novas estruturas tecnológicas. Sem
dúvida, estas novas tecnologias influenciam o cinema,
principalmente no âmbito da produção, distribuição e consumo
dos filmes.
22
Neste contexto, o cinema vivencia avanços tecnológicos
inumeráveis. Softwares, digitalizações e técnicas televisivas são
arrebanhados pelas técnicas cinematográficas: são tecnologias
muito recentes, capazes de criar praticamente qualquer coisa em
cena. Tim Burton extrai, destas novas tecnologias, possibilidades
expressivas que contribuem para despertar emoções no público,
utilizando-as como quem as domina, e não o contrário. É a junção
destes novos artifícios e as técnicas tradicionais do cinema que
alimenta as produções fantásticas do diretor, sem atingir um
extremo computadorizado ou a simplicidade pura da imagem
capturada.
Segundo Burton (2003), quando as cenas são produzidas sem o
auxílio de computadores, a sensação de realidade é maior e a
atuação dos atores se torna mais próxima de algo que realmente
está acontecendo, o que acaba refletindo diretamente no
resultado final. Até mesmo em animações, o cineasta opta por
bonecos reais que tomam vida a partir da técnica de stop-motion2,
ao invés de produzi-los totalmente através dos recursos
computadorizados. Exemplos disso são os filmes “Vincent”
(Vincent – 1982), “A Noiva-Cadáver” (Tim Burton’s Corpse Bride –
2005), “O Estranho Mundo de Jack” (The Nightmare Before
Christmas – 1993), e “James e o Pêssego Gigante” (James and the
Giant Peach – 1996), – sendo que os dois últimos foram dirigidos
por Henry Selick, mas produzidos por Tim Burton.
Acho que CG (Imagem Gerada por Computador) funciona
para algumas coisas. Não dá para fazer certas coisas sem
isso. Mas, ao mesmo tempo, acho que as pessoas confiam
demais nisso. Sempre vou partir do princípio que se você
pode fazer a cena sem CG, melhor. Eu também gostei de
2 Stop-motion: técnica de animação cinematográfica que consiste em dar vida a objetos através do
sistema quadro-a-quadro. Nesta técnica, o animador faz um registro das várias nuances do
movimento em diversos quadros diferentes, depois os ordena para formarem um movimento
completo.
23
usar esse recurso, mas tento misturar as técnicas para não
ficar preguiçoso. (...) É algo que acho que as pessoas
percebem. Mesmo que não percebam, sabem
inconscientemente. (...) Não me importa o que digam. Se
fosse efeito, você sentiria. Isso lhe dá um foco que você não
teria em uma sala de tela azul.
(BURTON, Informação verbal)3
A questão tecnológica permeia não somente a forma utilizada
para a produção do filme, mas também se configura como tema e
crítica na obra burtonesca. Tim Burton parece empenhado em
valorizar apetrechos antiquados e destacar conexão do homem
moderno e pós-moderno ao maquinário, mesmo que arcaico.
Todos os filmes produzidos atualmente retratam de alguma
maneira o avanço tecnológico, seja de forma sutil como referência
à cultura atual, como crítica contra a automatização da vida ou
como elemento primordial para a produção do conjunto fílmico.
Em Burton, este tema aparece de variadas maneiras, porém
nunca tratado como algo a ser temido pela humanidade. A
tecnologia é mostrada como parte da rotina dos personagens e,
mesmo quando há falhas relacionadas a elas, estas surgem
somente para criticar uma valorização que ultrapasse os limites
do mutualismo estabelecido pelo ser humano com tais avanços.
Em diversas entrevistas, Tim Burton diz que prefere criar
todos os cenários em estúdios e locações sempre que possível,
dependendo das possibilidades físicas em produzi-los e do
orçamento disponível. Observando a afirmação do diretor em
relação às limitações impostas pelas finanças dos filmes, outra
característica importante do cinema atual se destaca: a produção
e o consumo. Já há algum tempo considerado como um produto
da era capitalista, o filme faz parte de uma indústria lucrativa e
disputada. Hollywood, a ‘empresa’ mais bem sucedida na área, é o
3 Fala de Tim Burton extraída de “Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas: Comentários do
Diretor” de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay.
24
centro da produção cinematográfica e financiadora dos filmes,
através dos grandes estúdios, desde a década de 1920. O que será
produzido, como será produzido, por quem será feito e até
mesmo os temas abordados, tornam-se determinações dos
comandantes dessa indústria cujo objetivo principal é o lucro. A
transformação do filme em produto acarreta em várias
influências e empecilhos para o processo de criação dos diretores.
Ainda assim, Tim Burton é capaz de fechar contratos milionários
com os estúdios mantendo seu gesto autoral, produzindo um
cinema único dentro da máquina hollywoodiana. Depois do
lançamento do primeiro “Batman” (Batman, 1989), seu nome
passou a ser atrativo para um público fiel, já que o filme trouxe
notoriedade internacional ao nome do diretor, principalmente
pelo recorde histórico de bilheteria em uma estréia
cinematográfica. “The Economist descreveu o ‘Batman’ de Burton
como o filme de maior sucesso financeiro do verão mais bem sucedido de
Hollywood. Ele foi o primeiro filme na história do cinema a arrecadar
100 milhões de dólares em dez dias” (SMITH; MATTHEWS, 2002:83)
É claro que o relacionamento de Burton com os estúdios não é
sempre tranqüilo. Um caso de tensão entre o diretor e os
empresários da indústria é a polêmica que foi criada em torno do
projeto “Superman Lives” (1996) – um roteiro escrito por Kevin
Smith4, contando a história do Super-Homem. Burton foi
convidado para dirigir a produção, porém suas mudanças no
roteiro e na estética do super-herói (a roupa do Super-Homem,
por exemplo, seria preta aos moldes do protagonista de “Edward,
Mãos de Tesoura”) criaram conflitos com o roteirista e o projeto
foi abandonado, após o pedido de afastamento do diretor feito
pelo estúdio Warner (MEDEIROS, 2002).
4 Kevin Smith: o americano é cartunista, ator, roteirista, diretor e produtor. Seu filme mais
conhecido é Dogma com Bem Affleck e Matt Damon. Kevin também é conhecido como Silent Bob,
personagem que representa em algumas de suas produções.
25
Grandes estúdios realizam, em sua maioria, filmes que possam
ser rentáveis, já que a produção cinematográfica é bastante
dispendiosa. Na tentativa de garantir o sucesso financeiro,
normalmente, os estúdios procuram roteiristas e diretores
dispostos a criarem filmes usando a mesma receita daqueles que
geraram maior renda, criando, assim, uma espécie de moda em
Hollywood. Recentemente, no fim da década de 1990, uma grande
onda de filmes de suspense atingiu as salas de todo o mundo,
películas como “Pânico” (Scream, 1996), “Eu Sei o Que Vocês
Fizeram no Verão Passado” (I Know What You Did Last Summer,
1997), “A Bruxa de Blair” (The Blair Witch Project, 1999) são
exemplos de filmes que seguem tendências do mercado, também
conhecidos como blockbusters. Já no início do século XXI, foi a vez
dos heróis dos quadrinhos: “X-Men” (X-Men, 2000), “O Homem-
Aranha” (Spider-Man, 2002), “O Demolidor” (Daredevil, 2003) e
“O Incrível Hulk” (Hulk, 2003). Sobre isto, podemos observar que
Tim Burton já havia se antecipado à moda, ao lançar o já
mencionado “Batman” em 1989 – uma filmagem do famoso herói
dos quadrinhos criado por Bob Kane em 1939 – e, sendo um dos
responsáveis pela tendência, como sugerem Jim Smith e J.
Matthews (2002:84): “Batman é inquestionavelmente o filme de herói
de maior influência de todos os tempos. Ele iniciou a onda de dark
blockbusters (...) e definiu a abordagem de filmes fantásticos por mais de
uma década”.
Esta recusa de Burton pelas tendências impostas pela
indústria, ainda pode ser observada em outros exemplos:
enquanto as telas eram invadidas pelos thrillers de suspense, Tim
Burton lançou “Marte Ataca!” (Mars Attacks!, 1996) – uma
comédia sobre um ataque alienígena – e, durante o domínio dos
super-heróis, “Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (Big
Fish, 2003) – um drama sobre a relação de pai e filho. Nos
comentários de Tim Burton em relação ao filme, ele diz que “é
bom trabalhar em um projeto proposto por um estúdio que não seja
26
baseado em quadrinhos, figurinhas ou algo assim” (Informação
verbal)5. Esse tipo de negação aos padrões estipulados no mundo
hollywoodiano consegue estabelecer uma relação contraditória:
mesmo se opondo às tendências, Burton não as recusa
completamente. Explorando formatos cinematográficos que não
se encontram no alvo da moda – mas que já estiveram em alta em
algum momento na história do cinema – o diretor acaba por
lançar ou re-lançar tendências.
Exemplos disso são os filmes “Batman” (1989) e “Marte
Ataca!” (1996). Ambos acabaram por despertar uma tendência
em Hollywood, o primeiro redescobriu a força dos filmes
inspirados em quadrinhos, tendo sido um dos filmes mais bem
sucedidos em comercialização e merchandising da história do
cinema, como já foi dito neste capítulo. Sobre esse caso, ainda
podemos observar que a idéia de lançar o herói Batman nas telas
já era bem difundida no meio televisivo com uma série de TV das
décadas de 1960 e 1970. O grande êxito de Burton se deu pela
forma obscura e sombria com a qual o herói foi apresentado,
causando uma surpresa positiva para a maior parte dos fãs do
personagem que consideravam o Batman da TV uma ofensa ao
trabalho de Bob Kane. Já em “Marte Ataca!” (1996), o tema de
alienígenas e ataques ao planeta também é trazido com uma
abordagem diferente da disseminada por Hollywood: ao invés de
tratar os ataques como algo trágico e repleto de melodrama,
Burton exibe a morte de maneira cômica e critica todos os filmes
criados anteriormente com o mesmo tema ao apresentar uma
solução banal para salvar a humanidade, vindo da fonte mais
improvável na narrativa.
Além das modas impostas às narrativas de tempos em tempos,
outro aspecto que domina o mercado de cinema são as grandes
5 Fala de Tim Burton extraída de “Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas: Comentários do
Diretor” de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay.
27
28
29
estrelas. Desde a “Era de Ouro de Hollywood” (Andrade, 2003),
aproximadamente de 1920 a 1960, as estrelas de cinema
ganharam um status de semideuses, uma espécie de realeza
norte-americana, sendo admirados e adorados pelo grande
público. Desde então, a presença de uma estrela em um filme é
capaz de atrair um maior público e, conseqüentemente, maior
renda para seus executivos. Num processo inverso ao da maioria,
Burton não é um diretor conhecido por correr atrás de astros para
seus filmes. Seu critério de seleção visa encontrar atores com
características que se encaixem nos roteiros e personagens, como
declarou o ator Ewan McGregor (2004) em uma entrevista a BBC
de Londres. Talvez por essa fama, se tornou comum que as
próprias estrelas busquem trabalhos com o diretor, que também é
conhecido por manter parcerias com seus atores e equipe. “Fica
evidente outra característica importante do diretor: sua predileção por
trabalhar com amigos” (EVANS, 2005), e muitas dessas relações se
destacam na repetição de profissionais ao longo de suas
produções. Desde “As Grandes Aventuras de Pee-Wee” (Pee-
Wee’s Big Adventure – 1985), todos os filmes de Tim Burton têm a
trilha sonora produzida por Danny Elfman – exceto “Ed Wood”
(1994) – e a grande maioria tem Colleen Atwood como
figurinista. Christopher Lee, Jeffrey Jones, Michael Keaton,
Danny DeVitto, Jack Nicholson, Winona Ryder, Deep Roy,
Helena Bonham Carter e Tim Roth são alguns dos nomes que
aparecem duas ou mais vezes no elenco dos filmes assinados por
Burton. Mas o nome que merece maior destaque é o de Johnny
Depp: o ator já protagonizou cinco filmes de Burton, incluindo
sua última animação (“A Noiva-Cadáver”, 2005), na qual o
boneco do personagem principal, Victor Van Dort, foi construído
à imagem e semelhança do ator que também é responsável pela
dublagem de Victor.
A valorização do trabalho de Tim Burton tem como um dos
motivos o fato de seus filmes atraírem o público não por serem
30
estrelados por atores de sucesso ou por seguirem as modas
cinematográficas, mas sim por terem sido idealizados e
realizados por ele. Seu filme mais recente, produzido pelo
estúdio Warner – um dos maiores da atualidade – leva o nome do
diretor no próprio título original, trata-se “Tim Burton’s Corpse
Bride” (“A Noiva-Cadáver” – 2005). O filme, somente no fim-de-
semana de estréia, arrecadou mais de 20 milhões de dólares nas
bilheterias americanas (GEIRMAN, 2005), valor que o transforma
em um sucesso de público.
31
Semelhanças, influências
ou apropriações
Uma das características mais chamativas do trabalho de Tim
Burton é que nele é possível encontrar diversas características
desenvolvidas ao decorrer da história do cinema, provenientes de
variadas épocas, movimentos e escolas. Com o objetivo de
facilitar o seu estudo, a história cinematográfica foi dividida em
correntes e escolas que se organizam de acordo com avanços
técnicos, tipos de linguagem e estilos de expressões
cinematográficas. As divisões periódicas mais disseminadas e
aceitas pelos estudiosos do cinema são: o primitivo, o clássico, as
vanguardas, o moderno e, finalmente, o pós-moderno que
também é chamado de contemporâneo ou, em alguns casos,
maneirista. Algumas destas divisões temporais mostram essas
correntes como algo que existiu apenas em um período histórico
específico, mas é importante ter em mente que um movimento
não precisa cessar sua existência para que outro aconteça. O
hibridismo do cinema pós-moderno é exemplo disso – por ser tão
recente, encontra-se dificuldade em defini-lo causando polêmica
entre os pensadores e críticos atuais que ainda não são capazes de
classificar o cinema da atualidade, principalmente, por não ter o
distanciamento temporal necessário para uma análise mais
‘científica’ dessa corrente. Esta, no entanto, é uma discussão que
está fora dos objetivos e pretensões deste projeto e, portanto, é
32
baseando-se na divisão mais comum que seguirão as
comparações deste trabalho.
Uma característica latente no cinema atual é que ele não tem o
objetivo de romper com nenhum dos movimentos pré-existentes,
ao contrário, ele se torna uma união de todas as correntes
anteriores, dialogando com vários aspectos desenvolvidos pela
linguagem cinematográfica ao longo de sua história, sendo eles
estéticos, técnicos ou narrativos. O rompimento do pós-moderno
é única e exclusivamente com as normas, com o que separa uma
escola de outra, ele é uma interseção de todas as correntes sem se
limitar a uma específica. O cinema da atualidade é um terreno
fértil para a combinação, contraposição, permutação e
descontextualização de diversos elementos situados em variados
segmentos espaços-temporais.
Segundo Ferraraz (2001), baseando-se em Jameson, “o pós-
moderno se caracteriza por um ecletismo muito grande de estilos, de
formas, de paradigmas, numa arte que trabalha com estruturas
esquizofrênicas6” (FERRARAZ, 2001:4). Afirmar que Tim Burton é
um artista pós-moderno significa que ele é produtor de um
cinema pluralista, que segue uma arte que não nega o passado,
pelo contrário, se apropria dele para criar o novo. Na arte pós-
moderna, o que já foi feito é reaproveitado sob uma nova ótica e
forma de criação, ou seja, no cinema, é aquele que arrebanha
todas as escolas passadas e, a partir delas, produz um novo em
uma espécie de pastiche.
Segundo Dubois (2004), na década de 1980, o que se observa
em diretores, tais como Francis Ford Coppola, Peter Greenaway,
Lars Von Trier, Raoul Ruiz e diversos outros, é o verdadeiro
“cinema do depois”, feito por quem tem a nítida consciência de ter
chegado logo após a criação de um ideal de perfeição, quase
como se todas as possibilidades de experiência e inovação já
6 Estruturas esquizofrênicas: grifo do autor
33
estivessem esgotadas. O desafio, colocado para o autor de cinema
hoje, é como filmar algo de forma diferente do que já foi feito, e
ainda, a questão de qual objeto filmar. Assim, pode-se dizer que a
história do cinema se torna um peso para o autor cinematográfico
contemporâneo que é desafiado por ela em todo momento de
criação. No entanto, sob outra perspectiva, ela pode se tornar
uma infindável fonte de inspiração.
Da mesma forma que um cientista se torna mais apto a realizar
pesquisas na medida em que aumenta seu conhecimento teórico,
um artista aumenta suas possibilidades criativas ao conhecer
mais sobre sua arte. É claro que esta analogia não implica que a
criação artística siga os modelos do processo científico, até
porque, o sistema cartesiano – tradicionalmente utilizado nas
ciências – não tem espaço na arte hoje, principalmente após
tantos movimentos do século XX nos quais artistas, como Marcel
Duchamp, lutavam contra a ditadura binária do belo e do feio, o
bom e o ruim, o certo e o errado – atualmente o processo começa
a ser questionado até mesmo pelos próprios cientistas. Esta
comparação é apenas uma forma de tornar mais fácil a
compreensão do acréscimo de possibilidades através do
conhecimento, ou seja, o artista torna-se capaz de se apropriar de
certas características por ele vistas e, a partir delas, se inspirar,
criando algo único. É através deste hibridismo contemporâneo
que Burton explora suas capacidades criativas, re-moldando
elementos já utilizados e transformando-os com a sua
personalidade e gênio criativo. Sua estética visual, por exemplo,
possui características específicas, perceptíveis até para o olhar
mais desatento, o que torna possível a identificação de seu gesto
autoral.
Cineasta inclasificable y libre de prejuicios, Tim Burton ha
desarrollado a lo largo de su carrera cinematográfica un
catálogo de películas que en nada parece seguir los cánones
34
comerciales que imperan en el cine manufacturado en serie
en los Estados Unidos. Iniciado como animador en la
todopoderosa Disney y siempre ligado a los grandes
productores americanos, ha conseguido desarrollar su
propia y original forma de hacer cine. Director de culto
para algunos, incapaz de contar una historia de forma
visual para otros, lo cierto es que en Burton encontramos
uno de los mejores ejemplos de lo que se ha dado en llamar
'autoría posmoderna', etiqueta donde se engloban cineastas
como los hermanos Cohen, Tarantino, Cronenberg o David
Lynch.
(ARZA, 2004)
Sob o olhar da estética de Burton, podemos encontrar
similaridades com aspectos visuais de algumas das chamadas
vanguardas cinematográficas. Estas vanguardas são resultados
de uma interação desenvolvida, no início do século XX, entre o
cinema produzido e a ascensão de vanguardas artístico-literárias.
Tratava-se de um questionamento radical dos valores estéticos
tradicionais burgueses e procurava, entre outras coisas, atribuir
novas funções à linguagem artística recorrente, explorando
caminhos de representação que o próprio cinema viabilizava,
buscando possibilidades, experimentando os limites desta mídia
e tentando se distanciar da ditadura fílmica que começava a
aparecer nos EUA. Um dos principais traços dessas vanguardas é
o desejo de exibir algo além da visão considerada normal,
extrapolar os significados dos objetos e dos acontecimentos
percebidos pelo olhar humano, dando significações além do
comum enraizado na percepção. Entre estes movimentos, o
surrealismo e o expressionismo alemão são os que ganham maior
destaque ao analisar a obra de Burton.
Os surrealistas exploraram as associações de imagens,
fantasmas eróticos e as pulsões revolucionárias, representados na
época principalmente pelo cineasta Luís Buñuel e o artista
Salvador Dalí. A estética surrealista se baseou na transformação
35
de sonhos em imagens, o filme “Um cão andaluz” (Un chien
andalou, 1928), realizado em parceria por Buñuel e Dalí, por
exemplo, lança a proposta de uma narração que não obedece a
uma ordem ou lógica, que cultiva as rupturas, o onirismo, as
imagens mentais, a confusão entre subjetividade e objetividade.
Neste sentido, Tim Burton opta pelo caminho contrário,
mantendo sempre a linearidade no enredo ao contar suas
histórias. O cineasta Federico Fellini (s.d.), diz que:
Falar sobre sonhos é como falar sobre filmes, já que o
cinema usa a linguagem dos sonhos; anos podem passar
em um segundo e você pode pular de um lugar ao outro. É
uma linguagem feita de imagem. E no cinema de verdade,
todo objeto e toda luz possui um significado, assim como
nos sonhos.
O meio cinematográfico, portanto, oferece ao artista – além da
possibilidade de compartilhar imagens mentais – o mesmo tipo
de desprendimento existente nos sonhos, viabilizando a criação
de uma realidade suspensa, flexível, composta por mundos
alucinados sem qualquer tipo de obrigação com a realidade.
Consciente disto, Burton se aproveita desta possibilidade
oferecida pelo cinema para criar atmosferas preenchidas por
elementos extraordinários e criaturas fantásticas livres da maioria
das restrições físicas impostas pela vida real, explorando
possibilidades imagéticas, que, se não existissem os filmes, só
poderiam existir se sonhadas ou imaginadas.
A fuga da realidade também é marca do expressionismo
alemão, que “teve sua realização definitiva por intermédio de uma
nova arte, o domínio da imagem em movimento, que deu vida a um
mundo paralelo, povoado por visões subjetivas, misteriosas agitações do
inorgânico e profecias inquietantes sobre uma nova era” (RUBINATO,
2006). “O Gabinete do Dr. Caligari” (Das Kabinett des Doktor
Caligari – 1919), de Robert Wiene, é um marco dessa vanguarda,
36
cujo traço mais marcante é a oposição à verossimilhança. A
maquiagem, as roupas e o desempenho dos atores, com
movimentos e expressões exageradas, participam na instalação
de um universo fictício, inquietante, com cidades labirínticas e de
criaturas estranhas. Visualmente, características da arte gótica
tomam lugar em cena, enriquecem e caracterizam o estilo estético
do movimento. Burton, como ele próprio afirma diversas vezes,
tem um fascínio por esses elementos obscuros, estranhos e
bizarros. Seus filmes e seus personagens, principalmente seus
monstros, têm características exageradas, visuais expressivos que
chocam individualmente, mas que são peças comuns dentro do
contexto narrativo e não possuem uma conotação absurda. Um
humor sombrio e sarcástico pode ser sempre percebido em seus
filmes, uma característica que desconstrói os significados de
senso comum e maniqueísta, freqüentemente atribuídos aos
monstros.
Para a formação dessa expressão em cena, Burton valoriza um
aspecto do cinema mudo: a capacidade do ator de se comunicar
sem usar palavras. Ao comentar sobre a seleção de seus atores,
repetidamente, afirma que precisa da qualidade de cinema mudo,
a expressividade de uma cena na imagem e não no texto.
Segundo Burton (2003), um diálogo, algumas vezes, fala muito
sem dizer nada. Quando perguntado por Maxwell Bridiay sobre
os comentários de alguns críticos que afirmam que ele não sabe
contar histórias e faz filmes apenas com apelo visual, Burton
responde que o cinema é um meio visual, “há muitas formas
diferentes de apresentar as coisas. Para mim, quanto mais formas para
apresentar, melhor” (Informação verbal)7.
Seguindo para o aspecto narrativo das histórias, o diretor
mantém características que são remetidas ao cinema clássico: a
7 Fala de Tim Burton extraída de “Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas: Comentários do
Diretor” de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay.
37
linearidade, a lógica e a clareza. O encadeamento das cenas e das
seqüências do clássico se desenvolvia de acordo com uma
dinâmica de causas e efeitos clara e progressiva. A narrativa
centrava-se em geral num personagem principal ou em um casal
(de caráter bastante definido), enfrentando diferentes situações
de conflito. O desenvolvimento levava o espectador às respostas
das questões colocadas pelo filme. Nesse aspecto, Burton mantém
sua obra basicamente sob a narrativa clássica. Suas histórias
possuem um caráter linear lógico, os enredos são claros e diretos
(sem nenhuma pretensão de confusão temporal) e um herói
central que é acompanhado durante o filme.
O cineasta D. W. Griffith – responsável por criar, no cinema, a
chamada narrativa clássica, utilizada até hoje pela maioria dos
filmes –, foi profundamente influenciado por romances dos
escritores Charles Dickens e Fiodor Dostoievski. Segundo
Guimarães (1997), a narração fílmica clássica carregava a marca
das grandes formas romanescas do século XIX – É interessante
ressaltar que, além desta forte influência inicial, a literatura ainda
se mostra muito presente no cinema ao inspirar assuntos,
histórias e idéias dos filmes, principalmente, quando estes são
baseados em obras literárias. Na própria filmografia de Tim
Burton temos exemplos de adaptações de romances e contos:
“Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish, 2003)
teve seu roteiro baseado em um romance de Daniel Wallace;
“Edward Mãos de Tesoura” (Edward Scissorhands, 1990) em um
conto escrito pelo próprio Burton; “A Fantástica Fábrica de
Chocolate” (Charlie and The Chocolate Factory, 2005) é
originalmente um livro infantil de Roald Dahl; e “A Noiva-
Cadáver” (Tim Burton’s Corpse Bride, 2005) foi baseado em um
conto popular russo.
Sobre a narrativa clássica, então, foi Griffith que, utilizando-se
de critérios literários, introduziu no cinema a idéia de uma
38
continuidade, definiu novos parâmetros como a decupagem, a
montagem, a escala de planos e as relações entre o espaço,
cenário, narrativa e som. A continuidade clássica gerou a
constante homogeneização do significante visual (cenários,
iluminação) e do significado narrativo (as relações legendas –
imagens, o desempenho dos atores, a unidade do roteiro, a
história, o perfil dramático e a tonalidade de conjunto), depois do
significante audiovisual (sincronismo da imagem e dos sons –
palavras, ruídos, música). A introdução da linearidade – modo
pelo qual um plano se vincula ao plano seguinte – despertou
também o vínculo ao movimento (no gesto de um personagem
ou no movimento de um veículo), o vínculo ao olhar (um
personagem olha / enxerga-se o que ele enxerga) e o vínculo ao
som (ouve-se um ruído em um plano, identifica-se sua fonte no
plano seguinte).
Todas essas técnicas criadas pelo cinema clássico têm um
único objetivo: fazer com que o espectador se esqueça do caráter
descontínuo do significante fílmico, constituído de imagens
coladas umas sobre as outras. São elas as responsáveis por
proporcionar a sensação de realidade experimentada pelo
espectador que assiste ao filme com a impressão de estar
participando de eventos reais e testemunhando partes da vida de
alguém. É esta característica hipnótica e ilusionista do cinema
que é responsável por envolver o espectador no ambiente fílmico
e fazê-lo esquecer-se de que o que está sendo projetado foi na
verdade criado, pensado, cortado e novamente remontado antes
de chegar à tela.
Este invólucro que faz o espectador se perder nesse mundo
fictício remete a outra qualidade do cinema: a magia. No
surgimento do meio cinematográfico, ele possuía basicamente
duas expressões: a documentação da realidade ou o ilusionismo.
Esse segundo é o que nos interessa ao falar de Tim Burton. Em
39
40
41
2001, Burton disse: “parte do que eu gosto sobre o meio cinema é que
existe algo místico nele. Quando o cinema apareceu pela primeira vez, as
pessoas não sabiam como era feito e isso dava uma qualidade mágica aos
filmes” (Informação verbal)8. A experimentação visual e
exploração dos efeitos ilusórios possibilitados pelo cinema foram
inicialmente explorados pelo mágico Georges Mèliés que, após a
primeira exibição cinematográfica9, demonstrou interesse pela
nova técnica e, através de experimentações, passou a produzir
filmes que, além de registros documentais de seus números de
magia, também exibiam técnicas de efeitos especiais. Seu filme
mais famoso, “Viagem à Lua” (Voyage dans la lune, 1902), foi a
primeira ficção científica da história do cinema e utilizava
elementos fantásticos e lúdicos, através dos efeitos especiais
descobertos e desenvolvidos por ele. Neste sentido, o trabalho de
Burton se aproxima especialmente com o trabalho do mágico
francês: da mesma forma que Mèliés seduzia seu público com
elementos de magia, Burton exibe um reino de fantasia.
Segundo Pommer (2003), “a disponibilidade que o espectador
manifesta de ser enganado decorre do fato de que ele entra num cinema
(...) para recuperar o contato com um certo estado de coisas que nele
produza emoções”. É sob essa atmosfera da ilusão que Burton
envolve seus espectadores e busca a produção de emoções
mostrando em seus filmes o que na vida real seria impossível e,
misturando acontecimentos prováveis com elementos absurdos,
constrói um mundo de significados reconhecíveis e criaturas
inusitadas.
Além disso, é importante dizer que Burton se encontra
diversas vezes com a história do cinema, apropriando-se e
recriando cenas filmadas por diretores que vieram antes dele. Em
“A Fantástica Fábrica de Chocolate” (Charlie and the Chocolate
8 Fala de Tim Burton extraída de “Planeta dos Macacos: Comentários do Diretor” de 2001.
9 A primeira exposição cinematográfica foi feita pelos irmãos Lumiére, em 8 de dezembro de 1895,
na França. Ela consistia em nada além de cenas do cotidiano de caráter documental.
42
Factory, 2005), por exemplo, é possível perceber uma referência
direta ao clássico filme “2001: Uma Odisséia no Espaço” (2001: A
Space Odyssey, 1968). A seqüência dentro da sala de TV da fábrica,
além de exibir algumas cenas do filme de Stanley Kubrick,
apresenta o chocolate da mesma forma que o importante
monólito negro do filme de 1968. A trilha sonora também vale ser
mencionada, já que, na seqüência, é a mesma do clássico de
Kubrick.
Outro exemplo é “Marte Ataca!” (Mars Attacks!, 1996), no qual
o diretor empenha-se em homenagear os filmes que fizeram parte
de sua infância. Além de uma cena cômica dos alienígenas
assistindo ao “Godzilla” (Gojira, 1954) na TV, o filme é
preenchido por pequenos detalhes que lembram alguns dos
filmes lado b que Burton destaca como seus favoritos na
juventude (como já foi mencionado no capítulo I): os humanos,
ao serem atingidos pelas armas dos marcianos, transformam-se
em esqueletos agonizantes que se movimentam lembrando os
soldados mostrados em “Jasão e o Velo de Ouro” (Jason and the
Argonauts, 1963) e as naves dos extraterrestres são uma versão
um pouco mais atualizada das naves apresentadas por Ed Wood
no filme “Plan 9 From Outer Space” de 1959. Poderíamos também
considerar como uma referência a “The Brain that Wouldn’t Die”
de 1962, a seqüência na nave alienígena em que Nathalie (Sarah
Jessica Parker) e Kessler (Pierce Brosnan) são submetidos a
experiências e perdem o corpo, sendo que suas cabeças
continuam com funcionamento normal. Ao colocar todas estas
homenagens em seus filmes, Burton, além de se mostrar
conhecedor do meio em que trabalha, ainda demonstra um
respeito à memória do cinema.
43
A marca de um autor
Tim Burton deixa marcas que viabilizam a identificação de sua
presença em cada um de seus filmes. Diferente de Hitchcock ou
Salvador Dalí, Burton não aparece literalmente em seus
trabalhos, na representação de sua própria imagem, mas ao
assistirmos seus filmes é facilmente apontado como o realizador.
Um conjunto de características estéticas e narrativas, que percorre
toda a sua obra, cria o que poderíamos chamar de assinatura do
diretor. É por este conjunto que os termos “gesto autoral” e
“autor de cinema” foram remetidos a Burton neste estudo,
expressões originárias do que é chamado de cinema autoral. “O
cinema de autor é uma expressão artística que contém elementos
inequívocos de seu criador” (COVALESKI, 2003:49). Segundo
Covaleski (2003), o conceito de autor de cinema é mais complexo
e profundo do que em outras formas artísticas. A variedade de
linguagens utilizadas pelo cinema (imagem, som, movimento etc)
exige que o cineasta seja aquele que se mostra capaz de inter-
relacionar e dialogar com diferentes formas de expressão. Além
disso, poderíamos ainda apontar que o cinema exige que o
cineasta dependa do trabalho de outros indivíduos para a
produção da sua obra, como por exemplo, o desempenho do ator,
a qualidade profissional do editor, a habilidade do cameraman,
entre outros que compõem o conjunto de pessoas que acabam
por interferir na produção do filme. Porém, estes sujeitos sempre
seguem a regência do diretor do filme, trabalham sempre de
acordo com a visão do cineasta.
44
No início da década de 1950, surgiu a iniciativa, até então
inédita, de se pensar o cinema. Um grupo de pensadores e
críticos de cinema, reunidos por André Bazin e que ficaram
conhecidos como Jovens Turcos10, criou uma nova filosofia
cinematográfica que foi chamada de a política de autores. A
política propunha que o realizador de cinema autor deveria
inserir no seu filme uma série de características específicas e
pessoais que possibilitassem o reconhecimento da assinatura da
obra. Dentro desta ideologia, o cinema feito por um autêntico
autor é aquele cuja obra possui um tom, uma unicidade que se
estende, inclusive, à própria vida do criador.
François Truffaut, um dos críticos da revista Cahiers du Cinéma,
vislumbrava um cinema feito por diretores que chegavam ao
auge da pessoalidade no filme, colocando na tela referências e
assuntos que refletissem ao máximo a própria intimidade. Em
1957, ele declara em seu “Les films de ma vie” (Os filmes da minha
vida) que “o filme de amanhã me parece portanto como ainda mais
pessoal que um romance individual e autobiográfico, como uma
confissão ou como um diário íntimo. Os jovens cineastas se expressarão
na primeira pessoa.” (TRUFFAUT apud BERNARDET, 1994:21).
Sobre isto, Bernardet diz: “Esse é o ponto crucial da política: autor é
aquele que diz ‘eu’.” (BERNARDET, 1994:21).
Sob esta perspectiva que afirma que o filme deve ser tão
pessoal, cria-se, então, uma íntima relação entre o autor e sua
obra que possibilita a identificação entre um e o outro, tornando-
os inseparáveis. Desta maneira, a obra se torna uma assinatura do
autor (e vice-versa) que, segundo Bernardet (1994), pode ser
percebida através de duas linguagens, chamadas de matriz e mise
en scène. O cineasta autor apresenta seu gesto de forma evolutiva,
10 Jovens Turcos: Conjunto de jovens críticos que escreviam para a revista francesa “Cahiers du
Cinéma” dos anos 50, “que pouco depois se tornariam realizadores famosos, como Jean-Luc Godard,
François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmes, Jacques Rivette, Jean Doniol-Valcroze, expoentes da
Nouvelle Vague.” O redator da revista era André Bazin. (Bernardet, 1994, p. 9,10)
45
desenvolvendo sua marca gradualmente em sua matriz e mise en
scène, e sua assinatura quase nunca está clara no primeiro filme –
havendo exceções, como é o caso do diretor Orson Welles, que
conquistou o título de autor já em sua primeira obra: o aclamado
“Cidadão Kane” (Citizen Kane, 1941).
A matriz pode ser concebida como um determinado tema,
moral ou assunto que percorre toda a obra – uma espécie de linha
repetitiva que se apresenta em cada peça como uma obsessão
íntima, e de certa forma inconsciente, de seu criador. “Matriz é
representada por repetições a serem identificadas em um conjunto de
filmes de um mesmo cineasta” (TAMARU, 2004:78). Ela é um
argumento usado sempre pelo autor, mesmo que, explorado de
formas diferentes.
A matriz deve ser entendida como algo que está presente no
autor desde o início de sua carreira cinematográfica, ela é algo
que o artista precisa expressar, necessita dizer, mas não tem
consciência do que é exatamente. Portanto, toda a sua obra
caminha no sentido de descobri-la e é este processo culminará na
maturidade construtiva de um estilo único e pessoal, o que
Bernardet (1994) chama de cristalização. A plenitude da
realização da matriz permite sua percepção até mesmo em obras
anteriores a essa cristalização, gerando uma espécie de panorama
didático das etapas de todo o processo de desenvolvimento da
linguagem do cineasta.
O encontro da matriz pelo cineasta e pelo crítico se dá por
caminhos paralelos. O autor vai buscando a matriz até o
momento da cristalização; o crítico segue as pegadas do
autor, chegando, depois dele, à percepção dessa
cristalização. A partir do momento em que a matriz é
encontrada, ela passa, para o crítico, a ter um efeito
retrospectivo (...) que vai permitir dizer que já estava
presente, mas ainda, digamos, fora de foco porque o
cineasta se buscava.
(BERNARDET, 1994:34,35.)
46
Para compreender a matriz burtonesca é necessário um estudo
e uma análise mais detalhada da obra de Tim Burton, o que será
feito no próximo capítulo deste projeto. Entretanto, ao assistirmos
seus filmes, já podemos apontar diversos elementos que fazem
parte de um conjunto de repetições que figuram as narrativas do
diretor. Analisando o contexto de todas as histórias apresentadas
por Burton, a sua produção revela uma seqüência de elementos
que retratam uma visão pura e livre de preconceitos a respeito
dos acontecimentos. Seus heróis são sempre sujeitos diferentes
que se encontram deslocados em um espaço no qual, muitas
vezes, se vêem obrigados a habitar.
Através dessa inocência do olhar e da percepção do mundo,
Burton conta histórias que transparecem uma visão infantil para
acontecimentos de gravidade psicológica adulta, sendo esta
sempre representada em seus protagonistas e heróis. A
infantilidade, aqui colocada, não se refere a histórias contadas
para crianças, ao contrário, os filmes de Burton não se
configuram como infantis. Por apresentar imagens sombrias,
escuras e algumas vezes assustadoras, Burton traz para os seus
filmes um clima de seriedade e maturidade em sua estética.
Porém, após uma análise mais cuidadosa, podem-se detectar
histórias que demonstram elementos do imaginário infantil: a
liberdade pueril em aceitar novidades e diferenças, além da
fascinação e a curiosidade por entender o novo. Muitas vezes, as
crianças nas histórias são dotadas de maior racionalidade que os
próprios adultos, ressaltando, assim, a pureza e inocência
existente em seus excluídos.
Essa maneira pura e aberta de ver elementos bizarros destaca o
posicionamento em relação aos monstros nos filmes, que são
sempre tratados com mais justiça em comparação aos contos
infantis. Burton parece empenhado em perseguir o ideal de
mostrar o outro lado da história. No intuito de ilustrar a
47
hostilidade com que a sociedade ocidental cria e trata seus
medos, e como ela transforma o estranho em vilão, Burton –
utilizando-se sempre do humor sarcástico e afiado – inverte os
papéis e transforma os monstros em mocinhos. Ele nos mostra o
monstro como uma vítima de uma série de desventuras,
acontecimentos que fogem ao seu controle, que o transformaram
em uma figura desajustada e fizeram com que ele seja incapaz de
se adaptar aos padrões construídos no contexto social em que
vive.
O Edward de “Edward, Mãos de Tesoura” (Edward
Scissorhands, 1990), por exemplo, é resultado das experiências de
um cientista que morre antes de terminar a sua obra, deixando o
personagem incompleto com tesouras no lugar de mãos. Em um
conto infantil tradicional, Edward seria um excelente candidato a
vilão de escritores como os irmãos Grimm ou Hans Christian
Andersen, porém Burton não o coloca como vilão, mas sim como
a vítima. Neste caso, a narrativa do filme de aproxima do
monstro criado e manipulado pelo Dr. Frankenstein no livro de
Mary Shelley lançado em 1831 – o personagem Edward, assim
como o personagem de Shelley, se torna vítima da fúria dos
nativos do local onde a história é narrada. Vale lembrar que
alguns anos antes, em 1984, o clássico de Shelley também foi
referência para Burton na criação do curta-metragem
“Frankenweenie” (1984). O filme faz uma releitura da história do
livro, transformando o monstro da autora em um cão e o cientista
em um garoto que faz seu animal de estimação retornar à vida
depois de um atropelamento.
Sob o contexto que explora a inversão de papéis, alguns
assuntos, considerados tabus, também são constantemente
tratados pelo cineasta. A morte, por exemplo, se apresenta em
todos os filmes de Burton. Algumas vezes retratada com apelo
emocional – como em “Batman” (Batman, 1989) e “Peixe-Grande e
48
Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish, 2003) – e, outras vezes,
como algo trivial e cômico – como em “Beetlejuice: Os Fantasmas
Se Divertem” (Beetlejuice, 1988) e “Marte Ataca!” (Mars Attacks!,
1996). Outro tema recorrente é o conflito entre pais e filhos. Neste
sentido, Burton explora de diversas formas as influências do
relacionamento familiar na estrutura psicológica do indivíduo
sendo que, em todos os seus filmes, um de seus excluídos possui
traumas ou relações problemáticas com pelo menos um dos
progenitores.
Segundo Sá (1974), em todo filme é posto em pauta uma ou
algumas problemáticas humanas – o bem, o mal, o amor, a morte
– o que varia de acordo com as perspectiva de quem os realiza,
com a matriz de seu autor. Muitos deles buscam fazer refletir
sobre a condição humana, como no caso de Burton.
Exibindo sua matriz em um mundo fantástico e diferente, Tim
Burton se preocupa em retratar um mundo recheado de conceitos
próprios e livre das limitações da realidade concreta, mas
mantendo uma similaridade com questões naturais da realidade
de cada espectador de cinema. Os ambientes e os personagens
das narrativas de Burton são uma espécie de caricatura, uma
mistura inusitada estereótipos, mesclados com vários aspectos
cotidianos do mundo real. Os contextos e personagens são
alimentados por características improváveis sob a análise
científica.
Fico surpreso com as pessoas que são muito práticas ou
bitoladas. “O que é real e o que não é?”. Se você observar a
vida, vai ver coisas estranhas. Quem imaginaria que
Arnold Schwarzenegger (ator) seria Governador da
Califórnia? Isso é real ou não é? Realidade é um mundo
estranho. É o que eu adoro nos contos populares e nos
contos de fadas. Você acha mais realidade neles se isso o
atingir em um nível emocional. Você vê as notícias e tudo
49
parece surreal e irreal. Sempre considerei a vida uma
mistura dessas coisas.
(BURTON, Informação verbal)11
É essa mistura de realidade com fantasia que forma um
conjunto cinematográfico que apresenta questões humanas em
uma visão maravilhosa. A variação entre estes elementos
possíveis e fantásticos se torna evidente nas imagens em toda a
sua obra. E é justamente essa evidência que nos leva a refletir
sobre outra característica importante para um realizador do
“cinema de autor”, a mise en scène. Em uma interpretação simples e
literal, a mise en scène é, precisamente, a forma colocada em cena.
Ela é a maneira que o autor de cinema encontrou para expressar,
demonstrar fatos e produzir sensações através da tela, ela
constitui toda a linguagem visual utilizada. A mise en scène e a
matriz devem ser vistas como dois elementos que se
complementam, sendo impossível que uma aconteça sem a outra.
A mise en scène torna possível a expressão da matriz, e vice-versa.
É necessário extrapolar os limites do conhecimento técnico e
material em prol da percepção do importante papel que o cinema
possui como mecanismo de produção de sentido, portanto, a
valorização da mise en scène não deve se basear em argumentos
técnicos, e sim nos significados agregados à obra por uma
determinada técnica, ou seja, o objetivo pelo qual uma habilidade
técnica foi usada e seus efeitos no produto final. Os planos, os
cortes, os cenários, os ângulos, as expressões, as cores são as
partes que em conjunto formam a mise en scène.
As cenas coloridas, quase que como pintadas à mão, tão
freqüentes nos filmes de Tim Burton, chamam atenção ao serem
contrastadas com os elementos góticos amplamente explorados
por ele – estes de qualidade obscura e enevoada – destacando,
11 Fala de Tim Burton extraída de “Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas: Comentários do
Diretor” de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay.
50
mais uma vez, a diferença e apoiando a sua matriz. A formação
de seus monstros e as expressões de seus excluídos possui uma
espécie de essência visual semelhante, segundo Rick Baker, são
personagens “pálidos, de pele muito clara, com grandes olheiras e
cabelos arrepiados” (Informação verbal)12. No geral, faces que
expressam uma idéia de desamparo, inocência e um ar
melancólico. Diversos exemplos poderiam ser apresentados para
caracterizar a mise en scène de Burton, pois em toda a sua obra é
possível encontrar texturas, cores, técnicas e elementos estéticos
que se tornaram recorrentes, elementos que ganham significados
variados em cada contexto complementando o valor expressivo
de cada cena e compõem a idéia matricial. Mesmo em filmes em
preto-e-branco, como “Ed Wood” (Ed Wood, 1994), a animação
“Vincent” (Vincent, 1982) ou “Frankenweenie” (Frankenweenie,
1984), as tonalidades usadas, os cenários e o figurino formam o
estranho característico do universo imaginário criado por Burton.
A composição da mise en scène será melhor e mais amplamente
explorada no capítulo 6 deste projeto. No momento, iremos
apenas destacar algumas características curiosas que são
repetidas constantemente nas imagens burtonescas. Algumas
delas podem caracterizar-se como uma fixação visual do autor,
quase como uma brincadeira do cineasta: estampas em espiral,
pontos e listras aparecem, mesmo que apenas por segundos, em
todos os filmes; espantalhos e esqueletos sempre encontram
espaço nas histórias; geringonças, maquinários de funcionamento
arcaico, são freqüentemente apresentados.
A união da mise en scène com a matriz compõe as diversas
realidades construídas por Burton que, por mais fantasiosas ou
bizarras que sejam, valorizam aspectos humanos e criam uma
impressão de real dentro de uma constante variação entre
12 Fala de Rick Baker extraída de “Planeta dos Macacos: O ‘Making of’ dos Macacos – Cara de
Macaco” de 2001.
51
52
53
possíveis realidades e extremos absurdos. Elas se deslocam a
todo o momento frente aos olhos do espectador, e toda a
fascinação estética provocada por esse fluxo de energia criativa
conta com o contrato da ficção, ou seja, a suspensão da descrença
por parte do espectador. A construção dessa realidade ficcional
percorre um número infinito de signos do cotidiano criando a
afinidade do espectador com as questões apresentadas.
Estas novas realidades trazem a assinatura de sua produção
artística no ambiente cinematográfico. A arte das imagens em
movimento, mais do que a fotografia, o teatro ou a pintura,
transmite o sentimento de assistir diretamente a um espetáculo
quase real. Segundo Metz (1972), este “ar de realidade” atua
diretamente sobre o cerne da percepção humana. A impressão de
realidade do cinema, fundamentada na idéia do movimento,
surge como um elemento capaz de gerar credibilidade especial a
esse tipo de arte.
Uma das razões de não gostar de analisar muito os filmes é
deixar as pessoas decidirem o que quiserem sobre eles.
Bem, quando eu assistia Frankenstein, eu via como se fosse
sobre Burbank (cidade natal), os aldeões furiosos eram os
meus vizinhos. Todos vêem filmes de maneiras diferentes,
eu gosto disso. As pessoas ficam muito literais na vida e
isso é o que eu tento reagir contra. Deixe as pessoas
pensarem coisas da maneira que querem, se eles acreditam
em algo, deixe-os. Eu gosto de saber o que as pessoas
pensam (sobre os filmes) porque isso mostra muito sobre
quem elas são e de onde elas vêm.
(BURTON, Informação verbal)13
O estranho mundo de Tim Burton é a oscilação entre uma
representação de um mundo possível com extremos insólitos,
cujos elementos formadores são: um estranho, representado em
13 Fala de Tim Burton extraída de “Planeta dos Macacos: Comentários do Diretor” de 2001.
54
um personagem, no ambiente ou em um fenômeno, cercado de
um contexto familiar e identificável que confunde o espectador a
ponto de se envolver naquela fantasia como que em uma nova
realidade. Apresentado em imagens contrastantes de clareza e
obscuridade.
Portanto, Tim Burton é um autor de cinema, o autor de um
estranho mundo cinematográfico ligado às questões do
imaginário humano e, ao mesmo tempo, à realidade do mundo.
Como Burton mesmo afirma, é mais fácil encontrar realidade no
mundo dos contos de fadas do que nas notícias de jornais, desde
que este conto o atinja pelo emocional.
Assim, esses elementos visuais e narrativos que se repetem e
se complementam, constroem e solidificam a autoria de Tim
Burton, enriquecendo seu trabalho com características únicas e
exclusivas. Apontar quais são esses traços, como eles se
apresentam e quais são seus objetivos, são as metas seguintes
deste estudo. Desta forma, definiremos, nos próximos capítulos,
alguns dos principais componentes da obra de Tim Burton,
porém, sem nenhuma pretensão de abordar plenamente todos
seus aspectos e possibilidades, trabalho que se mostraria
impossível para este projeto experimental devido à magnitude da
obra do cineasta.
55
Dissolução do sujo
Após definir Tim Burton como um realizador de cinema
autoral, é preciso esclarecer alguns aspectos do que está sendo
chamado de autoria na obra burtonesca. Como já foi dito no
capítulo anterior, de acordo com Bernardet (1994), as duas facetas
mais importantes a serem observadas no cinema de autor são a
matriz e a mise en scène, sendo que a primeira, essencialmente
subjetiva, se realiza na segunda, essencialmente objetiva.
Portanto, é correto afirmar que uma não existe sem a outra. No
entanto, optamos aqui por separá-las em dois capítulos para que
seja mais fácil a exposição cada uma delas, mas tendo em mente
que, assim como nos filmes, ambas necessitam estar juntas no
processo de leitura para que sejam completamente
compreendidas. O presente capítulo buscará o que compõe a
matriz de Burton – sendo que, para isso, nos colocaremos no
papel de críticos e seguiremos os passos do autor em busca da
identificação do seu tema recorrente – de modo que, no próximo
capítulo, possamos demonstrar como as descobertas aqui feitas se
dão na estética cinematográfica.
Tendo definido que a matriz é o argumento que se repete na
obra de um autor, deve-se considerar que ela é desenvolvida de
acordo com o amadurecimento artístico da expressão do mesmo,
sendo parte de um processo que acontece de forma natural e
inconsciente. Por conseqüência, a matriz não é exposta com muita
clareza no primeiro filme do cineasta e, na maioria dos casos, sua
apresentação acontece gradualmente e aparece com o avançar
dos anos na carreira de um diretor, provando que ela é, de fato,
uma evolução, um alvo que o artista deve alcançar. Por este
56
motivo, esta análise seguirá a seqüência cronológica da obra de
Burton para demonstrar o processo de evolução da sua matriz. O
trabalho para identificá-la “é como se depusessem os filmes uns sobre
os outros para verificar o que há de coincidente neles” (TAMARU,
2004:78).
Segundo Maxwell Bridiay (Informação verbal)14, Tim Burton
apresenta uma predileção pelo estranho, “pelo forasteiro, pelo
desajustado e pelo não compreendido”. Tal predileção será a linha
guia na busca pela matriz burtonesca, analisando a forma na qual
esta estranheza se apresentou no desenvolvimento de sua obra.
Bauman (1998) diz que o estranho é aquele que vem destacar,
em uma sociedade, a fragilidade dos códigos éticos, padrões
morais e comportamentais criados pela mesma. Os princípios que
guiam a criação destes preceitos objetivam garantir a ordem e a
pureza.
Baseando-se em Freud, Bauman (1998) explica que o ideal da
civilização percorre três conceitos que se relacionam diretamente:
ordem, pureza e beleza. Este último, também chamado de
harmonia, é a conseqüência dos dois primeiros, que, por sua vez,
não existem separadamente. Com o propósito de atingir estes três
ideais, uma sociedade cria padrões, regras e categorias para os
indivíduos que servem de guia para que os inseridos naquele
contexto reajam às situações de forma planejada e esperada.
A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e
o total de atributos considerados como comuns e naturais
para os membros de cada uma dessas categorias. Os
ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que
têm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas
de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem
14
Fala de Maxwell Bridiay extraída de entrevista feira com Tim Burton em
“Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas: Comentários do Diretor” de
2003.
57
um relacionamento com “outras pessoas” previstas sem
atenção ou reflexão particular.
(GOFFMAN, 1988:11,12)
Para Simmel (1983), esta regulamentação acontece a partir
de um código de comportamento que nasce como formação
natural do grupo, são inicialmente costumes que produzem
morais e, em alguns casos, leis. Esta padronização do
comportamento limita a liberdade e variedade de atitudes
individuais, o que garante um controle maior sobre os
acontecimentos, além de um grau de previsibilidade das ações.
Uma vez que se espera que todos sigam formas pré-definidas
para a interação do grupo, é criada uma estabilidade nas relações,
ou seja, um invólucro de segurança em torno do ambiente social.
“Ordem significa um meio regular e estável para os nossos atos; um
mundo em que as possibilidades dos acontecimentos não sejam
distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita”
(BAUMAN, 1998:15). Em uma sociedade ocidental, por exemplo,
são alguns referenciais como não roubar, não matar e não trair,
que definem uma ética a ser seguida. Esta regulamentação
determina como as coisas devem ser feitas e onde devem ser
dispostas. Quando é estabelecido o posicionamento adequado de
cada componente do sistema, conclui-se que, caso um indivíduo
se encontre em qualquer lugar diferente do que lhe foi
convencionado, ele será, automaticamente, contrário à ordem –
ou seja, um desequilíbrio na harmonia social.
Ordem é uma situação na qual “cada coisa se acha em seu
justo lugar e em nenhum outro” (BAUMAN, 1998:14). Sem ordem,
se torna impossível conceber o ideal da pureza, pois esta depende
diretamente de que as coisas estejam em seus lugares justos.
Quando um indivíduo causa um desequilíbrio na ordem,
conseqüentemente, produz uma impureza.
58
Não são as características intrínsecas das coisas que as
transformam em “sujas”, mas tão-somente sua localização
e, mais precisamente, sua localização na ordem de coisas
idealizada pelos que procuram a pureza. As coisas que são
“sujas” num contexto podem tornar-se puras exatamente
por serem colocadas num outro lugar – e vice-versa.
(BAUMAN, 1998 p.14)
Partindo do princípio de que sujeira refere-se a todas as coisas
que estão onde não deveriam – por exemplo, café em um copo
está onde pertence, mas quando cai em uma camisa é sujeira –
uma impureza pode facilmente se tornar limpa quando colocada
em seu lugar designado. Entretanto, alguns indivíduos não
possuem um lugar pré-definido, eles são sujeiras sociais em
qualquer contexto que se encontrem. O sujeito que não segue o
mapa social, ou não faz parte dele, é visto como uma sujeira
(impureza) que ameaça o ideal traçado. Uma sociedade pura, ou
seja, livre de sujeiras, é aquela que contém apenas o que lhe foi
planejado: sujeitos que compartilhem os mesmos valores, sigam
as regras e se comportem como foi definido.
Aquele que se difere, o “sujo” – também chamado de estranho,
estrangeiro, forasteiro, deslocado entre outros nomes – é,
necessariamente, peculiar, inusitado e diferente no ambiente e,
por esse motivo, destoa do resto grupo. O estranho social se
manifesta no momento em que não compreende ou não
compartilha do mesmo código de valores implícitos em
determinada sociedade, sejam eles morais, comportamentais ou,
até mesmo, visuais. Estas características do estranho o
transformam em algo que põe em risco, mesmo que
involuntariamente, a validade das regras. O deslocado realça o
cerceamento da liberdade feito em busca dos ideais da pureza e
da ordem.
(...) A chegada de um estranho tem o impacto de um
terremoto. (...) O estranho despedaça a rocha sobre a qual
59
repousa a segurança da vida diária. Ele vem de longe; não
partilha as suposições locais – e, desse modo, “torna-se
essencialmente o homem que deve colocar em questão quase tudo
o que parece ser inquestionável para os membros do grupo
abordado”.
(BAUMAN, 1998, p. 19)
É essa estranheza que Tim Burton aborda em sua obra: o
diferente incompreendido que assim o é por possuir outros
valores ou parâmetros, e as reações que ele causa em uma
sociedade em busca de harmonia.
O filme “As Grandes Aventuras de Pee-Wee” (Pee-Wee’s Big
Adventure, 1985) – primeiro longa-metragem de Burton – conta a
história de um garoto chamado Pee-Wee, cuja única preocupação
na vida é sua bicicleta, que é roubada no início da narrativa. Para
recuperá-la, ele quebra diversas regras como, por exemplo,
invadir um estúdio de Hollywood para roubá-la de volta. O
personagem vive em um mundo de sonhos e todas as pessoas
que cruzam seu caminho na jornada de busca pela adorada
bicicleta, parecem elementos tirados de folclore ou contos de
fadas. No final, ele ganha popularidade e aceitação social quando
o estúdio compra a história de sua aventura e a transforma em
um filme. Já em “Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem” (1988),
o estranho domina a tela através de uma mistura entre o além e o
mundo dos vivos. O casal de protagonistas, Adam e Bárbara, fica
preso em sua própria casa após falecer em um acidente de carro,
e o enredo consiste em mostrar a disputa territorial travada pelos
mortos com os novos proprietários do imóvel. Segundo as regras
da sociedade retratada no filme, aquela casa não pertence mais
aos finados proprietários, já que, ali, os mortos não têm direito a
posses materiais. Na tentativa de recuperarem sua casa e
expulsarem os vivos do local, Adam e Bárbara recorrem ao
estranho exorcista de vivos chamado Besouro-Suco (Betelgeuse).
Ele é excluído do mundo dos mortos por não possuir escrúpulos
60
e burlar a burocracia existente no além burtonesco. No fim da
história, os mortos e os novos donos entram em acordo para se
livrarem de Betelgeuse e proteger Lydia, a filha do casal vivo, que
se vê presa às garras do exorcista.
Analisemos mais detalhadamente o exemplo de “Edward
Mãos de Tesoura” de 1990, um dos primeiros estranhos de
Burton. Na história, o protagonista Edward (Johnny Depp)
esteve, durante toda sua existência, enclausurado em uma
mansão, tendo gozado exclusivamente da companhia do homem
que o construiu (a quem chama de pai). Seu criador é a única
referência de mundo e de convivência em sociedade que ele
possui, tendo sido seu único tutor no que diz respeito ao ensino
de valores e formas de conduta, tais como regras de etiqueta,
cultura geral e formas de interação em ocasiões sociais. Porém,
apesar destas aulas, Edward nunca tinha tido a chance de colocá-
las em prática, até que é levado ao convívio dos moradores de
Suburbia. Segundo a descrição de um psicólogo no filme, “os anos
passados em isolamento não o [Edward] equiparam com as ferramentas
necessárias para distinguir o certo do errado. Ele não teve contexto,
viveu sem orientação nenhuma” (Informação verbal)15. Sua chegada
a Suburbia chama a atenção dos habitantes que o avaliam através
de suas habilidades sociais e o aprovam. A princípio, ele não
representa nenhum perigo à ordem local, já que demonstra um
certo traquejo social e nenhuma de suas atitudes atenta contra os
ideais daquela comunidade. Fisicamente, ele foi construído, é
uma máquina com aparência humana e tesouras no lugar de
mãos, apesar disso, a aparência não configura um elemento
relevante àquela comunidade.
No decorrer da narrativa, apesar dos esforços para se adaptar
ao funcionamento daquela sociedade, algumas características de
15 Trecho extraído do diálogo entre um psicólogo e um policial sobre Edward, no filme “Edward
Mãos de Tesoura” de 1990.
61
Edward começam a se mostrar como falhas ‘morais’. Ele, por
exemplo, não possui renda, nunca trabalhou e não é registrado –
não possui documentos como carteira de identificação ou registro
social – o que o impede de se inserir economicamente naquela
comunidade. A posse de bens materiais, ali, é um valor
importante, ela faz parte do perfil do indivíduo planejado para o
grupo e deve ser conquistada através da remuneração pelo
trabalho. Em certo momento da história, Edward arromba uma
casa, o que leva os moradores (erroneamente) a crerem que a
intenção do personagem era roubar – ou seja, adquirir posse de
coisas conquistadas pelo trabalho de outros. Este ato representa
um atentado a um valor social e um abalo à segurança, portanto,
precisa ser extirpado para que aquele grupo seja puro e asséptico.
Instala-se, então, um desequilíbrio na ordem de Suburbia e,
como nos mostra a teoria de Bauman, o responsável por este
desequilíbrio deve ser expurgado em prol da reinstalação da
assepsia social. Edward, a partir deste momento, passa a ser
rejeitado pelo grupo e tomado pelos habitantes como aquele que
representa uma sujeira: o estranho. Uma seqüência de fatos
ocorridos após o incidente da invasão potencializa a idéia da
sujeira em Edward e, a partir de então, todos os seus atos são
interpretados como nocivos, como se seu único objetivo ali fosse
ferir a ordem.
Um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na
relação social quotidiana possui um traço que pode-se
impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra,
destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos
seus. Ele possui um estigma, uma característica diferente
da que [nós, normais] havíamos previsto.
(GOFFMAN, 1988:14)
Edward, assim, estigmatizado se torna impróprio para o
convívio naquela comunidade e deve ser removido para que a
62
normalidade seja restaurada. Como conseqüência, a população se
torna agressiva e exige uma ação policial (o poder que rege as
regras sociais e garante a ordem) contra Edward. Na seqüência
final do filme, sob a justificativa de defesa de sua própria
segurança, todos os moradores da região perseguem Edward de
volta ao seu refúgio inicial e só retornam à sua rotina quando são
levados a crer em sua morte.
Edward pode ser definido como um típico estranho moderno.
Mesmo que a referência ao estado – representado na polícia –
apareça poucas vezes, a história de “Edward Mãos de Tesoura”
(1990) demonstra reações tomadas pela própria sociedade em
defesa da ordem que seriam definidas como a estratégia da
exclusão. Tal estratégia se refere ao processo de retirar os
estranhos do convívio administrável, afastá-los, “bani-los dos
limites do mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com os do
lado de dentro” (BAUMAN, 1998:29). Algumas vezes, quando esse
estranho não pode ser apenas afastado ou assimilado, é preciso
destruí-lo fisicamente. A necessidade de excluir Edward daquele
convívio justifica a atitude agressiva dos moradores. E, enfim, a
tranqüilidade regressa quando são informados que a ameaça
deixou de existir.
A forma que Edward é exposto na história faz com que o
espectador se coloque em seu lugar e deixe de vê-lo como
estranho, esquecendo tanto sua falta de referência quanto sua
aparência bizarra. Ele é induzido a ver o estranho como vítima e
os moradores como ameaças, invertendo os papéis do que seria
natural na visão social. Em uma das cenas finais do filme, Peggy
diz a sua filha:
Sabe, quando trouxe o Edward para viver conosco eu
realmente não pensei direito. Não pensei nas
conseqüências para ele, ou para nós, ou a vizinhança. E
agora penso que talvez seja melhor que ele se vá. Volte
63
para lá. Pelo menos lá ele estará a salvo. E nós voltaríamos
à vida normal.
(em Edward Mãos de Tesoura, 1990)16
Quando Peggy afirma que Edward precisa estar longe para
sua própria segurança, ela coloca em jogo a própria idéia de
sujeira em Edward mostrando a possibilidade de que, para o
estranho, toda aquela sociedade seja suja, ou, até mesmo, que o
estranho não seja tão sujo assim. Ele é apresentado com
sentimentos puros, inocência e correndo perigo por causa da
impureza dos moradores de Suburbia, fazendo crer que estes que
possuem valores distorcidos e não compreendem o personagem.
Apresentado sob um olhar invertido, Edward, para o espectador,
é aquele que possui valores reais e padrões que deveriam ser
valorizados em uma sociedade, transformando os habitantes em
vilões precipitados e ameaçadores. Apesar disso, ele ainda é
facilmente apontado como estranho na narrativa e é,
primordialmente, uma peça fora do lugar.
Percorrendo toda a obra de Burton ainda é possível encontrar
outros estranhos como, por exemplo, um herói que, mesmo
sendo um sujeito inserido socialmente, se transformou em um
justiceiro para defender a segurança já que os órgãos
competentes não foram capazes de garanti-la (“Batman“ de 1989
e “Batman, o Retorno”, 1992). Assim, ele elimina os estranhos da
sociedade, mas, ao mesmo tempo, se transforma em um. Em
todos os filmes de Burton, é possível identificar um estranho, no
entanto, Edward é definitivamente o estranho mais óbvio em sua
obra, caricato e excluído.
Portanto, se definíssemos a estranheza como a matriz de
Burton, poderíamos concluir que “Edward Mãos de Tesoura”
(1990) é a cristalização da sua matriz. Entretanto, o processo da
16 Trecho extraído do diálogo entre a personagem Peggy, interpretada por Dianne Wiest, e sua
filha Kim, interpretada por Winona Ryder, no filme “Edward Mãos de Tesoura” de 1990.
64
matriz burtonesca não se resume na apresentação do estranho
social e sim, na dissolução deste estranho dentro de um conjunto
social. Ela é baseada no abrandamento do desajustado: ele é
apresentado claramente nos seus primeiros filmes, mas, de forma
gradual, é diluído, sendo cada vez mais difícil identificá-lo no
contexto narrativo. Esse processo é ilustrado pela inversão de
papéis, colocando os estranhos como heróis nas narrativas,
mostrando as impurezas das sociedades apresentadas e
amenizando a obviedade visual dos estranhos. Edward, portanto,
é parte do início do processo matricial em Burton.
O filme seguinte de Tim Burton, “Ed Wood” (1994), destoa um
pouco do conjunto da obra burtonesca, pois é o único longa-
metragem filmado em preto-e-branco e é uma história biográfica
– com personagens reais – que, apesar de suas diferenças,
também colabora no processo de reconhecimento da matriz em
Burton. A narrativa é sobre a vida de Edward D. Wood Jr.
(interpretado por Johnny Depp), que almejava o reconhecimento
pelo seu trabalho como diretor e confiava na qualidade de sua
obra. Na narrativa, o personagem demonstra uma visão diferente
da realidade, principalmente se tratando dos padrões de
qualificação da arte cinematográfica e, apesar de péssimas críticas
e fracassos seqüenciais, ele acreditava ser um vanguardista que
deixaria um legado a ser reconhecido após sua morte.
Algumas características da vida pessoal de Wood o tornam
mais peculiar, como, por exemplo, sua necessidade de vestir
roupas femininas para se acalmar, motivo pelo qual sua
namorada o abandona. Esta atitude de Ed é repudiada pela moça,
que considera o hábito anormal e bizarro, desaprovação que
piora quando a garota percebe que os amigos do cineasta não se
importam: “são um bando de aberrações”, exclama.
Ed Wood passou sua vida se esforçando para conquistar um
lugar no mundo dos grandes diretores, acompanhado por um
65
66
67
grupo amigos que, de alguma forma, também falharam na busca
pelo sucesso em Hollywood, com maior destaque para o ator Bela
Lugosi, interpretado por Martin Landau. A história mostra a
decadência de Bela Lugosi na sociedade hollywoodiana: após sua
exclusão devido ao vício em drogas, ele foi abandonado pela
esposa, não conseguia mais papéis em filmes (o que o levou a
falência) e até o tratamento para a dependência química lhe fora
recusado, pois ele não foi capaz de pagar a apólice do seguro de
saúde. O desejo desesperado pela fama é bem ilustrado na
seqüência que Bela, antes de ser expulso do hospital, está cercado
por repórteres e fotógrafos em seu leito. Ed chega e os expulsa do
local para o choque do amigo. Então, Bela pergunta a Ed porque
ele os havia espantado e diz:
Bela Lugosi: Após todos estes anos, a imprensa se interessa
de novo em Bela Lugosi.
Ed Wood: Eles são parasitas. Só querem explorá-lo.
Bela Lugosi: Ótimo, deixe que explorem. Não existe má
publicidade, Eddie. O homem de Nova Iorque até disse
que vou aparecer na primeira página! “A primeira
celebridade a se internar para reabilitação”. Quando eu sair
daqui, estarei saudável, forte, pronto para retornar [a
atuar].
(em Ed Wood, 1994)17
Todos os personagens do filme são caracterizados como
estranhos no meio cinematográfico, mas, em conjunto, formam
um grupo com valores semelhantes, sendo que todos
compartilham do mesmo desejo de se inserir no mundo do show
business. Segundo Bauman (2001), esta proximidade do grupo
acontece porque as semelhanças existentes são significativas o
bastante para que o “impacto das diferenças” seja superado. Essa
17 Trecho extraído do diálogo entre o personagem Bela Lugosi, interpretado por Martin Landau, e
Ed Wood, interpretado por Johnny Depp, no filme “Ed Wood” de 1994.
68
similaridade de valor faz com que o espectador, apesar de ver
estranheza em cada personagem individualmente, perca a noção
de sujeira existente no grupo em relação à Hollywood. O filme foca
na vida deste grupo e como ele interage na luta em busca do
sucesso, levando o espectador a torcer para que cada um dos
personagens atinja seus objetivos.
Na seqüência final do filme, é informado o fim de cada
membro deste grupo marginal, sendo que a maioria conquistou o
sucesso, mas de maneira diferente da desejada por eles, através
da incapacidade de produzir algo de qualidade. Ed Wood é o
maior exemplo de fama entre eles, o cineasta é, hoje em dia,
conhecido mundialmente como o pior diretor da história de
Hollywood18.
Comparando “Edward Mãos de Tesoura” (1990) com “Ed
Wood” (1994), pode-se perceber que o estranho perde um pouco
a obviedade, sendo transferido de um personagem específico
(Edward que possui características únicas) para um grupo de
estranhos (Ed Wood e seus companheiros). Portanto, em um
processo um pouco diferente do primeiro, todos são
apresentados como estranhos e perdem essa qualidade com o
decorrer da narrativa, quando vistos em interação com outros
estranhos similares, ou seja, são deslocados em relação ao
mundo, mas se encaixam perfeitamente no pequeno grupo ao
qual pertencem. Mesmo assim, todos os estranhos do filme são
facilmente detectáveis e só perdem sua obviedade e evidência
quando estão reunidos.
Um abrandamento similar acontece em “Marte Ataca!” (Mars
Attacks!, 1996), onde todos os personagens apresentados são
18 Pior diretor da história de Hollywood: Ed Wood foi eleito, em 1980, o pior
diretor de todos os tempos. O fato aconteceu dois anos após sua morte e o
tornou o cineasta mais conhecido quando se trata de filmes “lado B”. Seu filme
mais famoso foi Plan 9 From Outter Space, de 1957 (Ed Wood DVD, 1994)
69
caricatos. Na narrativa sobre um ataque alienígena, as
características estranhas dos personagens são amenizadas pela
enorme diferença entre os humanos e aliens, que formam um
conjunto muito mais peculiar que qualquer estranheza presente
nos personagens humanos. Os extraterrestres que desejam
eliminar a espécie humana acabam forçando as pessoas a
perceberem que possuem uma característica comum entre si: o
instinto de sobrevivência. As pessoas, sob a influência do desejo
de conservarem suas vidas, ignoram suas diferenças – que sem o
ataque seriam separadoras e excludentes – e se unem para
destruir a ameaça alienígena. Assim, uma população, que se
posicionaria em diversos grupos diferentes, encontra um valor
comum importante o bastante para eliminar as fronteiras que
normalmente os separariam.
Já em 1999, o filme “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”
(Sleepy Hollow) – uma história policial com elementos
sobrenaturais – indica, inicialmente, que a sujeira está presente
no personagem do fantasma assassino. No entanto, aos poucos, o
enredo vai transferindo, ou melhor, diluindo a sujeira entre os
moradores do vilarejo de Sleepy Hollow. Estes apresentam
características incriminadoras que são gradualmente descobertas
pelo detetive Ichabod Crane (Johnny Depp). No desenrolar da
misteriosa narrativa, o próprio detetive, um representante
forasteiro da ordem e da justiça, demonstra características que o
transformam no personagem mais estranho no contexto de Sleepy
Hollow.
O detetive é, primordialmente, um estrangeiro em Sleepy
Hollow. Ele não pertence ao local e introduz qualidades que não
se originaram na comunidade. A respeito do estrangeiro, Simmel
diz que a sua definição se dá na junção de duas características: “a
liberação de qualquer ponto definido no espaço e, é assim, oposição
conceitual à fixação nesse ponto” (SIMMEL, 1983:182). O que, em
outras palavras, significa a unificação de proximidade e distância.
70
“A distância significa que ele, que também está próximo, está distante; e
a condição de estrangeiro significa que ele, que também está distante, na
verdade está próximo” (SIMMEL, 1983:183). Isso quer dizer que o
forasteiro – mesmo quando próximo fisicamente – mantém uma
distância do grupo, mas, ao mesmo tempo, possui similaridades
com o meio que ajudam a diminuir esta distância abstrata. O
estrangeiro é um estranho que não é completamente estranho e
nunca completamente familiar.
Além da natureza estrangeira de Ichabod Crane, traumas de
infância o impedem de aceitar os valores e crenças da
comunidade na qual ele chega e dificultam sua adaptação,
mesmo que temporária, ao grupo. Sua estranheza é vista como
uma qualidade positiva pelos membros do vilarejo, pois seu
distanciamento do grupo o torna capaz de decidir e resolver os
problemas da comunidade de forma imparcial. Segundo Simmel
(1983), o estrangeiro, devido à sua mobilidade e desprendimento
local, é “mais livre”, “examina as condições com menos preconceito”,
seus critérios “são mais gerais e mais objetivamente ideais”. Ele não é
influenciado por interesses familiares ou partidários e, assim,
suas diferenças deixam de ser vistas como nocivas e passam a
colaborar na conservação do grupo. No caso de Ichabod, pode-se
destacar ainda o fator da sujeira maior, aquela que comete os
crimes e leva a comunidade a aceitar interferências exteriores em
busca de um objetivo mais importante: eliminar o assassino e
recobrar a segurança.
No desfecho da história, o detetive soluciona o mistério e toda
a estranheza é remetida a um único membro da comunidade,
precisamente aquele que não tinha feito parte dos suspeitos
durante todo o enredo. A responsável pelos crimes, Lady Mary
Van Tassel (Miranda Richardson), era uma senhora respeitada na
comunidade, casada com um dos membros mais importantes do
vilarejo, que mantinha em segredo o fato de ser uma bruxa com
71
72
73
poderes para dominar o cavaleiro sem cabeça e forçá-lo a
assassinar pessoas. É somente no fim do filme que a personagem
se apresenta como uma sujeira, e acaba por abrandar a sujeira dos
outros personagens, incluindo, a do próprio fantasma que passa a
ser visto como uma vítima de Lady Mary.
No caso de “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” (1999), todos
os personagens, uma vez vistos como estranhos, perdem tal
qualidade no fim da narrativa, sendo que toda a estranheza da
história é transferida para um único indivíduo – sendo ele o
menos provável de todos, o imaculado, apresentado inicialmente
como um exemplo de pureza. Além disto, é incluído no contexto
um tipo de estranho bem sucedido – o estrangeiro – cujo objetivo
não é se incluir no grupo, mas apenas ajudá-lo em sua
conservação como tal. Desta maneira, a estranheza destacada
primordialmente em um indivíduo dentro da obra de Burton –
Edward em “Edward Mãos de Tesoura” (1990) – sofre uma
dissolução sendo eliminada gradualmente em um conjunto maior
de indivíduos e redirecionada a um sujeito que inicialmente não
se apresentava como deslocado. Esta dissolução, ao passo que
suaviza a imagem do estranho, ainda questiona a rotulação que
os grupos impõem aos indivíduos e pode, em uma interpretação
mais complexa, representar a possibilidade de uma falha no que
a sociedade julga ser sujo ou limpo.
Em “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” (1999), aquele que
seria a sujeira inicial, o forasteiro, se apresenta como a solução
dos problemas do grupo, e aquele que é apontado como o
responsável pelo abalo à segurança no início da narrativa, o
criminoso, se torna limpo quando o enredo explica sua condição
de manipulado por uma sujeira maior. Ou seja, Burton elimina a
estranheza inicial e inverte os papéis, tanto do deslocado quanto
do ajustado, ao produzir uma narrativa na qual a sujeira é
questionada a cada momento, impedindo o espectador de
74
identificar o causador da insegurança local antes do fim da
história.
Em 2001, no re-make de “Planeta dos Macacos” (Planet of the
Apes), Burton repete o mesmo tipo de discrepância da estranheza
colocada no filme “Marte Ataca” (1996). Nele, a diferença
existente entre os humanos e os macacos é tão óbvia que acaba
por dificultar a identificação de estranhos mais específicos na
trama. Os humanos são estranhos no mundo dominado pelos
macacos, mas, em contraponto, na sociedade conhecida pelos
espectadores, toda a idéia de macacos sendo líderes e dotados de
inteligência já é, em si, de estranheza primordial. Ainda assim,
um estranho principal é apontado: o Capitão Leo Davidson
(Mark Wahlberg) é um astronauta que chega ao planeta e
encontra-se deslocado por ser um estrangeiro no ambiente – ele
não é macaco, mas também não é um humano como aqueles que
lá se encontram. Essa estranheza acaba sumindo e se tornando
um referencial, pois Leo Davidson é aquele que representa um
link com a realidade conhecida pelo espectador, que o identifica
como o indivíduo mais normal em toda a história.
Este estrangeiro é mais uma vez bem sucedido, embora
encontre um grau de dificuldade maior que Ichabod, já que sua
credibilidade entre a classe dominante é diminuída por não ser
um macaco. No fim da narrativa, o estrangeiro deixa o planeta
após efetivas modificações na estrutura social ao apontar
características entre os macacos e os humanos que os tornam
semelhantes, diminuindo o confronto entre as duas espécies.
Percebe-se, portanto, que com o desenvolver da obra de Tim
Burton, cada vez mais são utilizados diferentes artifícios para
confundir e inebriar a figura do estranho. Porém, a dificuldade
em identificá-lo da narrativa atinge sua máxima no filme “Peixe
Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish) de 2003. O filme
narra um drama entre pai e filho, Edward Bloom (Albert Finney
75
/ Ewan McGregor) e Will Bloom (Billy Crudup). O conturbado e
distante relacionamento entre pai – um grande contador de
histórias inverossímeis e maravilhosas – e filho – um jovem cético
que vê o pai como um reles mentiroso – é desafiado pela
iminente morte de Ed, que sofre de câncer. O problema de saúde
leva Will a querer constatar até que ponto as coisas que Ed conta
sobre sua vida são verdadeiras.
Todas as histórias de Ed Bloom são como contos de fadas
recheados de personagens folclóricos: um gigante, um
lobisomem, um anão, um peixe lendário, uma sereia, aranhas
gigantes, uma bruxa, entre outros. Além das criaturas fantásticas,
seus contos tratam sempre de acontecimentos incríveis vividos
por ele e são estes elementos que fazem com que Will duvide da
veracidade dos contos do pai.
Diversos dos personagens das histórias de Ed são
apresentados no decorrer da narrativa e poderiam ser
considerados estranhos: Karl, o gigante (Matthew McGrory), é
um excluído da cidade natal de Ed, pois a população tem medo
de seu tamanho e acredita que ele pode ser violento; Amos
Calloway (Danny DeVitto), dono do circo no qual Ed trabalha,
esconde de todos o fato de se transformar em um lobo sob a lua
cheia; Jenny (Helena Bonham Carter) vive em uma casa sozinha e
cercada de gatos numa cidade onde as pessoas, principalmente as
crianças, acreditam que ela seja uma bruxa; Don Price (David
Denman) se sente fracassado e excluído socialmente porque não
consegue vencer Ed Bloom em nenhum tipo de competição, e
ainda perde sua noiva para ele.
No decorrer do filme, portanto, é delicado apontar o estranho
da narrativa, ou pelo menos quem o representa principalmente.
Em primeiro lugar, porque, em momento algum, é confirmada a
veracidade de nenhuma das histórias e, em segundo, porque
simplesmente há uma grande variedade nas possibilidades do
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O Estranho Mundo de Tim Burton

  • 1. 1
  • 2. 2
  • 3. 3
  • 4. 4 O Estranho Mundo de Tim Burton CORTEZ, Anna Emília; MUDADO, Gabriela; NORBIM, Oswaldo; PAULA, Marina de; SÁ, Soraia Casal de. Belo Horizonte, PUCMG, 2006. Orientadora: Roberta Veiga Supervisor: Márcio Serelle Projeto Experimental (Graduação) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Faculdade de Comunicação e Artes – Graduação em Publicidade e Propaganda. Introdução – Timothy William Burton – Vendendo o fantástico – Semelhanças, influências ou apropriações – A marca de um autor – Dissolução do sujo – Mise en scène – Conclusão – Referências Bibliográficas - Filmografia
  • 5. 5 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade de Comunicação e Artes O Estranho Mundo de Tim Burton Por: Anna Emília Cortez Gabriela Mudado Marina de Paula Oswaldo Norbim Soraia Casal de Sá Projeto Experimental apresentado à Faculdade de Comunicação de Artes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito para a obtenção do título de bacharel em Publicidade e Propaganda. Orientadora: Roberta Veiga Supervisor: Márcio Serelle Belo Horizonte 2º Semestre de 2006
  • 6. 6 Resumo: Nosso objetivo, neste estudo, foi apontar e caracterizar o trabalho do diretor de cinema Tim Burton em termos do conceito de autoria cinematográfica desenvolvido na década de 1950 na França. Além disso, buscamos destacar os elementos formadores de seu gesto autoral: matriz e mise en scène. Palavras-chave: Autoria no cinema Tim Burton Matriz e mise en scène Abstract: Our goal, in this study, was to point out and characterize the work of the movie director Tim Burton on the terms of the concept of authorship in cinema developed on the 1950’s in France. Besides, we sought to highlight the elements that form his author gesture: argument and mise en scène. Key-words: Authorship in cinema Tim Burton Argument and mise en scène
  • 7. 7 Agradecimentos Aos nossos pais, À orientadora e ao supervisor, Anna Emilia: Aos meus irmãos, à Gabriela e à Soraia Gabriela: À Soraia, ao Danilo e ao Henrique Marina: Ao Luís Carlos, à Daniela e ao Marcelo Oswaldo: À Raquel Soraia: À Gabriela À Geny Sá (in memorian)
  • 8. 8
  • 9. 9 Sumário Introdução 11 Timothy William Burton 13 A Fantástica Fábrica de Filmes 21 Semelhanças, influências ou apropriações 31 A marca de um autor 43 Os Estranhos de Divertem 55 Mise en scène 87 Conclusão 119 Referências bibliográficas 122 Filmografia 127 Imagens 133
  • 10. 10
  • 11. 11 Introdução O presente trabalho optou pela obra do cineasta Tim Burton como objeto de estudo. Ao fazer esta escolha, o grupo imediatamente encontrou uma deficiência bibliográfica não só em relação à obra deste cineasta, mas também a dos seus contemporâneos. Seria mais fácil para um projeto experimental que trata de cinema trabalhar com os grandes cineastas consagrados, já que existem inúmeras dissertações, trabalhos e livros a respeito dos mesmos. Entretanto, escolhemos o diretor Tim Burton pelo desafio de compreender a forma com a qual ele se estabelece como um diretor dono de uma assinatura capaz de refletir-se em todos os seus filmes e, por este motivo, transformar-se em um autor de cinema. Ao pensar em Tim Burton, rapidamente constatamos que o diretor é capaz de conquistar a simpatia tanto do público quanto da crítica, além de ocupar um lugar de destaque raro no contexto hollywoodiano. Foi pensando nisso que a primeira questão foi levantada: o que tem de tão especial em suas realizações? E, a partir desta, como é produzida a assinatura burtonesca nos filmes? É baseado nestas indagações que este estudo apresenta seus seis capítulos seguintes. O conceito da autoria no cinema foi criado na década de 50, ou seja, o auge do cinema moderno, e será retomado nessa análise por ser capaz de abranger a obra de Burton, um diretor essencialmente pós-moderno, sem, no entanto, limitá-la. Para apontar a autoria cinematográfica de Tim Burton, optamos pelo auxílio da teoria de Jean-Claude Bernardet, pensador de cinema e defensor da teoria do autor de cinema. Baseando-nos neste
  • 12. 12 conceito, pretendemos mostrar algumas das características latentes na obra de Burton que configuram a criação de um trabalho único na sétima arte. É necessário ressaltar, no entanto, que compreendemos que esta é uma tarefa bastante ambiciosa para um estudo como o projeto experimental e que temos consciência de nossas limitações acadêmicas e imaturidade teórica, bem como a escassez de tempo disposto para este trabalho. Nesta iniciativa de O capítulo “Timothy William Burton” é dedicado a apresentar o homem responsável pelo mundo burtonesco, ou seja, o próprio diretor e seus atributos profissionais. Em “A Fantástica Fábrica de Filmes”, o objetivo é demonstrar e esclarecer, através de elementos que regem a indústria hollywoodiana, a forma como Tim Burton se encontra inserido e bem posicionado no âmbito comercial do cinema atual. No capítulo intitulado “Semelhanças, influências ou apropriações”, pretende-se apontar algumas características das correntes cinematográficas que mais se destacam na obra do cineasta, sendo vistas como formadoras da característica híbrida do cinema burtonesco que se apropria de elementos produzidos no decorrer da história cinematográfica na produção de um trabalho inédito. O capítulo “A marca de um autor”, baseado em Bernardet, define traços na obra de Burton que o configuram como autor, e os dois capítulos seguintes, como mera formalidade didática existente na própria teoria, foram divididos entre os dois elementos formadores de um gesto autoral: matriz e mise en scène. Sendo que a matriz, aqui chamada de “Os Estranhos de Divertem”, é apresentada através da análise de todo o conjunto narrativo da obra de Burton; e a mise en scène focada nos aspectos visuais de sua filmografia.
  • 13. 13 Timothy William Burton Timothy William Burton, mais conhecido como Tim Burton, nasceu em 25 de agosto de 1958, na pequena cidade de Burbank, no estado da Califórnia, Estados Unidos. Algumas fontes que tratam sobre sua vida afirmam que Tim teve uma infância conturbada e ela é a origem de sua criatividade bizarra e de sua personalidade excêntrica. Entretanto, o próprio Burton declara que em sua infância não existiram muitos eventos peculiares, ele possuía amigos e brincava como qualquer outra criança. A primeira coisa que as pessoas perguntam quando eu menciono que conheço o Tim Burton é: ‘Ele é estranho?’ (...) sim, ele é o que alguns chamam de ligeiramente excêntrico (...) mas após passar um tempo na companhia de Burton você pode começar a ter a sensação de que talvez, só talvez, todos nós é que somos os estranhos, e ele, o único completamente são. (MILLS, 2002:147) O cineasta não possui nenhuma biografia oficial, mas algumas de suas declarações revelam um pouco da sua história, principalmente, no livro “Burton on Burton”, no qual, em entrevista a Mark Salisbury, Burton explica um pouco mais sobre sua vida pessoal e seu trabalho como diretor. Ainda jovem, Burton tinha problemas em aceitar o subúrbio onde morava, o que se tornou referência recorrente e reconhecível em seu trabalho. Burbank é conhecida como a cidade que acolhe os grandes estúdios de Hollywood, ela faz parte da
  • 14. 14 Grande Los Angeles, mas mantém características de cidades interioranas. Apesar da proximidade com uma grande capital, “Burbank é um arquétipo de um subúrbio de classe trabalhadora americana. Ambiente no qual Burton se sentia alienado desde a juventude, o que, mais tarde, é retratado em Edward Mãos de Tesoura” (BURTON; SALISBURY, 2000:1). Burton, desde muito jovem, já demonstrava um gosto pelo cinema e uma criatividade de destaque. Era um estudante ‘preguiçoso’ que nunca leu um livro como tarefa e, para conseguir pontos, fazia pequenos filmes sobre os assuntos tratados na matéria. Quando perguntado se pensava em ser cineasta, Tim Burton diz: “Eu, na verdade, nunca pensei em realmente fazer filmes como um meio de vida. Talvez em algum lugar bem guardado, mas eu nunca conscientemente disse que queria ser um diretor. Eu gostava de fazer filmes. E me ajudava a passar na escola” (BURTON; SALISBURY, 2000:6). Além dos filmes, Burton demonstrava um interesse grande por desenho, sendo que, na época de halloween ganhava dinheiro pintando decorações como vampiros, esqueletos e abóboras nas janelas dos vizinhos de Burbank. Ainda na infância, assistia com freqüência aos chamados filmes lado b1, tais como: “Godzilla” (1954), “Frankenstein” (1931), “Jasão e o Velo de Ouro” (1963), “The Brain That Wouldn’t Die” (1962), “King Kong”, (1933) “O Monstro da Lagoa Negra” (1954), entre outros. Mas, segundo Burton, os estrelados por Vincent Price são os “que me tocaram especificamente por alguma razão. (...) Vincent Price era alguém com quem eu conseguia me identificar, talvez da mesma forma que Gary Cooper ou John Wayne para outras pessoas” 1 Filmes lado b: o termo surgiu em Hollywood quando havia apresentações duplas, e o segundo filme, de menos valor, era chamado de B. Os filmes classificados como lado b, ou apenas filmes-b, atualmente, são aqueles cujo orçamento para realização é muito baixo comparado aos filmes realizados no circuito hollywoodiano. Algumas vezes, o termo pode ser utilizado como sinônimo de cult, mas, na maioria dos casos designa filmes de baixa qualidade e/ou pouca visualização mercadológica. (WIKIPEDIA, s.d.)
  • 15. 15
  • 16. 16
  • 17. 17 (BURTON; SALISBURY, 2000:4,5). A admiração de Burton pelo ator é notória, sendo que Price foi homenageado pelo título de seu primeiro curta, “Vincent” (Vincent, 1982), e, anos depois, atuou no filme “Edward Mãos de Tesoura” (Edward Scissorhands, 1990) como o criador de Edward. Existe também um rumor sobre o relacionamento de Burton com seus pais ser conturbado. Alguns especulam que desentendimentos entre Tim e o pai (Bill) podem ser a razão pela qual, ainda aos doze anos de idade, ele mudou-se para a casa de sua avó. Bill Burton faleceu em 2003, antes das gravações de “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish), sem que ele e Tim voltassem a se falar. O diretor é relutante ao tratar sobre o assunto, mas afirma que o filme sobre o relacionamento de pai e filho serviu como uma forma de terapia para ele (BURTON, 2003). Detalhes da sua vida pessoal à parte, Tim Burton foi bolsista no Instituto de Artes da Califórnia (Cal Arts), criado pela Disney com o objetivo de incentivar novos profissionais em animação. Em 1979, no seu terceiro ano no Instituto, Burton foi selecionado pelos estúdios Disney e contratado como animador. A padronização dos desenhos fez com que Burton deixasse o emprego, ele alega que quando cria-se formas específicas para produzir arte, a criatividade e liberdade do artista é limitada. Entretanto, sua experiência nos Estúdios de Animação Disney incluiu em seu currículo trabalhos como animador, desenhista e fotógrafo, e, foi através dela que Burton foi contratado para realizar seu primeiro longa-metragem: “As Grandes Aventuras de Pee-Wee” (Pee-Wee’s Big Adventure, 1985). Tim Burton também possui alguns trabalhos como escritor. Ele é autor de contos infantis, como “A Melancólica Morte do Menino Ostra” (The Melancholic Death of Oyster Boy), lançado em 1997; de algumas das histórias usadas em seus filmes: “Vincent”
  • 18. 18 (Vincent, 1982), “Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem” (Beetlejuice, 1988), “Edward Mãos de Tesoura” (Edward Scissorhands, 1990), “O Estranho Mundo de Jack” (Nightmare Before Christmas, 1993); e, também, co-autor de um livro sobre seu trabalho como diretor de cinema, “Burton on Burton” de Mark Salisbury (1995), já mencionado aqui; além de várias coletâneas de entrevistas do diretor sobre a produção e realização de seus filmes. Burton também é um produtor respeitado em Hollywood, assinando a produção de quinze filmes, sendo cinco deles para televisão, um em animação gráfica e nove feitos para o cinema. Em sua carreira, Burton assina, como diretor, doze longas- metragens, três curtas e três filmes para TV. Entre seus filmes mais conhecidos estão: “Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem” (Beetlejuice, 1988), “Batman” (Batman, 1989), “Edward, Mãos de Tesoura” (Edward Scissorhands, 1990), “Ed Wood” (Ed Wood, 1994), “Marte Ataca!” (Mars Attacks!, 1996), “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” (Sleepy Hollow, 1999), “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish, 2003), “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (Charlie and the Chocolate Factory, 2005) e, mais recentemente, “A Noiva-Cadáver” (Tim Burton’s Corpse Bride, 2005). [ver quadro p. 19] O crítico de cinema William Arnold (2005), do Seattle Poster- Intelligencer, apesar de depreciar alguns filmes da obra de Tim Burton, ele diz que o trabalho do diretor possui uma “magia especial” e é uma contribuição à arte do cinema.
  • 19. 19 Filmografia de Tim Burton Longas-Metragens Ano Função A Noiva-Cadáver (Tim Burton’s Corpse Bride) 2005 Direção e Produção A Fantástica Fábrica de Chocolate (Charlie and the Chocolate Factory) 2005 Direção Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas (Big Fish) 2003 Direção Planeta dos Macacos (Planet of the Apes) 2001 Direção A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (Sleepy Hollow) 1999 Direção James e o Pêssego Gigante (James and the Giant Peach) 1996 Produção Marte Ataca! (Mars Attacks!) 1996 Direção e Produção Batman Eternamente (Batman Forever) 1995 Produção Ed Wood (Ed Wood) 1994 Direção e Produção Cabin Boy (Cabin Boy) 1994 Produção O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas) 1993 Produção e História Batman - O Retorno (Batman Returns) 1992 Direção e Produção Edward Mãos de Tesouras (Edward Scissorhands) 1990 Direção, Produção e História Batman (Batman) 1989 Direção Beetlejuice, Os Fantasmas se Divertem (Beetlejuice) 1988 Direção e História As Grandes Aventuras de Pee-Wee (Pee-Wee's Big Adventure) 1985 Direção O Caldeirão Mágico (The Black Cauldron) 1985 Concepção Artística Tron 1982 Animação O Cão e a Raposa (The Fox And The Hound) 1981 Animação Curtas-Metragens Ano Função The World of Stainboy 2000 Direção, Produção e História Frankenweenie 1984 Direção, História e Storyboard Vincent 1982 Direção, História e Design Filmes para TV Ano Função Lost in Oz 2000 Produção Executiva Family Dog (Spielberg's Amazing Stories) 1992 Produção Executiva Beetlejuice - Série de TV 1989 Produção Executiva e Criação Joãozinho e Maria (esp. Disney: Hansel and Gretel) 1982 Direção e História Luau (participação como ator) 1982 Direção, Produção, História Stalk of The Celery 1979 Direção, Produção, História e Animação Fonte: IMDB - Internet Movie Database
  • 20. 20
  • 21. 21 A Fantástica Fábrica de Filmes Tim Burton é um diretor atual que para criar seu trabalho enfrenta as condições impostas pelo status do cinema contemporâneo: a transformação dos filmes em produtos e dos espectadores em clientes. Apesar disso, o diretor é capaz de criar películas que se destacam em um meio tão competitivo, que conquistam grandes públicos e possuem uma espécie de assinatura diferenciada. Um mundo fantástico é criado e vendido com sucesso no mercado hollywoodiano. Sob tantas interferências e tantos interesses em jogo (principalmente o financeiro), Burton deixa sua marca no produto-arte do cinema atual. Segundo Costa (1989), o “cinema é aquilo que se decide que ele seja numa sociedade, num determinado período histórico, num certo estágio de seu desenvolvimento, numa determinada conjuntura político- cultural ou em um determinado grupo social”. Ele se constitui, ao mesmo tempo, como técnica, indústria, arte, espetáculo, divertimento – cultura. Ao observar o status da cultura atual, percebe-se que é necessário levar em consideração alguns aspectos viabilizados pelo desenvolvimento técnico da humanidade e que se tornam influências para a criação cinematográfica como, por exemplo, a onipresença da televisão e das novas estruturas tecnológicas. Sem dúvida, estas novas tecnologias influenciam o cinema, principalmente no âmbito da produção, distribuição e consumo dos filmes.
  • 22. 22 Neste contexto, o cinema vivencia avanços tecnológicos inumeráveis. Softwares, digitalizações e técnicas televisivas são arrebanhados pelas técnicas cinematográficas: são tecnologias muito recentes, capazes de criar praticamente qualquer coisa em cena. Tim Burton extrai, destas novas tecnologias, possibilidades expressivas que contribuem para despertar emoções no público, utilizando-as como quem as domina, e não o contrário. É a junção destes novos artifícios e as técnicas tradicionais do cinema que alimenta as produções fantásticas do diretor, sem atingir um extremo computadorizado ou a simplicidade pura da imagem capturada. Segundo Burton (2003), quando as cenas são produzidas sem o auxílio de computadores, a sensação de realidade é maior e a atuação dos atores se torna mais próxima de algo que realmente está acontecendo, o que acaba refletindo diretamente no resultado final. Até mesmo em animações, o cineasta opta por bonecos reais que tomam vida a partir da técnica de stop-motion2, ao invés de produzi-los totalmente através dos recursos computadorizados. Exemplos disso são os filmes “Vincent” (Vincent – 1982), “A Noiva-Cadáver” (Tim Burton’s Corpse Bride – 2005), “O Estranho Mundo de Jack” (The Nightmare Before Christmas – 1993), e “James e o Pêssego Gigante” (James and the Giant Peach – 1996), – sendo que os dois últimos foram dirigidos por Henry Selick, mas produzidos por Tim Burton. Acho que CG (Imagem Gerada por Computador) funciona para algumas coisas. Não dá para fazer certas coisas sem isso. Mas, ao mesmo tempo, acho que as pessoas confiam demais nisso. Sempre vou partir do princípio que se você pode fazer a cena sem CG, melhor. Eu também gostei de 2 Stop-motion: técnica de animação cinematográfica que consiste em dar vida a objetos através do sistema quadro-a-quadro. Nesta técnica, o animador faz um registro das várias nuances do movimento em diversos quadros diferentes, depois os ordena para formarem um movimento completo.
  • 23. 23 usar esse recurso, mas tento misturar as técnicas para não ficar preguiçoso. (...) É algo que acho que as pessoas percebem. Mesmo que não percebam, sabem inconscientemente. (...) Não me importa o que digam. Se fosse efeito, você sentiria. Isso lhe dá um foco que você não teria em uma sala de tela azul. (BURTON, Informação verbal)3 A questão tecnológica permeia não somente a forma utilizada para a produção do filme, mas também se configura como tema e crítica na obra burtonesca. Tim Burton parece empenhado em valorizar apetrechos antiquados e destacar conexão do homem moderno e pós-moderno ao maquinário, mesmo que arcaico. Todos os filmes produzidos atualmente retratam de alguma maneira o avanço tecnológico, seja de forma sutil como referência à cultura atual, como crítica contra a automatização da vida ou como elemento primordial para a produção do conjunto fílmico. Em Burton, este tema aparece de variadas maneiras, porém nunca tratado como algo a ser temido pela humanidade. A tecnologia é mostrada como parte da rotina dos personagens e, mesmo quando há falhas relacionadas a elas, estas surgem somente para criticar uma valorização que ultrapasse os limites do mutualismo estabelecido pelo ser humano com tais avanços. Em diversas entrevistas, Tim Burton diz que prefere criar todos os cenários em estúdios e locações sempre que possível, dependendo das possibilidades físicas em produzi-los e do orçamento disponível. Observando a afirmação do diretor em relação às limitações impostas pelas finanças dos filmes, outra característica importante do cinema atual se destaca: a produção e o consumo. Já há algum tempo considerado como um produto da era capitalista, o filme faz parte de uma indústria lucrativa e disputada. Hollywood, a ‘empresa’ mais bem sucedida na área, é o 3 Fala de Tim Burton extraída de “Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas: Comentários do Diretor” de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay.
  • 24. 24 centro da produção cinematográfica e financiadora dos filmes, através dos grandes estúdios, desde a década de 1920. O que será produzido, como será produzido, por quem será feito e até mesmo os temas abordados, tornam-se determinações dos comandantes dessa indústria cujo objetivo principal é o lucro. A transformação do filme em produto acarreta em várias influências e empecilhos para o processo de criação dos diretores. Ainda assim, Tim Burton é capaz de fechar contratos milionários com os estúdios mantendo seu gesto autoral, produzindo um cinema único dentro da máquina hollywoodiana. Depois do lançamento do primeiro “Batman” (Batman, 1989), seu nome passou a ser atrativo para um público fiel, já que o filme trouxe notoriedade internacional ao nome do diretor, principalmente pelo recorde histórico de bilheteria em uma estréia cinematográfica. “The Economist descreveu o ‘Batman’ de Burton como o filme de maior sucesso financeiro do verão mais bem sucedido de Hollywood. Ele foi o primeiro filme na história do cinema a arrecadar 100 milhões de dólares em dez dias” (SMITH; MATTHEWS, 2002:83) É claro que o relacionamento de Burton com os estúdios não é sempre tranqüilo. Um caso de tensão entre o diretor e os empresários da indústria é a polêmica que foi criada em torno do projeto “Superman Lives” (1996) – um roteiro escrito por Kevin Smith4, contando a história do Super-Homem. Burton foi convidado para dirigir a produção, porém suas mudanças no roteiro e na estética do super-herói (a roupa do Super-Homem, por exemplo, seria preta aos moldes do protagonista de “Edward, Mãos de Tesoura”) criaram conflitos com o roteirista e o projeto foi abandonado, após o pedido de afastamento do diretor feito pelo estúdio Warner (MEDEIROS, 2002). 4 Kevin Smith: o americano é cartunista, ator, roteirista, diretor e produtor. Seu filme mais conhecido é Dogma com Bem Affleck e Matt Damon. Kevin também é conhecido como Silent Bob, personagem que representa em algumas de suas produções.
  • 25. 25 Grandes estúdios realizam, em sua maioria, filmes que possam ser rentáveis, já que a produção cinematográfica é bastante dispendiosa. Na tentativa de garantir o sucesso financeiro, normalmente, os estúdios procuram roteiristas e diretores dispostos a criarem filmes usando a mesma receita daqueles que geraram maior renda, criando, assim, uma espécie de moda em Hollywood. Recentemente, no fim da década de 1990, uma grande onda de filmes de suspense atingiu as salas de todo o mundo, películas como “Pânico” (Scream, 1996), “Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado” (I Know What You Did Last Summer, 1997), “A Bruxa de Blair” (The Blair Witch Project, 1999) são exemplos de filmes que seguem tendências do mercado, também conhecidos como blockbusters. Já no início do século XXI, foi a vez dos heróis dos quadrinhos: “X-Men” (X-Men, 2000), “O Homem- Aranha” (Spider-Man, 2002), “O Demolidor” (Daredevil, 2003) e “O Incrível Hulk” (Hulk, 2003). Sobre isto, podemos observar que Tim Burton já havia se antecipado à moda, ao lançar o já mencionado “Batman” em 1989 – uma filmagem do famoso herói dos quadrinhos criado por Bob Kane em 1939 – e, sendo um dos responsáveis pela tendência, como sugerem Jim Smith e J. Matthews (2002:84): “Batman é inquestionavelmente o filme de herói de maior influência de todos os tempos. Ele iniciou a onda de dark blockbusters (...) e definiu a abordagem de filmes fantásticos por mais de uma década”. Esta recusa de Burton pelas tendências impostas pela indústria, ainda pode ser observada em outros exemplos: enquanto as telas eram invadidas pelos thrillers de suspense, Tim Burton lançou “Marte Ataca!” (Mars Attacks!, 1996) – uma comédia sobre um ataque alienígena – e, durante o domínio dos super-heróis, “Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish, 2003) – um drama sobre a relação de pai e filho. Nos comentários de Tim Burton em relação ao filme, ele diz que “é bom trabalhar em um projeto proposto por um estúdio que não seja
  • 26. 26 baseado em quadrinhos, figurinhas ou algo assim” (Informação verbal)5. Esse tipo de negação aos padrões estipulados no mundo hollywoodiano consegue estabelecer uma relação contraditória: mesmo se opondo às tendências, Burton não as recusa completamente. Explorando formatos cinematográficos que não se encontram no alvo da moda – mas que já estiveram em alta em algum momento na história do cinema – o diretor acaba por lançar ou re-lançar tendências. Exemplos disso são os filmes “Batman” (1989) e “Marte Ataca!” (1996). Ambos acabaram por despertar uma tendência em Hollywood, o primeiro redescobriu a força dos filmes inspirados em quadrinhos, tendo sido um dos filmes mais bem sucedidos em comercialização e merchandising da história do cinema, como já foi dito neste capítulo. Sobre esse caso, ainda podemos observar que a idéia de lançar o herói Batman nas telas já era bem difundida no meio televisivo com uma série de TV das décadas de 1960 e 1970. O grande êxito de Burton se deu pela forma obscura e sombria com a qual o herói foi apresentado, causando uma surpresa positiva para a maior parte dos fãs do personagem que consideravam o Batman da TV uma ofensa ao trabalho de Bob Kane. Já em “Marte Ataca!” (1996), o tema de alienígenas e ataques ao planeta também é trazido com uma abordagem diferente da disseminada por Hollywood: ao invés de tratar os ataques como algo trágico e repleto de melodrama, Burton exibe a morte de maneira cômica e critica todos os filmes criados anteriormente com o mesmo tema ao apresentar uma solução banal para salvar a humanidade, vindo da fonte mais improvável na narrativa. Além das modas impostas às narrativas de tempos em tempos, outro aspecto que domina o mercado de cinema são as grandes 5 Fala de Tim Burton extraída de “Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas: Comentários do Diretor” de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay.
  • 27. 27
  • 28. 28
  • 29. 29 estrelas. Desde a “Era de Ouro de Hollywood” (Andrade, 2003), aproximadamente de 1920 a 1960, as estrelas de cinema ganharam um status de semideuses, uma espécie de realeza norte-americana, sendo admirados e adorados pelo grande público. Desde então, a presença de uma estrela em um filme é capaz de atrair um maior público e, conseqüentemente, maior renda para seus executivos. Num processo inverso ao da maioria, Burton não é um diretor conhecido por correr atrás de astros para seus filmes. Seu critério de seleção visa encontrar atores com características que se encaixem nos roteiros e personagens, como declarou o ator Ewan McGregor (2004) em uma entrevista a BBC de Londres. Talvez por essa fama, se tornou comum que as próprias estrelas busquem trabalhos com o diretor, que também é conhecido por manter parcerias com seus atores e equipe. “Fica evidente outra característica importante do diretor: sua predileção por trabalhar com amigos” (EVANS, 2005), e muitas dessas relações se destacam na repetição de profissionais ao longo de suas produções. Desde “As Grandes Aventuras de Pee-Wee” (Pee- Wee’s Big Adventure – 1985), todos os filmes de Tim Burton têm a trilha sonora produzida por Danny Elfman – exceto “Ed Wood” (1994) – e a grande maioria tem Colleen Atwood como figurinista. Christopher Lee, Jeffrey Jones, Michael Keaton, Danny DeVitto, Jack Nicholson, Winona Ryder, Deep Roy, Helena Bonham Carter e Tim Roth são alguns dos nomes que aparecem duas ou mais vezes no elenco dos filmes assinados por Burton. Mas o nome que merece maior destaque é o de Johnny Depp: o ator já protagonizou cinco filmes de Burton, incluindo sua última animação (“A Noiva-Cadáver”, 2005), na qual o boneco do personagem principal, Victor Van Dort, foi construído à imagem e semelhança do ator que também é responsável pela dublagem de Victor. A valorização do trabalho de Tim Burton tem como um dos motivos o fato de seus filmes atraírem o público não por serem
  • 30. 30 estrelados por atores de sucesso ou por seguirem as modas cinematográficas, mas sim por terem sido idealizados e realizados por ele. Seu filme mais recente, produzido pelo estúdio Warner – um dos maiores da atualidade – leva o nome do diretor no próprio título original, trata-se “Tim Burton’s Corpse Bride” (“A Noiva-Cadáver” – 2005). O filme, somente no fim-de- semana de estréia, arrecadou mais de 20 milhões de dólares nas bilheterias americanas (GEIRMAN, 2005), valor que o transforma em um sucesso de público.
  • 31. 31 Semelhanças, influências ou apropriações Uma das características mais chamativas do trabalho de Tim Burton é que nele é possível encontrar diversas características desenvolvidas ao decorrer da história do cinema, provenientes de variadas épocas, movimentos e escolas. Com o objetivo de facilitar o seu estudo, a história cinematográfica foi dividida em correntes e escolas que se organizam de acordo com avanços técnicos, tipos de linguagem e estilos de expressões cinematográficas. As divisões periódicas mais disseminadas e aceitas pelos estudiosos do cinema são: o primitivo, o clássico, as vanguardas, o moderno e, finalmente, o pós-moderno que também é chamado de contemporâneo ou, em alguns casos, maneirista. Algumas destas divisões temporais mostram essas correntes como algo que existiu apenas em um período histórico específico, mas é importante ter em mente que um movimento não precisa cessar sua existência para que outro aconteça. O hibridismo do cinema pós-moderno é exemplo disso – por ser tão recente, encontra-se dificuldade em defini-lo causando polêmica entre os pensadores e críticos atuais que ainda não são capazes de classificar o cinema da atualidade, principalmente, por não ter o distanciamento temporal necessário para uma análise mais ‘científica’ dessa corrente. Esta, no entanto, é uma discussão que está fora dos objetivos e pretensões deste projeto e, portanto, é
  • 32. 32 baseando-se na divisão mais comum que seguirão as comparações deste trabalho. Uma característica latente no cinema atual é que ele não tem o objetivo de romper com nenhum dos movimentos pré-existentes, ao contrário, ele se torna uma união de todas as correntes anteriores, dialogando com vários aspectos desenvolvidos pela linguagem cinematográfica ao longo de sua história, sendo eles estéticos, técnicos ou narrativos. O rompimento do pós-moderno é única e exclusivamente com as normas, com o que separa uma escola de outra, ele é uma interseção de todas as correntes sem se limitar a uma específica. O cinema da atualidade é um terreno fértil para a combinação, contraposição, permutação e descontextualização de diversos elementos situados em variados segmentos espaços-temporais. Segundo Ferraraz (2001), baseando-se em Jameson, “o pós- moderno se caracteriza por um ecletismo muito grande de estilos, de formas, de paradigmas, numa arte que trabalha com estruturas esquizofrênicas6” (FERRARAZ, 2001:4). Afirmar que Tim Burton é um artista pós-moderno significa que ele é produtor de um cinema pluralista, que segue uma arte que não nega o passado, pelo contrário, se apropria dele para criar o novo. Na arte pós- moderna, o que já foi feito é reaproveitado sob uma nova ótica e forma de criação, ou seja, no cinema, é aquele que arrebanha todas as escolas passadas e, a partir delas, produz um novo em uma espécie de pastiche. Segundo Dubois (2004), na década de 1980, o que se observa em diretores, tais como Francis Ford Coppola, Peter Greenaway, Lars Von Trier, Raoul Ruiz e diversos outros, é o verdadeiro “cinema do depois”, feito por quem tem a nítida consciência de ter chegado logo após a criação de um ideal de perfeição, quase como se todas as possibilidades de experiência e inovação já 6 Estruturas esquizofrênicas: grifo do autor
  • 33. 33 estivessem esgotadas. O desafio, colocado para o autor de cinema hoje, é como filmar algo de forma diferente do que já foi feito, e ainda, a questão de qual objeto filmar. Assim, pode-se dizer que a história do cinema se torna um peso para o autor cinematográfico contemporâneo que é desafiado por ela em todo momento de criação. No entanto, sob outra perspectiva, ela pode se tornar uma infindável fonte de inspiração. Da mesma forma que um cientista se torna mais apto a realizar pesquisas na medida em que aumenta seu conhecimento teórico, um artista aumenta suas possibilidades criativas ao conhecer mais sobre sua arte. É claro que esta analogia não implica que a criação artística siga os modelos do processo científico, até porque, o sistema cartesiano – tradicionalmente utilizado nas ciências – não tem espaço na arte hoje, principalmente após tantos movimentos do século XX nos quais artistas, como Marcel Duchamp, lutavam contra a ditadura binária do belo e do feio, o bom e o ruim, o certo e o errado – atualmente o processo começa a ser questionado até mesmo pelos próprios cientistas. Esta comparação é apenas uma forma de tornar mais fácil a compreensão do acréscimo de possibilidades através do conhecimento, ou seja, o artista torna-se capaz de se apropriar de certas características por ele vistas e, a partir delas, se inspirar, criando algo único. É através deste hibridismo contemporâneo que Burton explora suas capacidades criativas, re-moldando elementos já utilizados e transformando-os com a sua personalidade e gênio criativo. Sua estética visual, por exemplo, possui características específicas, perceptíveis até para o olhar mais desatento, o que torna possível a identificação de seu gesto autoral. Cineasta inclasificable y libre de prejuicios, Tim Burton ha desarrollado a lo largo de su carrera cinematográfica un catálogo de películas que en nada parece seguir los cánones
  • 34. 34 comerciales que imperan en el cine manufacturado en serie en los Estados Unidos. Iniciado como animador en la todopoderosa Disney y siempre ligado a los grandes productores americanos, ha conseguido desarrollar su propia y original forma de hacer cine. Director de culto para algunos, incapaz de contar una historia de forma visual para otros, lo cierto es que en Burton encontramos uno de los mejores ejemplos de lo que se ha dado en llamar 'autoría posmoderna', etiqueta donde se engloban cineastas como los hermanos Cohen, Tarantino, Cronenberg o David Lynch. (ARZA, 2004) Sob o olhar da estética de Burton, podemos encontrar similaridades com aspectos visuais de algumas das chamadas vanguardas cinematográficas. Estas vanguardas são resultados de uma interação desenvolvida, no início do século XX, entre o cinema produzido e a ascensão de vanguardas artístico-literárias. Tratava-se de um questionamento radical dos valores estéticos tradicionais burgueses e procurava, entre outras coisas, atribuir novas funções à linguagem artística recorrente, explorando caminhos de representação que o próprio cinema viabilizava, buscando possibilidades, experimentando os limites desta mídia e tentando se distanciar da ditadura fílmica que começava a aparecer nos EUA. Um dos principais traços dessas vanguardas é o desejo de exibir algo além da visão considerada normal, extrapolar os significados dos objetos e dos acontecimentos percebidos pelo olhar humano, dando significações além do comum enraizado na percepção. Entre estes movimentos, o surrealismo e o expressionismo alemão são os que ganham maior destaque ao analisar a obra de Burton. Os surrealistas exploraram as associações de imagens, fantasmas eróticos e as pulsões revolucionárias, representados na época principalmente pelo cineasta Luís Buñuel e o artista Salvador Dalí. A estética surrealista se baseou na transformação
  • 35. 35 de sonhos em imagens, o filme “Um cão andaluz” (Un chien andalou, 1928), realizado em parceria por Buñuel e Dalí, por exemplo, lança a proposta de uma narração que não obedece a uma ordem ou lógica, que cultiva as rupturas, o onirismo, as imagens mentais, a confusão entre subjetividade e objetividade. Neste sentido, Tim Burton opta pelo caminho contrário, mantendo sempre a linearidade no enredo ao contar suas histórias. O cineasta Federico Fellini (s.d.), diz que: Falar sobre sonhos é como falar sobre filmes, já que o cinema usa a linguagem dos sonhos; anos podem passar em um segundo e você pode pular de um lugar ao outro. É uma linguagem feita de imagem. E no cinema de verdade, todo objeto e toda luz possui um significado, assim como nos sonhos. O meio cinematográfico, portanto, oferece ao artista – além da possibilidade de compartilhar imagens mentais – o mesmo tipo de desprendimento existente nos sonhos, viabilizando a criação de uma realidade suspensa, flexível, composta por mundos alucinados sem qualquer tipo de obrigação com a realidade. Consciente disto, Burton se aproveita desta possibilidade oferecida pelo cinema para criar atmosferas preenchidas por elementos extraordinários e criaturas fantásticas livres da maioria das restrições físicas impostas pela vida real, explorando possibilidades imagéticas, que, se não existissem os filmes, só poderiam existir se sonhadas ou imaginadas. A fuga da realidade também é marca do expressionismo alemão, que “teve sua realização definitiva por intermédio de uma nova arte, o domínio da imagem em movimento, que deu vida a um mundo paralelo, povoado por visões subjetivas, misteriosas agitações do inorgânico e profecias inquietantes sobre uma nova era” (RUBINATO, 2006). “O Gabinete do Dr. Caligari” (Das Kabinett des Doktor Caligari – 1919), de Robert Wiene, é um marco dessa vanguarda,
  • 36. 36 cujo traço mais marcante é a oposição à verossimilhança. A maquiagem, as roupas e o desempenho dos atores, com movimentos e expressões exageradas, participam na instalação de um universo fictício, inquietante, com cidades labirínticas e de criaturas estranhas. Visualmente, características da arte gótica tomam lugar em cena, enriquecem e caracterizam o estilo estético do movimento. Burton, como ele próprio afirma diversas vezes, tem um fascínio por esses elementos obscuros, estranhos e bizarros. Seus filmes e seus personagens, principalmente seus monstros, têm características exageradas, visuais expressivos que chocam individualmente, mas que são peças comuns dentro do contexto narrativo e não possuem uma conotação absurda. Um humor sombrio e sarcástico pode ser sempre percebido em seus filmes, uma característica que desconstrói os significados de senso comum e maniqueísta, freqüentemente atribuídos aos monstros. Para a formação dessa expressão em cena, Burton valoriza um aspecto do cinema mudo: a capacidade do ator de se comunicar sem usar palavras. Ao comentar sobre a seleção de seus atores, repetidamente, afirma que precisa da qualidade de cinema mudo, a expressividade de uma cena na imagem e não no texto. Segundo Burton (2003), um diálogo, algumas vezes, fala muito sem dizer nada. Quando perguntado por Maxwell Bridiay sobre os comentários de alguns críticos que afirmam que ele não sabe contar histórias e faz filmes apenas com apelo visual, Burton responde que o cinema é um meio visual, “há muitas formas diferentes de apresentar as coisas. Para mim, quanto mais formas para apresentar, melhor” (Informação verbal)7. Seguindo para o aspecto narrativo das histórias, o diretor mantém características que são remetidas ao cinema clássico: a 7 Fala de Tim Burton extraída de “Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas: Comentários do Diretor” de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay.
  • 37. 37 linearidade, a lógica e a clareza. O encadeamento das cenas e das seqüências do clássico se desenvolvia de acordo com uma dinâmica de causas e efeitos clara e progressiva. A narrativa centrava-se em geral num personagem principal ou em um casal (de caráter bastante definido), enfrentando diferentes situações de conflito. O desenvolvimento levava o espectador às respostas das questões colocadas pelo filme. Nesse aspecto, Burton mantém sua obra basicamente sob a narrativa clássica. Suas histórias possuem um caráter linear lógico, os enredos são claros e diretos (sem nenhuma pretensão de confusão temporal) e um herói central que é acompanhado durante o filme. O cineasta D. W. Griffith – responsável por criar, no cinema, a chamada narrativa clássica, utilizada até hoje pela maioria dos filmes –, foi profundamente influenciado por romances dos escritores Charles Dickens e Fiodor Dostoievski. Segundo Guimarães (1997), a narração fílmica clássica carregava a marca das grandes formas romanescas do século XIX – É interessante ressaltar que, além desta forte influência inicial, a literatura ainda se mostra muito presente no cinema ao inspirar assuntos, histórias e idéias dos filmes, principalmente, quando estes são baseados em obras literárias. Na própria filmografia de Tim Burton temos exemplos de adaptações de romances e contos: “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish, 2003) teve seu roteiro baseado em um romance de Daniel Wallace; “Edward Mãos de Tesoura” (Edward Scissorhands, 1990) em um conto escrito pelo próprio Burton; “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (Charlie and The Chocolate Factory, 2005) é originalmente um livro infantil de Roald Dahl; e “A Noiva- Cadáver” (Tim Burton’s Corpse Bride, 2005) foi baseado em um conto popular russo. Sobre a narrativa clássica, então, foi Griffith que, utilizando-se de critérios literários, introduziu no cinema a idéia de uma
  • 38. 38 continuidade, definiu novos parâmetros como a decupagem, a montagem, a escala de planos e as relações entre o espaço, cenário, narrativa e som. A continuidade clássica gerou a constante homogeneização do significante visual (cenários, iluminação) e do significado narrativo (as relações legendas – imagens, o desempenho dos atores, a unidade do roteiro, a história, o perfil dramático e a tonalidade de conjunto), depois do significante audiovisual (sincronismo da imagem e dos sons – palavras, ruídos, música). A introdução da linearidade – modo pelo qual um plano se vincula ao plano seguinte – despertou também o vínculo ao movimento (no gesto de um personagem ou no movimento de um veículo), o vínculo ao olhar (um personagem olha / enxerga-se o que ele enxerga) e o vínculo ao som (ouve-se um ruído em um plano, identifica-se sua fonte no plano seguinte). Todas essas técnicas criadas pelo cinema clássico têm um único objetivo: fazer com que o espectador se esqueça do caráter descontínuo do significante fílmico, constituído de imagens coladas umas sobre as outras. São elas as responsáveis por proporcionar a sensação de realidade experimentada pelo espectador que assiste ao filme com a impressão de estar participando de eventos reais e testemunhando partes da vida de alguém. É esta característica hipnótica e ilusionista do cinema que é responsável por envolver o espectador no ambiente fílmico e fazê-lo esquecer-se de que o que está sendo projetado foi na verdade criado, pensado, cortado e novamente remontado antes de chegar à tela. Este invólucro que faz o espectador se perder nesse mundo fictício remete a outra qualidade do cinema: a magia. No surgimento do meio cinematográfico, ele possuía basicamente duas expressões: a documentação da realidade ou o ilusionismo. Esse segundo é o que nos interessa ao falar de Tim Burton. Em
  • 39. 39
  • 40. 40
  • 41. 41 2001, Burton disse: “parte do que eu gosto sobre o meio cinema é que existe algo místico nele. Quando o cinema apareceu pela primeira vez, as pessoas não sabiam como era feito e isso dava uma qualidade mágica aos filmes” (Informação verbal)8. A experimentação visual e exploração dos efeitos ilusórios possibilitados pelo cinema foram inicialmente explorados pelo mágico Georges Mèliés que, após a primeira exibição cinematográfica9, demonstrou interesse pela nova técnica e, através de experimentações, passou a produzir filmes que, além de registros documentais de seus números de magia, também exibiam técnicas de efeitos especiais. Seu filme mais famoso, “Viagem à Lua” (Voyage dans la lune, 1902), foi a primeira ficção científica da história do cinema e utilizava elementos fantásticos e lúdicos, através dos efeitos especiais descobertos e desenvolvidos por ele. Neste sentido, o trabalho de Burton se aproxima especialmente com o trabalho do mágico francês: da mesma forma que Mèliés seduzia seu público com elementos de magia, Burton exibe um reino de fantasia. Segundo Pommer (2003), “a disponibilidade que o espectador manifesta de ser enganado decorre do fato de que ele entra num cinema (...) para recuperar o contato com um certo estado de coisas que nele produza emoções”. É sob essa atmosfera da ilusão que Burton envolve seus espectadores e busca a produção de emoções mostrando em seus filmes o que na vida real seria impossível e, misturando acontecimentos prováveis com elementos absurdos, constrói um mundo de significados reconhecíveis e criaturas inusitadas. Além disso, é importante dizer que Burton se encontra diversas vezes com a história do cinema, apropriando-se e recriando cenas filmadas por diretores que vieram antes dele. Em “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (Charlie and the Chocolate 8 Fala de Tim Burton extraída de “Planeta dos Macacos: Comentários do Diretor” de 2001. 9 A primeira exposição cinematográfica foi feita pelos irmãos Lumiére, em 8 de dezembro de 1895, na França. Ela consistia em nada além de cenas do cotidiano de caráter documental.
  • 42. 42 Factory, 2005), por exemplo, é possível perceber uma referência direta ao clássico filme “2001: Uma Odisséia no Espaço” (2001: A Space Odyssey, 1968). A seqüência dentro da sala de TV da fábrica, além de exibir algumas cenas do filme de Stanley Kubrick, apresenta o chocolate da mesma forma que o importante monólito negro do filme de 1968. A trilha sonora também vale ser mencionada, já que, na seqüência, é a mesma do clássico de Kubrick. Outro exemplo é “Marte Ataca!” (Mars Attacks!, 1996), no qual o diretor empenha-se em homenagear os filmes que fizeram parte de sua infância. Além de uma cena cômica dos alienígenas assistindo ao “Godzilla” (Gojira, 1954) na TV, o filme é preenchido por pequenos detalhes que lembram alguns dos filmes lado b que Burton destaca como seus favoritos na juventude (como já foi mencionado no capítulo I): os humanos, ao serem atingidos pelas armas dos marcianos, transformam-se em esqueletos agonizantes que se movimentam lembrando os soldados mostrados em “Jasão e o Velo de Ouro” (Jason and the Argonauts, 1963) e as naves dos extraterrestres são uma versão um pouco mais atualizada das naves apresentadas por Ed Wood no filme “Plan 9 From Outer Space” de 1959. Poderíamos também considerar como uma referência a “The Brain that Wouldn’t Die” de 1962, a seqüência na nave alienígena em que Nathalie (Sarah Jessica Parker) e Kessler (Pierce Brosnan) são submetidos a experiências e perdem o corpo, sendo que suas cabeças continuam com funcionamento normal. Ao colocar todas estas homenagens em seus filmes, Burton, além de se mostrar conhecedor do meio em que trabalha, ainda demonstra um respeito à memória do cinema.
  • 43. 43 A marca de um autor Tim Burton deixa marcas que viabilizam a identificação de sua presença em cada um de seus filmes. Diferente de Hitchcock ou Salvador Dalí, Burton não aparece literalmente em seus trabalhos, na representação de sua própria imagem, mas ao assistirmos seus filmes é facilmente apontado como o realizador. Um conjunto de características estéticas e narrativas, que percorre toda a sua obra, cria o que poderíamos chamar de assinatura do diretor. É por este conjunto que os termos “gesto autoral” e “autor de cinema” foram remetidos a Burton neste estudo, expressões originárias do que é chamado de cinema autoral. “O cinema de autor é uma expressão artística que contém elementos inequívocos de seu criador” (COVALESKI, 2003:49). Segundo Covaleski (2003), o conceito de autor de cinema é mais complexo e profundo do que em outras formas artísticas. A variedade de linguagens utilizadas pelo cinema (imagem, som, movimento etc) exige que o cineasta seja aquele que se mostra capaz de inter- relacionar e dialogar com diferentes formas de expressão. Além disso, poderíamos ainda apontar que o cinema exige que o cineasta dependa do trabalho de outros indivíduos para a produção da sua obra, como por exemplo, o desempenho do ator, a qualidade profissional do editor, a habilidade do cameraman, entre outros que compõem o conjunto de pessoas que acabam por interferir na produção do filme. Porém, estes sujeitos sempre seguem a regência do diretor do filme, trabalham sempre de acordo com a visão do cineasta.
  • 44. 44 No início da década de 1950, surgiu a iniciativa, até então inédita, de se pensar o cinema. Um grupo de pensadores e críticos de cinema, reunidos por André Bazin e que ficaram conhecidos como Jovens Turcos10, criou uma nova filosofia cinematográfica que foi chamada de a política de autores. A política propunha que o realizador de cinema autor deveria inserir no seu filme uma série de características específicas e pessoais que possibilitassem o reconhecimento da assinatura da obra. Dentro desta ideologia, o cinema feito por um autêntico autor é aquele cuja obra possui um tom, uma unicidade que se estende, inclusive, à própria vida do criador. François Truffaut, um dos críticos da revista Cahiers du Cinéma, vislumbrava um cinema feito por diretores que chegavam ao auge da pessoalidade no filme, colocando na tela referências e assuntos que refletissem ao máximo a própria intimidade. Em 1957, ele declara em seu “Les films de ma vie” (Os filmes da minha vida) que “o filme de amanhã me parece portanto como ainda mais pessoal que um romance individual e autobiográfico, como uma confissão ou como um diário íntimo. Os jovens cineastas se expressarão na primeira pessoa.” (TRUFFAUT apud BERNARDET, 1994:21). Sobre isto, Bernardet diz: “Esse é o ponto crucial da política: autor é aquele que diz ‘eu’.” (BERNARDET, 1994:21). Sob esta perspectiva que afirma que o filme deve ser tão pessoal, cria-se, então, uma íntima relação entre o autor e sua obra que possibilita a identificação entre um e o outro, tornando- os inseparáveis. Desta maneira, a obra se torna uma assinatura do autor (e vice-versa) que, segundo Bernardet (1994), pode ser percebida através de duas linguagens, chamadas de matriz e mise en scène. O cineasta autor apresenta seu gesto de forma evolutiva, 10 Jovens Turcos: Conjunto de jovens críticos que escreviam para a revista francesa “Cahiers du Cinéma” dos anos 50, “que pouco depois se tornariam realizadores famosos, como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmes, Jacques Rivette, Jean Doniol-Valcroze, expoentes da Nouvelle Vague.” O redator da revista era André Bazin. (Bernardet, 1994, p. 9,10)
  • 45. 45 desenvolvendo sua marca gradualmente em sua matriz e mise en scène, e sua assinatura quase nunca está clara no primeiro filme – havendo exceções, como é o caso do diretor Orson Welles, que conquistou o título de autor já em sua primeira obra: o aclamado “Cidadão Kane” (Citizen Kane, 1941). A matriz pode ser concebida como um determinado tema, moral ou assunto que percorre toda a obra – uma espécie de linha repetitiva que se apresenta em cada peça como uma obsessão íntima, e de certa forma inconsciente, de seu criador. “Matriz é representada por repetições a serem identificadas em um conjunto de filmes de um mesmo cineasta” (TAMARU, 2004:78). Ela é um argumento usado sempre pelo autor, mesmo que, explorado de formas diferentes. A matriz deve ser entendida como algo que está presente no autor desde o início de sua carreira cinematográfica, ela é algo que o artista precisa expressar, necessita dizer, mas não tem consciência do que é exatamente. Portanto, toda a sua obra caminha no sentido de descobri-la e é este processo culminará na maturidade construtiva de um estilo único e pessoal, o que Bernardet (1994) chama de cristalização. A plenitude da realização da matriz permite sua percepção até mesmo em obras anteriores a essa cristalização, gerando uma espécie de panorama didático das etapas de todo o processo de desenvolvimento da linguagem do cineasta. O encontro da matriz pelo cineasta e pelo crítico se dá por caminhos paralelos. O autor vai buscando a matriz até o momento da cristalização; o crítico segue as pegadas do autor, chegando, depois dele, à percepção dessa cristalização. A partir do momento em que a matriz é encontrada, ela passa, para o crítico, a ter um efeito retrospectivo (...) que vai permitir dizer que já estava presente, mas ainda, digamos, fora de foco porque o cineasta se buscava. (BERNARDET, 1994:34,35.)
  • 46. 46 Para compreender a matriz burtonesca é necessário um estudo e uma análise mais detalhada da obra de Tim Burton, o que será feito no próximo capítulo deste projeto. Entretanto, ao assistirmos seus filmes, já podemos apontar diversos elementos que fazem parte de um conjunto de repetições que figuram as narrativas do diretor. Analisando o contexto de todas as histórias apresentadas por Burton, a sua produção revela uma seqüência de elementos que retratam uma visão pura e livre de preconceitos a respeito dos acontecimentos. Seus heróis são sempre sujeitos diferentes que se encontram deslocados em um espaço no qual, muitas vezes, se vêem obrigados a habitar. Através dessa inocência do olhar e da percepção do mundo, Burton conta histórias que transparecem uma visão infantil para acontecimentos de gravidade psicológica adulta, sendo esta sempre representada em seus protagonistas e heróis. A infantilidade, aqui colocada, não se refere a histórias contadas para crianças, ao contrário, os filmes de Burton não se configuram como infantis. Por apresentar imagens sombrias, escuras e algumas vezes assustadoras, Burton traz para os seus filmes um clima de seriedade e maturidade em sua estética. Porém, após uma análise mais cuidadosa, podem-se detectar histórias que demonstram elementos do imaginário infantil: a liberdade pueril em aceitar novidades e diferenças, além da fascinação e a curiosidade por entender o novo. Muitas vezes, as crianças nas histórias são dotadas de maior racionalidade que os próprios adultos, ressaltando, assim, a pureza e inocência existente em seus excluídos. Essa maneira pura e aberta de ver elementos bizarros destaca o posicionamento em relação aos monstros nos filmes, que são sempre tratados com mais justiça em comparação aos contos infantis. Burton parece empenhado em perseguir o ideal de mostrar o outro lado da história. No intuito de ilustrar a
  • 47. 47 hostilidade com que a sociedade ocidental cria e trata seus medos, e como ela transforma o estranho em vilão, Burton – utilizando-se sempre do humor sarcástico e afiado – inverte os papéis e transforma os monstros em mocinhos. Ele nos mostra o monstro como uma vítima de uma série de desventuras, acontecimentos que fogem ao seu controle, que o transformaram em uma figura desajustada e fizeram com que ele seja incapaz de se adaptar aos padrões construídos no contexto social em que vive. O Edward de “Edward, Mãos de Tesoura” (Edward Scissorhands, 1990), por exemplo, é resultado das experiências de um cientista que morre antes de terminar a sua obra, deixando o personagem incompleto com tesouras no lugar de mãos. Em um conto infantil tradicional, Edward seria um excelente candidato a vilão de escritores como os irmãos Grimm ou Hans Christian Andersen, porém Burton não o coloca como vilão, mas sim como a vítima. Neste caso, a narrativa do filme de aproxima do monstro criado e manipulado pelo Dr. Frankenstein no livro de Mary Shelley lançado em 1831 – o personagem Edward, assim como o personagem de Shelley, se torna vítima da fúria dos nativos do local onde a história é narrada. Vale lembrar que alguns anos antes, em 1984, o clássico de Shelley também foi referência para Burton na criação do curta-metragem “Frankenweenie” (1984). O filme faz uma releitura da história do livro, transformando o monstro da autora em um cão e o cientista em um garoto que faz seu animal de estimação retornar à vida depois de um atropelamento. Sob o contexto que explora a inversão de papéis, alguns assuntos, considerados tabus, também são constantemente tratados pelo cineasta. A morte, por exemplo, se apresenta em todos os filmes de Burton. Algumas vezes retratada com apelo emocional – como em “Batman” (Batman, 1989) e “Peixe-Grande e
  • 48. 48 Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish, 2003) – e, outras vezes, como algo trivial e cômico – como em “Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem” (Beetlejuice, 1988) e “Marte Ataca!” (Mars Attacks!, 1996). Outro tema recorrente é o conflito entre pais e filhos. Neste sentido, Burton explora de diversas formas as influências do relacionamento familiar na estrutura psicológica do indivíduo sendo que, em todos os seus filmes, um de seus excluídos possui traumas ou relações problemáticas com pelo menos um dos progenitores. Segundo Sá (1974), em todo filme é posto em pauta uma ou algumas problemáticas humanas – o bem, o mal, o amor, a morte – o que varia de acordo com as perspectiva de quem os realiza, com a matriz de seu autor. Muitos deles buscam fazer refletir sobre a condição humana, como no caso de Burton. Exibindo sua matriz em um mundo fantástico e diferente, Tim Burton se preocupa em retratar um mundo recheado de conceitos próprios e livre das limitações da realidade concreta, mas mantendo uma similaridade com questões naturais da realidade de cada espectador de cinema. Os ambientes e os personagens das narrativas de Burton são uma espécie de caricatura, uma mistura inusitada estereótipos, mesclados com vários aspectos cotidianos do mundo real. Os contextos e personagens são alimentados por características improváveis sob a análise científica. Fico surpreso com as pessoas que são muito práticas ou bitoladas. “O que é real e o que não é?”. Se você observar a vida, vai ver coisas estranhas. Quem imaginaria que Arnold Schwarzenegger (ator) seria Governador da Califórnia? Isso é real ou não é? Realidade é um mundo estranho. É o que eu adoro nos contos populares e nos contos de fadas. Você acha mais realidade neles se isso o atingir em um nível emocional. Você vê as notícias e tudo
  • 49. 49 parece surreal e irreal. Sempre considerei a vida uma mistura dessas coisas. (BURTON, Informação verbal)11 É essa mistura de realidade com fantasia que forma um conjunto cinematográfico que apresenta questões humanas em uma visão maravilhosa. A variação entre estes elementos possíveis e fantásticos se torna evidente nas imagens em toda a sua obra. E é justamente essa evidência que nos leva a refletir sobre outra característica importante para um realizador do “cinema de autor”, a mise en scène. Em uma interpretação simples e literal, a mise en scène é, precisamente, a forma colocada em cena. Ela é a maneira que o autor de cinema encontrou para expressar, demonstrar fatos e produzir sensações através da tela, ela constitui toda a linguagem visual utilizada. A mise en scène e a matriz devem ser vistas como dois elementos que se complementam, sendo impossível que uma aconteça sem a outra. A mise en scène torna possível a expressão da matriz, e vice-versa. É necessário extrapolar os limites do conhecimento técnico e material em prol da percepção do importante papel que o cinema possui como mecanismo de produção de sentido, portanto, a valorização da mise en scène não deve se basear em argumentos técnicos, e sim nos significados agregados à obra por uma determinada técnica, ou seja, o objetivo pelo qual uma habilidade técnica foi usada e seus efeitos no produto final. Os planos, os cortes, os cenários, os ângulos, as expressões, as cores são as partes que em conjunto formam a mise en scène. As cenas coloridas, quase que como pintadas à mão, tão freqüentes nos filmes de Tim Burton, chamam atenção ao serem contrastadas com os elementos góticos amplamente explorados por ele – estes de qualidade obscura e enevoada – destacando, 11 Fala de Tim Burton extraída de “Peixe-Grande e Suas Histórias Maravilhosas: Comentários do Diretor” de 2003, em entrevista a Maxwell Bridiay.
  • 50. 50 mais uma vez, a diferença e apoiando a sua matriz. A formação de seus monstros e as expressões de seus excluídos possui uma espécie de essência visual semelhante, segundo Rick Baker, são personagens “pálidos, de pele muito clara, com grandes olheiras e cabelos arrepiados” (Informação verbal)12. No geral, faces que expressam uma idéia de desamparo, inocência e um ar melancólico. Diversos exemplos poderiam ser apresentados para caracterizar a mise en scène de Burton, pois em toda a sua obra é possível encontrar texturas, cores, técnicas e elementos estéticos que se tornaram recorrentes, elementos que ganham significados variados em cada contexto complementando o valor expressivo de cada cena e compõem a idéia matricial. Mesmo em filmes em preto-e-branco, como “Ed Wood” (Ed Wood, 1994), a animação “Vincent” (Vincent, 1982) ou “Frankenweenie” (Frankenweenie, 1984), as tonalidades usadas, os cenários e o figurino formam o estranho característico do universo imaginário criado por Burton. A composição da mise en scène será melhor e mais amplamente explorada no capítulo 6 deste projeto. No momento, iremos apenas destacar algumas características curiosas que são repetidas constantemente nas imagens burtonescas. Algumas delas podem caracterizar-se como uma fixação visual do autor, quase como uma brincadeira do cineasta: estampas em espiral, pontos e listras aparecem, mesmo que apenas por segundos, em todos os filmes; espantalhos e esqueletos sempre encontram espaço nas histórias; geringonças, maquinários de funcionamento arcaico, são freqüentemente apresentados. A união da mise en scène com a matriz compõe as diversas realidades construídas por Burton que, por mais fantasiosas ou bizarras que sejam, valorizam aspectos humanos e criam uma impressão de real dentro de uma constante variação entre 12 Fala de Rick Baker extraída de “Planeta dos Macacos: O ‘Making of’ dos Macacos – Cara de Macaco” de 2001.
  • 51. 51
  • 52. 52
  • 53. 53 possíveis realidades e extremos absurdos. Elas se deslocam a todo o momento frente aos olhos do espectador, e toda a fascinação estética provocada por esse fluxo de energia criativa conta com o contrato da ficção, ou seja, a suspensão da descrença por parte do espectador. A construção dessa realidade ficcional percorre um número infinito de signos do cotidiano criando a afinidade do espectador com as questões apresentadas. Estas novas realidades trazem a assinatura de sua produção artística no ambiente cinematográfico. A arte das imagens em movimento, mais do que a fotografia, o teatro ou a pintura, transmite o sentimento de assistir diretamente a um espetáculo quase real. Segundo Metz (1972), este “ar de realidade” atua diretamente sobre o cerne da percepção humana. A impressão de realidade do cinema, fundamentada na idéia do movimento, surge como um elemento capaz de gerar credibilidade especial a esse tipo de arte. Uma das razões de não gostar de analisar muito os filmes é deixar as pessoas decidirem o que quiserem sobre eles. Bem, quando eu assistia Frankenstein, eu via como se fosse sobre Burbank (cidade natal), os aldeões furiosos eram os meus vizinhos. Todos vêem filmes de maneiras diferentes, eu gosto disso. As pessoas ficam muito literais na vida e isso é o que eu tento reagir contra. Deixe as pessoas pensarem coisas da maneira que querem, se eles acreditam em algo, deixe-os. Eu gosto de saber o que as pessoas pensam (sobre os filmes) porque isso mostra muito sobre quem elas são e de onde elas vêm. (BURTON, Informação verbal)13 O estranho mundo de Tim Burton é a oscilação entre uma representação de um mundo possível com extremos insólitos, cujos elementos formadores são: um estranho, representado em 13 Fala de Tim Burton extraída de “Planeta dos Macacos: Comentários do Diretor” de 2001.
  • 54. 54 um personagem, no ambiente ou em um fenômeno, cercado de um contexto familiar e identificável que confunde o espectador a ponto de se envolver naquela fantasia como que em uma nova realidade. Apresentado em imagens contrastantes de clareza e obscuridade. Portanto, Tim Burton é um autor de cinema, o autor de um estranho mundo cinematográfico ligado às questões do imaginário humano e, ao mesmo tempo, à realidade do mundo. Como Burton mesmo afirma, é mais fácil encontrar realidade no mundo dos contos de fadas do que nas notícias de jornais, desde que este conto o atinja pelo emocional. Assim, esses elementos visuais e narrativos que se repetem e se complementam, constroem e solidificam a autoria de Tim Burton, enriquecendo seu trabalho com características únicas e exclusivas. Apontar quais são esses traços, como eles se apresentam e quais são seus objetivos, são as metas seguintes deste estudo. Desta forma, definiremos, nos próximos capítulos, alguns dos principais componentes da obra de Tim Burton, porém, sem nenhuma pretensão de abordar plenamente todos seus aspectos e possibilidades, trabalho que se mostraria impossível para este projeto experimental devido à magnitude da obra do cineasta.
  • 55. 55 Dissolução do sujo Após definir Tim Burton como um realizador de cinema autoral, é preciso esclarecer alguns aspectos do que está sendo chamado de autoria na obra burtonesca. Como já foi dito no capítulo anterior, de acordo com Bernardet (1994), as duas facetas mais importantes a serem observadas no cinema de autor são a matriz e a mise en scène, sendo que a primeira, essencialmente subjetiva, se realiza na segunda, essencialmente objetiva. Portanto, é correto afirmar que uma não existe sem a outra. No entanto, optamos aqui por separá-las em dois capítulos para que seja mais fácil a exposição cada uma delas, mas tendo em mente que, assim como nos filmes, ambas necessitam estar juntas no processo de leitura para que sejam completamente compreendidas. O presente capítulo buscará o que compõe a matriz de Burton – sendo que, para isso, nos colocaremos no papel de críticos e seguiremos os passos do autor em busca da identificação do seu tema recorrente – de modo que, no próximo capítulo, possamos demonstrar como as descobertas aqui feitas se dão na estética cinematográfica. Tendo definido que a matriz é o argumento que se repete na obra de um autor, deve-se considerar que ela é desenvolvida de acordo com o amadurecimento artístico da expressão do mesmo, sendo parte de um processo que acontece de forma natural e inconsciente. Por conseqüência, a matriz não é exposta com muita clareza no primeiro filme do cineasta e, na maioria dos casos, sua apresentação acontece gradualmente e aparece com o avançar dos anos na carreira de um diretor, provando que ela é, de fato, uma evolução, um alvo que o artista deve alcançar. Por este
  • 56. 56 motivo, esta análise seguirá a seqüência cronológica da obra de Burton para demonstrar o processo de evolução da sua matriz. O trabalho para identificá-la “é como se depusessem os filmes uns sobre os outros para verificar o que há de coincidente neles” (TAMARU, 2004:78). Segundo Maxwell Bridiay (Informação verbal)14, Tim Burton apresenta uma predileção pelo estranho, “pelo forasteiro, pelo desajustado e pelo não compreendido”. Tal predileção será a linha guia na busca pela matriz burtonesca, analisando a forma na qual esta estranheza se apresentou no desenvolvimento de sua obra. Bauman (1998) diz que o estranho é aquele que vem destacar, em uma sociedade, a fragilidade dos códigos éticos, padrões morais e comportamentais criados pela mesma. Os princípios que guiam a criação destes preceitos objetivam garantir a ordem e a pureza. Baseando-se em Freud, Bauman (1998) explica que o ideal da civilização percorre três conceitos que se relacionam diretamente: ordem, pureza e beleza. Este último, também chamado de harmonia, é a conseqüência dos dois primeiros, que, por sua vez, não existem separadamente. Com o propósito de atingir estes três ideais, uma sociedade cria padrões, regras e categorias para os indivíduos que servem de guia para que os inseridos naquele contexto reajam às situações de forma planejada e esperada. A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem 14 Fala de Maxwell Bridiay extraída de entrevista feira com Tim Burton em “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas: Comentários do Diretor” de 2003.
  • 57. 57 um relacionamento com “outras pessoas” previstas sem atenção ou reflexão particular. (GOFFMAN, 1988:11,12) Para Simmel (1983), esta regulamentação acontece a partir de um código de comportamento que nasce como formação natural do grupo, são inicialmente costumes que produzem morais e, em alguns casos, leis. Esta padronização do comportamento limita a liberdade e variedade de atitudes individuais, o que garante um controle maior sobre os acontecimentos, além de um grau de previsibilidade das ações. Uma vez que se espera que todos sigam formas pré-definidas para a interação do grupo, é criada uma estabilidade nas relações, ou seja, um invólucro de segurança em torno do ambiente social. “Ordem significa um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as possibilidades dos acontecimentos não sejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita” (BAUMAN, 1998:15). Em uma sociedade ocidental, por exemplo, são alguns referenciais como não roubar, não matar e não trair, que definem uma ética a ser seguida. Esta regulamentação determina como as coisas devem ser feitas e onde devem ser dispostas. Quando é estabelecido o posicionamento adequado de cada componente do sistema, conclui-se que, caso um indivíduo se encontre em qualquer lugar diferente do que lhe foi convencionado, ele será, automaticamente, contrário à ordem – ou seja, um desequilíbrio na harmonia social. Ordem é uma situação na qual “cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro” (BAUMAN, 1998:14). Sem ordem, se torna impossível conceber o ideal da pureza, pois esta depende diretamente de que as coisas estejam em seus lugares justos. Quando um indivíduo causa um desequilíbrio na ordem, conseqüentemente, produz uma impureza.
  • 58. 58 Não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em “sujas”, mas tão-somente sua localização e, mais precisamente, sua localização na ordem de coisas idealizada pelos que procuram a pureza. As coisas que são “sujas” num contexto podem tornar-se puras exatamente por serem colocadas num outro lugar – e vice-versa. (BAUMAN, 1998 p.14) Partindo do princípio de que sujeira refere-se a todas as coisas que estão onde não deveriam – por exemplo, café em um copo está onde pertence, mas quando cai em uma camisa é sujeira – uma impureza pode facilmente se tornar limpa quando colocada em seu lugar designado. Entretanto, alguns indivíduos não possuem um lugar pré-definido, eles são sujeiras sociais em qualquer contexto que se encontrem. O sujeito que não segue o mapa social, ou não faz parte dele, é visto como uma sujeira (impureza) que ameaça o ideal traçado. Uma sociedade pura, ou seja, livre de sujeiras, é aquela que contém apenas o que lhe foi planejado: sujeitos que compartilhem os mesmos valores, sigam as regras e se comportem como foi definido. Aquele que se difere, o “sujo” – também chamado de estranho, estrangeiro, forasteiro, deslocado entre outros nomes – é, necessariamente, peculiar, inusitado e diferente no ambiente e, por esse motivo, destoa do resto grupo. O estranho social se manifesta no momento em que não compreende ou não compartilha do mesmo código de valores implícitos em determinada sociedade, sejam eles morais, comportamentais ou, até mesmo, visuais. Estas características do estranho o transformam em algo que põe em risco, mesmo que involuntariamente, a validade das regras. O deslocado realça o cerceamento da liberdade feito em busca dos ideais da pureza e da ordem. (...) A chegada de um estranho tem o impacto de um terremoto. (...) O estranho despedaça a rocha sobre a qual
  • 59. 59 repousa a segurança da vida diária. Ele vem de longe; não partilha as suposições locais – e, desse modo, “torna-se essencialmente o homem que deve colocar em questão quase tudo o que parece ser inquestionável para os membros do grupo abordado”. (BAUMAN, 1998, p. 19) É essa estranheza que Tim Burton aborda em sua obra: o diferente incompreendido que assim o é por possuir outros valores ou parâmetros, e as reações que ele causa em uma sociedade em busca de harmonia. O filme “As Grandes Aventuras de Pee-Wee” (Pee-Wee’s Big Adventure, 1985) – primeiro longa-metragem de Burton – conta a história de um garoto chamado Pee-Wee, cuja única preocupação na vida é sua bicicleta, que é roubada no início da narrativa. Para recuperá-la, ele quebra diversas regras como, por exemplo, invadir um estúdio de Hollywood para roubá-la de volta. O personagem vive em um mundo de sonhos e todas as pessoas que cruzam seu caminho na jornada de busca pela adorada bicicleta, parecem elementos tirados de folclore ou contos de fadas. No final, ele ganha popularidade e aceitação social quando o estúdio compra a história de sua aventura e a transforma em um filme. Já em “Beetlejuice: Os Fantasmas Se Divertem” (1988), o estranho domina a tela através de uma mistura entre o além e o mundo dos vivos. O casal de protagonistas, Adam e Bárbara, fica preso em sua própria casa após falecer em um acidente de carro, e o enredo consiste em mostrar a disputa territorial travada pelos mortos com os novos proprietários do imóvel. Segundo as regras da sociedade retratada no filme, aquela casa não pertence mais aos finados proprietários, já que, ali, os mortos não têm direito a posses materiais. Na tentativa de recuperarem sua casa e expulsarem os vivos do local, Adam e Bárbara recorrem ao estranho exorcista de vivos chamado Besouro-Suco (Betelgeuse). Ele é excluído do mundo dos mortos por não possuir escrúpulos
  • 60. 60 e burlar a burocracia existente no além burtonesco. No fim da história, os mortos e os novos donos entram em acordo para se livrarem de Betelgeuse e proteger Lydia, a filha do casal vivo, que se vê presa às garras do exorcista. Analisemos mais detalhadamente o exemplo de “Edward Mãos de Tesoura” de 1990, um dos primeiros estranhos de Burton. Na história, o protagonista Edward (Johnny Depp) esteve, durante toda sua existência, enclausurado em uma mansão, tendo gozado exclusivamente da companhia do homem que o construiu (a quem chama de pai). Seu criador é a única referência de mundo e de convivência em sociedade que ele possui, tendo sido seu único tutor no que diz respeito ao ensino de valores e formas de conduta, tais como regras de etiqueta, cultura geral e formas de interação em ocasiões sociais. Porém, apesar destas aulas, Edward nunca tinha tido a chance de colocá- las em prática, até que é levado ao convívio dos moradores de Suburbia. Segundo a descrição de um psicólogo no filme, “os anos passados em isolamento não o [Edward] equiparam com as ferramentas necessárias para distinguir o certo do errado. Ele não teve contexto, viveu sem orientação nenhuma” (Informação verbal)15. Sua chegada a Suburbia chama a atenção dos habitantes que o avaliam através de suas habilidades sociais e o aprovam. A princípio, ele não representa nenhum perigo à ordem local, já que demonstra um certo traquejo social e nenhuma de suas atitudes atenta contra os ideais daquela comunidade. Fisicamente, ele foi construído, é uma máquina com aparência humana e tesouras no lugar de mãos, apesar disso, a aparência não configura um elemento relevante àquela comunidade. No decorrer da narrativa, apesar dos esforços para se adaptar ao funcionamento daquela sociedade, algumas características de 15 Trecho extraído do diálogo entre um psicólogo e um policial sobre Edward, no filme “Edward Mãos de Tesoura” de 1990.
  • 61. 61 Edward começam a se mostrar como falhas ‘morais’. Ele, por exemplo, não possui renda, nunca trabalhou e não é registrado – não possui documentos como carteira de identificação ou registro social – o que o impede de se inserir economicamente naquela comunidade. A posse de bens materiais, ali, é um valor importante, ela faz parte do perfil do indivíduo planejado para o grupo e deve ser conquistada através da remuneração pelo trabalho. Em certo momento da história, Edward arromba uma casa, o que leva os moradores (erroneamente) a crerem que a intenção do personagem era roubar – ou seja, adquirir posse de coisas conquistadas pelo trabalho de outros. Este ato representa um atentado a um valor social e um abalo à segurança, portanto, precisa ser extirpado para que aquele grupo seja puro e asséptico. Instala-se, então, um desequilíbrio na ordem de Suburbia e, como nos mostra a teoria de Bauman, o responsável por este desequilíbrio deve ser expurgado em prol da reinstalação da assepsia social. Edward, a partir deste momento, passa a ser rejeitado pelo grupo e tomado pelos habitantes como aquele que representa uma sujeira: o estranho. Uma seqüência de fatos ocorridos após o incidente da invasão potencializa a idéia da sujeira em Edward e, a partir de então, todos os seus atos são interpretados como nocivos, como se seu único objetivo ali fosse ferir a ordem. Um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. Ele possui um estigma, uma característica diferente da que [nós, normais] havíamos previsto. (GOFFMAN, 1988:14) Edward, assim, estigmatizado se torna impróprio para o convívio naquela comunidade e deve ser removido para que a
  • 62. 62 normalidade seja restaurada. Como conseqüência, a população se torna agressiva e exige uma ação policial (o poder que rege as regras sociais e garante a ordem) contra Edward. Na seqüência final do filme, sob a justificativa de defesa de sua própria segurança, todos os moradores da região perseguem Edward de volta ao seu refúgio inicial e só retornam à sua rotina quando são levados a crer em sua morte. Edward pode ser definido como um típico estranho moderno. Mesmo que a referência ao estado – representado na polícia – apareça poucas vezes, a história de “Edward Mãos de Tesoura” (1990) demonstra reações tomadas pela própria sociedade em defesa da ordem que seriam definidas como a estratégia da exclusão. Tal estratégia se refere ao processo de retirar os estranhos do convívio administrável, afastá-los, “bani-los dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com os do lado de dentro” (BAUMAN, 1998:29). Algumas vezes, quando esse estranho não pode ser apenas afastado ou assimilado, é preciso destruí-lo fisicamente. A necessidade de excluir Edward daquele convívio justifica a atitude agressiva dos moradores. E, enfim, a tranqüilidade regressa quando são informados que a ameaça deixou de existir. A forma que Edward é exposto na história faz com que o espectador se coloque em seu lugar e deixe de vê-lo como estranho, esquecendo tanto sua falta de referência quanto sua aparência bizarra. Ele é induzido a ver o estranho como vítima e os moradores como ameaças, invertendo os papéis do que seria natural na visão social. Em uma das cenas finais do filme, Peggy diz a sua filha: Sabe, quando trouxe o Edward para viver conosco eu realmente não pensei direito. Não pensei nas conseqüências para ele, ou para nós, ou a vizinhança. E agora penso que talvez seja melhor que ele se vá. Volte
  • 63. 63 para lá. Pelo menos lá ele estará a salvo. E nós voltaríamos à vida normal. (em Edward Mãos de Tesoura, 1990)16 Quando Peggy afirma que Edward precisa estar longe para sua própria segurança, ela coloca em jogo a própria idéia de sujeira em Edward mostrando a possibilidade de que, para o estranho, toda aquela sociedade seja suja, ou, até mesmo, que o estranho não seja tão sujo assim. Ele é apresentado com sentimentos puros, inocência e correndo perigo por causa da impureza dos moradores de Suburbia, fazendo crer que estes que possuem valores distorcidos e não compreendem o personagem. Apresentado sob um olhar invertido, Edward, para o espectador, é aquele que possui valores reais e padrões que deveriam ser valorizados em uma sociedade, transformando os habitantes em vilões precipitados e ameaçadores. Apesar disso, ele ainda é facilmente apontado como estranho na narrativa e é, primordialmente, uma peça fora do lugar. Percorrendo toda a obra de Burton ainda é possível encontrar outros estranhos como, por exemplo, um herói que, mesmo sendo um sujeito inserido socialmente, se transformou em um justiceiro para defender a segurança já que os órgãos competentes não foram capazes de garanti-la (“Batman“ de 1989 e “Batman, o Retorno”, 1992). Assim, ele elimina os estranhos da sociedade, mas, ao mesmo tempo, se transforma em um. Em todos os filmes de Burton, é possível identificar um estranho, no entanto, Edward é definitivamente o estranho mais óbvio em sua obra, caricato e excluído. Portanto, se definíssemos a estranheza como a matriz de Burton, poderíamos concluir que “Edward Mãos de Tesoura” (1990) é a cristalização da sua matriz. Entretanto, o processo da 16 Trecho extraído do diálogo entre a personagem Peggy, interpretada por Dianne Wiest, e sua filha Kim, interpretada por Winona Ryder, no filme “Edward Mãos de Tesoura” de 1990.
  • 64. 64 matriz burtonesca não se resume na apresentação do estranho social e sim, na dissolução deste estranho dentro de um conjunto social. Ela é baseada no abrandamento do desajustado: ele é apresentado claramente nos seus primeiros filmes, mas, de forma gradual, é diluído, sendo cada vez mais difícil identificá-lo no contexto narrativo. Esse processo é ilustrado pela inversão de papéis, colocando os estranhos como heróis nas narrativas, mostrando as impurezas das sociedades apresentadas e amenizando a obviedade visual dos estranhos. Edward, portanto, é parte do início do processo matricial em Burton. O filme seguinte de Tim Burton, “Ed Wood” (1994), destoa um pouco do conjunto da obra burtonesca, pois é o único longa- metragem filmado em preto-e-branco e é uma história biográfica – com personagens reais – que, apesar de suas diferenças, também colabora no processo de reconhecimento da matriz em Burton. A narrativa é sobre a vida de Edward D. Wood Jr. (interpretado por Johnny Depp), que almejava o reconhecimento pelo seu trabalho como diretor e confiava na qualidade de sua obra. Na narrativa, o personagem demonstra uma visão diferente da realidade, principalmente se tratando dos padrões de qualificação da arte cinematográfica e, apesar de péssimas críticas e fracassos seqüenciais, ele acreditava ser um vanguardista que deixaria um legado a ser reconhecido após sua morte. Algumas características da vida pessoal de Wood o tornam mais peculiar, como, por exemplo, sua necessidade de vestir roupas femininas para se acalmar, motivo pelo qual sua namorada o abandona. Esta atitude de Ed é repudiada pela moça, que considera o hábito anormal e bizarro, desaprovação que piora quando a garota percebe que os amigos do cineasta não se importam: “são um bando de aberrações”, exclama. Ed Wood passou sua vida se esforçando para conquistar um lugar no mundo dos grandes diretores, acompanhado por um
  • 65. 65
  • 66. 66
  • 67. 67 grupo amigos que, de alguma forma, também falharam na busca pelo sucesso em Hollywood, com maior destaque para o ator Bela Lugosi, interpretado por Martin Landau. A história mostra a decadência de Bela Lugosi na sociedade hollywoodiana: após sua exclusão devido ao vício em drogas, ele foi abandonado pela esposa, não conseguia mais papéis em filmes (o que o levou a falência) e até o tratamento para a dependência química lhe fora recusado, pois ele não foi capaz de pagar a apólice do seguro de saúde. O desejo desesperado pela fama é bem ilustrado na seqüência que Bela, antes de ser expulso do hospital, está cercado por repórteres e fotógrafos em seu leito. Ed chega e os expulsa do local para o choque do amigo. Então, Bela pergunta a Ed porque ele os havia espantado e diz: Bela Lugosi: Após todos estes anos, a imprensa se interessa de novo em Bela Lugosi. Ed Wood: Eles são parasitas. Só querem explorá-lo. Bela Lugosi: Ótimo, deixe que explorem. Não existe má publicidade, Eddie. O homem de Nova Iorque até disse que vou aparecer na primeira página! “A primeira celebridade a se internar para reabilitação”. Quando eu sair daqui, estarei saudável, forte, pronto para retornar [a atuar]. (em Ed Wood, 1994)17 Todos os personagens do filme são caracterizados como estranhos no meio cinematográfico, mas, em conjunto, formam um grupo com valores semelhantes, sendo que todos compartilham do mesmo desejo de se inserir no mundo do show business. Segundo Bauman (2001), esta proximidade do grupo acontece porque as semelhanças existentes são significativas o bastante para que o “impacto das diferenças” seja superado. Essa 17 Trecho extraído do diálogo entre o personagem Bela Lugosi, interpretado por Martin Landau, e Ed Wood, interpretado por Johnny Depp, no filme “Ed Wood” de 1994.
  • 68. 68 similaridade de valor faz com que o espectador, apesar de ver estranheza em cada personagem individualmente, perca a noção de sujeira existente no grupo em relação à Hollywood. O filme foca na vida deste grupo e como ele interage na luta em busca do sucesso, levando o espectador a torcer para que cada um dos personagens atinja seus objetivos. Na seqüência final do filme, é informado o fim de cada membro deste grupo marginal, sendo que a maioria conquistou o sucesso, mas de maneira diferente da desejada por eles, através da incapacidade de produzir algo de qualidade. Ed Wood é o maior exemplo de fama entre eles, o cineasta é, hoje em dia, conhecido mundialmente como o pior diretor da história de Hollywood18. Comparando “Edward Mãos de Tesoura” (1990) com “Ed Wood” (1994), pode-se perceber que o estranho perde um pouco a obviedade, sendo transferido de um personagem específico (Edward que possui características únicas) para um grupo de estranhos (Ed Wood e seus companheiros). Portanto, em um processo um pouco diferente do primeiro, todos são apresentados como estranhos e perdem essa qualidade com o decorrer da narrativa, quando vistos em interação com outros estranhos similares, ou seja, são deslocados em relação ao mundo, mas se encaixam perfeitamente no pequeno grupo ao qual pertencem. Mesmo assim, todos os estranhos do filme são facilmente detectáveis e só perdem sua obviedade e evidência quando estão reunidos. Um abrandamento similar acontece em “Marte Ataca!” (Mars Attacks!, 1996), onde todos os personagens apresentados são 18 Pior diretor da história de Hollywood: Ed Wood foi eleito, em 1980, o pior diretor de todos os tempos. O fato aconteceu dois anos após sua morte e o tornou o cineasta mais conhecido quando se trata de filmes “lado B”. Seu filme mais famoso foi Plan 9 From Outter Space, de 1957 (Ed Wood DVD, 1994)
  • 69. 69 caricatos. Na narrativa sobre um ataque alienígena, as características estranhas dos personagens são amenizadas pela enorme diferença entre os humanos e aliens, que formam um conjunto muito mais peculiar que qualquer estranheza presente nos personagens humanos. Os extraterrestres que desejam eliminar a espécie humana acabam forçando as pessoas a perceberem que possuem uma característica comum entre si: o instinto de sobrevivência. As pessoas, sob a influência do desejo de conservarem suas vidas, ignoram suas diferenças – que sem o ataque seriam separadoras e excludentes – e se unem para destruir a ameaça alienígena. Assim, uma população, que se posicionaria em diversos grupos diferentes, encontra um valor comum importante o bastante para eliminar as fronteiras que normalmente os separariam. Já em 1999, o filme “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” (Sleepy Hollow) – uma história policial com elementos sobrenaturais – indica, inicialmente, que a sujeira está presente no personagem do fantasma assassino. No entanto, aos poucos, o enredo vai transferindo, ou melhor, diluindo a sujeira entre os moradores do vilarejo de Sleepy Hollow. Estes apresentam características incriminadoras que são gradualmente descobertas pelo detetive Ichabod Crane (Johnny Depp). No desenrolar da misteriosa narrativa, o próprio detetive, um representante forasteiro da ordem e da justiça, demonstra características que o transformam no personagem mais estranho no contexto de Sleepy Hollow. O detetive é, primordialmente, um estrangeiro em Sleepy Hollow. Ele não pertence ao local e introduz qualidades que não se originaram na comunidade. A respeito do estrangeiro, Simmel diz que a sua definição se dá na junção de duas características: “a liberação de qualquer ponto definido no espaço e, é assim, oposição conceitual à fixação nesse ponto” (SIMMEL, 1983:182). O que, em outras palavras, significa a unificação de proximidade e distância.
  • 70. 70 “A distância significa que ele, que também está próximo, está distante; e a condição de estrangeiro significa que ele, que também está distante, na verdade está próximo” (SIMMEL, 1983:183). Isso quer dizer que o forasteiro – mesmo quando próximo fisicamente – mantém uma distância do grupo, mas, ao mesmo tempo, possui similaridades com o meio que ajudam a diminuir esta distância abstrata. O estrangeiro é um estranho que não é completamente estranho e nunca completamente familiar. Além da natureza estrangeira de Ichabod Crane, traumas de infância o impedem de aceitar os valores e crenças da comunidade na qual ele chega e dificultam sua adaptação, mesmo que temporária, ao grupo. Sua estranheza é vista como uma qualidade positiva pelos membros do vilarejo, pois seu distanciamento do grupo o torna capaz de decidir e resolver os problemas da comunidade de forma imparcial. Segundo Simmel (1983), o estrangeiro, devido à sua mobilidade e desprendimento local, é “mais livre”, “examina as condições com menos preconceito”, seus critérios “são mais gerais e mais objetivamente ideais”. Ele não é influenciado por interesses familiares ou partidários e, assim, suas diferenças deixam de ser vistas como nocivas e passam a colaborar na conservação do grupo. No caso de Ichabod, pode-se destacar ainda o fator da sujeira maior, aquela que comete os crimes e leva a comunidade a aceitar interferências exteriores em busca de um objetivo mais importante: eliminar o assassino e recobrar a segurança. No desfecho da história, o detetive soluciona o mistério e toda a estranheza é remetida a um único membro da comunidade, precisamente aquele que não tinha feito parte dos suspeitos durante todo o enredo. A responsável pelos crimes, Lady Mary Van Tassel (Miranda Richardson), era uma senhora respeitada na comunidade, casada com um dos membros mais importantes do vilarejo, que mantinha em segredo o fato de ser uma bruxa com
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  • 73. 73 poderes para dominar o cavaleiro sem cabeça e forçá-lo a assassinar pessoas. É somente no fim do filme que a personagem se apresenta como uma sujeira, e acaba por abrandar a sujeira dos outros personagens, incluindo, a do próprio fantasma que passa a ser visto como uma vítima de Lady Mary. No caso de “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” (1999), todos os personagens, uma vez vistos como estranhos, perdem tal qualidade no fim da narrativa, sendo que toda a estranheza da história é transferida para um único indivíduo – sendo ele o menos provável de todos, o imaculado, apresentado inicialmente como um exemplo de pureza. Além disto, é incluído no contexto um tipo de estranho bem sucedido – o estrangeiro – cujo objetivo não é se incluir no grupo, mas apenas ajudá-lo em sua conservação como tal. Desta maneira, a estranheza destacada primordialmente em um indivíduo dentro da obra de Burton – Edward em “Edward Mãos de Tesoura” (1990) – sofre uma dissolução sendo eliminada gradualmente em um conjunto maior de indivíduos e redirecionada a um sujeito que inicialmente não se apresentava como deslocado. Esta dissolução, ao passo que suaviza a imagem do estranho, ainda questiona a rotulação que os grupos impõem aos indivíduos e pode, em uma interpretação mais complexa, representar a possibilidade de uma falha no que a sociedade julga ser sujo ou limpo. Em “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” (1999), aquele que seria a sujeira inicial, o forasteiro, se apresenta como a solução dos problemas do grupo, e aquele que é apontado como o responsável pelo abalo à segurança no início da narrativa, o criminoso, se torna limpo quando o enredo explica sua condição de manipulado por uma sujeira maior. Ou seja, Burton elimina a estranheza inicial e inverte os papéis, tanto do deslocado quanto do ajustado, ao produzir uma narrativa na qual a sujeira é questionada a cada momento, impedindo o espectador de
  • 74. 74 identificar o causador da insegurança local antes do fim da história. Em 2001, no re-make de “Planeta dos Macacos” (Planet of the Apes), Burton repete o mesmo tipo de discrepância da estranheza colocada no filme “Marte Ataca” (1996). Nele, a diferença existente entre os humanos e os macacos é tão óbvia que acaba por dificultar a identificação de estranhos mais específicos na trama. Os humanos são estranhos no mundo dominado pelos macacos, mas, em contraponto, na sociedade conhecida pelos espectadores, toda a idéia de macacos sendo líderes e dotados de inteligência já é, em si, de estranheza primordial. Ainda assim, um estranho principal é apontado: o Capitão Leo Davidson (Mark Wahlberg) é um astronauta que chega ao planeta e encontra-se deslocado por ser um estrangeiro no ambiente – ele não é macaco, mas também não é um humano como aqueles que lá se encontram. Essa estranheza acaba sumindo e se tornando um referencial, pois Leo Davidson é aquele que representa um link com a realidade conhecida pelo espectador, que o identifica como o indivíduo mais normal em toda a história. Este estrangeiro é mais uma vez bem sucedido, embora encontre um grau de dificuldade maior que Ichabod, já que sua credibilidade entre a classe dominante é diminuída por não ser um macaco. No fim da narrativa, o estrangeiro deixa o planeta após efetivas modificações na estrutura social ao apontar características entre os macacos e os humanos que os tornam semelhantes, diminuindo o confronto entre as duas espécies. Percebe-se, portanto, que com o desenvolver da obra de Tim Burton, cada vez mais são utilizados diferentes artifícios para confundir e inebriar a figura do estranho. Porém, a dificuldade em identificá-lo da narrativa atinge sua máxima no filme “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish) de 2003. O filme narra um drama entre pai e filho, Edward Bloom (Albert Finney
  • 75. 75 / Ewan McGregor) e Will Bloom (Billy Crudup). O conturbado e distante relacionamento entre pai – um grande contador de histórias inverossímeis e maravilhosas – e filho – um jovem cético que vê o pai como um reles mentiroso – é desafiado pela iminente morte de Ed, que sofre de câncer. O problema de saúde leva Will a querer constatar até que ponto as coisas que Ed conta sobre sua vida são verdadeiras. Todas as histórias de Ed Bloom são como contos de fadas recheados de personagens folclóricos: um gigante, um lobisomem, um anão, um peixe lendário, uma sereia, aranhas gigantes, uma bruxa, entre outros. Além das criaturas fantásticas, seus contos tratam sempre de acontecimentos incríveis vividos por ele e são estes elementos que fazem com que Will duvide da veracidade dos contos do pai. Diversos dos personagens das histórias de Ed são apresentados no decorrer da narrativa e poderiam ser considerados estranhos: Karl, o gigante (Matthew McGrory), é um excluído da cidade natal de Ed, pois a população tem medo de seu tamanho e acredita que ele pode ser violento; Amos Calloway (Danny DeVitto), dono do circo no qual Ed trabalha, esconde de todos o fato de se transformar em um lobo sob a lua cheia; Jenny (Helena Bonham Carter) vive em uma casa sozinha e cercada de gatos numa cidade onde as pessoas, principalmente as crianças, acreditam que ela seja uma bruxa; Don Price (David Denman) se sente fracassado e excluído socialmente porque não consegue vencer Ed Bloom em nenhum tipo de competição, e ainda perde sua noiva para ele. No decorrer do filme, portanto, é delicado apontar o estranho da narrativa, ou pelo menos quem o representa principalmente. Em primeiro lugar, porque, em momento algum, é confirmada a veracidade de nenhuma das histórias e, em segundo, porque simplesmente há uma grande variedade nas possibilidades do