SPINA, Ignacio. "Dor no parto? Dor não, parto." em Encontro Literário Cronicando II. Instituto Camões. Centro de Línuga Portuguesa, Buenos Aires, 7 de Junho de 2012
1. “Dor no parto? Dor não, parto.”1 – Ignacio Spina
Só na sala de espera do ginecologista é que eu resolveria ler uma matéria tão absurda e de
tão pouco valor. Sabe aqueles artefatos antigos para guardar revistas que jamais faltam na sala
de qualquer médico? Bom, foi de lá que eu tirei a revistinha em questão...
É engraçado como esse tipo de revistas só se encontra em salas de espera. Essas revistas de
mulheres são antes revistas de consultórios e de salão de beleza. Não só não conheço ninguém
que compre, como também não saberia onde conseguir se eu resolvesse um dia dar uma
oportunidade àquele tipo de jornalismo tão comercial.
O fato é que o título da matéria era algo como “Como controlar a dor no parto”. É verdade
que as dicas – que recomendavam métodos de relaxamento impossíveis de lembrar em
momentos desses ou até a anestesia peridural, que bem sabemos nem todo o mundo pode
usar – eram absurdas, mas o que mais me chamou a atenção era o nome do autor: Wagner
Araújo. Wagner? Em toda a minha vida tenho conhecido milhares de pessoas e poderia jurar –
se necessário assinando um papel em troca da minha alma – que Wagner é nome de homem.
O problema não é apenas o conteúdo, mas quem pode falar do assunto. Teve uma vez que
ouvi, num documentário, um treinador de elefantes de um circo dizer que o animal não sofria
por ter de fazer as provas do show. O rapaz que perguntava chamou poderosamente a minha
atenção. Dava para perceber que ele não concordava com o sacana, pois era impossível ele
fazer tal afirmação. O jornalista tentou não demonstrar que discordava, mas eu percebi bem
rápido. Se a ironia tivesse existência física, seria a cara daquele sujeito ao escutar isso. Sim...
É... Claro... falava para o entrevistado enquanto seus olhos delatavam o “Não concordo, esse
cara está mentindo”. Para o moço era obvio que o outro mentia. Olhava para ele e ficava
pensando como podia fazer aquela afirmação. Ele teria sido elefante em outras vidas? Com
certeza não. E foi assim que troquei de canal.
A leitura dessa matéria me fez lembrar aquela anedota que eu considerava esquecida faz
tempo. Pois é, Wagner, você acha que sabe mesmo o quanto dói? Não, você não sabe, pois
somente nós sabemos.
Vou te explicar: na verdade o substantivo “dor” não é realmente muito exato para definir o
que a gente sente nesse momento. “Dor” não é suficiente. Dor é o que você sente quando a
faca bate por engano em alguma parte do seu corpo. Ai! (seguido, na maioria dos casos, de
palavras que na TV costumam ser proibidas até as dez da noite). Dor é o que você sente
quando apanha uma porrada de outrem (e aí a palavra chula não precisa de “ai” nenhum para
sair livremente). Dor é o que aparece na barriga ao você beber do leite uma semana depois da
data que diz na garrafa. Dor é o que você tem na cabeça quando alguém não pára de fazer
alguma coisa que te atrapalha. Mas o parto não é isso não. É, de fato, tudo isso e mais.
Se pudesse ter uma foto que demonstrasse a frialdade da sala, qualquer um acharia
impossível o quanto a gente se cobre de suor naquele momento. É, porém, apenas uma
aparência estética, pois todo o mundo sabe que não há lugar mais caloroso do que uma sala
1
SPINA, Ignacio. "Dor no parto? Dor não, parto." em Encontro Literário Cronicando II. Instituto Camões. Centro de
Línuga Portuguesa, Buenos Aires, 7 de Junho de 2012.
2. de partos. Se a gente tivesse um espelho nesse momento, seria ainda pior poder perceber a
situação com três ou quatro pessoas olhando as nossas misérias enquanto nos exibimos ao
mundo da maneira mais desarrumada possível. Mas se fosse realmente dor, como você acha,
nada teria a ver o clima ou com a nossa aparência física.
Primeiro é dor, sim. Ela desce lentamente dos pulmões à base da barriga como se fosse um
litro de bromo tentando percorrer um canudinho apenas inclinado. E assim, o que antes era
uma opressão interna, acrescenta um profundo sentimento de ardor até virar, finalmente,
uma queimação insuportável. Só depois de perceber que será impossível fazer mais força é
que você ativa os ouvidos para escutar os sons que provêm do exterior. Alguém impossível de
identificar pretende interagir:
– Força!
É lá que a gente não se furta da irritação. Força? Tô fazendo o quê? A expulsão de palavras
chulas não se faz esperar.
– Força!
E continua do mesmo jeito, mas agora sentindo aquela queimação um pouquinho mais
abaixo. Pois é, no lugar que você está imaginando.
– Força, mais uma vez!
Mais uma vez? Caramba! Se, nesse momento, alguém me informasse que eu morreria nos
próximos cinco minutos, com certeza eu choraria só por ter que esperar todo aquele tempão.
– Força, meu bem, força! Já tá saindo, já!
Mas a situação, mesmo acabando, só acrescenta o pranto – tranqüilizador por
natureza – de um bebê. Pranto que a gente ouve com muito amor e gostaria de ouvir pelo
resto da vida. Só dura, porém, uns cinco minutos, quando os médicos resolvem levar a criança
para continuar com a rotina.
Tá vendo, Wagner? Não é dor. É parto... parto é a palavra. E para provar que dor é
apenas uma mínima parte do que a gente sente, basta entender o pranto da recém‐mamãe
nesse preciso momento: de dor, pela opressão que se transformou em queimação; de
emoção, por ter conhecido aquele anjinho com quem conversou durante nove meses; e de
tristeza, por ter que esperar até os médicos terminarem de prepará‐lo para poder ficar em paz
com o bebezinho.
E aí, Wagner, tá com vontade de escrever mais uma matéria de partos? Com certeza
deve ter um monte de revistas ansiosas de publicá‐la. Quando estiver pronta, me avise para eu
marcar hora no médico para poder ler.