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Maria Inês de Carvalho Delorme
Domingo é dia de felicidade:
As crianças e as notícias
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação do Departamento de
Educação da PUC-Rio como parte dos
requisitos parciais para obtenção do título de
Doutor em Educação.
Orientador: Profª. Rosália Maria Duarte
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
Maria Inês de Carvalho Delorme
Domingo é dia de felicidade:
As crianças e as notícias
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação do Departamento
de Educação do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Profª. Rosália Maria Duarte
Orientadora
Departamento de Educação - PUC-Rio
Profª Tania Dauster Magalhães e Silva
Departamento de Educação - PUC-Rio
Profª. Zena Winona Eisenberg
Departamento de Educação - PUC-Rio
Profª. Rita Marisa Ribes Pereira
UERJ
Profª. Silvia Pimenta Velloso Rocha
UERJ
Prof. Paulo Fernando C. de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de
Teologia e Ciências Humanas
Rio de Janeiro, 09 de dezembro de 2008.
PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e
do orientador.
Maria Inês de Carvalho Delorme
Graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (1977), Graduação em Pedagogia
(1990) e Mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (1994). Professora da rede pública
municipal do Rio de Janeiro com lotação na MultiRio, onde
atualmente dirige o Núcleo de Publicações desde 2001.
Professora concursada da Faculdade de Educação da UERJ e
Doutora (2005-2008) na área de Educação: Infância e Mídia, pela
PUC-Rio.
Ficha Catalográfica
CDD: 370
Delorme, Maria Inês de Carvalho
Domingo é dia de felicidade: As crianças e as
notícias / Maria Inês de Carvalho Delorme; orientadora:
Rosália Maria Duarte – 2008.
290 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Educação)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. Educação – Teses. 2. Crianças. 3. notícias. 4.
Televisão; I. Duarte, Rosália M. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Educação. III.
Título.
PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
Agradecimentos
À orientadora Rosalia Duarte, pela aposta, confiança e estímulo, além dos bons
combates.
À Vice-Reitoria Comunitária da PUC-Rio, pela bolsa de isenção de pagamento
que tornou possível essa pesquisa.
Aos meus pais, Fernando e Valda, pelo amor e apoio permanentes.
Ao meu amado marido Celso, pé-de-valsa, amigo, companheiro, pai e padrasto
exemplar.
Aos meus filhos, Vicente, Eduardo, Artur e Helena, que gratificam todos os
momentos e dias da minha vida, pela admiração mútua, amor e amizade
definitivos.
As bravas e amadas mulheres da família que fizeram acontecer relações viáveis e
felizes entre a vida familiar, a profissional e a acadêmica, como mestras e
doutoras: minhas irmãs Ana Teresa e Cacala, minha prima-irmã e comadre
Angela M.Borba e minha tia Maria A. J. O. Borba.
À minha tia Maria Antonieta, a Dedei, uma tia superespecial e sinistra, como a
chamam os sobrinhos, por conseguir aliar cumplicidade, competência e rigor
acadêmico com as causas do coração, sem ressalvas.
A dois professores emblemáticos que tive o privilégio de conhecer já adulta,
amigos admiráveis, que conjugam competência com simplicidade: Regina de
Assis e Leandro Konder.
A Tânia Dauster, Rita Ribes, Silvia Pimenta, Patricia Corsino, Maria Apparecida
Mamede e Zena W. Eisenberg, pela parceria e pelas críticas preciosas.
A Joanna Miranda, ex-aluna, muito amiga e quase filha que tensiona com
delicadeza os limites difusos entre quem/o quê/como ensina e aprende, além das
vertigens cúmplices.
A duas amigas muito especiais das quais não desejo me afastar nunca, pelo que
são e pelo que representam: Cristina Campos, que incita a professora que há em
mim, e Martha Neiva, que despertou e continua provocando a jornalista que
também me habita.
À equipe do Núcleo de Publicações e Impressos da MultiRio, pelo exercício diário
do trabalho que aprendemos a fazer juntos, sustentados na confiança, no suor, na
troca e no bom humor indispensáveis.
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Resumo
Delorme, Maria Inês de Carvalho; Duarte, Rosália Maria. Domingo é dia de
felicidade: as crianças e as notícias. Rio de Janeiro, 2008, 190 p. Tese de
Doutorado – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.
Domingo é dia de felicidade é o título desta tese de doutoramento, voltada
para o exame de diferentes variáveis que possam contribuir para um melhor
entendimento das relações que as crianças estabelecem com as notícias oriundas
da televisão. A pesquisa configura-se como um estudo de cunho etnográfico sobre
crianças que freqüentam o primeiro ano do ciclo de formação em uma
determinada escola pública municipal da cidade do Rio de Janeiro, no período
escolar de 2007. No foco deste estudo, encontram-se crianças que se caracterizam
como sujeitos ativos, participativos, que gostam de opinar e que se sentem aptas a
questionar certos padrões da televisão e do mundo adulto, em situações interativas
com seus pares. Meu objetivo nuclear foi conhecer e compreender suas
preferências, os recortes que fazem do que vêem, seus sentimentos, modos de
relação entre suas experiências e as notícias televisivas, numa análise que
envolveu a produção, considerou dados de veiculação até alcançar a repercussão e
as marcas dessas notícias em suas vidas. Para isso, as crianças foram consideradas
como produtoras e consumidoras da cultura, configurando-se, assim, numa
audiência crítica também dos telejornais. Para conhecer os atributos dos
acontecimentos que permitem vir a veiculá-los como notícias na televisão e, ao
mesmo tempo, para ser possível entender as diferentes repercussões dessas
notícias na vida das crianças, houve uma aproximação teórica de áreas
diferenciadas como Comunicação Social, Educação e Teoria da Literatura,
articulação esta que se fez sempre norteada pelas possibilidades de alcance e
limite conceituais, cujos aproveitamentos impliquem a passagem de um campo
disciplinar a outro.
Palavras-chave:
Crianças; notícias; televisão.
PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
Abstract
Delorme, Maria Inês de Carvalho; Duarte, Rosália Maria. (Advisor).
Sunday is a happy day: children and television news. Rio de Janeiro,
2008, 190p. Thesis – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
The title of this dissertation is Sunday is a happy day. Here i analyse
different variables that may contribute to a better understanding of the
relationships established between children and the news originating in television.
The research as such has an ethnographic bias about children who attend the first
year of basic education in a municipal school in Rio de Janeiro, during the 2007
school term. In the core of this study these children are characterized as active
and participatory subjects who like to express opinions, who feel the aptitude for
questioning certain standards, as shown by television and the world of adults, in
interactive situations with their peers. My main objective was to get acquainted
and to understand their preferences, their development based on what they watch,
their feelings and expectations, and the modes of relationship between their
experiences and television news. The analysis involved television news
production, broadcasting data and its repercussion in their lives. Thus, children
were regarded as culture producers and consumers as well as a critical audience of
newscasts. In order to know the attributes of events that might become news on
television and at the same time to be able to understand the different repercussions
of such news in these children’s lives, the theoretical approach included diverse
areas such as Social Communication, Education and Theory of Literature. Those
were guided, which was always guided by the possibilities of conceptual limit and
range, allowing for the transition from one discipline to another.
Key-words:
Children; news; television.
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Sumário
1 A professora, seus alunos e a televisão ....................................... 9
1.1 GRUPEM – Aproximação do tema da pesquisa ........................... 12
2 Domingo é dia de felicidade, uma introdução à tese .................... 17
3 Os passos e os percursos ............................................................. 22
3.1 Reflexões teórico-metodológicas ................................................... 22
3.2 A pesquisadora e as narrativas infantis ........................................ 28
3.3 Questões éticas que envolvem as relações entre crianças, a
pesquisadora e o professor ........................................................... 32
3.4 A escola e a turma ........................................................................ 36
3.5 Minha entrada no campo .............................................................. 38
3.6 Registro e análise de materiais empíricos .................................... 40
4 A televisão que vai à escola .......................................................... 43
4.1 As crianças, suas famílias e a televisão ....................................... 43
4.2 Crianças, professora e televisão ................................................... 65
4.3 Crianças e outras mídias, na escola ............................................. 70
4.3.1 As outras mídias ........................................................................... 73
4.3.2 “Notícia boa, nunca, nem no papel!” ............................................. 81
4.3.3 As crianças e as notícias da televisão .......................................... 82
4.3.4 Performance, agir como se .......................................................... 87
4.3.5 A ordem e a regra como proteção ................................................ 94
4.3.6 Padrões estéticos do telejornal: O casal William Bonner e Fátima
Bernardes ...................................................................................... 98
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4.3.7 “O ficcional e o imaginário” ........................................................... 103
4.3.8 “Perdido, notícias mais ou menos e notícias para trás” ................ 107
4.3.9 “Tem vezes que não, mas é muito raro, tem vezes!” .................... 113
4.3.10 A notícia é importante e por isso se repete? Ou se repete muito
e, por isso, acaba se tornando importante? .................................. 115
4.3.11 A produção das notícias ................................................................ 116
4.3.12 As fontes se alimentam delas mesmas ......................................... 117
4.3.13 Quando as fontes e os repórteres se confundem ......................... 118
4.3.14 Na televisão, a beleza também é fundamental ............................. 119
4.3.15 As câmeras de segurança como fontes: medo e desejo .............. 122
4.3.16 Bandidos são negros, pobres, sem família, sem casa e sem
escola ............................................................................................ 125
4.3.17 (In)visibilidade ............................................................................... 127
4.3.18 O medo de ser notícia ................................................................... 133
4.3.19 Quando eles foram os seus outros ............................................... 137
4.3.20 Editar, ver, editar de novo, ver de novo ........................................ 140
4.3.21 O caso Isabella Nardoni ou Pais matam filhos? ........................... 143
5 Encaminhando conclusões ........................................................... 146
6 Referências Bibliográficas ............................................................. 167
7. Anexos .......................................................................................... 171
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1
A professora, seus alunos e a televisão
Naquela manhã chuvosa de 1985, eu disse aos meus alunos que havia
acabado a hora do recreio, que parassem com aquela brincadeira de pique. Pedi para
que se levantasse aquele que permanecia deitado no chão e que viessem, todos, para
a sala de aula. Também lembrei para que não se esquecessem de dobrar e de trazer
os panos que estavam usando para brincar. Os que chegaram mais rápido perto de
mim expressaram com indignação e impaciência o tamanho do meu
desconhecimento: “Inês, a gente não está se sujando, o chão está seco; a gente só
está brincando de Tancredo.” E a turma foi se organizando com energia para me
explicar o que só eles sabiam. E seguiram: “O morto fica coberto com a bandeira,
parado, né? Morto. A gente tem que tirar a bandeira sem tocar nele, para ele não
acordar. Quando alguém toca ou esbarra no defunto, ele levanta, fica vivo, muito
zangado e sai correndo para pegar a gente.”
Essa história, que chamo de “situação–síntese”, aconteceu numa escola
situada na zona portuária do Rio de Janeiro, bairro do Caju.
De 1977 até 1994, fui professora alfabetizadora da rede pública. Naquele
período, mais especificamente no ano de 1985, o Brasil viveu a morte de Tancredo
Neves e, com isso, suas expectativas de mudança, conforme nossa História já
registra. O luto nacional e o funeral do político ocupavam amplamente a mídia, e
foi, em especial, o noticiário televisivo o responsável pelo contato daquelas
crianças com as imagens da morte, a que tiveram acesso direto, de forma contínua,
por mais de duas semanas, em domicílio.
Naquela época, não podia entender o(s) caminho(s) que juntos, crianças e
adultos, trilhávamos no processo de conhecimento individual e coletivo já
intermediado pela presença marcante e crescente da televisão. Portanto, fazia-se
necessário, desde então, compreender, com mais profundidade, a interação que
meus alunos estabeleciam com o que viam na tevê. Eles me faziam entender a
infância como uma etapa comum, pela qual todos passavam, mas, ao mesmo tempo,
comprovavam haver algo que se realizava de maneira muito peculiar, específica em
cada um deles. Vários aspectos, como época, lugar, relações familiares, etc.,
produziam modos próprios de ser criança, e estes aspectos personalizavam a
vivência da infância em cada uma das minhas crianças. Com isso, crescia em mim
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um desconforto necessário e produtivo, carregado de ambivalências,
imprevisibilidades, contradições e conflitos que me impunham o desafio de pensar
em televisão e audiência sob um prisma diferente daquele cristalizado pelo senso
comum. Não era possível aceitar a existência de uma relação linear e simplista que
colocava, de um lado, a televisão como emissora e, de outro, uma audiência infantil
homogeneizada, despreparada e passiva.
Desde então, vim observando as crianças interagirem criativamente com os
produtos e objetos que resultam dos expressivos avanços tecnológicos a que têm
acesso, cada vez num ritmo mais frenético, como o cinema, o rádio, a internet e os
celulares, e também com as notícias da televisão. Mais recentemente, as narrativas
ganharam sons, imagens, cores, movimentos e interatividade, tornando possível
construir e reconstruir o “era uma vez”, os casos e as histórias em diferentes
suportes e linguagens. Em paralelo, o mercado nitidamente veio estimulando o
consumo e, com isso, vem facilitando o acesso gradativo da população às novas
“tecnologias da informação, da comunicação e do conhecimento”, como parece
mais adequado nomeá-las, sob o viés do mercado.
Neste mundo altamente tecnologizado, está inserida a escola como uma
instituição social. Dentro dela, há crianças e professores com histórias, valores,
experiências prévias, expectativas e até mesmo com maior ou menor contato com
essas tecnologias, ou seja, há um encontro previsto e altamente estimulante entre
pessoas diferentes. Nesse espaço, espera-se que o professor regente1
, aquele que
atua um ano letivo inteiro com uma mesma turma de crianças, esteja ciente de que
elas são pessoas diferentes, ainda que da mesma idade, que a interação delas tanto
será produtiva na resolução de desafios e de conflitos, quanto deverá ser geradora
de conflitos que precisarão ser administrados dentro/com o grupo. Esta
característica da sala de aula, também do espaço escolar, sugere que exista uma
intervenção atenta do professor para garantir e valorizar os espaços de fala e de
escuta de todos, num ambiente de respeito e de acolhimento das diferenças. Como
professora de crianças, essa conduta implicou sempre a possibilidade de
compreender e de partilhar a rede de significação simbólica que (des)unia meus
alunos, sem igualá-los. Essa rede de significados tecida na linguagem se sustentava
nas enunciações e narrativas. As conversas dos meus alunos sobre o que viam na
1
Refiro-me aqui ao professor II, como é classificado e nomeado pela Secretaria Municipal de
Educação do Rio de Janeiro.
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11
televisão indicavam conhecimento e apropriação de muitas funções da narrativa
televisiva, como: entreter e informar e, ao mesmo tempo, propagar idéias, valores e
concepções de vida, reais e/ou muitas vezes imaginadas, algumas jamais
experimentadas, impactando o processo de constituição de suas identidades. As
narrativas, assim, cumpriam a função de tecer a existência entre os meios e a
sociedade, e, assim, escutar com atenção e buscar compreender as narrativas
infantis eram ações determinantes para se conhecer(em) o(s) modo(s) como as
crianças se sentiam parte do mundo, como entendiam e se expressavam no/sobre
este mesmo mundo. Eu julguei oportuno e esclarecedor ouvir e considerar as
histórias contadas pelas crianças a partir do que a televisão lhes oferecia como uma
possibilidade de transformação das práticas sociais que “falam” da sociedade e que,
ao mesmo tempo, constituem saberes acerca desta mesma sociedade. E, desde
então, pude supor que fosse a televisão o lugar de onde as crianças retiravam grande
parte do que sabiam para compreender o cotidiano e a vida.
A partir de 1995, concluído meu mestrado, passei a integrar o corpo docente
da Uerj (graduação de Pedagogia, nas áreas de Educação Infantil e de
Alfabetização) e, nessa condição, julguei pertinente incorporar aos meus planos de
cursos questões ordinárias da vida contemporânea que julgava imprescindíveis para
a formação universitária de professores e pedagogos, tais como: a) a dicotomia
existente ainda hoje entre os que pensam televisão (produtores) e os que consomem
(quase todos) os produtos televisivos; b) a ocupação crescente do espaço da
televisão na vida de professores e alunos, de todas as idades, e o quase total
desconhecimento da sociedade organizada sobre as características dessa forma de
linguagem; c) o desconhecimento por grande parte da sociedade quanto ao fato de a
televisão brasileira ser uma concessão estatal, o que possivelmente justifica uma
relativa imobilidade para buscar conhecer, desejar, discutir e questionar a qualidade
da programação oferecida; d) a tendência de professores e pedagogos em formação
a tomarem, com muita freqüência, como “perda de tempo” a possibilidade de
conversar na escola sobre o que se vê na tevê; e) uma desatenção para com os
aspectos comerciais que pautam e que submetem a programação da televisão aberta
e que, em grande parte, criam e endossam os vínculos com o consumo de bens
materiais e simbólicos, suscitando sonhos e demandas, além de disseminarem
fortemente o conceito do “descartável”; f) a prevalência de uma ótica do consumo
como elemento maléfico, atribuído à programação televisiva, em que esta,
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12
supostamente, seria a principal responsável pelas desigualdades socioeconômicas e
culturais do povo brasileiro. Nesse viés, estaria na televisão a causa das piores
mazelas contemporâneas, como a miséria, a violência e a falta de esperança. Essas e
muitas outras questões relativas ao oficio do professor e à função da escola no
mundo contemporâneo permaneciam, em mim, à busca de respostas e de
compreensão.
Por tudo isso, retornei à PUC-Rio, em 2005, desta vez como aluna do
Doutorado em Educação, para estudar e compreender melhor a relação das crianças
com as mídias, mais particularmente com a televisão.
1.1
GRUPEM2
- Aproximação do tema da pesquisa
Meu objeto de estudo emergiu da análise do material empírico reunido na
pesquisa Crianças e televisão, realizada entre 2004 e 2006, pelo Grupo de Pesquisa
em Educação e Mídia (GRUPEM), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ), com apoio do CNPq e parceria institucional com a TVE/Rede
Brasil.
A intenção do referido grupo de pesquisa era coletar um material que lhe
possibilitasse abarcar não apenas as expectativas das crianças com relação à TV,
mas, mais diretamente, a relação que elas estabeleciam com o que viam
regularmente, incluindo gostos, interesses, críticas e grau de conhecimento da
linguagem e dos formatos televisivos.
Com esse viés, a pesquisa Crianças e televisão foi encaminhada como um
estudo de base quantitativa, considerando-se a dimensão da audiência infantil da
televisão brasileira, o que justifica a intenção à época de se coletarem dados entre
um significativo número de sujeitos de modo a ser possível traçar um panorama
geral da relação entre crianças e televisão. Naquele momento, inspirada em um
modelo de investigação desenvolvido pelo Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef) que vinha sendo desenvolvido em outros países, intitulado "TV
como te quiero", os pesquisadores do GRUPEM optaram por fazer uma chamada
2
Ver http://www.grupem.pro.br/. A pesquisa Crianças e televisão: o que elas pensam sobre o que
aprendem com a tevê, ver Rev. Bras. Educ.Rio de Janeiro, n. 33, 2006, disponível em:
http://www.scielo.br/scielo. Acesso em: 30 2008.
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13
pela televisão convidando crianças a participar da pesquisa com o envio de suas
opiniões. Inicialmente, buscava-se ainda obter elementos de comparação entre
crianças brasileiras e crianças de outros países.
Neste percurso, a equipe do GRUPEM optou por essa chamada pela
televisão apenas veiculada em âmbito regional e somente através de emissoras de
televisão públicas, em que a TVE/Rede Brasil garantiu a produção e veiculação de
um spot em que a pergunta dirigida às crianças era a seguinte: “O que eu penso da
tevê?”. (DUARTE, R. MIGLIORA, R. LEITE, C. 2006). Esse spot teve como
objetivo convidar crianças da Região Sudeste, com idades entre 8 e 12 anos, a
enviar cartas, desenhos ou mensagens eletrônicas para o grupo de pesquisa com
suas reflexões a respeito do que viam na televisão, do que gostavam e não gostavam
de ver, por quê. Para garantir um maior número de respostas, o GRUPEM envolveu
também os professores na campanha, e, para isso, foram confeccionados cartazes
dirigidos a eles, solicitando-lhes que estimulassem seus alunos a participar da
pesquisa. Os cartazes foram encartados no jornal Folha Dirigida.
Com este empenho de divulgação, a equipe do GRUPEM recebeu mais de
900 respostas, entre desenhos e textos. Todo o material foi catalogado e
identificado. Os textos, digitados e fragmentados em unidades de significação que
se configuraram na principal fonte de dados desta pesquisa.
Todos os textos foram analisados por todos os membros do grupo de
pesquisa, a partir de categorias teóricas (definidas previamente a partir da literatura
de referência), e categorias não-teóricas (extraídas da primeira leitura dos textos).
Isso permitiu a organização das informações, idéias, opiniões e reflexões expressas
pelas crianças a respeito dos diferentes canais de televisão a que têm acesso; dos
seus programas prediletos; da violência presente nos produtos televisivos; do papel
desempenhado pela televisão no seu cotidiano; das concepções delas acerca da
influência da televisão na sociedade, além de temáticas mais gerais, como consumo
e qualidade da produção televisiva.
Essa pesquisa realizada pelo GRUPEM está disponibilizada, hoje, em um
livro3
recém publicando que se configura como uma compilacão de grande parte
dos relatórios temáticos originados a partir da análise da empiria.
3
Duarte R. (org) – A televisão pelo olhar das crianças. SP: Editora Cortez, 2008.
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14
Em 2005, portanto, assim que ingressei no doutorado e no GRUPEM, em que a
análise do material estava iniciada, fortaleci minha intenção inicial de compreender
a relação que crianças estabeleciam com a produção audiovisual. A equipe do
GRUPEM estava debruçada sobre este material que, exposto ao olhar e às análises
sob diferentes viéses dos estudiosos e pesquisadores a ele dedicados. Nessa etapa,
coube a mim a análise de elementos que as crianças demonstravam recortar e
consumir a partir do que a televisão lhes oferecia e que envolvia materiais e
produtos, sentimentos, atitudes e comportamentos. Esses elementos podiam ser
reunidos sob o titulo Televisão e Consumo, tema e título final do relatório por mim
elaborado, estruturado a partir de duas categorias, não excludentes, que emergiram
do material produzido pelas crianças.
Uma das categorias extraída dos textos das crianças tomava a televisão
como uma “tecnologia de primeira necessidade 4
”, um objeto de consumo
indispensável, considerando-se quatro outras necessidades básicas: a) a de se ter
pelo menos um aparelho de televisão com controle remoto; b) de companhia; c) de
pertencimento; d) de ter contato com sentimentos. A segunda englobou as
possibilidades de consumo de certos conteúdos como subprodutos da relação que
estabelecem com o que “esse eletrodoméstico” (tal como era entendida a TV por
grande parte das crianças) lhes disponibiliza. Dessa segunda categoria, fazem parte
outras “necessidades” de consumo: a) bens materiais e simbólicos; b) diversão e
fantasia; c) informação; d) conhecimento.
Ao fim da minha análise e dos demais trabalhos do GRUPEM, ficou
evidenciada a importância de serem desenvolvidas novas investigações que
mergulhassem com mais profundidade em certas questões sinalizadas pelas
próprias crianças do universo de pesquisa. Uma delas, que se destacou das demais
pela recorrência, consistia em buscar compreender melhor a concepção que as
crianças têm sobre as notícias da televisão, como estas se relacionam com o que
definem e recortam como tal, principalmente diante do repúdio e medo dos
noticiários da televisão, expressos pelas crianças que haviam participado da
pesquisa do GRUPEM .
4
NECESSIDADE, neste estudo, é entendida como uma categoria cultural que supera os aspectos
bio-psico-físicos que caracterizam o ser humano como espécie.
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15
Neste ponto, houve uma sinergia imediata e densa entre a configuração de
minha vida pessoal e profissional, sempre entre a jornalista e a professora, diante
dessa complexa questão que envolvia as crianças e o mundo em que vivem. A
abrangência da questão, que, a meu ver, retrata e sofre muitas interveniências de
naturezas muito diferenciadas, exigia que eu delimitasse os alcances e as
possibilidades do meu futuro estudo. Assim, a abordagem do tema exigia uma
aproximação direta com as crianças na intenção de conhecer e de compreender o
conceito de notícia usado por elas, em que seria tomado como pontos de partida os
telejornais e os programas televisivos identificados por elas como fontes de
notícias.
O tratamento da empiria do GRUPEM indicava serem as “notícias da
televisão” um conceito ambíguo e difuso, uma vez que poderia abarcar avisos ou
anúncios de fatos e/ou situações de tempos passados, presentes ou futuros; esses
fatos poderiam não só estar referenciados em cenários e espaços variados, muitas
vezes simultâneos, como também integrarem dados, eventos e fatos ficcionais ou
imaginários. Essa pesquisa do GRUPEM deixou também para mim, como
pesquisadora, um pano de fundo que evidenciava uma tendência contemporânea de
convergirem jornalismo e ficção. Parecia haver movimentos simultâneos em dois
sentidos, provocando um deslocamento da ficção, por um lado, que cada vez mais
se afastaria do herói trágico, modelar e, por outro, a busca de um herói simpático,
desde que fosse plenamente identificado com o espectador, o que tornaria, assim, a
ficção cada vez mais documental5
.
Ao mesmo tempo, o jornalismo, cada vez mais sensacionalista, já vinha
fazendo de suas matérias pequenos espetáculos, cheios de apelos emocionais, nos
quais a linguagem pretensamente poética, a música, a edição, a beleza plástica
pareciam procurar levar o espectador a um clima envolvente e embebido de
dramaticidade em que a emoção tomaria o lugar de uma pretensa escuta racional e
ponderada das notícias. Emoção e afeto, assim, pareciam conquistar um lugar até
então privilegiado nos domínios que pareciam destinados exclusivamente à
informação e à chamada “transmissão objetiva” de conhecimentos. E, como
5
A novela Páginas da Vida, veiculada em horário nobre pela TV GLOBO, de 10 de julho de 2006
até 2 de março de 2007, compunha sua trama com depoimentos de cidadãos comuns, em cenas
gravadas ao vivo, nas ruas da cidade do Rio de Janeiro.
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16
decorrência disso, vieram a reboque novas perguntas que, durante o doutorado,
mereciam ser aprofundadas e respondidas.
Assim, foram esses encaminhamentos e um volume significativo de
questões e de dúvidas que justificaram a pesquisa que se segue sobre as crianças e
as notícias.
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2
Domingo é dia de felicidade, uma introdução à tese
O objeto desta pesquisa é conhecer a compreensão que as crianças têm do
que seja notícia da televisão e como elas se relacionam com as mesmas. Para
realizá-la, decidi acompanhar as crianças e as notícias que chegam na escola,
tomando como pressuposto o fato de que certas notícias (oriundas da televisão)
deixam algum tipo de marca e de repercussão na vida dessas mesmas crianças.
Deste modo, tomei como material de análise a repercussão que as notícias
da televisão têm na vida das crianças, expressas por elas mesmas, para buscar
conhecer o que, como e por que certos aspectos do noticiário passam a integrar o
modo de cada um se ver, de ver o outro, de compreender e de se situar, de se
relacionar e de se entender “no/em relação ao” mundo social. As crianças
confirmaram haver elementos da televisão que são recortados de forma muito
pessoal, nem sempre intencional ou consciente, que ora são lembrados, ora
esquecidos, às vezes intencionalmente omitidos, que significam e que ecoam, a
partir dos quais cada uma delas se apropriou de um modo peculiar. Por meio dessas
apropriações, estabelecem-se ainda possibilidades de relações e de trocas
simbólicas entre as crianças e delas com os adultos da escola que emergiam no
cotidiano escolar.
Antes de iniciar uma apresentação da configuração desta tese em capítulos,
é importante estabelecer um posicionamento desta pesquisa diante dos chamados
“estudos de recepção”. Não entendo os modos de recepção como menos
importantes, menos complexos e nem pouco relevantes e, assim, não desconsidero
as circunstâncias particulares e diferenciadas relativas ao modo como as pessoas
assistem à televisão e seu impacto destas na forma como se relacionam e interagem
com o que lhes é apresentado. No entanto, o momento e a circunstância da recepção
não se constituem nos objetos desta pesquisa, mas sim os seus resíduos
significativos ou fragmentos perceptivos, as repercussões ou marcas que deixam
nas crianças como o resultado de complexas combinações que busquei entender
neste estudo sobre e com as crianças.
Este estudo aconteceu durante um ano letivo, de fevereiro a novembro de
2007, em uma escola pública municipal, localizada na Zona Oeste do Rio de
Janeiro, com uma turma de crianças de 7 anos, em média, no primeiro ano do ciclo
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de formação, e se caracterizou como uma pesquisa qualitativa de cunho
etnográfico.
Essa pesquisa está aqui estruturada e se inicia com um texto de Abertura em
que o trajeto pessoal e profissional da pesquisadora justifica seu retorno à
universidade e a uma área determinada de estudo que se coaduna com a tese ora
apresentada. O capítulo 1 se configura como uma aproximação ao tema da
pesquisa, enquanto o capítulo 2, esse texto que está em curso, vem a ser a
Introdução à Tese como um todo e, por isso, cada um dos capítulos vem sendo
apresentado com uma breve indicação teórica sobre os conceitos de base utilizados
neles. O capítulo 3, Os Passos e os Percursos, se destina a apresentar e discutir as
decisões metodológicas em sua relação direta com os aportes teóricos. O capítulo 4,
intitulado A televisão que vai à escola é o mais denso e o que justifica a importância
deste estudo. Nele, está apresentada toda a empiria organizada em três grandes
eixos na globalidade de sua análise, ou seja, de modo articulado com os preceitos
teóricos para ser possível alcançar o objetivo desta tese. As categorias identificadas
emergiram do próprio campo e tiveram sua origem na relação do
pesquisador-investigador com o mesmo, diante de sua complexa dinâmica.
Segue-se o capítulo 5, no qual são apresentados os aspectos conclusivos em que as
características deste tipo de pesquisa sugerem o título À Guisa de Conclusões. A
finalização da tese se dá com as Referências Bibliográficas e os documentos em
anexo, capítulos 6 e 7, respectivamente.
Para dar continuidade à Introdução, objeto do capítulo de mesmo nome,
passo ao Capítulo 3, Os Passos e os Percursos, destinado à metodologia. É sabido
que as estratégias metodológicas estabelecidas para a pesquisa não só têm relação
estreita com os aportes teóricos previamente pensados, como funcionam como
elementos questionadores, um do outro, na busca por atender à complexidade do
campo. Assim, passada a fase inicial em que o pesquisador já pode ver uma certa
configuração do campo, as bases teóricas e algumas alternativas metodológicas
precisaram ser revistas. Ainda assim, determinados pilares teóricos sustentadores
deste estudo não foram e nem poderiam ser alterados, como a concepção de criança
como sujeito de direitos, ativo e participativo, que se caracteriza pelo que é, desde
que nasce, e não pelo que lhe falta sob a ótica do senso comum e do mundo adulto,
como propõem os estudiosos da Sociologia da Infância e, mais precisamente,
aqueles que estudam as culturas infantis, como Manuel Jacinto Sarmento (2007),
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professor da Universidade do Minho, em Braga, Portugal. Em pesquisas dessa
natureza, os instrumentos metodológicos de costume são a observação e as
entrevistas, individuais e coletivas, reconhecidos os seus limites e possibilidades,
também as gravações de áudio e as videogravações. Uma preocupação
teórico-metodológica que permeou todo o trabalho de campo consistiu em garantir
espaços para que as crianças valorizassem e respeitassem as diferenças entre elas,
proporcionando, sempre que possível, circunstâncias de deslocamentos em que
pudessem tanto tomar contato com outros-diferentes, verem a si mesmas como
outros, além de me disponibilizar a ser conhecida e questionada por eles como um
outro, adulto e pesquisador.
Ainda nesse mesmo capítulo 3, destinado à metodologia, foram
incorporadas, portanto, questões referentes à escolha da escola, a minha entrada na
escola, a uma caracterização detalhada da configuração desse campo, que se
constitui no meu universo de pesquisa. Também há neste capítulo uma discussão
sobre os compromissos éticos que se impõem quando se pesquisa sobre as crianças
tomando as mesmas como sujeitos e protagonistas da pesquisa. O capítulo se
conclui com as explicitações das formas de registro utilizadas, dos procedimentos
usados na análise dos dados, bem como o uso de outros recursos metodológicos no
afã de validar e legitimar as minhas interpretações expondo-as às crianças, aos
sujeitos da minha pesquisa.
O capítulo 4, intitulado A televisão que vai à escola, é onde este exercício
acadêmico se justifica como uma tese em que se busca conhecer e demonstrar como
determinado grupo de crianças entende o que sejam as notícias da televisão, além
de buscar identificar e compreender como essas mesmas crianças se relacionam
com o que entendem por notícia, em todas as suas dimensões, da produção aos
textos que a caracterizam, a origens e efeitos. Para ser possível adensar as
categorias elencadas relacionando-as criticamente com as teorias destinadas a
sustentá-las, esse capítulo foi dividido em três grandes eixos: 1- As crianças, suas
famílias e a televisão; 2 - As crianças e as outras mídias na escola; 3 - As crianças e
as notícias da televisão.
No primeiro eixo do capítulo em questão, identificado como 4.1., As
crianças, suas famílias e a televisão, busquei entender como se dava a dinâmica de
aproximações e de distanciamentos entre as crianças para conhecer os seus critérios
de agrupamentos temporários porém freqüentes em que o ideário de Georg Simmel
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(1987) contribuiu para a análise. Nesse percurso, Simmel (idem) favoreceu a
compreensão do dinamismo das interações sociais entre as crianças do grupo.
A relação de cada uma das crianças com os adultos que são identificados por
elas como sendo os seus responsáveis é uma questão complexa – muito
diferenciada em relação à compreensão dos papéis sociais atribuídos à maternidade
e à paternidade, ao que supostamente cabe a cada gênero –, uma vez que se trata de
homens e mulheres nos quais se destaca uma característica comum, o “desejo de
família”. Segundo Roudinesco (2003), no livro A Família em Desordem, o “desejo
de família” vem crescendo nos últimos anos, ao mesmo tempo em que a autora
observa uma pressão da sociedade para legitimar todos os rearranjos familiares
devido à busca social de normatização, ou seja, por uma forte vontade de
integração e de pertencimento.
Nesse primeiro eixo do capítulo 4, discutem-se ainda as parcerias eventuais
entre crianças e adultos, tendo como foco a televisão, a expectativa de
(des)encontros pela importância do aparelho em suas vidas e o que ele proporciona,
as escolhas e preferências de cada um. Pode-se dizer ainda que as crianças desse
grupo vivam e se confrontem com circunstâncias e situações muito adversas onde
muito lhes falte, que elas brincam, riem e jogam de modo muito envolvente e
criativo, como defende Sarmento6
, no texto Imaginário e Culturas da Infância
(2003, p.2). E mais que, nesse aspecto, o fictício e o imaginário sejam
instrumentais para o jogo, embora resida neste último (no jogo), a estratégia mais
evidente na distinção ente um e outro. Essa distinção e tais conceitos são tratados ao
longo da discussão que travei, me valendo do ideário de Wolfgang Iser (1996),
estudioso alemão inscrito no campo da Teoria da Literatura. As articulações feitas
entre os saberes dessa disciplina e da Educação se deram pela recorrência ao
conceito de performance. Nesse sentido, quero deixar claro que, embora não deseje
desconectar esse conceito de performance das reflexões de Iser, parti da defesa e da
conceituação interligada que o teórico fez sobre real, ficcional e imaginário. Isto
porque penso que são das relações que esses três termos estabelecem entre si que a
6
Este texto foi produzido no âmbito das atividades do Projeto “As Marcas dos Tempos: a
Interculturalidade nas Culturas da Infância”, Projeto POCTI/CED/49186/2002 , financiado pela
Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Baseia-se numa conferência proferida no âmbito das
Jornadas “Educação e Imaginário”, realizadas na Universidade do Minho, Portugal, em Março de
2003.
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performance assume, no campo da Educação, uma especificidade de bom
rendimento para as reflexões aqui estabelecidas.
A relação entre as crianças, a professora e a televisão e, ainda, a relação das
crianças com as outras mídias, na escola, estão discutidas em seguida, dentro do
mesmo capítulo 4, nos eixos 4.2. e 4.3.
Na tese apresentada, parte do capítulo 4 se refere à relação das crianças com
as outras mídias na escola, onde sobressai o peso do texto e da estética audiovisual
sobre as outras mídias, principalmente pela idade e pelo perfil socioeconômico das
crianças. O perfil das crianças e suas práticas cotidianas indicam ser a televisão a
principal fonte de onde recortam as notícias que vêem e que ouvem e, ainda, que
essas características típicas da televisão (poder ver e ouvir) sejam elementos
diferenciais quando se discute os aspectos relativos à veracidade e à atualidade das
notícias, em outras mídias. Aqui nesse capítulo, nitidamente as crianças expressam
alguma desconfiança e uma imensa dificuldade para explicar o que sentem como
uma possibilidade de manipulação das representações do mundo em que vivem em
várias mídias, também na televisão.
A outra parte e eixo desse capítulo, se dedica à discussão sobre As Crianças
e as Notícias da Televisão, em que foram feitas aproximações da Educação com
áreas afins, como já havia sido iniciado, com a Teoria da Literatura de Iser, para
sustentar as relações entre os aspectos ficcionais e imaginários e, agora, com a área
de abrangência da Comunicação Social. Fui buscar em Silva (2005), no campo do
Jornalismo, que é parte da área de abrangência da Comunicação Social, certos
valores-notícia para definir o caráter de noticiabilidade dos acontecimentos. A
produção de notícias e de um telejornal sugeriram a retomada do conceito de
performance de Iser para explicar os aspectos relativos ao agir como se (1996).
Nesse capítulo, portanto, foram apresentadas e discutidas as concepções
infantis sobre padrões estéticos dos jornalistas e dos telejornais, sobre critérios de
importância, de veracidade, de credibilidade. Ficaram muito presentes elementos
como uma tensão entre o medo e o desejo de aparecer na televisão e, ainda, o que
chamei de (in)visibilidade dessas crianças na mídia, retomando certos preceitos
teóricos de Sarmento(2007, p.25-49).
Segue o capítulo 5, que se refere aos efeitos conclusivos desta tese, as
Referências Bibliográficas, no capítulo 6 e os documentos em anexo, no capítulo 7.
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3
Os passos e os percursos
3.1
Reflexões teórico- metodológicas
É durante o período de permanência do pesquisador no campo que os
aportes teóricos que constituem a base teórica da pesquisa são postos à prova. Foi
na interação da pesquisadora com a globalidade das experiências vividas e
imaginadas pelas crianças que emergiram recorrências, discrepâncias e
ambigüidades que tensionaram as escolhas, as decisões prévias e a flexibilidade da
pesquisadora.
À medida que o investigador observa e captura, registra e analisa cenas e
situações, depoimentos e relatos, sempre que possível considerando os seus
contextos, vão emergindo sentidos com certa regularidade e, também,
eventualmente, aspectos que até então não tinham sido pensados. È o material
coletado que exige do investigador movimentos de aproximações e de
distanciamentos para ser possível identificar os grupamentos de estruturas
recorrentes, carregadas de sentido, que se configuram em categorias.
Essa estruturação da empiria em categorias foi se constituindo ao longo do
processo de interação com o campo e, assim que foram configuradas como tal, elas
passaram a funcionar como se fossem trilhas de acesso e de visibilidade sobre as
relações que as próprias categorias estabeleciam entre si, sobre a articulação delas
com os sentidos, sem negar as contradições e as ambigüidades existentes.
Deste modo, nessa movimentação composta de aproximações e de
distanciamentos, os procedimentos metodológicos da pesquisa são questionados
pelos aportes teóricos previamente pensados, e vice-versa, no afã de atender à
complexidade do campo. As categorias elencadas também vão sendo questionadas
de modo a verificar se as mesmas são adequadas para acolher e permitir analisar o
material coletado de forma integral, sem qualquer tipo de corte, restrição ou
omissão de modo a fazer com que a empiria venha a caiber nas categorias já
pensadas.
Passada a fase inicial de conhecimento mútuo, em que se tornou possível
identificar uma configuração do campo, foi se tornando necessária uma revisão na
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base teórica definida inicialmente e, também, a inclusão de algumas alternativas
metodológicas diante de alguns aspectos que emergiram pela sua força,
abrangência e complexidade. Esses aspectos estão tratados nos capítulos que se
seguem, em que apresento cada uma das categorias elencadas com as abordagens
teóricas prevalentes, em cada caso.
É importante ressaltar que foram estabelecidas a priori algumas concepções
sustentadoras deste estudo das quais ele não poderia se desviar, em quaisquer
circunstâncias, sob o risco de invalidar a pesquisa em si, na sua totalidade. E uma
concepção de base, sobre a qual procurei operar como um pilar de sustentação
inegociável, referia-se a uma concepção de criança como sujeito de direitos, ativo e
participativo, que se caracteriza pelo que é, desde que nasce, e não pelo que lhe falta
sob a ótica do senso comum e do mundo adulto.
Uma característica comum a pesquisas como esta implica que ela aconteça
onde exista e seja legitimado um espaço garantido de encontro entre sujeitos, e,
nestes casos, os instrumentos metodológicos de costume são a observação e a
entrevista, individuais e coletivas, reconhecidos os seus limites e as suas
possibilidades.
No entanto, em geral, a riqueza do campo sugere que seja mantido um certo
cuidado para não escapar do que e de como se busca conhecer, ainda com maior
apuro quando as crianças são entendidas como os sujeitos da pesquisa e se deseja
garantir sua autoria e protagonismo numa circunstância em que elas e o pesquisador
precisam se dar a conhecer mutuamente. Assim, como buscava conhecer a relação
que as crianças estabelecem com as notícias da televisão, precisei destacar certos
aspectos em detrimento de outros, não por serem menos importantes, mas para
apurar o foco no meu objeto de estudo.
Deste modo, julguei prudente explicitar alguns pontos-chave que busquei
manter vivos nesta pesquisa, tal como foram defendidos por Maria Thereza Freitas
(2003), citados aqui na ordem proposta pela autora: 1. A necessidade de a fonte de
dados ser o contexto onde cada uma das crianças vive, como um sujeito particular
único, diferenciado dos outros, e, ao mesmo tempo, entender o lugar delas como
parte de uma totalidade social; 2. a importância de buscar conhecer os fenômenos
daquela determinada realidade social em sua complexidade, em sua totalidade; 3. a
ênfase da coleta dos dados estar centrada na compreensão pautada na descrição,
incluindo-se aí os modos de relação entre cada criança e seu grupo, sua comunidade
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escolar, com a professora e vice-versa; 4. a garantia do meu lugar como
pesquisadora sendo parte da investigação, capacitada a estabelecer relações
intersubjetivas com os sujeitos da pesquisa, sem poder perder de vista o meu lugar
sócio-histórico, diferenciado e exotópico; 5. tomar a situação de pesquisa como um
espaço de compreensão e de reflexão para os sujeitos da minha pesquisa e também
para mim, como pesquisadora, onde a profundidade do conhecimento deveria valer
mais do que sua precisão, e da qual eu não precisaria esperar nenhum “efeito
conclusivo”, no sentido de alcançar verdades fechadas ou definitivas.
Nesse viés, trabalhamos com situações de entrevistas, tendo como objetivo
a mútua compreensão, ativa e responsiva, entre mim e as crianças, em pares ou em
pequenos grupos, atendendo às minhas demandas e também às deles, buscando
sempre valorizar e resguardar a interação e os espaços de diálogo, garantindo a
enunciação de cada um, bem como a alternância dos sujeitos falantes, para que
todos – eles e eu – fôssemos tanto ouvintes como locutores.
Vale destacar que o trabalho acadêmico sustentado nos princípios da
alteridade funciona em sentidos simultâneos e desafiadores. Neste caso, em
primeiro lugar, eu desejava me permitir conhecer e ser vista pelas crianças sob o
olhar alteritário delas em relação as imagens de criança a elas impostas pelo mundo
adulto. A professora, a jornalista e a pesquisadora que vivem em mim também
tensionaram uma à outra de forma alteritária, o que, além das vertigens que
provocou em muitas situações, exigiu-me revisar as prioridades e os caminhos.
Minha vida como professora, jornalista e, agora, pesquisadora, mantinha-se
pautada no preceito bakhitiniano de que para haver compreensão (1988, p. 132),
precisaria haver pelo menos duas consciências em diálogo, opondo ao interlocutor
sua contrapalavra nesse processo dialético de construção de sentidos, e essa
conduta facilitava a defesa das entrevistas em pares, sempre que possível, e também
das chamadas entrevistas narrativas.
E, nesse processo de construção de sentidos na escola, é importante chamar
atenção para o elevado teor de complexidade que envolve a relação do professor
com seus alunos, além da presença de um outro, o pesquisador, na sala de aula.
Hoje, há uma série de estudos pertinentes e oportunos sobre esse tipo de
circunstância e relação que, inegavelmente, permeia toda a pesquisa, assim como
deixa marcas sobre ela.
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Um elemento totalmente imprevisto na pesquisa e que a enriqueceu
significativamente, foi proposta, por parte das crianças, a criação de um telejornal,
encampado pela professora e no qual, diferentemente dos jornais escolares feitos
até então, as notícias não estariam referenciadas na comunidade escolar, mas na
mídia (em especial na mídia impressa), para numa etapa seguinte serem
transformadas ou adaptadas para a televisão, tal como foi proposto pela professora
regente da turma.
Todo esse processo foi planejado e encaminhado pela professora. Grande
parte dele foi filmada por duas câmeras com microfones (de mão e um boom) para
tornar possível que as crianças se vissem e escutassem suas vozes na televisão,
etapa em que colaborei ativamente com os recursos técnicos necessários, tanto para
tornar possível atender ao desejo das crianças, quanto para obter o registro
audiovisual de uma atividade muito enriquecedora para este estudo.
Essa filmagem resultou em mais de duas horas de gravação feitas por duas
câmeras, uma Super VHS da escola e outra, Betacam, que foi levada por mim e
operada por dois profissionais da MULTIRIO (Empresa Municipal de Multimeios
da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro) desde a fase de planejamento coletivo da
tarefa até o final da gravação.
No entanto, apesar do reconhecimento e de terem sido considerados aqui
todos os procedimentos, inclusive a produção do telejornal, vale insistir que essa
pesquisa tenha se sustentado basicamente na coleta de dados feita no meu caderno
de campo, onde foram feitos os registros diários do que considerei significativo
para o estudo, onde procurei registrar a interação das crianças comigo, entre elas ,
delas com a professora e com outras crianças e adultos da escola.
Eventualmente me utilizei de um audiogravador, muito mais para me
permitir interagir “inteira” em certas ocasiões, sem a preocupação de escrever e de
registrar, do que por ter a pretensão de que a audiogravação pudesse captar a
globalidade do que ali acontecia. Havia em mim a certeza de que os recortes que
aconteciam no percurso imprimiriam as minhas marcas como pesquisadora em
relação estreita com o campo, além da impossibilidade assumida de ser possível
capturar tudo.
Acho importante dizer que a professora mostrava se esforçar para, de
alguma forma, ela e suas crianças virem a contribuir para os meus estudos. Assim,
por mais cuidado que eu tenha tido, ainda que sem qualquer intenção de passar em
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branco pelo grupo, percebi a imagem da professora sobre um outro, pesquisador,
que exigiu dela um tipo de esforço no sentido de atender às expectativas do que eu
estaria buscando naquele espaço. Ainda assim, a minha interação com ela e com as
crianças se deu sem problemas e, aos poucos, ela pôde perceber que ouvir as
crianças era importante para mim, muito mais do que encontrá-las caladas,
organizadas em suas mesas, porém silenciosas e desmotivadas.
Resta informar que as alternativas metodológicas utilizadas foram
devidamente autorizadas pelos responsáveis e pela equipe da escola, e em nenhuma
situação foram introduzidas antes mesmo de terem sido apresentadas às crianças
para que entendessem os encaminhamentos, as razões para tais procedimentos
sempre acompanhadas de um acordo tácito em que elas poderiam decidir não se
deixar gravar ou filmar, ainda que com autorização dos adultos. Essas questões
relativas à ética na pesquisa com crianças estão tratadas mais à frente, neste
capítulo. Ainda que o uso do audiogravador tenha acontecido pouquíssimas vezes,
e as crianças pareceram não se interessar nem expressar qualquer curiosidade em
relação a ele. O encontro com o gravador portátil suscitava nelas um tipo de
lembrança e de desejo que as levava a me pedir, com insistência, para que eu
levasse uma máquina fotográfica digital, para dar “para eles se verem na máquina!
Gravador é chato porque não tem cara, só a voz da gente. A minha boca está aqui, ó,
eu falo tudo de novo!” (JH, mo, 7 anos). E pediam: “Tia, gosto mais daquele outro
seu gravador digital, gravador não, aquele de fotos que a gente se vê. Traz tia, deixa
eu mesmo usar? Deixa, deixa tia.”(VS, mo, 6 anos; LS, ma, 7 anos)
Um outro dado relevante e que me causou um relativo desconforto se referia
ao fato de as crianças me chamarem de “tia”. Nunca, em quase 20 anos de
magistério, meus alunos me chamaram de outra forma que não fosse o meu nome.
No entanto, diante de uma relação já estabelecida com os adultos da escola, em que
todos eram assim tratados, não me opus e busquei não expor o meu desconforto.
Aconteceu, ainda, de as crianças fazerem algumas atividades gráficas sobre
o que gostavam, ou não, de ver na televisão, também sobre seleção de notícias do
jornal impresso para ser possível montar o telejornal. Nesses casos, eu procurava
escutar as crianças enquanto faziam a atividade e, em algum momento posterior, em
pequenos grupos, eu buscava conversar com elas, retomar a atividade e a
circunstância em que ela aconteceu.
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Em trabalhos desta natureza, em que o registro no caderno de campo do
pesquisador é a fonte por excelência da coleta de dados e da geração do material de
análise, alguns cuidados precisam ser tomados de modo a garantir a personalidade
do pesquisador no seu estudo, sem, no entanto, que ele se confunda com o campo,
para ser possível fazer as aproximações e os distanciamentos necessários não só
para a realização do estudo mas, também, para a validação do mesmo.
Estabeleci para mim, desde o início da pesquisa de campo, alguns
procedimentos que me permitiriam minimizar os riscos de direcionamento, para ser
possível identificar os aspectos subjetivos e para conhecer aspectos gerais e
sistêmicos de funcionamento do grupo, que, no percurso, às vezes até em um único
dia, se montou e se remontou em diferentes configurações, em contextos variados.
Nesse sentido, precisava reconhecer e lidar com a necessidade de buscar as
formas possíveis de validar as minhas escutas, leituras e interpretações, na medida
em que o processo interpretativo de captação dos sentidos funcionava a partir dos
meus recortes e registros e, desse modo, como pesquisadora, era também um
instrumento importante na investigação. Assim, para ser possível conhecer de que
modo as notícias da televisão deixavam suas marcas naquelas diferentes crianças
que compunham o grupo, eu precisava buscar as confirmações possíveis de que as
interpretações estabelecidas atendiam ao ponto de vista delas, e não aos meus nem
aos da professora, o que não era uma tarefa simples.
Decidi então trabalhar com métodos de triangulação, usados em pesquisas
qualitativas realizadas com crianças, em que o pesquisador pode contrastar
materiais impressos (trabalhos gráficos) produzidos pelas crianças com seus
próprios depoimentos registrados no caderno de campo, conversas, fichas
documentais disponíveis na escola e as videogravações, por exemplo. Esse trabalho
foi feito e está indicado no capítulo referente à análise do campo. No entanto,
sempre que foi possível, procurei incluir as crianças nessa triangulação, na qual, em
pequenos grupos, procurávamos conversar, rever e ouvir delas algumas
informações sobre critérios utilizados por elas para a seleção e o recorte de algumas
notícias em detrimento de outras. Essas triangulações se deram a partir de decisão
metodológica que permitia que eu me colocasse como instância mediadora numa
das pontas do triângulo, na outra as crianças em pequenos grupos e na terceira,
trabalhos, fatos, histórias contadas, preferências e experiências. Ou seja, nessa
terceira ponta poderiam estar trabalhos gráficos ou audiovisuais como o telejornal,
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um determinado episódio de certo programa de televisão e, com freqüência,
algumas notícias veiculadas pelo telejornal ou o próprio, como um formato
específico de programa.
Assim, nesse mecanismo de depuração do processo interpretativo, também
a videogravação do telejornal foi a elas apresentada de modo a se verem, se
escutarem e participarem da edição desse material na escola. Foi levado para a
escola um computador com editor de imagens, com possibilidades gráficas e de
inserção de sonorização; nesse momento, a participação das crianças foi
determinante para perceber como se viam, as imagens que tinham de si, das outras
crianças do seu grupo e, em especial, como entendiam a produção das notícias dos
telejornais.
Na última etapa de visionamento, em que o vídeo foi apresentado a elas já
editado, segundo os critérios estabelecidos por eles, em grande parte feito na escola
em dias anteriores, sempre com a participação deles, também procurei filmar esse
visionamento para que eles pudessem, ainda, ver como reagiram ao verem a si
mesmos depois dos reajustes propostos. Esse telejornal, em sua forma final, ficou
com duração aproximada de 15 minutos.
Depois de editado com a co-participação das crianças, o vídeo foi entregue a
elas, em cópias em DVD para cada uma, também para a escola e para professora.
3.2
Lukacs
A pesquisadora e as narrativas infantis
Narrar ou Descrever? foi o título dado por Lukacs a um ensaio escrito por
ele, traduzido e publicado no Brasil pela editora Civilização Brasileira em 1964. A
partir desse ensaio, em que o húngaro Lukacs defende a sua concepção de narrativa,
estabelecendo um contraponto com a concepção de Benjamim expressa no texto O
Narrador, o filósofo Leandro Konder escreveu, em 2002, um artigo intitulado A
Narrativa em Lukacs e em Benjamim. Embora fossem contemporâneos, à época em
que os textos foram publicados originalmente, os dois não tomaram conhecimento
um do outro. Para Konder, a afinidade de ambos era evidente, embora existisse uma
diferença clara na abordagem do tema, por cada um deles.
Para Lukacs, a defesa da descrição sobre a narrativa implicava uma
cumplicidade com o existente, como se a realidade fosse sempre aquilo que ela é no
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momento em que é descrita, legitimando-o (o existente). Já a narrativa estimularia a
compreensão da realidade em permanente transformação, “num movimento
incessante em que engendra o novo”. (Konder, 2002) E, assim, Lukacs comparou a
atitude de quem descreve e de quem narra como se o primeiro fosse um observador
contemplativo do mundo, enquanto o segundo, o narrador, se expressasse como
quem vive os acontecimentos.
É o mesmo Konder que ressalta o olhar diferenciado de Benjamim ao
resgatar as origens remotas das narrativas, em que identifica o ato de narrar como a
“expressão de um trabalho artesanal que se realiza sobre a matéria-prima da
experiência”. (Konder, 2002) Assim, iniciando com os marinheiros viajantes,
passando pelos camponeses e chegando aos artesãos, a arte de narrar foi assim se
aprimorando de modo a mobilizar o “contador de histórias por inteiro”, de forma
que mãos e gestos, expressões e movimentos ajudassem a sustentar o fluxo do que
era dito exemplarmente. Talvez se justifique na forma como a sociedade foi se
remontando a preocupação de Benjamim com o declínio da narrativa, como indica
Konder. Segundo ele, no lugar das velhas histórias, “sempre surpreendentes e
renováveis, as mudanças do mundo estivessem propondo sua substituição por
informações e notícias que só seriam capazes de suscitar interesse enquanto eram
novas”.(2002, p.3)
Deste modo, ao defender a importância de as crianças criarem, contarem e
ouvirem histórias encantadas, relatos de situações reais e imaginadas e que o
fizessem, sempre, por inteiro, eu pretendia estimular a narratividade das crianças,
sujeitos da pesquisa e, assim, compreender o que as aproximava e/ou afastava do
jornalismo informativo produzido e veiculado nos telejornais.
É possível afirmar que, mesmo antes da minha entrada no campo, como uma
estudiosa do tema, eu vinha observando crianças de escolas públicas municipais
cariocas em interação criativa com os expressivos avanços tecnológicos a que têm
acesso, em geral com o audiovisual, por meio da televisão, mas também com a
internet e com os celulares. De alguma forma, parecia estar havendo uma relativa
ampliação dos espaços de narrativas, agora com sons, imagens, cores, movimentos
e interatividade e, com o acesso gradativo aos meios de produção audiovisual,
supostamente estaria se tornando possível construir e reconstruir o “era uma vez”,
os casos e as histórias em diferentes suportes e linguagens.
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30
Como pesquisadora, estudar as crianças a partir de suas narrativas implicava
a possibilidade de compreender e de partilhar a rede de significação simbólica que
as unia, sem igualá-las. Essa rede de significações, tecida na linguagem se
sustentava nas enunciações e narrativas e, por isso, ouvi-las e registrá-las tornou-se
imperioso para conhecer o(s) modo(s) como as crianças são/estão no mundo. Era
preciso levar em conta, na análise das narrativas delas que a televisão tem a
possibilidade de criar e de transformar as práticas sociais que “falam” da sociedade,
como também de constituir saberes acerca desta mesma sociedade. Além do fato de
que, hoje em dia, parecer ser a televisão o lugar de onde as crianças retiram o que
sabem e o que lhes é oferecido para compreender o cotidiano e a vida. Deste modo,
as narrativas das crianças sobre as notícias da televisão constituíram-se no principal
material empírico deste estudo. Mesmo assim, alguns questionamentos não podiam
ser evitados, e as suas possíveis respostas estão apresentadas ao longo deste texto,
como por exemplo: até que ponto, se pode garantir a autoria e o protagonismo
infantil, considerando-se que há recortes, registro e análise que são de
responsabilidade do pesquisador? Mesmo não havendo direcionamento, quais são
os limites de interferência do pesquisador que não se faz isento, omisso,
despercebido? Em que medida essas questões podem vir a se constituir em um
problema?
Trabalhar a partir das narrativas das crianças implica aceitar certa dimensão
de incerteza, na medida em que não se pode supor que o mundo infantil esteja de tal
modo organizado e planejado pelos adultos para que nele não caibam mudanças,
que dele não se esperem propostas de transformação que, tudo indica, seriam
ameaçadoras e desestabilizadoras da visão adultocêntrica da estrutura de mundo
que lhes interessa manter (Larrosa & Lara, RJ: 1998, p.75-76).
O trabalho com as narrativas orais das crianças, transmutadas em linguagem
escrita, alternativa escolhida por mim, visava me colocar no lugar de um adulto
diferenciado, um outro – adulto, numa circunstância específica, aquela de quem
deseja reformatar a discussão entre o conhecimento e a alteridade do mundo
infantil. Assim, precisava capturar com meus olhos, ouvidos e mãos suas falas,
expressões de sentimentos, intervenções e pausas para que as mesmas pudessem
valer como questionamentos sobre o mundo de que faço parte, o dos adultos. Não
havia, portanto, possibilidade de as crianças do meu universo de pesquisa dirigirem
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31
seus olhares e suas falas a um gravador ou a uma câmera de videogravação, como
uma escolha metodológica, diante de uma intenção de captar e de reproduzir tudo.
Neste estudo, estava certa da minha intenção de estar disponível para
observá-los e interagir com eles, como também, e ainda com maior interesse, de ser
observada e questionada por eles para compreendê-los melhor. Assim, supunha
que, ao ser notada e aceita por eles como um outro (adulto), estaria sendo permitido
a eles que me devolvessem algumas dessas imagens “que colocamos sobre eles para
classificá-los, para excluí-los, para proteger-nos de suas presenças às vezes
incômodas, para enquadrá-los institucionalmente em casa e na escola, para
submetê-los as nossas práticas” (Sarmento) e, com isso, reduzir as possibilidades
de emergirem surpresas que podem vir a ser vertiginosas ou ameaçadoras para o
adulto.
Fazer uma pesquisa com crianças que se sustenta, especialmente, nas
narrativas delas se justifica pela importância que o ato de contar histórias têm para a
conformação dos fenômenos sociais. A narrativa como uma prática discursiva
funciona não apenas como uma forma de investigação, mas como uma alternativa
muito produtiva de coleta de dados nas Ciências Sociais, nos dias de hoje.
A entrevista narrativa, tal como é chamada por alguns estudiosos de
metodologias (Bauer e Gaskell, 2000), de que se servem as pesquisas qualitativas é
uma alternativa de geração de dados que têm infinitos ganhos e alguns problemas
epistemológicos que, como dizem seus autores (idem, p. 91), têm o tamanho e a
dimensão “do que as narrativas nos contam”.
Há duas críticas semelhantes porém diferentes que recaem sobre o uso das
“entrevistas narrativas” (EN). Uma delas se refere às expectativas e hipóteses
levantadas pelo narrador/informante em função do que ele supõe que o pesquisador
deseje ouvir, o que, de fato, pode ocorrer, mas que não é uma prerrogativa exclusiva
das entrevistas narrativas. Outra critica comum se refere ao risco de o pesquisador
direcionar e influenciar o universo pesquisado de modo a escutar o que, de
antemão, esperava ouvir.
Ciente dos riscos e com atenção permanente para evitar que os mesmos
viessem a ocorrer, eu não criei nenhuma estratégia que pudesse mascarar o meu
interesse em interagir com as crianças, em dialogar e até mesmo em me expor,
dependendo da situação, dando o meu ponto de vista pessoal sobre alguma coisa. O
que me preocupava e do que precisava fugir, era do risco de uso da EN como uma
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variação estratégica para o antigo esquema de perguntas e respostas, que, num
momento posterior, pudessem vir a ser avaliadas segundo critérios de certo ou
errado, verdadeiro ou falso, etc., o que não atenderia a esta pesquisa.
Por mais se evidenciasse uma tendência de as crianças buscarem agradar à
pesquisadora, não acredito que isso tenha se refletido nas interações que
estabeleceram com seus amigos, com a professora nem em contato direto comigo.
O uso das EN foi alimentado sempre pelo interesse de conhecê-las, de
compreendê-las melhor sem julgá-las nem confrontá-las em relação às suas
próprias narrativas, nem em relação à dos amigos.
Como também não supunha que contradições, ambigüidades, tensões e
conflitos infantis fossem ficar à margem de suas narrativas, não me cabia
resolvê-los nem tampouco verificar seu teor descritivo em relação a fatos
supostamente reais, ficcionais ou imaginários.
3.3
Questões éticas que envolvem as relações entre crianças, a
pesquisadora e o professor
Já explicitei o meu desconforto em relação a ser tratada pelas crianças como
sendo “tia” e a flexibilização necessária diante do carinho, da aproximação sem
reservas e, sobretudo, da confiança das crianças e da equipe da escola em relação a
mim. Não tenho dúvida de que essa relação foi construída de modo parceiro e
interativo na convivência que estabelecemos durante todo o ano letivo. Muitas
questões se impuseram aqui como desafios a serem enfrentados em que a maioria
delas dizia respeito ao espaço delimitado, por um lado, pela garantia à autoria e ao
protagonismo infantil e, por outro, pela necessidade de não expor as crianças em
nenhuma instância, fosse na escola, na família, nas comunidades em que vivem e
nos diferentes espaços que este estudo puder alcançar.
É extremamente delicado e difícil encontrar um ponto de equilíbrio que
satisfaça tanto a valorização das vozes e das narrativas infantis, quanto ter que
protegê-las diante do uso que pode vir a ser feito do que dizem e do que são. O meu
modo próprio de ser e de lidar com crianças, não me permitiria criar nem propor a
elas que se dessem outros nomes, diferentes do que têm. Assim, optei por fracionar
na menor parte possível o nome de cada uma das crianças usando as letras iniciais
do primeiro e segundo nomes, ou do nome e do sobrenome, identificando-as por
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33
apenas duas letras maiúsculas, seguidas de uma pequena sigla indicativa quanto ao
gênero – “mo” para os meninos e “ma” para as meninas –, seguida da idade em
julho de 2007.
Ainda assim, preciso deixar aqui registrado o quanto este texto se ilumina e
se robustece ao incluir os dados do campo e, ao mesmo tempo, o quanto ele se torna
desinteressante e, até mesmo, enfadonho quando, no lugar dos nomes pelos quais
são chamadas as crianças, aparecem duas letras maiúsculas, uma sigla formada por
duas letras minúsculas e um número, como por exemplo: VS, mo, 6 anos.
Um outro ajuste que resolvi fazer se refere à transcrição das suas falas com
erros de português. No afã de ser o mais fiel possível às falas e aos depoimentos
infantis, anotei o que pude com as circunstâncias, cenas e situações tal como eram
ditas e expressas pelas crianças. No entanto, com freqüência, nas situações em que
eu devolvia a eles o que tinham dito, por exemplo, durante as atividades gráficas
desenvolvidas pela professora, ou durante uma brincadeira, tanto eu ficava
constrangida de expor uns aos outros ao ler para elas textos com erros, quanto até
mesmo a professora se apropriava disso com crítica e se mostrava insegura de vir a
ser avaliada pelos eventuais erros cometidos por seus alunos. Vou exemplificar
com uma expressão muito típica desse grupo, usada para se referir a um grupo de
pessoas reunidas em que ao menos uma das crianças estivesse incluída: “nós tudo
fomos embora, nós tudo tava com fome, etc.” Eventualmente, eles usam o termo a
gente com o verbo, em geral, com uma concordância errada: “a gente fumo” ou “a
gente comiam depressa para não pegarem tasco” (referindo-se a ter que dar no
lanche pedaços de bolo Ana Maria para os meninos de outras turmas). Algumas
outras palavras eram usadas com freqüência pelas crianças como “fulano”,
“bertrano”, “sircrano” e “pobrema”, para referirem-se a “fulano”, “beltrano”,
“sicrano” e “problema”.
Escutei inúmeras vezes as crianças se expressando de forma incorreta, o que
pode ser reconhecido menos como erro, mais como variação dialetal, sem que
houvesse qualquer intervenção de adultos. No entanto, ao entenderem o
funcionamento dos meus registros para análise posterior, sem que nada houvesse
que impedisse a leitura dos depoimentos deles, a professora, e também as crianças
começaram a se mostrar inseguras em relação à possibilidade de virem a ser
corrigidas pela professora ou ainda serem motivo de deboche. Por isso, decidi
corrigir minimamente na transcrição escrita seus textos orais, sempre com a
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34
preocupação de preservar as falas originais, sem, no entanto, oferecer,
especialmente para as instituições escolares, elementos para crítica sobre aspectos
que não são estáticos e que, ao final deste estudo, já poderiam estar reestruturados
se consideramos a idade e a turma em que se encontram: o primeiro dos nove anos
que compõem o ciclo de formação.
Uma outra questão que precisa ser explicitada e que influenciou a minha
decisão de substituir os nomes das crianças pelas suas iniciais se deve à importância
do local de moradia como elemento diferenciador, muito valorizado e utilizado com
muito peso na identificação do grupo. Decidi, nesse caso, revelar a localização da
escola pública municipal na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro e, em cada
caso, poder me referir livremente às comunidades próximas onde as crianças
moram por ter entendido que, desse modo, o estudo seria mais produtivo para
compreender as crianças, seus medos, suas expectativas e parcerias eventuais em
função da comunidade de que são parte.
Assim, à guisa de conclusão deste item, gostaria de informar que a minha
pesquisa teve seu projeto analisado e autorizado para sua consecução pela
Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro (anexo 1). Assim
que cheguei à escola, foi expedida para cada um dos responsáveis por cada criança
uma autorização para a participação da mesma na pesquisa, na qual se incluía o
direito de uso de imagem em fotografias e em gravação audiovisual, além da voz,
em caso de audiogravação (anexo 2). Ainda assim, as crianças sempre foram
consultadas em relação ao seu desejo, de não serem filmadas, gravadas ou
fotografadas, mesmo com a autorização de seus responsáveis. No caso do telejornal
e da proposta de gravação, edição, etc., houve duas crianças que foram autorizadas
a participar da atividade desde que não fossem filmadas “dando notícias, para que
não aparecessem na televisão”.
De todo modo, cada criança recebeu uma cópia gravada da última forma da
filmagem do telejornal que também entregue para o acervo da escola e será usada
por mim apenas em atividades de natureza acadêmica.
Ainda que possam parecer simples, as escolhas teórico-metodológicas que
dizem respeito à gerações de dados, às análises feitas partir das recorrências e
discrepâncias, regularidades e descontinuidades encontradas, os sentidos, as redes
de significações e algumas decisões são desafios que fazem parte das atribuições do
pesquisador. Mesmo que sejam feitas todas as ressalvas possíveis, não se pode
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35
negar que cada pesquisa expressa tanto a competência, a habilidade e as
fragilidades do pesquisador, em diferentes níveis e nuances, quanto, também, o
amálgama que resulta numa cor, tessitura e personalidade próprias a cada estudo.
As expectativas, as hipóteses e os percursos que se cumpriram, ou não,
integram esse relato assim como o registro de todos os tipos de dados analisados,
das narrativas às fichas de matrícula, alguns desenhos, cenários e depoimentos.
Em pesquisas desta natureza com crianças é desejável que o pesquisador se
exponha e que se ponha à prova, também, quanto às suas interpretações, à
construção de sentidos e de categorias que vê emergir, pondo-se disponível para
expor seu olhar sobre as crianças e vê-lo questionado e legitimado por elas,
também. Assim, quando o pesquisador devolve a elas, de modo estimulante,
algumas de suas escolhas, atitudes e argumentos, respeitosamente, elas se mostram
valorizadas, respeitadas e aptas a rever e/ou validar as mesmas. Deste modo, tanto
nas atividades mimeografadas oferecidas pela professora, quanto em situações em
que foram feitas audiogravações, representações gráficas ou videogravações, como
no caso do telejornal, as crianças puderam se ver, se ouvir, refazer opiniões e
depoimentos, criticarem-se a si e aos outros. Com isso, também a pesquisa tem a
oportunidade de se reestruturar e se validar ao permitir contrastar “perspectivas,
métodos, dados e teorias como forma de depurar o processo interpretativo”.
(Corsaro, 2003 in Borba, p.90)
Uma estratégia que funcionou muito bem durante toda a minha permanência
no campo consistiu em observar e, sobretudo, conversar com as crianças sobre suas
vidas, as coisas que gostam de fazer quando não estão na escola, suas brincadeiras
prediletas, seus medos e desejos, etc., o que foi criando o vínculo e a confiança
necessários para o fluir suave e continuado da pesquisa. Como sujeitos da minha
pesquisa, elas ajudaram na triangulação desejada entre os conceitos teóricos e as
metodologias, o meu olhar e a minha análise, postos à prova, sempre que possível,
ao ouvi-las e ao me propor a dialogar sobre a minha forma de conhecê-las e de
compreendê-las.
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36
3. 4
A escola e a turma
A escolha da escola e de uma determinada turma foi norteada pelo desejo de
trabalhar com um grupo em fase inicial de sistematização da leitura e da escrita (6-7
anos), freqüentando essa escola pela primeira vez para cumprir uma nova etapa que
dura, no mínimo, 9 anos e que configura a Educação Fundamental. Essa turma e
escola específicas foram indicadas pela Coordenadoria Regional de Educação
(CRE) por representarem um universo variado de alunos integrado num mesmo
grupo – alguns oriundos de creches e pré-escolas públicas e particulares; outros,
muito pobres, oriundos de favelas próximas com Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) e Índice de Desenvolvimento Social (IDS) muito baixos, como Rio
das Pedras (Jacarepaguá) e Terreirão (Recreio dos Bandeirantes). Há outras
crianças que moram em bairros menores, que ficam dentro da área de abrangência
de um bairro extenso da zona oeste, que se chama Jacarepaguá, como: Gardênia
Azul, Merck, Taquara, Freguesia, Tirol e outros.
A escola fica situada dentro de um condomínio de classe média-alta, na
mesma Zona Oeste da cidade, num bairro que em uma de suas extremidades faz
fronteira com Jacarepaguá. Fazem parte desta turma, ainda, filhos de trabalhadores
do condomínio, como: porteiros, faxineiros, eletricistas, biscateiros, etc.
O tempo de permanência no campo foi de aproximadamente oitenta horas,
divididas em dois dias fixos semanais; minha estada na escola se iniciava com a
chegada das crianças às 7h30, e se encerrava as 10h, em geral, quando estivesse
terminado o tempo de recreio a elas destinado. Alguns dias, fui à escola para
acompanhar atividades das crianças com a professora em horários excepcionais,
como, por exemplo, nos horários planejados para produção, gravação,
visionamento e edição do telejornal, realizado pelas crianças.
A pesquisa de campo teve início nos primeiros dias de aula, ainda em
fevereiro de 2007, e foi concluída nos primeiros dias de novembro de 2007. Ela
aconteceu, mais ou menos, dentro do tempo previsto, devido a uma licença médica
solicitada pela professora. Essa licença, que se iniciou nos últimos dias de outubro,
acabou gerando uma dissolução do grupo, por ter sido necessário dividir a turma em
outras três salas de aulas da escola.
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Quadro sinóptico da Turma (20 Crianças7
)
Gênero
10 meninos 10 meninas
Idades em 2007
16 crianças com 7
anos
nascidas em 2000
2 crianças com 6
anos
nascidas em 2001
2 crianças com 8
anos
nascidas em 1999
Religiões informadas
2 famílias
deixaram em
branco
12 famílias são
Católicas
Apostólicas
Romanas
6 famílias são
Evangélicas
Pai: profissão e escolaridade
2 crianças não conhecem o
pai
3 famílias não informaram
2 pais são operadores
de máquinas
1 pai tem ensino superior
1 é pedreiro 6 têm 1º grau
completo1 é eletricista
2 estão desempregados 3 não concluíram
o 1º grau2 motoboys
3 são comerciantes e/ou
vendedores autônomos
3 têm o 2º grau
completo
3 são vigilantes 4 não concluíram
o 2º grau4 são jardineiros, auxiliares
de serviços gerais de
condomínios, etc.
Mãe: profissão e escolaridade
As 20 crianças conhecem e
vivem com a mãe
10 mães têm 1º grau
completo
1 mãe trabalha como
professora de 5ª /8ª 4 mães não concluíram o 1º
grau1 trabalha como explicadora
onde mora
2 são vendedoras 4 têm o 2º grau
completo
2 são garçonetes
6 são do lar, não trabalham
fora de casa Todas as que iniciaram o 2º
Grau o completaram8 trabalham como
domésticas e/ou diaristas em
casas de família
Residência das crianças e responsáveis
7
Dados obtidos nas fichas informativas de cada aluno, que são atualizadas anualmente pelos seus
responsáveis. Essas ficam arquivadas na secretaria da escola e que foram disponibilizadas pela
direção para esta pesquisa .
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Comunidades de
baixa renda
(Terreirão, Morro
do Banco)
Condomínios da
Barra da Tijuca
(onde pais
trabalham)
Adjacências
(Gardênia, Anil,
etc.)
7 crianças 5 crianças 8 crianças
Acesso a tecnologia em casa
Todos têm pelo
menos um
telefone celular
3 crianças têm um
computador
4 crianças têm 1
TV
4.têm 2 TVs
10 têm 3 TVs
7 crianças citam o uso do rádio ao falar em notícias
3.5
Minha entrada no campo
Antes da chegada à sala de aula escolhida por mim juntamente com a
direção, houve um contato bastante produtivo com a professora indicada para o
caso. Desde o primeiro momento, ela se mostrou segura, acolhedora, sem exageros
e, de certo modo, deixou até transparecer um pequeno orgulho, ou uma ponta de
vaidade por ter sido a professora indicada pela direção para a pesquisa. Essa minha
percepção se deu apenas no nosso segundo encontro, na mesma semana, quando a
reencontrei com os demais professores da escola, no dia em que participavam de
um centro de estudos. Naquele dia, anterior ao de início das aulas, fui apresentada
pelo grupo gestor da escola aos professores e funcionários. A diretora me deu
“cinco ou dez minutinhos” para que eu me apresentasse e explicasse para o grupo os
motivos da minha estada na escola por um período semelhante ao ano letivo.
Naquele momento, de modo resumido, expliquei os objetivos da minha pesquisa,
que exigiam uma aproximação planejada com as crianças, uma busca de escuta e de
compreensão de suas narrativas, brincadeiras, conversas, etc. Ao ser resumido, o
objeto da pesquisa se restringiu à questão “crianças e televisão, o que vêem, sobre o
que falam, etc.”, mas sem qualquer outro direcionamento. Assim que citei a palavra
televisão, vi os professores se reposicionarem nas cadeiras. Estabeleceu-se um
clima que parecia um misto de curiosidade com crítica, que gerou um ruído
imediato, além de uma chuva de perguntas sobre a minha pesquisa, sobre como
pesquisar este tema na escola. Algo assim: “não trabalhamos com televisão dentro
da sala de aula! Como você vai pesquisar? Não estimulamos que os alunos fiquem
colados na televisão! Poderia ser mais produtivo você trabalhar com vídeos e
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39
televisão na sala de leitura da escola!; Bem, para mim, é melhor ficar colado na
televisão do que na rua, se metendo em encrenca!; Lá em casa, televisão é proibido,
só nos fins de semana”; etc. Diante de tamanha curiosidade e da necessidade
expressa de os professores dizerem como cada um vê e pensa a sua relação e
também de suas crianças com a televisão e, ao mesmo tempo, do relógio que corria
num espaço destinado a planejamento e organizações para o ano letivo que se
iniciaria dias depois, acabei fazendo uma proposta que foi aceita pela direção e
pelos professores. Me dispus a estar na escola num dia próximo, em que o grupo
também lá estaria (para organizar a sala de aula), de modo a favorecer o acesso e
contato para aqueles que desejassem conversar, saber mais sobre a pesquisa e o que
eu pretendia estudar.
Assim, nesse dia combinado, ainda na mesma semana, estava eu na escola,
nos dois turnos, por duas horas na parte da manhã e pelo mesmo período à tarde, me
dispondo assim para aproximações, contatos, para conhecer e ser mais bem
conhecida, certa de que essa conduta favoreceria a minha relação e meus
deslocamentos pela escola. Todos os que passaram por mim falaram comigo,
acenaram ou me beijaram e se encaminharam para fazer as tarefas do dia. A
professora da sala de aula onde aconteceria a pesquisa trouxe “dois amigos” para eu
conhecer: o professor de Educação Física da escola e uma professora de turma
correspondente à dela, mas com crianças um pouco mais velhas. Todos começavam
o ano com a expectativa de como seria a vivência do sistema de ciclos nas escolas
municipais, agora como uma exigência da Secretaria Municipal de Educação.
No dia 5 de fevereiro de 2007, lá estávamos nós, antes mesmo do carnaval,
para dar início ao ano letivo e, com ele, à minha pesquisa. Já na sala de aula da
turma 1103, naquele mesmo dia, as crianças me vasculharam por todos os ângulos
possíveis, não sem pequenos comentários, e um deles me soou interessante: “Tia,
você trabalha na televisão?”
As crianças também pareceram estranhar a minha presença ali, silenciosa,
sentada numa cadeira e mesa a elas destinadas, fazendo anotações. Diante da
movimentação delas ao meu redor, a professora pediu a eles, com rigor, que
fizessem silêncio, para que me deixassem em paz e, também, “para poderem
aprender”. Dizia ela: “Silêncio, meninos e meninas. Essa conversa atrapalha muito,
e assim vocês não vão aprender nada!”, enquanto distribuía atividades
mimeografadas. Nesse primeiro dia, percebi a alegria das crianças com os
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reencontros mútuos, também com os espaços familiares, a alegria de brincar e de
conversar, enquanto estavam no refeitório e no pátio, na hora do recreio. Pouco
depois, as aulas seriam interrompidas para o carnaval, para serem retomadas em
seguida.
3.6
Registro e análise de materiais empíricos:
A produção do material empírico se fez por meio de entrevistas coletivas e,
em alguns casos, individuais, registradas em um caderno de campo manuscrito que
ia sendo repassado, no mesmo dia, como um texto digital para o computador. Essa
rotina teve a intenção de minimizar a eventual perda de informações, já que, por
maior que seja o cuidado, é certo que sempre algo se perde, em especial nas
situações em que eu era parte da/na interlocução com as crianças.
Em alguns momentos, usei uma máquina fotográfica para registrar cenas ou
situações que julguei interessantes e, se dependesse das crianças, a usaria
diariamente, porque, na opinião delas, fazer pesquisa na sala de aula implicava no
uso freqüente de máquina fotográfica para registro das situações escolares
rotineiras: “Tia, me tira na sua máquina, porque eu estou lendo livrinho” (ML, ma,
7 anos); “Tia Inês, tia , olha pra mim, tira uma foto de mim aqui comendo meu Ana
Maria [bolo] delicioso” (TS, ma ,7 anos). E também recebi uma crítica explícita:
“Nunca vi pesquisa sem fotografia. Quando teve aqui outra mulher pra estudar o
mangue preto (vegetação de uma lagoa próxima), era foto da gente direto. Tia, tira
foto da gente, puxa, tira para a sua pesquisa!” ( YC, mo, 7 anos).
Durante a pesquisa, foi desenvolvida pela professora uma atividade muito
especial, por solicitação das crianças, já no segundo semestre letivo. Ela está
registrada aqui, neste momento, para explicar como e por que foi introduzida na
pesquisa duas câmeras de filmagem que resultaram em algumas horas de gravação.
Nesse percurso, também procurei conversar com as crianças, sempre que
possível, sobre suas vidas – o que faziam quando não estavam na escola, suas
brincadeiras favoritas, suas famílias, seus medos, suas raivas, preferências, etc. –,
buscando escapar das situações que se assemelham à aplicação de um questionário
oral para que, gradativamente, fosse se estabelecendo uma relação de confiança que
permitisse uma interlocução livre, sem julgamentos de qualquer natureza de minha
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41
parte. Essas situações que nomeei aqui de interlocução livre são chamadas por
alguns estudiosos de metodologias de pesquisas qualitativas como uma modalidade
das entrevistas narrativas (EN), que não me parece uma nomenclatura de todo
inadequada, mais pela valorização das narrativas do que pelos aspectos que
caracterizam as entrevistas. Também tive acesso à ficha informativa de todas as
crianças para as observações e os registros necessários.
Muitas vezes, em sala de aula, as atividades mimeografadas propostas pela
professora deram origem a diálogos muito interessantes entre eles, deles comigo ou
com a professora, e algumas dessas atividades gráficas foram fotocopiadas em
xerox, e, nas minhas cópias, fiz o registro de suas falas, seus comentários e suas
narrativas.
A análise qualitativa do material produzido no trabalho de campo foi feita
na forma clássica, da empiria aos conceitos teóricos em sucessivos movimentos de
ida e volta, com a ajuda de um software que auxilia a análise de dados não
numéricos e não estruturados (NUD*IST 4.0).
Uma das estratégias adotadas durante o tempo em que estive com as
crianças consistia em conversar informalmente sobre o que gostavam de brincar e
sobre suas relações sociais, e essa prática ajudou muito, tanto na construção de
conhecimentos mútuos sobre e para a pesquisa quanto no processo interpretativo.
As crianças demonstraram gostar de falar de si, de contar histórias de suas vidas, de
falar sobre suas práticas sociais e culturais e, neste percurso, eram expressos seus
valores, significados e expectativas. Suponho que tenha sido o meu interesse em
ouvi-las, demonstrado em atitudes cotidianas e simples, que tenha feito com que,
gradativamente, de forma espontânea, elas se aproximassem e me oferecessem
explicações sobre condutas, escolhas e preferências, me mantendo informada sobre
pessoas e casos que envolviam sua família e, também, sobre o modo de pensar
diante de determinadas situações. Essa atitude oportunizou o acesso a uma miríade
de aspectos importantes que me ajudaram a questionar, rever ou validar certas
hipóteses e interpretações.
Com esse objetivo, foram feitas, ainda, três sessões de visionamento com
edição do material de filmagem do telejornal em que, ao se verem na tela da
televisão, puderam estabelecer um olhar alteritário sobre si em que, mais uma vez,
os seus depoimentos contribuíram para validar ou para exigir redirecionamento das
minhas interpretações.
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42
As entrevistas aconteceram sem um ritual preestabelecido, de modo
informal, em pequenos grupos, pelo menos com um par de crianças, e sempre se
iniciavam a partir de assuntos pendentes entre nós, entre elas ou delas com os
acontecimentos a sua volta. O audiogravador foi utilizado em poucas situações e
não tinha um significado expressivo para esse grupo. Ele era usado como um
recurso para me atender, para me ajudar, e nem todas as crianças demonstraram
interesse para se ouvir. Algumas delas riam ao identificar suas vozes e, em regra,
pediam para que eu levasse máquina fotográfica digital para a pesquisa. Esse desejo
reiterado das crianças em relação ao registro de suas imagens em fotografias não
me permitiu descartar a hipótese de que o meu interesse sobre programas de
televisão tivesse contribuído, de alguma forma, para essa valorização expressiva da
imagem sobre o som, representada pela suposta preferência da máquina fotográfica
no lugar do audiogravador, o que deixo aqui relatado apenas como uma
possibilidade.
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4
A televisão que vai à escola
4.1
As crianças, suas famílias e a televisão
Todos os materiais reunidos e analisados neste estudo se sustentaram,
essencialmente, nas narrativas infantis e nas práticas discursivas que aconteceram
dentro da escola e estas se complementaram por uma observação atenta em relação
às trocas de olhares, aos gestos, aos silêncios, sorrisos e choros que surgiram ao
longo do trabalho como forma de expressão e de linguagem.
Para conhecer e analisar essa complexa triangulação entre crianças, a
programação televisiva e a dinâmica das suas vidas familiares, precisei não apenas
observar, acompanhar e registrar, mas também me dispor a conversar diretamente
com elas. Só assim, seria possível conhecer e compreender como cada uma sentia e
entendia o seu universo familiar. Essa foi uma questão relativamente fácil de ser
encaminhada, principalmente nos horários destinados ao lanche, que aconteciam no
refeitório, e nos intervalos para o recreio. Ao perceberem minha proximidade e
interesse, as próprias crianças me procuravam quase todos os dias em que estive na
escola, na maioria das vezes em pequenos grupos mistos, em geral carreados por
meninas com interesse e extrema curiosidade sobre a minha vida particular:
“Você tem pai? Você é velha e tem pai ainda? Mentira?! Você tem
marido? E filhos? A professora falou que você estuda. Mas aqui é escola
de criança, não é de gente velha. Tem até escola de gente velha, pai, mãe,
assim... quase velha, mas não muito velha, mas aqui não é!” (TS, ma, 7
anos)
Nesse questionário a que fui submetida com relativa freqüência,
incluíam-se perguntas de outras naturezas, que, ao atender à curiosidade delas,
funcionavam também como portas de aproximação, um convite para o
estabelecimento de uma relação de inclusão e de pertencimento entre nós, agora sob
o viés do consumo, menos de bens materiais, mais de ordem simbólica:
“Você mora aqui perto? Você tem cara de morar aqui neste condomínio de
gente rica (onde fica a escola). Você tem televisão com controle, no seu
quarto? Onde você mora? Eu bem vi você chegando de carro, e era bem
um Palio. Palio é fofy (fofo)! Acho que você vai lá naquele Boticário que
tem dentro, lá bem dentro da porta do Mundial para comprar esse perfume.
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Eu adoro o cheiro do perfume do Boticário, só que eu não tenho mais, o
meu já acabou. Na sua bolsa tem glitter de boca? Deixa a gente ver? Tem
cheirinho? Tia, você não é Flamengo? Diz alto aí para todo o mundo
saber!” (TO, ma, 7 anos; VS, mo, 6 anos; LE, mo, 7 anos; LF, mo, 7 anos)
As questões relativas a essa aproximação estão desenvolvidas ao longo
desta tese, no entanto, antecipo alguns aspectos para justificar o fato de ter sido a
curiosidade infantil sobre a minha vida pessoal um elemento facilitador de acesso à
vida das crianças, em relação às suas famílias e à programação televisiva.
O grupo de crianças, desde o início, demonstrava alterar sua configuração
interna sem que houvesse uma explicação óbvia ou simples, para mim. Era comum
as crianças se remontarem em grupos menores, por um período determinado de
tempo, em circunstâncias específicas que eu precisava conhecer e que me levaram
ao ideário de Simmel8
.
Com Simmel, as aproximações e distanciamentos feitos pelas crianças
podiam ser melhor compreendidos além da sua área de referência ser a Sociologia
que se mostrava totalmente compatível com uma opção conceitual anterior e crucial
sobre ser criança, neste estudo, fundamentada nos estudiosos da Sociologia da
Infância. Deste modo, estavam descartadas as antigas concepções de crianças que
sugeriam ser a frequência escolar indispensável para que fosse transmitido ou
ensinado às crianças certo jogo pronto e fechado de regras sociais, com o objetivo
de torná-las sociáveis e aptas à convivência social. Nesse viés, se apóiam, ainda
hoje, algumas crenças do senso comum sobre a importância da creche, da
pré-escola e da escola pelo seu papel socializador, resultante de um conceito de
socialização que, absolutamente, não cabe neste estudo.
Nesse escopo, Simmel (1987, p.164) favoreceu a compreensão do
dinamismo das interações sociais deste grupo que freqüentava cotidianamente, uma
mesma turma e escola, considerando-se que diferentes circunstâncias e modos
variados de interações sociais produziam crianças/alunos muito diferentes que se
encontravam na sala de aula e na escola.
8
Georg Simmel (01/03/1858 – 28/09/1918), alemão, nascido em Berlim. Foi um dos sociólogos que
desenvolveram o que ficou conhecido como micro-sociologia, uma análise dos fenômenos no nível
micro da sociedade. Foi um dos responsáveis por criar a Sociologia na Alemanha, juntamente com
Max Weber e Karl Marx.
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  • 1. Maria Inês de Carvalho Delorme Domingo é dia de felicidade: As crianças e as notícias Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação do Departamento de Educação da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em Educação. Orientador: Profª. Rosália Maria Duarte Rio de Janeiro Dezembro de 2008 PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 2. Maria Inês de Carvalho Delorme Domingo é dia de felicidade: As crianças e as notícias Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Profª. Rosália Maria Duarte Orientadora Departamento de Educação - PUC-Rio Profª Tania Dauster Magalhães e Silva Departamento de Educação - PUC-Rio Profª. Zena Winona Eisenberg Departamento de Educação - PUC-Rio Profª. Rita Marisa Ribes Pereira UERJ Profª. Silvia Pimenta Velloso Rocha UERJ Prof. Paulo Fernando C. de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas Rio de Janeiro, 09 de dezembro de 2008. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 3. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador. Maria Inês de Carvalho Delorme Graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1977), Graduação em Pedagogia (1990) e Mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1994). Professora da rede pública municipal do Rio de Janeiro com lotação na MultiRio, onde atualmente dirige o Núcleo de Publicações desde 2001. Professora concursada da Faculdade de Educação da UERJ e Doutora (2005-2008) na área de Educação: Infância e Mídia, pela PUC-Rio. Ficha Catalográfica CDD: 370 Delorme, Maria Inês de Carvalho Domingo é dia de felicidade: As crianças e as notícias / Maria Inês de Carvalho Delorme; orientadora: Rosália Maria Duarte – 2008. 290 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Educação)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. Educação – Teses. 2. Crianças. 3. notícias. 4. Televisão; I. Duarte, Rosália M. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Educação. III. Título. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 4. Agradecimentos À orientadora Rosalia Duarte, pela aposta, confiança e estímulo, além dos bons combates. À Vice-Reitoria Comunitária da PUC-Rio, pela bolsa de isenção de pagamento que tornou possível essa pesquisa. Aos meus pais, Fernando e Valda, pelo amor e apoio permanentes. Ao meu amado marido Celso, pé-de-valsa, amigo, companheiro, pai e padrasto exemplar. Aos meus filhos, Vicente, Eduardo, Artur e Helena, que gratificam todos os momentos e dias da minha vida, pela admiração mútua, amor e amizade definitivos. As bravas e amadas mulheres da família que fizeram acontecer relações viáveis e felizes entre a vida familiar, a profissional e a acadêmica, como mestras e doutoras: minhas irmãs Ana Teresa e Cacala, minha prima-irmã e comadre Angela M.Borba e minha tia Maria A. J. O. Borba. À minha tia Maria Antonieta, a Dedei, uma tia superespecial e sinistra, como a chamam os sobrinhos, por conseguir aliar cumplicidade, competência e rigor acadêmico com as causas do coração, sem ressalvas. A dois professores emblemáticos que tive o privilégio de conhecer já adulta, amigos admiráveis, que conjugam competência com simplicidade: Regina de Assis e Leandro Konder. A Tânia Dauster, Rita Ribes, Silvia Pimenta, Patricia Corsino, Maria Apparecida Mamede e Zena W. Eisenberg, pela parceria e pelas críticas preciosas. A Joanna Miranda, ex-aluna, muito amiga e quase filha que tensiona com delicadeza os limites difusos entre quem/o quê/como ensina e aprende, além das vertigens cúmplices. A duas amigas muito especiais das quais não desejo me afastar nunca, pelo que são e pelo que representam: Cristina Campos, que incita a professora que há em mim, e Martha Neiva, que despertou e continua provocando a jornalista que também me habita. À equipe do Núcleo de Publicações e Impressos da MultiRio, pelo exercício diário do trabalho que aprendemos a fazer juntos, sustentados na confiança, no suor, na troca e no bom humor indispensáveis. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 5. Resumo Delorme, Maria Inês de Carvalho; Duarte, Rosália Maria. Domingo é dia de felicidade: as crianças e as notícias. Rio de Janeiro, 2008, 190 p. Tese de Doutorado – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Domingo é dia de felicidade é o título desta tese de doutoramento, voltada para o exame de diferentes variáveis que possam contribuir para um melhor entendimento das relações que as crianças estabelecem com as notícias oriundas da televisão. A pesquisa configura-se como um estudo de cunho etnográfico sobre crianças que freqüentam o primeiro ano do ciclo de formação em uma determinada escola pública municipal da cidade do Rio de Janeiro, no período escolar de 2007. No foco deste estudo, encontram-se crianças que se caracterizam como sujeitos ativos, participativos, que gostam de opinar e que se sentem aptas a questionar certos padrões da televisão e do mundo adulto, em situações interativas com seus pares. Meu objetivo nuclear foi conhecer e compreender suas preferências, os recortes que fazem do que vêem, seus sentimentos, modos de relação entre suas experiências e as notícias televisivas, numa análise que envolveu a produção, considerou dados de veiculação até alcançar a repercussão e as marcas dessas notícias em suas vidas. Para isso, as crianças foram consideradas como produtoras e consumidoras da cultura, configurando-se, assim, numa audiência crítica também dos telejornais. Para conhecer os atributos dos acontecimentos que permitem vir a veiculá-los como notícias na televisão e, ao mesmo tempo, para ser possível entender as diferentes repercussões dessas notícias na vida das crianças, houve uma aproximação teórica de áreas diferenciadas como Comunicação Social, Educação e Teoria da Literatura, articulação esta que se fez sempre norteada pelas possibilidades de alcance e limite conceituais, cujos aproveitamentos impliquem a passagem de um campo disciplinar a outro. Palavras-chave: Crianças; notícias; televisão. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 6. Abstract Delorme, Maria Inês de Carvalho; Duarte, Rosália Maria. (Advisor). Sunday is a happy day: children and television news. Rio de Janeiro, 2008, 190p. Thesis – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. The title of this dissertation is Sunday is a happy day. Here i analyse different variables that may contribute to a better understanding of the relationships established between children and the news originating in television. The research as such has an ethnographic bias about children who attend the first year of basic education in a municipal school in Rio de Janeiro, during the 2007 school term. In the core of this study these children are characterized as active and participatory subjects who like to express opinions, who feel the aptitude for questioning certain standards, as shown by television and the world of adults, in interactive situations with their peers. My main objective was to get acquainted and to understand their preferences, their development based on what they watch, their feelings and expectations, and the modes of relationship between their experiences and television news. The analysis involved television news production, broadcasting data and its repercussion in their lives. Thus, children were regarded as culture producers and consumers as well as a critical audience of newscasts. In order to know the attributes of events that might become news on television and at the same time to be able to understand the different repercussions of such news in these children’s lives, the theoretical approach included diverse areas such as Social Communication, Education and Theory of Literature. Those were guided, which was always guided by the possibilities of conceptual limit and range, allowing for the transition from one discipline to another. Key-words: Children; news; television. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 7. Sumário 1 A professora, seus alunos e a televisão ....................................... 9 1.1 GRUPEM – Aproximação do tema da pesquisa ........................... 12 2 Domingo é dia de felicidade, uma introdução à tese .................... 17 3 Os passos e os percursos ............................................................. 22 3.1 Reflexões teórico-metodológicas ................................................... 22 3.2 A pesquisadora e as narrativas infantis ........................................ 28 3.3 Questões éticas que envolvem as relações entre crianças, a pesquisadora e o professor ........................................................... 32 3.4 A escola e a turma ........................................................................ 36 3.5 Minha entrada no campo .............................................................. 38 3.6 Registro e análise de materiais empíricos .................................... 40 4 A televisão que vai à escola .......................................................... 43 4.1 As crianças, suas famílias e a televisão ....................................... 43 4.2 Crianças, professora e televisão ................................................... 65 4.3 Crianças e outras mídias, na escola ............................................. 70 4.3.1 As outras mídias ........................................................................... 73 4.3.2 “Notícia boa, nunca, nem no papel!” ............................................. 81 4.3.3 As crianças e as notícias da televisão .......................................... 82 4.3.4 Performance, agir como se .......................................................... 87 4.3.5 A ordem e a regra como proteção ................................................ 94 4.3.6 Padrões estéticos do telejornal: O casal William Bonner e Fátima Bernardes ...................................................................................... 98 PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 8. 4.3.7 “O ficcional e o imaginário” ........................................................... 103 4.3.8 “Perdido, notícias mais ou menos e notícias para trás” ................ 107 4.3.9 “Tem vezes que não, mas é muito raro, tem vezes!” .................... 113 4.3.10 A notícia é importante e por isso se repete? Ou se repete muito e, por isso, acaba se tornando importante? .................................. 115 4.3.11 A produção das notícias ................................................................ 116 4.3.12 As fontes se alimentam delas mesmas ......................................... 117 4.3.13 Quando as fontes e os repórteres se confundem ......................... 118 4.3.14 Na televisão, a beleza também é fundamental ............................. 119 4.3.15 As câmeras de segurança como fontes: medo e desejo .............. 122 4.3.16 Bandidos são negros, pobres, sem família, sem casa e sem escola ............................................................................................ 125 4.3.17 (In)visibilidade ............................................................................... 127 4.3.18 O medo de ser notícia ................................................................... 133 4.3.19 Quando eles foram os seus outros ............................................... 137 4.3.20 Editar, ver, editar de novo, ver de novo ........................................ 140 4.3.21 O caso Isabella Nardoni ou Pais matam filhos? ........................... 143 5 Encaminhando conclusões ........................................................... 146 6 Referências Bibliográficas ............................................................. 167 7. Anexos .......................................................................................... 171 PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 9. 1 A professora, seus alunos e a televisão Naquela manhã chuvosa de 1985, eu disse aos meus alunos que havia acabado a hora do recreio, que parassem com aquela brincadeira de pique. Pedi para que se levantasse aquele que permanecia deitado no chão e que viessem, todos, para a sala de aula. Também lembrei para que não se esquecessem de dobrar e de trazer os panos que estavam usando para brincar. Os que chegaram mais rápido perto de mim expressaram com indignação e impaciência o tamanho do meu desconhecimento: “Inês, a gente não está se sujando, o chão está seco; a gente só está brincando de Tancredo.” E a turma foi se organizando com energia para me explicar o que só eles sabiam. E seguiram: “O morto fica coberto com a bandeira, parado, né? Morto. A gente tem que tirar a bandeira sem tocar nele, para ele não acordar. Quando alguém toca ou esbarra no defunto, ele levanta, fica vivo, muito zangado e sai correndo para pegar a gente.” Essa história, que chamo de “situação–síntese”, aconteceu numa escola situada na zona portuária do Rio de Janeiro, bairro do Caju. De 1977 até 1994, fui professora alfabetizadora da rede pública. Naquele período, mais especificamente no ano de 1985, o Brasil viveu a morte de Tancredo Neves e, com isso, suas expectativas de mudança, conforme nossa História já registra. O luto nacional e o funeral do político ocupavam amplamente a mídia, e foi, em especial, o noticiário televisivo o responsável pelo contato daquelas crianças com as imagens da morte, a que tiveram acesso direto, de forma contínua, por mais de duas semanas, em domicílio. Naquela época, não podia entender o(s) caminho(s) que juntos, crianças e adultos, trilhávamos no processo de conhecimento individual e coletivo já intermediado pela presença marcante e crescente da televisão. Portanto, fazia-se necessário, desde então, compreender, com mais profundidade, a interação que meus alunos estabeleciam com o que viam na tevê. Eles me faziam entender a infância como uma etapa comum, pela qual todos passavam, mas, ao mesmo tempo, comprovavam haver algo que se realizava de maneira muito peculiar, específica em cada um deles. Vários aspectos, como época, lugar, relações familiares, etc., produziam modos próprios de ser criança, e estes aspectos personalizavam a vivência da infância em cada uma das minhas crianças. Com isso, crescia em mim PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 10. 10 um desconforto necessário e produtivo, carregado de ambivalências, imprevisibilidades, contradições e conflitos que me impunham o desafio de pensar em televisão e audiência sob um prisma diferente daquele cristalizado pelo senso comum. Não era possível aceitar a existência de uma relação linear e simplista que colocava, de um lado, a televisão como emissora e, de outro, uma audiência infantil homogeneizada, despreparada e passiva. Desde então, vim observando as crianças interagirem criativamente com os produtos e objetos que resultam dos expressivos avanços tecnológicos a que têm acesso, cada vez num ritmo mais frenético, como o cinema, o rádio, a internet e os celulares, e também com as notícias da televisão. Mais recentemente, as narrativas ganharam sons, imagens, cores, movimentos e interatividade, tornando possível construir e reconstruir o “era uma vez”, os casos e as histórias em diferentes suportes e linguagens. Em paralelo, o mercado nitidamente veio estimulando o consumo e, com isso, vem facilitando o acesso gradativo da população às novas “tecnologias da informação, da comunicação e do conhecimento”, como parece mais adequado nomeá-las, sob o viés do mercado. Neste mundo altamente tecnologizado, está inserida a escola como uma instituição social. Dentro dela, há crianças e professores com histórias, valores, experiências prévias, expectativas e até mesmo com maior ou menor contato com essas tecnologias, ou seja, há um encontro previsto e altamente estimulante entre pessoas diferentes. Nesse espaço, espera-se que o professor regente1 , aquele que atua um ano letivo inteiro com uma mesma turma de crianças, esteja ciente de que elas são pessoas diferentes, ainda que da mesma idade, que a interação delas tanto será produtiva na resolução de desafios e de conflitos, quanto deverá ser geradora de conflitos que precisarão ser administrados dentro/com o grupo. Esta característica da sala de aula, também do espaço escolar, sugere que exista uma intervenção atenta do professor para garantir e valorizar os espaços de fala e de escuta de todos, num ambiente de respeito e de acolhimento das diferenças. Como professora de crianças, essa conduta implicou sempre a possibilidade de compreender e de partilhar a rede de significação simbólica que (des)unia meus alunos, sem igualá-los. Essa rede de significados tecida na linguagem se sustentava nas enunciações e narrativas. As conversas dos meus alunos sobre o que viam na 1 Refiro-me aqui ao professor II, como é classificado e nomeado pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 11. 11 televisão indicavam conhecimento e apropriação de muitas funções da narrativa televisiva, como: entreter e informar e, ao mesmo tempo, propagar idéias, valores e concepções de vida, reais e/ou muitas vezes imaginadas, algumas jamais experimentadas, impactando o processo de constituição de suas identidades. As narrativas, assim, cumpriam a função de tecer a existência entre os meios e a sociedade, e, assim, escutar com atenção e buscar compreender as narrativas infantis eram ações determinantes para se conhecer(em) o(s) modo(s) como as crianças se sentiam parte do mundo, como entendiam e se expressavam no/sobre este mesmo mundo. Eu julguei oportuno e esclarecedor ouvir e considerar as histórias contadas pelas crianças a partir do que a televisão lhes oferecia como uma possibilidade de transformação das práticas sociais que “falam” da sociedade e que, ao mesmo tempo, constituem saberes acerca desta mesma sociedade. E, desde então, pude supor que fosse a televisão o lugar de onde as crianças retiravam grande parte do que sabiam para compreender o cotidiano e a vida. A partir de 1995, concluído meu mestrado, passei a integrar o corpo docente da Uerj (graduação de Pedagogia, nas áreas de Educação Infantil e de Alfabetização) e, nessa condição, julguei pertinente incorporar aos meus planos de cursos questões ordinárias da vida contemporânea que julgava imprescindíveis para a formação universitária de professores e pedagogos, tais como: a) a dicotomia existente ainda hoje entre os que pensam televisão (produtores) e os que consomem (quase todos) os produtos televisivos; b) a ocupação crescente do espaço da televisão na vida de professores e alunos, de todas as idades, e o quase total desconhecimento da sociedade organizada sobre as características dessa forma de linguagem; c) o desconhecimento por grande parte da sociedade quanto ao fato de a televisão brasileira ser uma concessão estatal, o que possivelmente justifica uma relativa imobilidade para buscar conhecer, desejar, discutir e questionar a qualidade da programação oferecida; d) a tendência de professores e pedagogos em formação a tomarem, com muita freqüência, como “perda de tempo” a possibilidade de conversar na escola sobre o que se vê na tevê; e) uma desatenção para com os aspectos comerciais que pautam e que submetem a programação da televisão aberta e que, em grande parte, criam e endossam os vínculos com o consumo de bens materiais e simbólicos, suscitando sonhos e demandas, além de disseminarem fortemente o conceito do “descartável”; f) a prevalência de uma ótica do consumo como elemento maléfico, atribuído à programação televisiva, em que esta, PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 12. 12 supostamente, seria a principal responsável pelas desigualdades socioeconômicas e culturais do povo brasileiro. Nesse viés, estaria na televisão a causa das piores mazelas contemporâneas, como a miséria, a violência e a falta de esperança. Essas e muitas outras questões relativas ao oficio do professor e à função da escola no mundo contemporâneo permaneciam, em mim, à busca de respostas e de compreensão. Por tudo isso, retornei à PUC-Rio, em 2005, desta vez como aluna do Doutorado em Educação, para estudar e compreender melhor a relação das crianças com as mídias, mais particularmente com a televisão. 1.1 GRUPEM2 - Aproximação do tema da pesquisa Meu objeto de estudo emergiu da análise do material empírico reunido na pesquisa Crianças e televisão, realizada entre 2004 e 2006, pelo Grupo de Pesquisa em Educação e Mídia (GRUPEM), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), com apoio do CNPq e parceria institucional com a TVE/Rede Brasil. A intenção do referido grupo de pesquisa era coletar um material que lhe possibilitasse abarcar não apenas as expectativas das crianças com relação à TV, mas, mais diretamente, a relação que elas estabeleciam com o que viam regularmente, incluindo gostos, interesses, críticas e grau de conhecimento da linguagem e dos formatos televisivos. Com esse viés, a pesquisa Crianças e televisão foi encaminhada como um estudo de base quantitativa, considerando-se a dimensão da audiência infantil da televisão brasileira, o que justifica a intenção à época de se coletarem dados entre um significativo número de sujeitos de modo a ser possível traçar um panorama geral da relação entre crianças e televisão. Naquele momento, inspirada em um modelo de investigação desenvolvido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) que vinha sendo desenvolvido em outros países, intitulado "TV como te quiero", os pesquisadores do GRUPEM optaram por fazer uma chamada 2 Ver http://www.grupem.pro.br/. A pesquisa Crianças e televisão: o que elas pensam sobre o que aprendem com a tevê, ver Rev. Bras. Educ.Rio de Janeiro, n. 33, 2006, disponível em: http://www.scielo.br/scielo. Acesso em: 30 2008. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 13. 13 pela televisão convidando crianças a participar da pesquisa com o envio de suas opiniões. Inicialmente, buscava-se ainda obter elementos de comparação entre crianças brasileiras e crianças de outros países. Neste percurso, a equipe do GRUPEM optou por essa chamada pela televisão apenas veiculada em âmbito regional e somente através de emissoras de televisão públicas, em que a TVE/Rede Brasil garantiu a produção e veiculação de um spot em que a pergunta dirigida às crianças era a seguinte: “O que eu penso da tevê?”. (DUARTE, R. MIGLIORA, R. LEITE, C. 2006). Esse spot teve como objetivo convidar crianças da Região Sudeste, com idades entre 8 e 12 anos, a enviar cartas, desenhos ou mensagens eletrônicas para o grupo de pesquisa com suas reflexões a respeito do que viam na televisão, do que gostavam e não gostavam de ver, por quê. Para garantir um maior número de respostas, o GRUPEM envolveu também os professores na campanha, e, para isso, foram confeccionados cartazes dirigidos a eles, solicitando-lhes que estimulassem seus alunos a participar da pesquisa. Os cartazes foram encartados no jornal Folha Dirigida. Com este empenho de divulgação, a equipe do GRUPEM recebeu mais de 900 respostas, entre desenhos e textos. Todo o material foi catalogado e identificado. Os textos, digitados e fragmentados em unidades de significação que se configuraram na principal fonte de dados desta pesquisa. Todos os textos foram analisados por todos os membros do grupo de pesquisa, a partir de categorias teóricas (definidas previamente a partir da literatura de referência), e categorias não-teóricas (extraídas da primeira leitura dos textos). Isso permitiu a organização das informações, idéias, opiniões e reflexões expressas pelas crianças a respeito dos diferentes canais de televisão a que têm acesso; dos seus programas prediletos; da violência presente nos produtos televisivos; do papel desempenhado pela televisão no seu cotidiano; das concepções delas acerca da influência da televisão na sociedade, além de temáticas mais gerais, como consumo e qualidade da produção televisiva. Essa pesquisa realizada pelo GRUPEM está disponibilizada, hoje, em um livro3 recém publicando que se configura como uma compilacão de grande parte dos relatórios temáticos originados a partir da análise da empiria. 3 Duarte R. (org) – A televisão pelo olhar das crianças. SP: Editora Cortez, 2008. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 14. 14 Em 2005, portanto, assim que ingressei no doutorado e no GRUPEM, em que a análise do material estava iniciada, fortaleci minha intenção inicial de compreender a relação que crianças estabeleciam com a produção audiovisual. A equipe do GRUPEM estava debruçada sobre este material que, exposto ao olhar e às análises sob diferentes viéses dos estudiosos e pesquisadores a ele dedicados. Nessa etapa, coube a mim a análise de elementos que as crianças demonstravam recortar e consumir a partir do que a televisão lhes oferecia e que envolvia materiais e produtos, sentimentos, atitudes e comportamentos. Esses elementos podiam ser reunidos sob o titulo Televisão e Consumo, tema e título final do relatório por mim elaborado, estruturado a partir de duas categorias, não excludentes, que emergiram do material produzido pelas crianças. Uma das categorias extraída dos textos das crianças tomava a televisão como uma “tecnologia de primeira necessidade 4 ”, um objeto de consumo indispensável, considerando-se quatro outras necessidades básicas: a) a de se ter pelo menos um aparelho de televisão com controle remoto; b) de companhia; c) de pertencimento; d) de ter contato com sentimentos. A segunda englobou as possibilidades de consumo de certos conteúdos como subprodutos da relação que estabelecem com o que “esse eletrodoméstico” (tal como era entendida a TV por grande parte das crianças) lhes disponibiliza. Dessa segunda categoria, fazem parte outras “necessidades” de consumo: a) bens materiais e simbólicos; b) diversão e fantasia; c) informação; d) conhecimento. Ao fim da minha análise e dos demais trabalhos do GRUPEM, ficou evidenciada a importância de serem desenvolvidas novas investigações que mergulhassem com mais profundidade em certas questões sinalizadas pelas próprias crianças do universo de pesquisa. Uma delas, que se destacou das demais pela recorrência, consistia em buscar compreender melhor a concepção que as crianças têm sobre as notícias da televisão, como estas se relacionam com o que definem e recortam como tal, principalmente diante do repúdio e medo dos noticiários da televisão, expressos pelas crianças que haviam participado da pesquisa do GRUPEM . 4 NECESSIDADE, neste estudo, é entendida como uma categoria cultural que supera os aspectos bio-psico-físicos que caracterizam o ser humano como espécie. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 15. 15 Neste ponto, houve uma sinergia imediata e densa entre a configuração de minha vida pessoal e profissional, sempre entre a jornalista e a professora, diante dessa complexa questão que envolvia as crianças e o mundo em que vivem. A abrangência da questão, que, a meu ver, retrata e sofre muitas interveniências de naturezas muito diferenciadas, exigia que eu delimitasse os alcances e as possibilidades do meu futuro estudo. Assim, a abordagem do tema exigia uma aproximação direta com as crianças na intenção de conhecer e de compreender o conceito de notícia usado por elas, em que seria tomado como pontos de partida os telejornais e os programas televisivos identificados por elas como fontes de notícias. O tratamento da empiria do GRUPEM indicava serem as “notícias da televisão” um conceito ambíguo e difuso, uma vez que poderia abarcar avisos ou anúncios de fatos e/ou situações de tempos passados, presentes ou futuros; esses fatos poderiam não só estar referenciados em cenários e espaços variados, muitas vezes simultâneos, como também integrarem dados, eventos e fatos ficcionais ou imaginários. Essa pesquisa do GRUPEM deixou também para mim, como pesquisadora, um pano de fundo que evidenciava uma tendência contemporânea de convergirem jornalismo e ficção. Parecia haver movimentos simultâneos em dois sentidos, provocando um deslocamento da ficção, por um lado, que cada vez mais se afastaria do herói trágico, modelar e, por outro, a busca de um herói simpático, desde que fosse plenamente identificado com o espectador, o que tornaria, assim, a ficção cada vez mais documental5 . Ao mesmo tempo, o jornalismo, cada vez mais sensacionalista, já vinha fazendo de suas matérias pequenos espetáculos, cheios de apelos emocionais, nos quais a linguagem pretensamente poética, a música, a edição, a beleza plástica pareciam procurar levar o espectador a um clima envolvente e embebido de dramaticidade em que a emoção tomaria o lugar de uma pretensa escuta racional e ponderada das notícias. Emoção e afeto, assim, pareciam conquistar um lugar até então privilegiado nos domínios que pareciam destinados exclusivamente à informação e à chamada “transmissão objetiva” de conhecimentos. E, como 5 A novela Páginas da Vida, veiculada em horário nobre pela TV GLOBO, de 10 de julho de 2006 até 2 de março de 2007, compunha sua trama com depoimentos de cidadãos comuns, em cenas gravadas ao vivo, nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 16. 16 decorrência disso, vieram a reboque novas perguntas que, durante o doutorado, mereciam ser aprofundadas e respondidas. Assim, foram esses encaminhamentos e um volume significativo de questões e de dúvidas que justificaram a pesquisa que se segue sobre as crianças e as notícias. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 17. 2 Domingo é dia de felicidade, uma introdução à tese O objeto desta pesquisa é conhecer a compreensão que as crianças têm do que seja notícia da televisão e como elas se relacionam com as mesmas. Para realizá-la, decidi acompanhar as crianças e as notícias que chegam na escola, tomando como pressuposto o fato de que certas notícias (oriundas da televisão) deixam algum tipo de marca e de repercussão na vida dessas mesmas crianças. Deste modo, tomei como material de análise a repercussão que as notícias da televisão têm na vida das crianças, expressas por elas mesmas, para buscar conhecer o que, como e por que certos aspectos do noticiário passam a integrar o modo de cada um se ver, de ver o outro, de compreender e de se situar, de se relacionar e de se entender “no/em relação ao” mundo social. As crianças confirmaram haver elementos da televisão que são recortados de forma muito pessoal, nem sempre intencional ou consciente, que ora são lembrados, ora esquecidos, às vezes intencionalmente omitidos, que significam e que ecoam, a partir dos quais cada uma delas se apropriou de um modo peculiar. Por meio dessas apropriações, estabelecem-se ainda possibilidades de relações e de trocas simbólicas entre as crianças e delas com os adultos da escola que emergiam no cotidiano escolar. Antes de iniciar uma apresentação da configuração desta tese em capítulos, é importante estabelecer um posicionamento desta pesquisa diante dos chamados “estudos de recepção”. Não entendo os modos de recepção como menos importantes, menos complexos e nem pouco relevantes e, assim, não desconsidero as circunstâncias particulares e diferenciadas relativas ao modo como as pessoas assistem à televisão e seu impacto destas na forma como se relacionam e interagem com o que lhes é apresentado. No entanto, o momento e a circunstância da recepção não se constituem nos objetos desta pesquisa, mas sim os seus resíduos significativos ou fragmentos perceptivos, as repercussões ou marcas que deixam nas crianças como o resultado de complexas combinações que busquei entender neste estudo sobre e com as crianças. Este estudo aconteceu durante um ano letivo, de fevereiro a novembro de 2007, em uma escola pública municipal, localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, com uma turma de crianças de 7 anos, em média, no primeiro ano do ciclo PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 18. 18 de formação, e se caracterizou como uma pesquisa qualitativa de cunho etnográfico. Essa pesquisa está aqui estruturada e se inicia com um texto de Abertura em que o trajeto pessoal e profissional da pesquisadora justifica seu retorno à universidade e a uma área determinada de estudo que se coaduna com a tese ora apresentada. O capítulo 1 se configura como uma aproximação ao tema da pesquisa, enquanto o capítulo 2, esse texto que está em curso, vem a ser a Introdução à Tese como um todo e, por isso, cada um dos capítulos vem sendo apresentado com uma breve indicação teórica sobre os conceitos de base utilizados neles. O capítulo 3, Os Passos e os Percursos, se destina a apresentar e discutir as decisões metodológicas em sua relação direta com os aportes teóricos. O capítulo 4, intitulado A televisão que vai à escola é o mais denso e o que justifica a importância deste estudo. Nele, está apresentada toda a empiria organizada em três grandes eixos na globalidade de sua análise, ou seja, de modo articulado com os preceitos teóricos para ser possível alcançar o objetivo desta tese. As categorias identificadas emergiram do próprio campo e tiveram sua origem na relação do pesquisador-investigador com o mesmo, diante de sua complexa dinâmica. Segue-se o capítulo 5, no qual são apresentados os aspectos conclusivos em que as características deste tipo de pesquisa sugerem o título À Guisa de Conclusões. A finalização da tese se dá com as Referências Bibliográficas e os documentos em anexo, capítulos 6 e 7, respectivamente. Para dar continuidade à Introdução, objeto do capítulo de mesmo nome, passo ao Capítulo 3, Os Passos e os Percursos, destinado à metodologia. É sabido que as estratégias metodológicas estabelecidas para a pesquisa não só têm relação estreita com os aportes teóricos previamente pensados, como funcionam como elementos questionadores, um do outro, na busca por atender à complexidade do campo. Assim, passada a fase inicial em que o pesquisador já pode ver uma certa configuração do campo, as bases teóricas e algumas alternativas metodológicas precisaram ser revistas. Ainda assim, determinados pilares teóricos sustentadores deste estudo não foram e nem poderiam ser alterados, como a concepção de criança como sujeito de direitos, ativo e participativo, que se caracteriza pelo que é, desde que nasce, e não pelo que lhe falta sob a ótica do senso comum e do mundo adulto, como propõem os estudiosos da Sociologia da Infância e, mais precisamente, aqueles que estudam as culturas infantis, como Manuel Jacinto Sarmento (2007), PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 19. 19 professor da Universidade do Minho, em Braga, Portugal. Em pesquisas dessa natureza, os instrumentos metodológicos de costume são a observação e as entrevistas, individuais e coletivas, reconhecidos os seus limites e possibilidades, também as gravações de áudio e as videogravações. Uma preocupação teórico-metodológica que permeou todo o trabalho de campo consistiu em garantir espaços para que as crianças valorizassem e respeitassem as diferenças entre elas, proporcionando, sempre que possível, circunstâncias de deslocamentos em que pudessem tanto tomar contato com outros-diferentes, verem a si mesmas como outros, além de me disponibilizar a ser conhecida e questionada por eles como um outro, adulto e pesquisador. Ainda nesse mesmo capítulo 3, destinado à metodologia, foram incorporadas, portanto, questões referentes à escolha da escola, a minha entrada na escola, a uma caracterização detalhada da configuração desse campo, que se constitui no meu universo de pesquisa. Também há neste capítulo uma discussão sobre os compromissos éticos que se impõem quando se pesquisa sobre as crianças tomando as mesmas como sujeitos e protagonistas da pesquisa. O capítulo se conclui com as explicitações das formas de registro utilizadas, dos procedimentos usados na análise dos dados, bem como o uso de outros recursos metodológicos no afã de validar e legitimar as minhas interpretações expondo-as às crianças, aos sujeitos da minha pesquisa. O capítulo 4, intitulado A televisão que vai à escola, é onde este exercício acadêmico se justifica como uma tese em que se busca conhecer e demonstrar como determinado grupo de crianças entende o que sejam as notícias da televisão, além de buscar identificar e compreender como essas mesmas crianças se relacionam com o que entendem por notícia, em todas as suas dimensões, da produção aos textos que a caracterizam, a origens e efeitos. Para ser possível adensar as categorias elencadas relacionando-as criticamente com as teorias destinadas a sustentá-las, esse capítulo foi dividido em três grandes eixos: 1- As crianças, suas famílias e a televisão; 2 - As crianças e as outras mídias na escola; 3 - As crianças e as notícias da televisão. No primeiro eixo do capítulo em questão, identificado como 4.1., As crianças, suas famílias e a televisão, busquei entender como se dava a dinâmica de aproximações e de distanciamentos entre as crianças para conhecer os seus critérios de agrupamentos temporários porém freqüentes em que o ideário de Georg Simmel PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 20. 20 (1987) contribuiu para a análise. Nesse percurso, Simmel (idem) favoreceu a compreensão do dinamismo das interações sociais entre as crianças do grupo. A relação de cada uma das crianças com os adultos que são identificados por elas como sendo os seus responsáveis é uma questão complexa – muito diferenciada em relação à compreensão dos papéis sociais atribuídos à maternidade e à paternidade, ao que supostamente cabe a cada gênero –, uma vez que se trata de homens e mulheres nos quais se destaca uma característica comum, o “desejo de família”. Segundo Roudinesco (2003), no livro A Família em Desordem, o “desejo de família” vem crescendo nos últimos anos, ao mesmo tempo em que a autora observa uma pressão da sociedade para legitimar todos os rearranjos familiares devido à busca social de normatização, ou seja, por uma forte vontade de integração e de pertencimento. Nesse primeiro eixo do capítulo 4, discutem-se ainda as parcerias eventuais entre crianças e adultos, tendo como foco a televisão, a expectativa de (des)encontros pela importância do aparelho em suas vidas e o que ele proporciona, as escolhas e preferências de cada um. Pode-se dizer ainda que as crianças desse grupo vivam e se confrontem com circunstâncias e situações muito adversas onde muito lhes falte, que elas brincam, riem e jogam de modo muito envolvente e criativo, como defende Sarmento6 , no texto Imaginário e Culturas da Infância (2003, p.2). E mais que, nesse aspecto, o fictício e o imaginário sejam instrumentais para o jogo, embora resida neste último (no jogo), a estratégia mais evidente na distinção ente um e outro. Essa distinção e tais conceitos são tratados ao longo da discussão que travei, me valendo do ideário de Wolfgang Iser (1996), estudioso alemão inscrito no campo da Teoria da Literatura. As articulações feitas entre os saberes dessa disciplina e da Educação se deram pela recorrência ao conceito de performance. Nesse sentido, quero deixar claro que, embora não deseje desconectar esse conceito de performance das reflexões de Iser, parti da defesa e da conceituação interligada que o teórico fez sobre real, ficcional e imaginário. Isto porque penso que são das relações que esses três termos estabelecem entre si que a 6 Este texto foi produzido no âmbito das atividades do Projeto “As Marcas dos Tempos: a Interculturalidade nas Culturas da Infância”, Projeto POCTI/CED/49186/2002 , financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Baseia-se numa conferência proferida no âmbito das Jornadas “Educação e Imaginário”, realizadas na Universidade do Minho, Portugal, em Março de 2003. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 21. 21 performance assume, no campo da Educação, uma especificidade de bom rendimento para as reflexões aqui estabelecidas. A relação entre as crianças, a professora e a televisão e, ainda, a relação das crianças com as outras mídias, na escola, estão discutidas em seguida, dentro do mesmo capítulo 4, nos eixos 4.2. e 4.3. Na tese apresentada, parte do capítulo 4 se refere à relação das crianças com as outras mídias na escola, onde sobressai o peso do texto e da estética audiovisual sobre as outras mídias, principalmente pela idade e pelo perfil socioeconômico das crianças. O perfil das crianças e suas práticas cotidianas indicam ser a televisão a principal fonte de onde recortam as notícias que vêem e que ouvem e, ainda, que essas características típicas da televisão (poder ver e ouvir) sejam elementos diferenciais quando se discute os aspectos relativos à veracidade e à atualidade das notícias, em outras mídias. Aqui nesse capítulo, nitidamente as crianças expressam alguma desconfiança e uma imensa dificuldade para explicar o que sentem como uma possibilidade de manipulação das representações do mundo em que vivem em várias mídias, também na televisão. A outra parte e eixo desse capítulo, se dedica à discussão sobre As Crianças e as Notícias da Televisão, em que foram feitas aproximações da Educação com áreas afins, como já havia sido iniciado, com a Teoria da Literatura de Iser, para sustentar as relações entre os aspectos ficcionais e imaginários e, agora, com a área de abrangência da Comunicação Social. Fui buscar em Silva (2005), no campo do Jornalismo, que é parte da área de abrangência da Comunicação Social, certos valores-notícia para definir o caráter de noticiabilidade dos acontecimentos. A produção de notícias e de um telejornal sugeriram a retomada do conceito de performance de Iser para explicar os aspectos relativos ao agir como se (1996). Nesse capítulo, portanto, foram apresentadas e discutidas as concepções infantis sobre padrões estéticos dos jornalistas e dos telejornais, sobre critérios de importância, de veracidade, de credibilidade. Ficaram muito presentes elementos como uma tensão entre o medo e o desejo de aparecer na televisão e, ainda, o que chamei de (in)visibilidade dessas crianças na mídia, retomando certos preceitos teóricos de Sarmento(2007, p.25-49). Segue o capítulo 5, que se refere aos efeitos conclusivos desta tese, as Referências Bibliográficas, no capítulo 6 e os documentos em anexo, no capítulo 7. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 22. 3 Os passos e os percursos 3.1 Reflexões teórico- metodológicas É durante o período de permanência do pesquisador no campo que os aportes teóricos que constituem a base teórica da pesquisa são postos à prova. Foi na interação da pesquisadora com a globalidade das experiências vividas e imaginadas pelas crianças que emergiram recorrências, discrepâncias e ambigüidades que tensionaram as escolhas, as decisões prévias e a flexibilidade da pesquisadora. À medida que o investigador observa e captura, registra e analisa cenas e situações, depoimentos e relatos, sempre que possível considerando os seus contextos, vão emergindo sentidos com certa regularidade e, também, eventualmente, aspectos que até então não tinham sido pensados. È o material coletado que exige do investigador movimentos de aproximações e de distanciamentos para ser possível identificar os grupamentos de estruturas recorrentes, carregadas de sentido, que se configuram em categorias. Essa estruturação da empiria em categorias foi se constituindo ao longo do processo de interação com o campo e, assim que foram configuradas como tal, elas passaram a funcionar como se fossem trilhas de acesso e de visibilidade sobre as relações que as próprias categorias estabeleciam entre si, sobre a articulação delas com os sentidos, sem negar as contradições e as ambigüidades existentes. Deste modo, nessa movimentação composta de aproximações e de distanciamentos, os procedimentos metodológicos da pesquisa são questionados pelos aportes teóricos previamente pensados, e vice-versa, no afã de atender à complexidade do campo. As categorias elencadas também vão sendo questionadas de modo a verificar se as mesmas são adequadas para acolher e permitir analisar o material coletado de forma integral, sem qualquer tipo de corte, restrição ou omissão de modo a fazer com que a empiria venha a caiber nas categorias já pensadas. Passada a fase inicial de conhecimento mútuo, em que se tornou possível identificar uma configuração do campo, foi se tornando necessária uma revisão na PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 23. 23 base teórica definida inicialmente e, também, a inclusão de algumas alternativas metodológicas diante de alguns aspectos que emergiram pela sua força, abrangência e complexidade. Esses aspectos estão tratados nos capítulos que se seguem, em que apresento cada uma das categorias elencadas com as abordagens teóricas prevalentes, em cada caso. É importante ressaltar que foram estabelecidas a priori algumas concepções sustentadoras deste estudo das quais ele não poderia se desviar, em quaisquer circunstâncias, sob o risco de invalidar a pesquisa em si, na sua totalidade. E uma concepção de base, sobre a qual procurei operar como um pilar de sustentação inegociável, referia-se a uma concepção de criança como sujeito de direitos, ativo e participativo, que se caracteriza pelo que é, desde que nasce, e não pelo que lhe falta sob a ótica do senso comum e do mundo adulto. Uma característica comum a pesquisas como esta implica que ela aconteça onde exista e seja legitimado um espaço garantido de encontro entre sujeitos, e, nestes casos, os instrumentos metodológicos de costume são a observação e a entrevista, individuais e coletivas, reconhecidos os seus limites e as suas possibilidades. No entanto, em geral, a riqueza do campo sugere que seja mantido um certo cuidado para não escapar do que e de como se busca conhecer, ainda com maior apuro quando as crianças são entendidas como os sujeitos da pesquisa e se deseja garantir sua autoria e protagonismo numa circunstância em que elas e o pesquisador precisam se dar a conhecer mutuamente. Assim, como buscava conhecer a relação que as crianças estabelecem com as notícias da televisão, precisei destacar certos aspectos em detrimento de outros, não por serem menos importantes, mas para apurar o foco no meu objeto de estudo. Deste modo, julguei prudente explicitar alguns pontos-chave que busquei manter vivos nesta pesquisa, tal como foram defendidos por Maria Thereza Freitas (2003), citados aqui na ordem proposta pela autora: 1. A necessidade de a fonte de dados ser o contexto onde cada uma das crianças vive, como um sujeito particular único, diferenciado dos outros, e, ao mesmo tempo, entender o lugar delas como parte de uma totalidade social; 2. a importância de buscar conhecer os fenômenos daquela determinada realidade social em sua complexidade, em sua totalidade; 3. a ênfase da coleta dos dados estar centrada na compreensão pautada na descrição, incluindo-se aí os modos de relação entre cada criança e seu grupo, sua comunidade PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 24. 24 escolar, com a professora e vice-versa; 4. a garantia do meu lugar como pesquisadora sendo parte da investigação, capacitada a estabelecer relações intersubjetivas com os sujeitos da pesquisa, sem poder perder de vista o meu lugar sócio-histórico, diferenciado e exotópico; 5. tomar a situação de pesquisa como um espaço de compreensão e de reflexão para os sujeitos da minha pesquisa e também para mim, como pesquisadora, onde a profundidade do conhecimento deveria valer mais do que sua precisão, e da qual eu não precisaria esperar nenhum “efeito conclusivo”, no sentido de alcançar verdades fechadas ou definitivas. Nesse viés, trabalhamos com situações de entrevistas, tendo como objetivo a mútua compreensão, ativa e responsiva, entre mim e as crianças, em pares ou em pequenos grupos, atendendo às minhas demandas e também às deles, buscando sempre valorizar e resguardar a interação e os espaços de diálogo, garantindo a enunciação de cada um, bem como a alternância dos sujeitos falantes, para que todos – eles e eu – fôssemos tanto ouvintes como locutores. Vale destacar que o trabalho acadêmico sustentado nos princípios da alteridade funciona em sentidos simultâneos e desafiadores. Neste caso, em primeiro lugar, eu desejava me permitir conhecer e ser vista pelas crianças sob o olhar alteritário delas em relação as imagens de criança a elas impostas pelo mundo adulto. A professora, a jornalista e a pesquisadora que vivem em mim também tensionaram uma à outra de forma alteritária, o que, além das vertigens que provocou em muitas situações, exigiu-me revisar as prioridades e os caminhos. Minha vida como professora, jornalista e, agora, pesquisadora, mantinha-se pautada no preceito bakhitiniano de que para haver compreensão (1988, p. 132), precisaria haver pelo menos duas consciências em diálogo, opondo ao interlocutor sua contrapalavra nesse processo dialético de construção de sentidos, e essa conduta facilitava a defesa das entrevistas em pares, sempre que possível, e também das chamadas entrevistas narrativas. E, nesse processo de construção de sentidos na escola, é importante chamar atenção para o elevado teor de complexidade que envolve a relação do professor com seus alunos, além da presença de um outro, o pesquisador, na sala de aula. Hoje, há uma série de estudos pertinentes e oportunos sobre esse tipo de circunstância e relação que, inegavelmente, permeia toda a pesquisa, assim como deixa marcas sobre ela. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 25. 25 Um elemento totalmente imprevisto na pesquisa e que a enriqueceu significativamente, foi proposta, por parte das crianças, a criação de um telejornal, encampado pela professora e no qual, diferentemente dos jornais escolares feitos até então, as notícias não estariam referenciadas na comunidade escolar, mas na mídia (em especial na mídia impressa), para numa etapa seguinte serem transformadas ou adaptadas para a televisão, tal como foi proposto pela professora regente da turma. Todo esse processo foi planejado e encaminhado pela professora. Grande parte dele foi filmada por duas câmeras com microfones (de mão e um boom) para tornar possível que as crianças se vissem e escutassem suas vozes na televisão, etapa em que colaborei ativamente com os recursos técnicos necessários, tanto para tornar possível atender ao desejo das crianças, quanto para obter o registro audiovisual de uma atividade muito enriquecedora para este estudo. Essa filmagem resultou em mais de duas horas de gravação feitas por duas câmeras, uma Super VHS da escola e outra, Betacam, que foi levada por mim e operada por dois profissionais da MULTIRIO (Empresa Municipal de Multimeios da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro) desde a fase de planejamento coletivo da tarefa até o final da gravação. No entanto, apesar do reconhecimento e de terem sido considerados aqui todos os procedimentos, inclusive a produção do telejornal, vale insistir que essa pesquisa tenha se sustentado basicamente na coleta de dados feita no meu caderno de campo, onde foram feitos os registros diários do que considerei significativo para o estudo, onde procurei registrar a interação das crianças comigo, entre elas , delas com a professora e com outras crianças e adultos da escola. Eventualmente me utilizei de um audiogravador, muito mais para me permitir interagir “inteira” em certas ocasiões, sem a preocupação de escrever e de registrar, do que por ter a pretensão de que a audiogravação pudesse captar a globalidade do que ali acontecia. Havia em mim a certeza de que os recortes que aconteciam no percurso imprimiriam as minhas marcas como pesquisadora em relação estreita com o campo, além da impossibilidade assumida de ser possível capturar tudo. Acho importante dizer que a professora mostrava se esforçar para, de alguma forma, ela e suas crianças virem a contribuir para os meus estudos. Assim, por mais cuidado que eu tenha tido, ainda que sem qualquer intenção de passar em PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 26. 26 branco pelo grupo, percebi a imagem da professora sobre um outro, pesquisador, que exigiu dela um tipo de esforço no sentido de atender às expectativas do que eu estaria buscando naquele espaço. Ainda assim, a minha interação com ela e com as crianças se deu sem problemas e, aos poucos, ela pôde perceber que ouvir as crianças era importante para mim, muito mais do que encontrá-las caladas, organizadas em suas mesas, porém silenciosas e desmotivadas. Resta informar que as alternativas metodológicas utilizadas foram devidamente autorizadas pelos responsáveis e pela equipe da escola, e em nenhuma situação foram introduzidas antes mesmo de terem sido apresentadas às crianças para que entendessem os encaminhamentos, as razões para tais procedimentos sempre acompanhadas de um acordo tácito em que elas poderiam decidir não se deixar gravar ou filmar, ainda que com autorização dos adultos. Essas questões relativas à ética na pesquisa com crianças estão tratadas mais à frente, neste capítulo. Ainda que o uso do audiogravador tenha acontecido pouquíssimas vezes, e as crianças pareceram não se interessar nem expressar qualquer curiosidade em relação a ele. O encontro com o gravador portátil suscitava nelas um tipo de lembrança e de desejo que as levava a me pedir, com insistência, para que eu levasse uma máquina fotográfica digital, para dar “para eles se verem na máquina! Gravador é chato porque não tem cara, só a voz da gente. A minha boca está aqui, ó, eu falo tudo de novo!” (JH, mo, 7 anos). E pediam: “Tia, gosto mais daquele outro seu gravador digital, gravador não, aquele de fotos que a gente se vê. Traz tia, deixa eu mesmo usar? Deixa, deixa tia.”(VS, mo, 6 anos; LS, ma, 7 anos) Um outro dado relevante e que me causou um relativo desconforto se referia ao fato de as crianças me chamarem de “tia”. Nunca, em quase 20 anos de magistério, meus alunos me chamaram de outra forma que não fosse o meu nome. No entanto, diante de uma relação já estabelecida com os adultos da escola, em que todos eram assim tratados, não me opus e busquei não expor o meu desconforto. Aconteceu, ainda, de as crianças fazerem algumas atividades gráficas sobre o que gostavam, ou não, de ver na televisão, também sobre seleção de notícias do jornal impresso para ser possível montar o telejornal. Nesses casos, eu procurava escutar as crianças enquanto faziam a atividade e, em algum momento posterior, em pequenos grupos, eu buscava conversar com elas, retomar a atividade e a circunstância em que ela aconteceu. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 27. 27 Em trabalhos desta natureza, em que o registro no caderno de campo do pesquisador é a fonte por excelência da coleta de dados e da geração do material de análise, alguns cuidados precisam ser tomados de modo a garantir a personalidade do pesquisador no seu estudo, sem, no entanto, que ele se confunda com o campo, para ser possível fazer as aproximações e os distanciamentos necessários não só para a realização do estudo mas, também, para a validação do mesmo. Estabeleci para mim, desde o início da pesquisa de campo, alguns procedimentos que me permitiriam minimizar os riscos de direcionamento, para ser possível identificar os aspectos subjetivos e para conhecer aspectos gerais e sistêmicos de funcionamento do grupo, que, no percurso, às vezes até em um único dia, se montou e se remontou em diferentes configurações, em contextos variados. Nesse sentido, precisava reconhecer e lidar com a necessidade de buscar as formas possíveis de validar as minhas escutas, leituras e interpretações, na medida em que o processo interpretativo de captação dos sentidos funcionava a partir dos meus recortes e registros e, desse modo, como pesquisadora, era também um instrumento importante na investigação. Assim, para ser possível conhecer de que modo as notícias da televisão deixavam suas marcas naquelas diferentes crianças que compunham o grupo, eu precisava buscar as confirmações possíveis de que as interpretações estabelecidas atendiam ao ponto de vista delas, e não aos meus nem aos da professora, o que não era uma tarefa simples. Decidi então trabalhar com métodos de triangulação, usados em pesquisas qualitativas realizadas com crianças, em que o pesquisador pode contrastar materiais impressos (trabalhos gráficos) produzidos pelas crianças com seus próprios depoimentos registrados no caderno de campo, conversas, fichas documentais disponíveis na escola e as videogravações, por exemplo. Esse trabalho foi feito e está indicado no capítulo referente à análise do campo. No entanto, sempre que foi possível, procurei incluir as crianças nessa triangulação, na qual, em pequenos grupos, procurávamos conversar, rever e ouvir delas algumas informações sobre critérios utilizados por elas para a seleção e o recorte de algumas notícias em detrimento de outras. Essas triangulações se deram a partir de decisão metodológica que permitia que eu me colocasse como instância mediadora numa das pontas do triângulo, na outra as crianças em pequenos grupos e na terceira, trabalhos, fatos, histórias contadas, preferências e experiências. Ou seja, nessa terceira ponta poderiam estar trabalhos gráficos ou audiovisuais como o telejornal, PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 28. 28 um determinado episódio de certo programa de televisão e, com freqüência, algumas notícias veiculadas pelo telejornal ou o próprio, como um formato específico de programa. Assim, nesse mecanismo de depuração do processo interpretativo, também a videogravação do telejornal foi a elas apresentada de modo a se verem, se escutarem e participarem da edição desse material na escola. Foi levado para a escola um computador com editor de imagens, com possibilidades gráficas e de inserção de sonorização; nesse momento, a participação das crianças foi determinante para perceber como se viam, as imagens que tinham de si, das outras crianças do seu grupo e, em especial, como entendiam a produção das notícias dos telejornais. Na última etapa de visionamento, em que o vídeo foi apresentado a elas já editado, segundo os critérios estabelecidos por eles, em grande parte feito na escola em dias anteriores, sempre com a participação deles, também procurei filmar esse visionamento para que eles pudessem, ainda, ver como reagiram ao verem a si mesmos depois dos reajustes propostos. Esse telejornal, em sua forma final, ficou com duração aproximada de 15 minutos. Depois de editado com a co-participação das crianças, o vídeo foi entregue a elas, em cópias em DVD para cada uma, também para a escola e para professora. 3.2 Lukacs A pesquisadora e as narrativas infantis Narrar ou Descrever? foi o título dado por Lukacs a um ensaio escrito por ele, traduzido e publicado no Brasil pela editora Civilização Brasileira em 1964. A partir desse ensaio, em que o húngaro Lukacs defende a sua concepção de narrativa, estabelecendo um contraponto com a concepção de Benjamim expressa no texto O Narrador, o filósofo Leandro Konder escreveu, em 2002, um artigo intitulado A Narrativa em Lukacs e em Benjamim. Embora fossem contemporâneos, à época em que os textos foram publicados originalmente, os dois não tomaram conhecimento um do outro. Para Konder, a afinidade de ambos era evidente, embora existisse uma diferença clara na abordagem do tema, por cada um deles. Para Lukacs, a defesa da descrição sobre a narrativa implicava uma cumplicidade com o existente, como se a realidade fosse sempre aquilo que ela é no PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 29. 29 momento em que é descrita, legitimando-o (o existente). Já a narrativa estimularia a compreensão da realidade em permanente transformação, “num movimento incessante em que engendra o novo”. (Konder, 2002) E, assim, Lukacs comparou a atitude de quem descreve e de quem narra como se o primeiro fosse um observador contemplativo do mundo, enquanto o segundo, o narrador, se expressasse como quem vive os acontecimentos. É o mesmo Konder que ressalta o olhar diferenciado de Benjamim ao resgatar as origens remotas das narrativas, em que identifica o ato de narrar como a “expressão de um trabalho artesanal que se realiza sobre a matéria-prima da experiência”. (Konder, 2002) Assim, iniciando com os marinheiros viajantes, passando pelos camponeses e chegando aos artesãos, a arte de narrar foi assim se aprimorando de modo a mobilizar o “contador de histórias por inteiro”, de forma que mãos e gestos, expressões e movimentos ajudassem a sustentar o fluxo do que era dito exemplarmente. Talvez se justifique na forma como a sociedade foi se remontando a preocupação de Benjamim com o declínio da narrativa, como indica Konder. Segundo ele, no lugar das velhas histórias, “sempre surpreendentes e renováveis, as mudanças do mundo estivessem propondo sua substituição por informações e notícias que só seriam capazes de suscitar interesse enquanto eram novas”.(2002, p.3) Deste modo, ao defender a importância de as crianças criarem, contarem e ouvirem histórias encantadas, relatos de situações reais e imaginadas e que o fizessem, sempre, por inteiro, eu pretendia estimular a narratividade das crianças, sujeitos da pesquisa e, assim, compreender o que as aproximava e/ou afastava do jornalismo informativo produzido e veiculado nos telejornais. É possível afirmar que, mesmo antes da minha entrada no campo, como uma estudiosa do tema, eu vinha observando crianças de escolas públicas municipais cariocas em interação criativa com os expressivos avanços tecnológicos a que têm acesso, em geral com o audiovisual, por meio da televisão, mas também com a internet e com os celulares. De alguma forma, parecia estar havendo uma relativa ampliação dos espaços de narrativas, agora com sons, imagens, cores, movimentos e interatividade e, com o acesso gradativo aos meios de produção audiovisual, supostamente estaria se tornando possível construir e reconstruir o “era uma vez”, os casos e as histórias em diferentes suportes e linguagens. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 30. 30 Como pesquisadora, estudar as crianças a partir de suas narrativas implicava a possibilidade de compreender e de partilhar a rede de significação simbólica que as unia, sem igualá-las. Essa rede de significações, tecida na linguagem se sustentava nas enunciações e narrativas e, por isso, ouvi-las e registrá-las tornou-se imperioso para conhecer o(s) modo(s) como as crianças são/estão no mundo. Era preciso levar em conta, na análise das narrativas delas que a televisão tem a possibilidade de criar e de transformar as práticas sociais que “falam” da sociedade, como também de constituir saberes acerca desta mesma sociedade. Além do fato de que, hoje em dia, parecer ser a televisão o lugar de onde as crianças retiram o que sabem e o que lhes é oferecido para compreender o cotidiano e a vida. Deste modo, as narrativas das crianças sobre as notícias da televisão constituíram-se no principal material empírico deste estudo. Mesmo assim, alguns questionamentos não podiam ser evitados, e as suas possíveis respostas estão apresentadas ao longo deste texto, como por exemplo: até que ponto, se pode garantir a autoria e o protagonismo infantil, considerando-se que há recortes, registro e análise que são de responsabilidade do pesquisador? Mesmo não havendo direcionamento, quais são os limites de interferência do pesquisador que não se faz isento, omisso, despercebido? Em que medida essas questões podem vir a se constituir em um problema? Trabalhar a partir das narrativas das crianças implica aceitar certa dimensão de incerteza, na medida em que não se pode supor que o mundo infantil esteja de tal modo organizado e planejado pelos adultos para que nele não caibam mudanças, que dele não se esperem propostas de transformação que, tudo indica, seriam ameaçadoras e desestabilizadoras da visão adultocêntrica da estrutura de mundo que lhes interessa manter (Larrosa & Lara, RJ: 1998, p.75-76). O trabalho com as narrativas orais das crianças, transmutadas em linguagem escrita, alternativa escolhida por mim, visava me colocar no lugar de um adulto diferenciado, um outro – adulto, numa circunstância específica, aquela de quem deseja reformatar a discussão entre o conhecimento e a alteridade do mundo infantil. Assim, precisava capturar com meus olhos, ouvidos e mãos suas falas, expressões de sentimentos, intervenções e pausas para que as mesmas pudessem valer como questionamentos sobre o mundo de que faço parte, o dos adultos. Não havia, portanto, possibilidade de as crianças do meu universo de pesquisa dirigirem PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 31. 31 seus olhares e suas falas a um gravador ou a uma câmera de videogravação, como uma escolha metodológica, diante de uma intenção de captar e de reproduzir tudo. Neste estudo, estava certa da minha intenção de estar disponível para observá-los e interagir com eles, como também, e ainda com maior interesse, de ser observada e questionada por eles para compreendê-los melhor. Assim, supunha que, ao ser notada e aceita por eles como um outro (adulto), estaria sendo permitido a eles que me devolvessem algumas dessas imagens “que colocamos sobre eles para classificá-los, para excluí-los, para proteger-nos de suas presenças às vezes incômodas, para enquadrá-los institucionalmente em casa e na escola, para submetê-los as nossas práticas” (Sarmento) e, com isso, reduzir as possibilidades de emergirem surpresas que podem vir a ser vertiginosas ou ameaçadoras para o adulto. Fazer uma pesquisa com crianças que se sustenta, especialmente, nas narrativas delas se justifica pela importância que o ato de contar histórias têm para a conformação dos fenômenos sociais. A narrativa como uma prática discursiva funciona não apenas como uma forma de investigação, mas como uma alternativa muito produtiva de coleta de dados nas Ciências Sociais, nos dias de hoje. A entrevista narrativa, tal como é chamada por alguns estudiosos de metodologias (Bauer e Gaskell, 2000), de que se servem as pesquisas qualitativas é uma alternativa de geração de dados que têm infinitos ganhos e alguns problemas epistemológicos que, como dizem seus autores (idem, p. 91), têm o tamanho e a dimensão “do que as narrativas nos contam”. Há duas críticas semelhantes porém diferentes que recaem sobre o uso das “entrevistas narrativas” (EN). Uma delas se refere às expectativas e hipóteses levantadas pelo narrador/informante em função do que ele supõe que o pesquisador deseje ouvir, o que, de fato, pode ocorrer, mas que não é uma prerrogativa exclusiva das entrevistas narrativas. Outra critica comum se refere ao risco de o pesquisador direcionar e influenciar o universo pesquisado de modo a escutar o que, de antemão, esperava ouvir. Ciente dos riscos e com atenção permanente para evitar que os mesmos viessem a ocorrer, eu não criei nenhuma estratégia que pudesse mascarar o meu interesse em interagir com as crianças, em dialogar e até mesmo em me expor, dependendo da situação, dando o meu ponto de vista pessoal sobre alguma coisa. O que me preocupava e do que precisava fugir, era do risco de uso da EN como uma PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 32. 32 variação estratégica para o antigo esquema de perguntas e respostas, que, num momento posterior, pudessem vir a ser avaliadas segundo critérios de certo ou errado, verdadeiro ou falso, etc., o que não atenderia a esta pesquisa. Por mais se evidenciasse uma tendência de as crianças buscarem agradar à pesquisadora, não acredito que isso tenha se refletido nas interações que estabeleceram com seus amigos, com a professora nem em contato direto comigo. O uso das EN foi alimentado sempre pelo interesse de conhecê-las, de compreendê-las melhor sem julgá-las nem confrontá-las em relação às suas próprias narrativas, nem em relação à dos amigos. Como também não supunha que contradições, ambigüidades, tensões e conflitos infantis fossem ficar à margem de suas narrativas, não me cabia resolvê-los nem tampouco verificar seu teor descritivo em relação a fatos supostamente reais, ficcionais ou imaginários. 3.3 Questões éticas que envolvem as relações entre crianças, a pesquisadora e o professor Já explicitei o meu desconforto em relação a ser tratada pelas crianças como sendo “tia” e a flexibilização necessária diante do carinho, da aproximação sem reservas e, sobretudo, da confiança das crianças e da equipe da escola em relação a mim. Não tenho dúvida de que essa relação foi construída de modo parceiro e interativo na convivência que estabelecemos durante todo o ano letivo. Muitas questões se impuseram aqui como desafios a serem enfrentados em que a maioria delas dizia respeito ao espaço delimitado, por um lado, pela garantia à autoria e ao protagonismo infantil e, por outro, pela necessidade de não expor as crianças em nenhuma instância, fosse na escola, na família, nas comunidades em que vivem e nos diferentes espaços que este estudo puder alcançar. É extremamente delicado e difícil encontrar um ponto de equilíbrio que satisfaça tanto a valorização das vozes e das narrativas infantis, quanto ter que protegê-las diante do uso que pode vir a ser feito do que dizem e do que são. O meu modo próprio de ser e de lidar com crianças, não me permitiria criar nem propor a elas que se dessem outros nomes, diferentes do que têm. Assim, optei por fracionar na menor parte possível o nome de cada uma das crianças usando as letras iniciais do primeiro e segundo nomes, ou do nome e do sobrenome, identificando-as por PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 33. 33 apenas duas letras maiúsculas, seguidas de uma pequena sigla indicativa quanto ao gênero – “mo” para os meninos e “ma” para as meninas –, seguida da idade em julho de 2007. Ainda assim, preciso deixar aqui registrado o quanto este texto se ilumina e se robustece ao incluir os dados do campo e, ao mesmo tempo, o quanto ele se torna desinteressante e, até mesmo, enfadonho quando, no lugar dos nomes pelos quais são chamadas as crianças, aparecem duas letras maiúsculas, uma sigla formada por duas letras minúsculas e um número, como por exemplo: VS, mo, 6 anos. Um outro ajuste que resolvi fazer se refere à transcrição das suas falas com erros de português. No afã de ser o mais fiel possível às falas e aos depoimentos infantis, anotei o que pude com as circunstâncias, cenas e situações tal como eram ditas e expressas pelas crianças. No entanto, com freqüência, nas situações em que eu devolvia a eles o que tinham dito, por exemplo, durante as atividades gráficas desenvolvidas pela professora, ou durante uma brincadeira, tanto eu ficava constrangida de expor uns aos outros ao ler para elas textos com erros, quanto até mesmo a professora se apropriava disso com crítica e se mostrava insegura de vir a ser avaliada pelos eventuais erros cometidos por seus alunos. Vou exemplificar com uma expressão muito típica desse grupo, usada para se referir a um grupo de pessoas reunidas em que ao menos uma das crianças estivesse incluída: “nós tudo fomos embora, nós tudo tava com fome, etc.” Eventualmente, eles usam o termo a gente com o verbo, em geral, com uma concordância errada: “a gente fumo” ou “a gente comiam depressa para não pegarem tasco” (referindo-se a ter que dar no lanche pedaços de bolo Ana Maria para os meninos de outras turmas). Algumas outras palavras eram usadas com freqüência pelas crianças como “fulano”, “bertrano”, “sircrano” e “pobrema”, para referirem-se a “fulano”, “beltrano”, “sicrano” e “problema”. Escutei inúmeras vezes as crianças se expressando de forma incorreta, o que pode ser reconhecido menos como erro, mais como variação dialetal, sem que houvesse qualquer intervenção de adultos. No entanto, ao entenderem o funcionamento dos meus registros para análise posterior, sem que nada houvesse que impedisse a leitura dos depoimentos deles, a professora, e também as crianças começaram a se mostrar inseguras em relação à possibilidade de virem a ser corrigidas pela professora ou ainda serem motivo de deboche. Por isso, decidi corrigir minimamente na transcrição escrita seus textos orais, sempre com a PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 34. 34 preocupação de preservar as falas originais, sem, no entanto, oferecer, especialmente para as instituições escolares, elementos para crítica sobre aspectos que não são estáticos e que, ao final deste estudo, já poderiam estar reestruturados se consideramos a idade e a turma em que se encontram: o primeiro dos nove anos que compõem o ciclo de formação. Uma outra questão que precisa ser explicitada e que influenciou a minha decisão de substituir os nomes das crianças pelas suas iniciais se deve à importância do local de moradia como elemento diferenciador, muito valorizado e utilizado com muito peso na identificação do grupo. Decidi, nesse caso, revelar a localização da escola pública municipal na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro e, em cada caso, poder me referir livremente às comunidades próximas onde as crianças moram por ter entendido que, desse modo, o estudo seria mais produtivo para compreender as crianças, seus medos, suas expectativas e parcerias eventuais em função da comunidade de que são parte. Assim, à guisa de conclusão deste item, gostaria de informar que a minha pesquisa teve seu projeto analisado e autorizado para sua consecução pela Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro (anexo 1). Assim que cheguei à escola, foi expedida para cada um dos responsáveis por cada criança uma autorização para a participação da mesma na pesquisa, na qual se incluía o direito de uso de imagem em fotografias e em gravação audiovisual, além da voz, em caso de audiogravação (anexo 2). Ainda assim, as crianças sempre foram consultadas em relação ao seu desejo, de não serem filmadas, gravadas ou fotografadas, mesmo com a autorização de seus responsáveis. No caso do telejornal e da proposta de gravação, edição, etc., houve duas crianças que foram autorizadas a participar da atividade desde que não fossem filmadas “dando notícias, para que não aparecessem na televisão”. De todo modo, cada criança recebeu uma cópia gravada da última forma da filmagem do telejornal que também entregue para o acervo da escola e será usada por mim apenas em atividades de natureza acadêmica. Ainda que possam parecer simples, as escolhas teórico-metodológicas que dizem respeito à gerações de dados, às análises feitas partir das recorrências e discrepâncias, regularidades e descontinuidades encontradas, os sentidos, as redes de significações e algumas decisões são desafios que fazem parte das atribuições do pesquisador. Mesmo que sejam feitas todas as ressalvas possíveis, não se pode PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 35. 35 negar que cada pesquisa expressa tanto a competência, a habilidade e as fragilidades do pesquisador, em diferentes níveis e nuances, quanto, também, o amálgama que resulta numa cor, tessitura e personalidade próprias a cada estudo. As expectativas, as hipóteses e os percursos que se cumpriram, ou não, integram esse relato assim como o registro de todos os tipos de dados analisados, das narrativas às fichas de matrícula, alguns desenhos, cenários e depoimentos. Em pesquisas desta natureza com crianças é desejável que o pesquisador se exponha e que se ponha à prova, também, quanto às suas interpretações, à construção de sentidos e de categorias que vê emergir, pondo-se disponível para expor seu olhar sobre as crianças e vê-lo questionado e legitimado por elas, também. Assim, quando o pesquisador devolve a elas, de modo estimulante, algumas de suas escolhas, atitudes e argumentos, respeitosamente, elas se mostram valorizadas, respeitadas e aptas a rever e/ou validar as mesmas. Deste modo, tanto nas atividades mimeografadas oferecidas pela professora, quanto em situações em que foram feitas audiogravações, representações gráficas ou videogravações, como no caso do telejornal, as crianças puderam se ver, se ouvir, refazer opiniões e depoimentos, criticarem-se a si e aos outros. Com isso, também a pesquisa tem a oportunidade de se reestruturar e se validar ao permitir contrastar “perspectivas, métodos, dados e teorias como forma de depurar o processo interpretativo”. (Corsaro, 2003 in Borba, p.90) Uma estratégia que funcionou muito bem durante toda a minha permanência no campo consistiu em observar e, sobretudo, conversar com as crianças sobre suas vidas, as coisas que gostam de fazer quando não estão na escola, suas brincadeiras prediletas, seus medos e desejos, etc., o que foi criando o vínculo e a confiança necessários para o fluir suave e continuado da pesquisa. Como sujeitos da minha pesquisa, elas ajudaram na triangulação desejada entre os conceitos teóricos e as metodologias, o meu olhar e a minha análise, postos à prova, sempre que possível, ao ouvi-las e ao me propor a dialogar sobre a minha forma de conhecê-las e de compreendê-las. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 36. 36 3. 4 A escola e a turma A escolha da escola e de uma determinada turma foi norteada pelo desejo de trabalhar com um grupo em fase inicial de sistematização da leitura e da escrita (6-7 anos), freqüentando essa escola pela primeira vez para cumprir uma nova etapa que dura, no mínimo, 9 anos e que configura a Educação Fundamental. Essa turma e escola específicas foram indicadas pela Coordenadoria Regional de Educação (CRE) por representarem um universo variado de alunos integrado num mesmo grupo – alguns oriundos de creches e pré-escolas públicas e particulares; outros, muito pobres, oriundos de favelas próximas com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e Índice de Desenvolvimento Social (IDS) muito baixos, como Rio das Pedras (Jacarepaguá) e Terreirão (Recreio dos Bandeirantes). Há outras crianças que moram em bairros menores, que ficam dentro da área de abrangência de um bairro extenso da zona oeste, que se chama Jacarepaguá, como: Gardênia Azul, Merck, Taquara, Freguesia, Tirol e outros. A escola fica situada dentro de um condomínio de classe média-alta, na mesma Zona Oeste da cidade, num bairro que em uma de suas extremidades faz fronteira com Jacarepaguá. Fazem parte desta turma, ainda, filhos de trabalhadores do condomínio, como: porteiros, faxineiros, eletricistas, biscateiros, etc. O tempo de permanência no campo foi de aproximadamente oitenta horas, divididas em dois dias fixos semanais; minha estada na escola se iniciava com a chegada das crianças às 7h30, e se encerrava as 10h, em geral, quando estivesse terminado o tempo de recreio a elas destinado. Alguns dias, fui à escola para acompanhar atividades das crianças com a professora em horários excepcionais, como, por exemplo, nos horários planejados para produção, gravação, visionamento e edição do telejornal, realizado pelas crianças. A pesquisa de campo teve início nos primeiros dias de aula, ainda em fevereiro de 2007, e foi concluída nos primeiros dias de novembro de 2007. Ela aconteceu, mais ou menos, dentro do tempo previsto, devido a uma licença médica solicitada pela professora. Essa licença, que se iniciou nos últimos dias de outubro, acabou gerando uma dissolução do grupo, por ter sido necessário dividir a turma em outras três salas de aulas da escola. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 37. 37 Quadro sinóptico da Turma (20 Crianças7 ) Gênero 10 meninos 10 meninas Idades em 2007 16 crianças com 7 anos nascidas em 2000 2 crianças com 6 anos nascidas em 2001 2 crianças com 8 anos nascidas em 1999 Religiões informadas 2 famílias deixaram em branco 12 famílias são Católicas Apostólicas Romanas 6 famílias são Evangélicas Pai: profissão e escolaridade 2 crianças não conhecem o pai 3 famílias não informaram 2 pais são operadores de máquinas 1 pai tem ensino superior 1 é pedreiro 6 têm 1º grau completo1 é eletricista 2 estão desempregados 3 não concluíram o 1º grau2 motoboys 3 são comerciantes e/ou vendedores autônomos 3 têm o 2º grau completo 3 são vigilantes 4 não concluíram o 2º grau4 são jardineiros, auxiliares de serviços gerais de condomínios, etc. Mãe: profissão e escolaridade As 20 crianças conhecem e vivem com a mãe 10 mães têm 1º grau completo 1 mãe trabalha como professora de 5ª /8ª 4 mães não concluíram o 1º grau1 trabalha como explicadora onde mora 2 são vendedoras 4 têm o 2º grau completo 2 são garçonetes 6 são do lar, não trabalham fora de casa Todas as que iniciaram o 2º Grau o completaram8 trabalham como domésticas e/ou diaristas em casas de família Residência das crianças e responsáveis 7 Dados obtidos nas fichas informativas de cada aluno, que são atualizadas anualmente pelos seus responsáveis. Essas ficam arquivadas na secretaria da escola e que foram disponibilizadas pela direção para esta pesquisa . PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 38. 38 Comunidades de baixa renda (Terreirão, Morro do Banco) Condomínios da Barra da Tijuca (onde pais trabalham) Adjacências (Gardênia, Anil, etc.) 7 crianças 5 crianças 8 crianças Acesso a tecnologia em casa Todos têm pelo menos um telefone celular 3 crianças têm um computador 4 crianças têm 1 TV 4.têm 2 TVs 10 têm 3 TVs 7 crianças citam o uso do rádio ao falar em notícias 3.5 Minha entrada no campo Antes da chegada à sala de aula escolhida por mim juntamente com a direção, houve um contato bastante produtivo com a professora indicada para o caso. Desde o primeiro momento, ela se mostrou segura, acolhedora, sem exageros e, de certo modo, deixou até transparecer um pequeno orgulho, ou uma ponta de vaidade por ter sido a professora indicada pela direção para a pesquisa. Essa minha percepção se deu apenas no nosso segundo encontro, na mesma semana, quando a reencontrei com os demais professores da escola, no dia em que participavam de um centro de estudos. Naquele dia, anterior ao de início das aulas, fui apresentada pelo grupo gestor da escola aos professores e funcionários. A diretora me deu “cinco ou dez minutinhos” para que eu me apresentasse e explicasse para o grupo os motivos da minha estada na escola por um período semelhante ao ano letivo. Naquele momento, de modo resumido, expliquei os objetivos da minha pesquisa, que exigiam uma aproximação planejada com as crianças, uma busca de escuta e de compreensão de suas narrativas, brincadeiras, conversas, etc. Ao ser resumido, o objeto da pesquisa se restringiu à questão “crianças e televisão, o que vêem, sobre o que falam, etc.”, mas sem qualquer outro direcionamento. Assim que citei a palavra televisão, vi os professores se reposicionarem nas cadeiras. Estabeleceu-se um clima que parecia um misto de curiosidade com crítica, que gerou um ruído imediato, além de uma chuva de perguntas sobre a minha pesquisa, sobre como pesquisar este tema na escola. Algo assim: “não trabalhamos com televisão dentro da sala de aula! Como você vai pesquisar? Não estimulamos que os alunos fiquem colados na televisão! Poderia ser mais produtivo você trabalhar com vídeos e PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 39. 39 televisão na sala de leitura da escola!; Bem, para mim, é melhor ficar colado na televisão do que na rua, se metendo em encrenca!; Lá em casa, televisão é proibido, só nos fins de semana”; etc. Diante de tamanha curiosidade e da necessidade expressa de os professores dizerem como cada um vê e pensa a sua relação e também de suas crianças com a televisão e, ao mesmo tempo, do relógio que corria num espaço destinado a planejamento e organizações para o ano letivo que se iniciaria dias depois, acabei fazendo uma proposta que foi aceita pela direção e pelos professores. Me dispus a estar na escola num dia próximo, em que o grupo também lá estaria (para organizar a sala de aula), de modo a favorecer o acesso e contato para aqueles que desejassem conversar, saber mais sobre a pesquisa e o que eu pretendia estudar. Assim, nesse dia combinado, ainda na mesma semana, estava eu na escola, nos dois turnos, por duas horas na parte da manhã e pelo mesmo período à tarde, me dispondo assim para aproximações, contatos, para conhecer e ser mais bem conhecida, certa de que essa conduta favoreceria a minha relação e meus deslocamentos pela escola. Todos os que passaram por mim falaram comigo, acenaram ou me beijaram e se encaminharam para fazer as tarefas do dia. A professora da sala de aula onde aconteceria a pesquisa trouxe “dois amigos” para eu conhecer: o professor de Educação Física da escola e uma professora de turma correspondente à dela, mas com crianças um pouco mais velhas. Todos começavam o ano com a expectativa de como seria a vivência do sistema de ciclos nas escolas municipais, agora como uma exigência da Secretaria Municipal de Educação. No dia 5 de fevereiro de 2007, lá estávamos nós, antes mesmo do carnaval, para dar início ao ano letivo e, com ele, à minha pesquisa. Já na sala de aula da turma 1103, naquele mesmo dia, as crianças me vasculharam por todos os ângulos possíveis, não sem pequenos comentários, e um deles me soou interessante: “Tia, você trabalha na televisão?” As crianças também pareceram estranhar a minha presença ali, silenciosa, sentada numa cadeira e mesa a elas destinadas, fazendo anotações. Diante da movimentação delas ao meu redor, a professora pediu a eles, com rigor, que fizessem silêncio, para que me deixassem em paz e, também, “para poderem aprender”. Dizia ela: “Silêncio, meninos e meninas. Essa conversa atrapalha muito, e assim vocês não vão aprender nada!”, enquanto distribuía atividades mimeografadas. Nesse primeiro dia, percebi a alegria das crianças com os PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 40. 40 reencontros mútuos, também com os espaços familiares, a alegria de brincar e de conversar, enquanto estavam no refeitório e no pátio, na hora do recreio. Pouco depois, as aulas seriam interrompidas para o carnaval, para serem retomadas em seguida. 3.6 Registro e análise de materiais empíricos: A produção do material empírico se fez por meio de entrevistas coletivas e, em alguns casos, individuais, registradas em um caderno de campo manuscrito que ia sendo repassado, no mesmo dia, como um texto digital para o computador. Essa rotina teve a intenção de minimizar a eventual perda de informações, já que, por maior que seja o cuidado, é certo que sempre algo se perde, em especial nas situações em que eu era parte da/na interlocução com as crianças. Em alguns momentos, usei uma máquina fotográfica para registrar cenas ou situações que julguei interessantes e, se dependesse das crianças, a usaria diariamente, porque, na opinião delas, fazer pesquisa na sala de aula implicava no uso freqüente de máquina fotográfica para registro das situações escolares rotineiras: “Tia, me tira na sua máquina, porque eu estou lendo livrinho” (ML, ma, 7 anos); “Tia Inês, tia , olha pra mim, tira uma foto de mim aqui comendo meu Ana Maria [bolo] delicioso” (TS, ma ,7 anos). E também recebi uma crítica explícita: “Nunca vi pesquisa sem fotografia. Quando teve aqui outra mulher pra estudar o mangue preto (vegetação de uma lagoa próxima), era foto da gente direto. Tia, tira foto da gente, puxa, tira para a sua pesquisa!” ( YC, mo, 7 anos). Durante a pesquisa, foi desenvolvida pela professora uma atividade muito especial, por solicitação das crianças, já no segundo semestre letivo. Ela está registrada aqui, neste momento, para explicar como e por que foi introduzida na pesquisa duas câmeras de filmagem que resultaram em algumas horas de gravação. Nesse percurso, também procurei conversar com as crianças, sempre que possível, sobre suas vidas – o que faziam quando não estavam na escola, suas brincadeiras favoritas, suas famílias, seus medos, suas raivas, preferências, etc. –, buscando escapar das situações que se assemelham à aplicação de um questionário oral para que, gradativamente, fosse se estabelecendo uma relação de confiança que permitisse uma interlocução livre, sem julgamentos de qualquer natureza de minha PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 41. 41 parte. Essas situações que nomeei aqui de interlocução livre são chamadas por alguns estudiosos de metodologias de pesquisas qualitativas como uma modalidade das entrevistas narrativas (EN), que não me parece uma nomenclatura de todo inadequada, mais pela valorização das narrativas do que pelos aspectos que caracterizam as entrevistas. Também tive acesso à ficha informativa de todas as crianças para as observações e os registros necessários. Muitas vezes, em sala de aula, as atividades mimeografadas propostas pela professora deram origem a diálogos muito interessantes entre eles, deles comigo ou com a professora, e algumas dessas atividades gráficas foram fotocopiadas em xerox, e, nas minhas cópias, fiz o registro de suas falas, seus comentários e suas narrativas. A análise qualitativa do material produzido no trabalho de campo foi feita na forma clássica, da empiria aos conceitos teóricos em sucessivos movimentos de ida e volta, com a ajuda de um software que auxilia a análise de dados não numéricos e não estruturados (NUD*IST 4.0). Uma das estratégias adotadas durante o tempo em que estive com as crianças consistia em conversar informalmente sobre o que gostavam de brincar e sobre suas relações sociais, e essa prática ajudou muito, tanto na construção de conhecimentos mútuos sobre e para a pesquisa quanto no processo interpretativo. As crianças demonstraram gostar de falar de si, de contar histórias de suas vidas, de falar sobre suas práticas sociais e culturais e, neste percurso, eram expressos seus valores, significados e expectativas. Suponho que tenha sido o meu interesse em ouvi-las, demonstrado em atitudes cotidianas e simples, que tenha feito com que, gradativamente, de forma espontânea, elas se aproximassem e me oferecessem explicações sobre condutas, escolhas e preferências, me mantendo informada sobre pessoas e casos que envolviam sua família e, também, sobre o modo de pensar diante de determinadas situações. Essa atitude oportunizou o acesso a uma miríade de aspectos importantes que me ajudaram a questionar, rever ou validar certas hipóteses e interpretações. Com esse objetivo, foram feitas, ainda, três sessões de visionamento com edição do material de filmagem do telejornal em que, ao se verem na tela da televisão, puderam estabelecer um olhar alteritário sobre si em que, mais uma vez, os seus depoimentos contribuíram para validar ou para exigir redirecionamento das minhas interpretações. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 42. 42 As entrevistas aconteceram sem um ritual preestabelecido, de modo informal, em pequenos grupos, pelo menos com um par de crianças, e sempre se iniciavam a partir de assuntos pendentes entre nós, entre elas ou delas com os acontecimentos a sua volta. O audiogravador foi utilizado em poucas situações e não tinha um significado expressivo para esse grupo. Ele era usado como um recurso para me atender, para me ajudar, e nem todas as crianças demonstraram interesse para se ouvir. Algumas delas riam ao identificar suas vozes e, em regra, pediam para que eu levasse máquina fotográfica digital para a pesquisa. Esse desejo reiterado das crianças em relação ao registro de suas imagens em fotografias não me permitiu descartar a hipótese de que o meu interesse sobre programas de televisão tivesse contribuído, de alguma forma, para essa valorização expressiva da imagem sobre o som, representada pela suposta preferência da máquina fotográfica no lugar do audiogravador, o que deixo aqui relatado apenas como uma possibilidade. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 43. 4 A televisão que vai à escola 4.1 As crianças, suas famílias e a televisão Todos os materiais reunidos e analisados neste estudo se sustentaram, essencialmente, nas narrativas infantis e nas práticas discursivas que aconteceram dentro da escola e estas se complementaram por uma observação atenta em relação às trocas de olhares, aos gestos, aos silêncios, sorrisos e choros que surgiram ao longo do trabalho como forma de expressão e de linguagem. Para conhecer e analisar essa complexa triangulação entre crianças, a programação televisiva e a dinâmica das suas vidas familiares, precisei não apenas observar, acompanhar e registrar, mas também me dispor a conversar diretamente com elas. Só assim, seria possível conhecer e compreender como cada uma sentia e entendia o seu universo familiar. Essa foi uma questão relativamente fácil de ser encaminhada, principalmente nos horários destinados ao lanche, que aconteciam no refeitório, e nos intervalos para o recreio. Ao perceberem minha proximidade e interesse, as próprias crianças me procuravam quase todos os dias em que estive na escola, na maioria das vezes em pequenos grupos mistos, em geral carreados por meninas com interesse e extrema curiosidade sobre a minha vida particular: “Você tem pai? Você é velha e tem pai ainda? Mentira?! Você tem marido? E filhos? A professora falou que você estuda. Mas aqui é escola de criança, não é de gente velha. Tem até escola de gente velha, pai, mãe, assim... quase velha, mas não muito velha, mas aqui não é!” (TS, ma, 7 anos) Nesse questionário a que fui submetida com relativa freqüência, incluíam-se perguntas de outras naturezas, que, ao atender à curiosidade delas, funcionavam também como portas de aproximação, um convite para o estabelecimento de uma relação de inclusão e de pertencimento entre nós, agora sob o viés do consumo, menos de bens materiais, mais de ordem simbólica: “Você mora aqui perto? Você tem cara de morar aqui neste condomínio de gente rica (onde fica a escola). Você tem televisão com controle, no seu quarto? Onde você mora? Eu bem vi você chegando de carro, e era bem um Palio. Palio é fofy (fofo)! Acho que você vai lá naquele Boticário que tem dentro, lá bem dentro da porta do Mundial para comprar esse perfume. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA
  • 44. 44 Eu adoro o cheiro do perfume do Boticário, só que eu não tenho mais, o meu já acabou. Na sua bolsa tem glitter de boca? Deixa a gente ver? Tem cheirinho? Tia, você não é Flamengo? Diz alto aí para todo o mundo saber!” (TO, ma, 7 anos; VS, mo, 6 anos; LE, mo, 7 anos; LF, mo, 7 anos) As questões relativas a essa aproximação estão desenvolvidas ao longo desta tese, no entanto, antecipo alguns aspectos para justificar o fato de ter sido a curiosidade infantil sobre a minha vida pessoal um elemento facilitador de acesso à vida das crianças, em relação às suas famílias e à programação televisiva. O grupo de crianças, desde o início, demonstrava alterar sua configuração interna sem que houvesse uma explicação óbvia ou simples, para mim. Era comum as crianças se remontarem em grupos menores, por um período determinado de tempo, em circunstâncias específicas que eu precisava conhecer e que me levaram ao ideário de Simmel8 . Com Simmel, as aproximações e distanciamentos feitos pelas crianças podiam ser melhor compreendidos além da sua área de referência ser a Sociologia que se mostrava totalmente compatível com uma opção conceitual anterior e crucial sobre ser criança, neste estudo, fundamentada nos estudiosos da Sociologia da Infância. Deste modo, estavam descartadas as antigas concepções de crianças que sugeriam ser a frequência escolar indispensável para que fosse transmitido ou ensinado às crianças certo jogo pronto e fechado de regras sociais, com o objetivo de torná-las sociáveis e aptas à convivência social. Nesse viés, se apóiam, ainda hoje, algumas crenças do senso comum sobre a importância da creche, da pré-escola e da escola pelo seu papel socializador, resultante de um conceito de socialização que, absolutamente, não cabe neste estudo. Nesse escopo, Simmel (1987, p.164) favoreceu a compreensão do dinamismo das interações sociais deste grupo que freqüentava cotidianamente, uma mesma turma e escola, considerando-se que diferentes circunstâncias e modos variados de interações sociais produziam crianças/alunos muito diferentes que se encontravam na sala de aula e na escola. 8 Georg Simmel (01/03/1858 – 28/09/1918), alemão, nascido em Berlim. Foi um dos sociólogos que desenvolveram o que ficou conhecido como micro-sociologia, uma análise dos fenômenos no nível micro da sociedade. Foi um dos responsáveis por criar a Sociologia na Alemanha, juntamente com Max Weber e Karl Marx. PUC-Rio-CertificaçãoDigitalNº0510364/CA