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A Farmacologia social do crack: O uso do "pitilho" (cigarro de crack e
   maconha) entre jovens moradores de distritos pobres da cidade de
                        Salvador - Bahia – Brasil
                * Tarcisio Matos Andrade e *Laita Santiago

    Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti – ARD-FC – Faculdade de
                Medicina/ Universidade Federal da Bahia – Brasil




1) Apresentação
O uso do crack, sua associação com outras drogas e a relação socialmente
estabelecida com a criminalidade, tráfico, prostituição e violência tem sido um
problema de saúde pública entre jovens moradores de bairros pobres das
grandes cidades brasileiras. Os primeiros relatos de uso de crack no Brasil
datam do final dos anos 80 e inicio dos anos noventa (Inciardi,1993;
Nappo,1999). A partir de 1998 verificou-se na cidade de Salvador-Bahia uma
intensa expansão do uso de crack, inicialmente em substituição ao uso de
drogas injetáveis, vindo a se constituir num grande desafio para o Programa de
Redução de Danos local, originalmente concebido para o trabalho com UDI,
conforme relatado por Andrade (2001); fato semelhante foi registrado por
Mesquita (2001) na cidade de São Paulo. Substância fácil de ser adquirida por
seu pequeno valor ou até mesmo trocada por objetos de pequena importância,
apesar de verificarmos o alastramento do seu uso também em outras classes
sociais, o crack continua sendo associado à pobreza e mendicância, o que
contribui para que seja apontado como a droga de maior poder destrutivo em
menor período de tempo. Em algumas comunidades atendidas pela Aliança de
Redução de Danos Fátima Cavalcanti, Serviço de Atenção e Cuidado a
usuários de drogas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da
Bahia, tornou a droga mais consumida entre adultos e jovens, que começam o
uso cada vez mais cedo. Esse uso abusivo, realizado nos bolsões de pobreza
da cidade grande, muitas vezes, em locais públicos, como vielas e becos sem
saída, chamados pelos usuários de “picos”, onde se reúnem para fazer o
consumo abusivo da substância. Apesar de em alguns desses locais existir
movimentação de bares e moradores,            os usuários não se inibem,
preocupando-se apenas com a possível chegada da polícia, sensação a que
chamam de “ficar na paranóia” ou ficar na “nóia”. No tocante a esse ponto,


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podemos observar uma relação entre a chamada “nóia” e a polícia, pois os
usuários de crack que fazem uso na rua, sofrem frequentes abordagens
policiais, ocasiões em que relatam apanhar e terem dinheiro e objetos pessoais
subtraídos e cachimbos quebrados.
Expostos a uma série de fatores que configuram um quadro de abandono, em
precárias condições ou vivendo em situação de rua, excluídos do processo de
educação e trabalho formal, que os leva à marginalização, estigma, dificuldade
de reinserção social, do qual podem decorrer afecções e agravos à saúde em
geral, porém seu acesso aos serviços de saúde é restrito.
No Brasil, estas populações utilizam-se de suas próprias invenções popular-
experimentais para um uso menos arriscado de drogas, a exemplo do que
acontece ao se utilizar um cigarro de maconha ao qual se adiciona crack,
chamado de "Pitilho", o qual tem sido apontado como a principal estratégia
para reduzir efeitos indesejáveis do crack como ansiedade, paranóia e perda
de controle. De acordo com usuários, ele reduz anorexia, compulsão ao uso,
agressividade, depressão e isolamento social. Os primeiros relatos sobre o
pitilho em Salvador que chegaram à ARD-FC datam de 1998, quando um
usuário foi visto por um técnico da instituição com vários cigarros de maconha
e crack prontos. Inicialmente chamado de “mesclado”, hoje lhe são atribuídos
diversos nomes, como “Pity” (apelido do pitilho), “Pitibull” (em alusão ao cão),
“Auau”, “Jade”, “Choquito” (marca de chocolate). O crack usado dessa forma
tem se tornado cada vez mais comum em Salvador e em alguns dos bairros
pesquisados tem sido predominante, mais usado que o crack fumado puro.


Antecedentes das estratégias de Redução de Danos relacionadas ao uso de
crack no Brasil.
Alguns estudos podem ser citados como antecedentes da redução de danos
relacionada ao uso de crack no Brasil. Em seu artigo “O uso terapêutico de
cannabis por dependentes de crack no Brasil”, Labigalini demonstrou que a
maconha pode ser um recurso terapêutico para a dependência de drogas
pesadas. Num estudo com 20 pacientes, estes conseguiam ficar abstêmios de
crack e cocaína quando passavam a fumar maconha. Segundo o autor, a
maconha é um produto feito sob medida para combater a dependência de



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crack e cocaína, porque estimula o apetite e combate a ansiedade, dois
problemas sérios para cocainômanos.
MacRae e Gorgulho (2003) discutem tratamento de substituição, chamando a
atenção para alguns aspectos importantes relacionados a este tema: 1. A
questão dos tratamentos de substituição e de manutenção são pouco
exploradas. Certas dependências têm seu lado orgânico, deve-se enfrentar a
questão da tolerância e uma das maneiras de se fazer isso é através do uso de
substâncias que atuem como substitutas. 2. O atual estado de ilegalidade e
intolerância cultural em relação ao uso da cannabis vem impossibilitando a
continuação de estudos sobre sua aplicabilidade como substituto de crack. As
propostas da redução de danos devem evitar estabelecer uma posição de
confronto com os valores centrais dos usuários e trazer mensagens puramente
negativas ou repressivas sobre o uso de substâncias psicoativas. Devemos
buscar contribuir para modificações pontuais em certos aspectos das práticas
de uso, não deixando de reconhecer o valor do seu conhecimento empírico de
questões relacionadas ao uso dessas substâncias. 3. A redução de danos deve
discordar da classificação automática do uso de drogas ilícitas como uma
patologia per se e das generalizações que preconizam a abstinência do uso de
drogas como a meta ideal, pois freqüentemente o uso de drogas ilícitas
consiste numa espécie de automedicação psiquiátrica por parte de usuários
que encontram nesse recurso uma maneira de aliviar seu sofrimento, e a sua
interrupção pode levar a agravamentos de sua condição. Assim, em muitos
casos tratamentos de substituição e de manutenção seriam recomendáveis.
Domânico, em sua tese de doutoramento “Craqueiros e cracados: Bem vindo
ao mundo dos nóias” (2006) refere que os usuários preferiam a maconha
misturada com o crack porque diminuía o efeito da “nóia”. A nóia foi
mencionada como um sentimento de perseguição onde os usuários desconfiam
de tudo e todos, ouvem vozes que lhe provocam medo e pavor, e podem
resultar em atos de violência.

Relatos de campo dos técnicos da ARD-FC informam sobre as diferentes
formas de se usar o crack nos locais onde foi realizado o estudo que aqui será
apresentado. O crack é usado tanto puro como associado a outras substâncias;
puro, também chamado de “Pânica”, é comercializado em forma de pedras ou


                                                                            3
ainda em gramas e pode ser aceso em cima de cinza de cigarro numa lata,
num copo de água mineral, ou num cachimbo. Nesta forma de consumo, o
tabaco pode ser utilizado para produzir a cinza. Fuma-se antes um cigarro,
geralmente o mais acessível e de pior qualidade, depois aproveita-se a cinza.
Um mesmo usuário geralmente faz uso do crack de mais de uma forma e em
cada processo de uso há um efeito diferente. No cachimbo, um pedaço da
pedra de crack é fumado misturado com cinza de cigarro; esta é a forma de
uso onde obtém-se o efeito mais potente. O crack também pode ser usado
numa lata de alumínio, como a de cerveja ou refrigerante: dobra-se a lata ao
meio, faz-se buracos na dobra, joga-se a cinza sobre os buracos, coloca-se a
pedra de crack sobre a cinza e acende-se a pedra. Uma outra forma de fumar o
crack é em um copo plástico, como o de água mineral. Cinza de cigarro e a
pedra de crack são colocadas sobre a tampa de alumínio do copo e no lado
oposto da tampa é feito um buraco. Alguns usuários colocam água até a altura
de dois dedos, no copo, com o objetivo de impedir a aspiração das partículas
sólidas (cinza) existente na fumaça. Nesta forma de consumo não há como se
obter a resina (borra) - um produto da queima da pedra - muito apreciada pelos
usuários.
Os relatos de campo também trazem referência à qualidade da pedra de crack,
reconhecida através do odor e da cor. Sobre a má qualidade do produto os
usuários informam que há 10 anos atrás, o cheiro da pedra de crack parecia-se
com o cheiro da cocaína, mas nos dias atuais o cheiro da cocaína é bem
menor e quando a pedra de crack é queimada, exala um odor que assemelha-
se ao de plástico queimado. Observam também mudanças na coloração e
formato da pedra do crack, antes amarelada e quadrada, sendo agora
esbranquiçada e arredondada e ainda que diversas substâncias têm sido
adicionadas na produção do crack, a exemplo de querosene e solução de
bateria de automóvel.
Muitos dos dependentes de crack passam a ter uma aparência física que os
marginaliza e estigmatiza, geralmente apresentando emagrecimento, marcas
da violência pelo corpo, cicatrizes, tatuagens mal-feitas, dentes quebrados ou
que faltam, sem falar nos já conhecidos problemas sociais como baixa
escolaridade, desemprego e desestrutura familiar. O uso abusivo de crack está
relacionado ao estigma de “sacizeiro”. A palavra “sacizeiro” é uma alusão à


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figura do saci-pererê, personagem do folclore brasileiro, um negrinho unípede,
guardião das florestas, que usa um gorro vermelho e anda com um cachimbo
na boca. O “saci”, também chamado de “ficar no saci” está associado a uma
sensação após o uso do crack que lembra a paranóia ou “nóia”, onde ficam
com medo, achando que estão sendo perseguidos e que a polícia pode chegar
a qualquer momento. Os usuários de crack não gostam dessa denominação e
há relatos de que este seja um mote de conflitos entre eles. Já o não sacizeiro
é o usuário não dependente. É considerado sacizeiro quem faz o uso do crack
no cachimbo, na lata ou no copo.
A importância deste trabalho está em revelar mudanças no padrão de consumo
das duas substâncias e discutir o uso da mistura de maconha com crack, ainda
pouco abordado. No Brasil, há alguns estudos isolados sobre o mesclado, mas
não existe um conhecimento sobre a dinâmica de consumo do pitilho em
Salvador – Ba. Faz-se necessária uma investigação mais aprofundada sobre o
tema. Outro fator importante é a mistura ter sido apontada pela população
estudada como principal estratégia de redução de danos para crack, trazendo a
necessidade de melhor discutir e pensar os temas tratamento de substituição e
de manutenção e dando subsídios para a elaboração de políticas públicas e
práticas de redução de danos mais sintônicas à realidade desses grupos.


2) Métodos
Estudo etnográfico com usuários de crack com o objetivo de conhecer sobre o
"pitilho" e como os usuários percebem e lidam com os efeitos adversos do
crack. Utilizou a observação participante em todos os distritos sanitários onde
atua e a realização de entrevistas em profundidade, associado a dados
quantitativos de natureza sociodemográfica, como sexo, idade e bairro de
moradia, retirados de mapas de campo preenchidos pelos agentes redutores
no ato do atendimento. A observação participante com registro em diários de
campo foi realizada durante um período de 9 meses, de janeiro a setembro de
2007 em todos os sete distritos sanitários onde a equipe de redutores de danos
desenvolve trabalho de campo com informações e orientações para um uso
menos arriscado de drogas e a distribuição de insumos. Os dados
socioeconômicos foram retirados de mapas de campo durante igual período de
2007. Foram realizadas 6 entrevistas nos meses de outubro e novembro de


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2007. Os UD entrevistados foram recrutados no Centro Histórico de Salvador e
no Engenho Velho da Federação, bairro popular que, à semelhança do Centro
Histórico, se caracteriza pela pobreza, intenso tráfico e consumo de drogas. O
Pelourinho, apesar de importante centro cultural, especialmente da cultura afro-
brasileira, contava com a mais precária estruturação social e familiar, com
grande contingente de moradores de rua, vivendo em moradias precárias,
superlotadas e maior nível de prostituição em relação aos outros bairros no
momento do estudo.

3) Resultados

O crack pode ser associado a outras substâncias em uso concomitante, como
o tabaco ou a Cannabis, que se contrapõem ao seu efeito. Diferente do
“baseado”, no Pitilho, cigarro contendo crack e maconha, o crack é triturado,
adicionado à maconha e fumado em papel de seda e os seus efeitos
dependem da composição do cigarro. Alguns usuários fumam com as
“cabeças” da maconha (folhas e flores secas, onde está concentrado o
princípio ativo), mas a maioria faz uso com a “poeira”, o pó e os restos da
maconha, por facilitar a combustão. Segundo os usuários, com as cabeças da
maconha, as 2 substâncias estavam juntas, porém queimavam separadas,
enquanto com a poeira, os dois farelos queimavam juntos. Quando queimavam
as cabeças, derretia a pedra do crack e ela entrava com mais ardor na
garganta, enquanto a poeira mistura-se mais facilmente com o crack esfarelado
diminuindo o ardor.

- Dados sócio-demográficos:

     Crack users seen by the ARD-FC/School of Medicine/Federal                           Crack users seen by the ARD-FC/School of Medicine/Federal
      University of Bahia, by gender - January to setember 2007                             university of Bahia, by age - January a setember 2007

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                                                    Number of attendances                                                                                Number attendances
                                                    New s users                                                                                          New s users
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                                                                                  10

        Female                    Male                                      10 to 15 y   16 to 20 y   21 to 25 y   26 to 30 y   31 to 35 y   ≥ 36 y




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Foram realizados 5.283 atendimentos a pessoas que usam crack, entre novos
e antigos usuários do serviço nas comunidades assistidas pela ARD-FC
durante o ano de 2007. Os gráficos mostram a quantificação dos atendimentos
a usuários de crack por sexo e faixa etária. Quando se considera apenas os
casos de novos usuários, observamos que o número de mulheres (23,6%)
aumenta 2,4% em relação ao número de usuários em geral; e o percentual de
homens usuários cai para 76,4%. O comportamento é o mesmo em relação ao
geral. O número de usuários do sexo masculino é aproximadamente 3 vezes
maior que o de mulheres. A faixa de 16 a 20 anos é a de maior frequência de
usuários (26,9%), seguida da faixa de 21 a 25 anos com 24,9% e da de 26 a 30
anos com 21,4%. Podemos observar com isso que a maior concentração de
novos usuários de crack está entre a faixa de 16 a 30 anos.


                                   Glossário
Auau                      Jade                       Pico - local de uso
Baseado                   Lombra                     Pitilho
Bicha – pedra             Massa – maconha            Pity
Borra                     Meia dólar – maconha       Pitibull
Cabeças                   Pânica                     Poeira
Choquito                  Paranóia ou Nóia           Sacizeiro
Dólar – maconha           Pedra                      Trouxinha - maconha
Fazer jogo                Pegar - comprar            Globeleza
Ficar no saci             Pegar uma coisa solta


- Efeitos do crack puro
O crack foi apontado como uma droga devastadora, com seu efeito de curta
duração qu pode levar rapidamente a um uso compulsivo, desencadeando
dependência. Nos usuários que fazem uso abusivo do crack, associado ao
cigarro e ao álcool, sacrificando a alimentação, ocorre geralmente um processo
de emagrecimento. Foram relatados efeitos/ sintomas como enjôos, náusea,
ânsia de vômito, dores de cabeça, calafrios, tontura, vista escura e queda de
pressão, suadeira, aumento na temperatura do corpo, quentura na ponta dos
dedos e na sola dos pés após o uso, dores no peito. Há ainda as



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conseqüências psíquicas como confusão mental, alucinações no pós-uso,
depressão, tristeza, stress e nervosismo relacionados aos períodos de
abstinência, especialmente por tratar-se de população de baixa renda, muitos
vivendo em situação de risco social, sem uma estabilidade na aquisição da
substância.

- Efeitos da maconha
Os efeitos psíquicos agudos da maconha dependem muito do estado de
espírito do usuário e das expectativas do uso. É absorvida por via pulmonar e
se utilizada por via oral sua absorção é lenta, de trinta a sessenta minutos. O
efeito da maconha como anti-emético foi relatado em todas as entrevistas.
Outros efeitos relatados foram euforia e hilaridade; sonolência ou relaxamento;
melhora no humor e na disposição; sensação de liberdade; aumento da
sensibilidade do paladar, visual e auditiva; fome.
O uso contínuo da maconha pode levar à tolerância. No entanto, a tolerância
no caso da maconha, se comparada ao crack, demora para acontecer.
Algumas pessoas podem desenvolver dependência e outras não. Isto vai
depender da pessoa, do tempo e quantidade de uso.

- O Pitilho
1. Para alguns entrevistados, todos os usuários de crack são considerados
sacizeiros, enquanto que para outros a descrição de um sacizeiro assemelha-
se à de um quadro de dependência, onde o usuário passa a vender ou trocar
(“fazer jogo”) todos os pertences pessoais, a praticar roubos e a centrar sua
atenção apenas em adquirir e consumir a substância, descuidando da
aparência e higiene pessoal. O uso de Pity enseja uma relação com o produto,
diferente daquela em que se configura uma relação de dependência. Enquanto
o crack é visto como uma droga "demoníaca", com o poder de transformar a
pessoa, o pitilho é apresentado como droga protetora e principal estratégia
para reduzir os efeitos indesejáveis do crack, pois sua representação social é
diferente. O usuário de crack é mal visto nas comunidades pesquisadas,
enquanto que quem usa apenas pity não é chamado de sacizeiro. O uso do
pitilho ameniza a imagem reduzindo isolamento social. O crack adicionado ao
“baseado” fez com que moradores das próprias comunidades deixassem de



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apelidar pessoas que antes usavam o crack puro e migraram para o pitilho de
sacizeiros.
“Quem usa o pity se larga menos e quem usa no cachimbo se joga mais ao desprezo.
Existe diferença entre a pessoa que utiliza o pitilho e o que usa na lata, no copo ou no
cachimbo. O pity é feito com a maconha. Eles dizem que a cocaína em pó é uma droga
social em relação à maconha. Falam o mesmo do pity em relação ao crack puro”. (F,
masculino, usuário de Pitilho)

2. O pitilho protege os usuários da violência da polícia e dos traficantes,
fazendo parte dos mecanismos de controle, inclusive para permitir lidar melhor
com o traficante que costuma humilhar o usuário. Há uma assimetria entre
usuários e traficantes, estes últimos não submetidos à lei do país, eles são a
lei.
 “O usuário é humilhado pelo traficante, eles acham que quem vai comprar é sacizeiro,
são todos iguais, tanto que quando nos avistam, já vão logo dizendo: - Lá vem o saci ali.
A gente é muito humilhado, pior que cachorro. As pessoas nos julgam muito.” (M,
masculino, usuário)

3. Afirmam conseguir diferenciar os dois baratos e sentir forte efeito resultante
da mistura entre as sustâncias. Ao mesmo tempo que tem o efeito estimulante
da cocaína, tem o efeito também tranqüilizante da maconha. O pitilho equilibra
os efeitos do crack. A maconha reduz nervosismo, inquietação e fissura
produzidos pelo crack e tem efeito de balança.
“O crack fumado puro provoca mais dependência. O Pity equilibra, tem o efeito da
maconha e do crack, ao mesmo tempo. É um negócio mais calmo, enquanto o crack
puro dá vontade de andar, de fumar mais" (M, masculino, usuário)

4. A intensidade do efeito vai depender da qualidade dos seus componentes.
“Tem pedra fraca e pedra forte, e assim com a maconha também: se a pedra for boa,
ficando com a “borra” verde, o efeito do crack predomina, se a maconha for boa, e a
pedra ruim (ficando com a borra marrom), a onda da maconha predomina.” (F,
masculino, usuário)

5. Segundo depoimentos, com o pity os usuários se sentem mais calmos e
ficam com mais disposição para trabalhar e realizar as atividades do cotidiano.
Somado ao fato do pitilho proteger a imagem e amenizar o isolamento social,
com as pessoas que usam deixando de ser tão malvistos em suas
comunidades, dizem que na comparação da representação e status social
atribuído a cada produto, o pitilho está para a cocaína, assim como a maconha
está pra o crack. O pitilho e a cocaína seriam drogas “sociais”, pois seu uso



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pode ser feito com discrição, causando menor prejuízo moral e social,
enquanto tanto a maconha quanto o crack puro seriam substâncias que ao
serem consumidas exalam forte odor, sendo esse uso facilmente identificado, o
que o torna mais arriscado.
“Tem diferença entre a pessoa que usa pitilho e a pessoa que usa na lata, copo ou no
cachimbo. O pity é com a maconha, é a mesma coisa que dizer da maconha e da
cocaína, que falam que a cocaína é uma droga social, falam a mesma coisa do pity. (A,
feminino, usuária)

6. O pitilho preserva a forma física dos usuários, melhora o apetite e se
contrapõe à anorexia causada pelo crack.
“Tenho observado que aqueles que fazem uso misturado à maconha não tem uma
aparência tão devastada como quem usa puro. O crack puro tira a fome, enquanto que
misturado na maconha estimula o usuário a comer depois do uso”. (Diário de campo, A,
redutora de danos)

7. O Pitilho demora mais de ser consumido, tem maior duração em seu efeito,
menor custo e pode ser fumado por mais pessoas. O crack puro causa mais
dependência, seu efeito de curta duração leva a repetir o ato, enquanto que o
pitilho diminui essa compulsão para o uso, fazendo com que desenvolvam um
mecanismo de controle sobre o abuso de crack. A potência do efeito deste
cigarro depende da quantidade de crack adicionada, dosando os produtos em
busca do efeito desejado.
"O efeito do pitilho é mais lento. Um pitilho feito com uma pedra de R$ 5,00, é
suficiente para lombrar três pessoas, enquanto que fumar crack puro queima mais
rápido.” (B.S. Redutor de Danos)

- Outras medidas de proteção
Apesar da consciência do alto grau de dependência que provoca o crack, há
formas de auto-controle, pois em cada usuário o crack provoca um efeito ou
reação, também conhecido por “lombra”. Esse efeito depende de cada um, há
diferença entre as pessoas e nem todos os moradores da periferia vão usar
para praticar delitos. Muitos continuam trabalhando para manter o vício.
“O crack transforma a gente, se a pessoa estiver fraca de espírito e vai roubar, quem não
é fraco de espírito, continua trabalhando pra manter o vício, nem todos vão roubar. Não
é por causa da droga, é porque já fuma na intenção de fazer aquilo”. (A, feminino,
usuária)




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1. Além de fazer uso do pitilho como estratégia para lidar com os efeitos
adversos do crack, os entrevistados relataram outras práticas como escolher
um horário mais adequado para o uso. Por provável vasodilatação pós-efeito, o
crack eleva a temperatura do corpo e é preferível usar à noite. Outra estratégia
é tomar banho logo após o uso.
“Quando é a bicha, que a gente dá um pau numa boa, em uma pedra de 5, chega bate
aquela suadeira mesmo, porque ela afeta o sistema nervoso da pessoa. Eu fumo mais a
noite, porque está frio. (A, feminino, usuária)

2. Chamam a atenção para as formas pessoais de consumo como um fator
importante para o exercício do controle sobre o uso, pois afirmam que nem
todo usuário que vive naquele contexto vai reagir da mesma forma ao estímulo
do crack e há usuários que conseguem desenvolver certo controle sobre o uso,
através do controle da freqüência.
“Eles acham que todas as pessoas que usam drogas são iguais, mas não são. Tem
usuários que conseguem ter controle sobre o uso. Tem gente que usa apenas no final de
semana, usa de 1 a 2 vezes no dia, fuma um pity de manhã e outro pity à noite. São
pessoas que têm o vício, mas procuram exercer um controle sobre o vício”. (M,
masculino, usuário)

3. São exemplos de medidas de controle para o uso do crack estabelecer limite
para gastar com a pedra; dar seu próprio dinheiro para alguém de sua
confiança guardar; evitar meio onde acontece o uso; procurar distanciar-se
daqueles que usam diariamente, pois muitas vezes não resistem ao convite
dos amigos; procurar ocupar a mente com trabalho, estudo.


- Associação com o álcool
Um Importante fator que influencia no padrão de consumo relatado em todas
as entrevistas foi o uso do álcool como um gatilho para o consumo do crack ou
pitilho, deflagrando imediatamente o desejo de usar, pois como o uso do álcool
(geralmente cerveja ou cachaça) feito de forma compulsiva, leva o usuário a
fumar mais crack, uma vez que o efeito estimulante do sistema nervoso central
do crack se contrapõe ao efeito depressor do álcool, sendo um meio de
controlar seus efeitos.
“Se eu ingerir álcool, a tendência é usar mais, álcool chama a pedra, para mim uma
coisa puxa a outra. Eu acho que a pedra equilibra o álcool, se já estiver lombrado com
aquela química. Se eu não beber, nem na pedra eu penso. No meu caso, o que me faz ter



                                                                                   11
vontade de fumar, é o álcool. É colocar uma gota de álcool na boca, e eu amanheço o
dia fumando 3, 4, 5, 6, 10 gramas”. (M, masculino, usuário)

A diferença entre fumar o crack puro e beber e fumar o pity e beber é que o
pity, juntamente com a cachaça fazem uma soma de efeitos em contraposição
ao crack. Álcool e maconha (pura ou no pity) se potencializam.
“Com o crack puro e bebendo, a pessoa fica menos travada e mais acesa, e com o pity
não, por causa da maconha. Quando a pessoa fuma um cigarro de maconha puro, pra
tomar cachaça, a tendência é intensificar a onda da cachaça. Com o pity também, fumar
um pity e tomando cachaça, vai intensificar a lombra. A bebida não corta a onda do
crack e sim aumenta. Tem dias em que eu tô bebendo, tomo 30 a 40 doses de cachaça
sem contar as cervejas, só de cerveja eu tomo 10 a 15”. (F, masculino, usuário)

- Outros conhecimentos obtidos no estudo
1. Há diferenças entre fumar o pitilho e fumar o crack puro seguido de
maconha. No uso do crack e maconha separados, a maconha só é fumada
quando o efeito rápido do crack passa e os usuários já sentem um
esgotamento físico e mental decorrente desse uso abusivo. Nesse caso se fica
mais sonolento o que leva a buscar novo controle sobre esse efeito.
"Se você fuma crack e depois fuma um baseado, a lombra já vai ser ficar naquele
processo meio sonolento, aí 20 minutos depois que você vai querer fumar um pity, vai
sentir as duas lombras juntas.” (M, masculino, usuário)

2. Ao serem indagados sobre efeitos positivos do uso do crack, disseram que
não há nada que considerem bom, fumam porque gostam, mas não vêem
efeitos positivos, o que relatam são quadros de dependência.
“Enquanto a pessoa ta ali acendendo, pra ele ta bom... acabou, quer mais, a onda dela é
querer mais, e isso eu acho ruim. Eu trabalho debaixo do sol quente, pra gastar dinheiro
com uma coisa que eu sei que tá me destruindo. Acho que é uma coisa desumana”. (F,
masculino, usuário)

3. O crack, quando queimado, forma uma resina chamada de “borra”,
armazenada dentro do recipiente usado (a lata ou o cachimbo). Depois, essa
resina é raspada e reutilizada misturada à cinza do cigarro, ou antes lavam a
superfície com álcool, e quando seca, raspam aquela “borra”, que é novamente
fumada. Segundo relatos, esses resíduos da pedra de crack junto com cinzas
de cigarro, quando queimada pela segunda vez, tem efeito ainda mais potente,
provocando mais prejuízos, e os usuários disputam entre eles para ficar com
aquele recipiente, bastante utilizado.



                                                                                     12
“A borra é a resina que fica dentro do copo ou cachimbo quando fuma. Eles raspam ou
lavam com álcool, e quando seca fica aquela borra, e aí fumam de novo. Essa substância
queimada pela 2ª vez, dizem que é ainda mais forte, e há briga pra ficar com aquele
recipiente, bastante usado.” (B.S. Redutor de Danos)
"Muitas pessoas podem usar o recipiente e esperar meses, a fim de recolher aquela borra
(resíduo) e fumar. É muito prejudicial para os pulmões, porque é uma mistura de crack e
cinzas” (M, masculino, usuário)

4. Diferença de gênero: as mulheres são discriminadas
Há também forte associação entre uso de crack e prostituição de mulheres.
Muitas mulheres jovens passam a se prostituir para poder adquirir a
substância. Fazendo muitas vezes o programa em troca de uma pedra de crack
de cinco reais. Há discriminação da parte do usuário de crack para com a
usuária. Eles dizem evitar fumar e relacionar-se sexualmente com a “sacizeira”,
ainda que fazendo uso de preservativo, principalmente quando têm
conhecimento que a mulher troca a substância por sexo.
“Eu não fumo com sacizeira, a pessoa que usa a mesma coisa que eu, não faço questão
de ter nada com elas, mesmo com camisinha eu tenho medo, ainda mais a mulher que se
vende por causa disso” (F, masculino, usuário)

4) Conclusões e Recomendações
Fumar pitilho não é propriamente um tratamento de substituição, mas sim uma
mais econômica, mais segura e menos nociva forma de usar crack. Fumar
pitilho é proteção e reduz a exclusão social do crack. A farmacologia do crack
sobre as diferentes formas em que a droga é consumida a partir das
perspectivas dos usuários podem ser um instrumento muito importante para a
redução dos danos das políticas e das práticas entre usuários de crack, em
toda a sua amplitude, como mostram os usuários de pitilho no presente estudo.
As estratégias de redução de danos no uso de crack são ainda pouco
desenvolvidas. Deve-se atentar para o conhecimento informal de uso e
disseminação das técnicas entre usuários de drogas ilícitas a fim de poder
utilizá-lo como recurso para o trabalho da redução de danos.


5) Bibliografia
Andrade, Tarcisio; Lurie, Peter; Medina, Maria Guadalupe. Abertura do
Programa de troca de agulhas na América do Sul e uma epidemia de crack em




                                                                                    13
Salvador, Bahia-Brasil. Em Anderson e Ines Dourado. Aids e Comportamento,
Vol. 1, Jan-março de 2001. pp 51-64.
Domanico, A. Craqueiros e cracados: Bem vindo ao mundo dos nóias. Tese
apresentada à UFBA. 2006.
Iniciardi, J.A. Crack cocaine in the Américas. In: Monteiro MG, Iniciard JA,
editors. Brazil-United States Binational Research. São Paulo: CEBRID; 1993.
pp 63-75.
Labigalini, E.J. O uso terapêutico de cannabis por dependentes de crack no
Brasil; Em Mesquita, F & Seibel, Consumo de drogas, DESAFIOS e
Perspectivas.       Hucitec:        São       Paulo,        2000,   p173-184.
MacRae, Edward e Gorgulho, Mônica. Tratamento de substituição. Jornal
Brasileiro de Psiquiatria. vol. 52, set-out 2003, pp. 371-374.
Mesquita, F.C. Aids entre usuários de drogas injetáveis na última década do
século XX, na região metropolitana de Santos, Estado de São Paulo – Brasil.
Tese apresentada à USP. São Paulo, 2001
Nappo, SA Galduróz JCF, Noto AR. Crack use in São Paulo. Subst Use
Misuse. 1996; 31:565-79.




                                                                           14

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Artigo sobre crack rd

  • 1. A Farmacologia social do crack: O uso do "pitilho" (cigarro de crack e maconha) entre jovens moradores de distritos pobres da cidade de Salvador - Bahia – Brasil * Tarcisio Matos Andrade e *Laita Santiago Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti – ARD-FC – Faculdade de Medicina/ Universidade Federal da Bahia – Brasil 1) Apresentação O uso do crack, sua associação com outras drogas e a relação socialmente estabelecida com a criminalidade, tráfico, prostituição e violência tem sido um problema de saúde pública entre jovens moradores de bairros pobres das grandes cidades brasileiras. Os primeiros relatos de uso de crack no Brasil datam do final dos anos 80 e inicio dos anos noventa (Inciardi,1993; Nappo,1999). A partir de 1998 verificou-se na cidade de Salvador-Bahia uma intensa expansão do uso de crack, inicialmente em substituição ao uso de drogas injetáveis, vindo a se constituir num grande desafio para o Programa de Redução de Danos local, originalmente concebido para o trabalho com UDI, conforme relatado por Andrade (2001); fato semelhante foi registrado por Mesquita (2001) na cidade de São Paulo. Substância fácil de ser adquirida por seu pequeno valor ou até mesmo trocada por objetos de pequena importância, apesar de verificarmos o alastramento do seu uso também em outras classes sociais, o crack continua sendo associado à pobreza e mendicância, o que contribui para que seja apontado como a droga de maior poder destrutivo em menor período de tempo. Em algumas comunidades atendidas pela Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti, Serviço de Atenção e Cuidado a usuários de drogas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, tornou a droga mais consumida entre adultos e jovens, que começam o uso cada vez mais cedo. Esse uso abusivo, realizado nos bolsões de pobreza da cidade grande, muitas vezes, em locais públicos, como vielas e becos sem saída, chamados pelos usuários de “picos”, onde se reúnem para fazer o consumo abusivo da substância. Apesar de em alguns desses locais existir movimentação de bares e moradores, os usuários não se inibem, preocupando-se apenas com a possível chegada da polícia, sensação a que chamam de “ficar na paranóia” ou ficar na “nóia”. No tocante a esse ponto, 1
  • 2. podemos observar uma relação entre a chamada “nóia” e a polícia, pois os usuários de crack que fazem uso na rua, sofrem frequentes abordagens policiais, ocasiões em que relatam apanhar e terem dinheiro e objetos pessoais subtraídos e cachimbos quebrados. Expostos a uma série de fatores que configuram um quadro de abandono, em precárias condições ou vivendo em situação de rua, excluídos do processo de educação e trabalho formal, que os leva à marginalização, estigma, dificuldade de reinserção social, do qual podem decorrer afecções e agravos à saúde em geral, porém seu acesso aos serviços de saúde é restrito. No Brasil, estas populações utilizam-se de suas próprias invenções popular- experimentais para um uso menos arriscado de drogas, a exemplo do que acontece ao se utilizar um cigarro de maconha ao qual se adiciona crack, chamado de "Pitilho", o qual tem sido apontado como a principal estratégia para reduzir efeitos indesejáveis do crack como ansiedade, paranóia e perda de controle. De acordo com usuários, ele reduz anorexia, compulsão ao uso, agressividade, depressão e isolamento social. Os primeiros relatos sobre o pitilho em Salvador que chegaram à ARD-FC datam de 1998, quando um usuário foi visto por um técnico da instituição com vários cigarros de maconha e crack prontos. Inicialmente chamado de “mesclado”, hoje lhe são atribuídos diversos nomes, como “Pity” (apelido do pitilho), “Pitibull” (em alusão ao cão), “Auau”, “Jade”, “Choquito” (marca de chocolate). O crack usado dessa forma tem se tornado cada vez mais comum em Salvador e em alguns dos bairros pesquisados tem sido predominante, mais usado que o crack fumado puro. Antecedentes das estratégias de Redução de Danos relacionadas ao uso de crack no Brasil. Alguns estudos podem ser citados como antecedentes da redução de danos relacionada ao uso de crack no Brasil. Em seu artigo “O uso terapêutico de cannabis por dependentes de crack no Brasil”, Labigalini demonstrou que a maconha pode ser um recurso terapêutico para a dependência de drogas pesadas. Num estudo com 20 pacientes, estes conseguiam ficar abstêmios de crack e cocaína quando passavam a fumar maconha. Segundo o autor, a maconha é um produto feito sob medida para combater a dependência de 2
  • 3. crack e cocaína, porque estimula o apetite e combate a ansiedade, dois problemas sérios para cocainômanos. MacRae e Gorgulho (2003) discutem tratamento de substituição, chamando a atenção para alguns aspectos importantes relacionados a este tema: 1. A questão dos tratamentos de substituição e de manutenção são pouco exploradas. Certas dependências têm seu lado orgânico, deve-se enfrentar a questão da tolerância e uma das maneiras de se fazer isso é através do uso de substâncias que atuem como substitutas. 2. O atual estado de ilegalidade e intolerância cultural em relação ao uso da cannabis vem impossibilitando a continuação de estudos sobre sua aplicabilidade como substituto de crack. As propostas da redução de danos devem evitar estabelecer uma posição de confronto com os valores centrais dos usuários e trazer mensagens puramente negativas ou repressivas sobre o uso de substâncias psicoativas. Devemos buscar contribuir para modificações pontuais em certos aspectos das práticas de uso, não deixando de reconhecer o valor do seu conhecimento empírico de questões relacionadas ao uso dessas substâncias. 3. A redução de danos deve discordar da classificação automática do uso de drogas ilícitas como uma patologia per se e das generalizações que preconizam a abstinência do uso de drogas como a meta ideal, pois freqüentemente o uso de drogas ilícitas consiste numa espécie de automedicação psiquiátrica por parte de usuários que encontram nesse recurso uma maneira de aliviar seu sofrimento, e a sua interrupção pode levar a agravamentos de sua condição. Assim, em muitos casos tratamentos de substituição e de manutenção seriam recomendáveis. Domânico, em sua tese de doutoramento “Craqueiros e cracados: Bem vindo ao mundo dos nóias” (2006) refere que os usuários preferiam a maconha misturada com o crack porque diminuía o efeito da “nóia”. A nóia foi mencionada como um sentimento de perseguição onde os usuários desconfiam de tudo e todos, ouvem vozes que lhe provocam medo e pavor, e podem resultar em atos de violência. Relatos de campo dos técnicos da ARD-FC informam sobre as diferentes formas de se usar o crack nos locais onde foi realizado o estudo que aqui será apresentado. O crack é usado tanto puro como associado a outras substâncias; puro, também chamado de “Pânica”, é comercializado em forma de pedras ou 3
  • 4. ainda em gramas e pode ser aceso em cima de cinza de cigarro numa lata, num copo de água mineral, ou num cachimbo. Nesta forma de consumo, o tabaco pode ser utilizado para produzir a cinza. Fuma-se antes um cigarro, geralmente o mais acessível e de pior qualidade, depois aproveita-se a cinza. Um mesmo usuário geralmente faz uso do crack de mais de uma forma e em cada processo de uso há um efeito diferente. No cachimbo, um pedaço da pedra de crack é fumado misturado com cinza de cigarro; esta é a forma de uso onde obtém-se o efeito mais potente. O crack também pode ser usado numa lata de alumínio, como a de cerveja ou refrigerante: dobra-se a lata ao meio, faz-se buracos na dobra, joga-se a cinza sobre os buracos, coloca-se a pedra de crack sobre a cinza e acende-se a pedra. Uma outra forma de fumar o crack é em um copo plástico, como o de água mineral. Cinza de cigarro e a pedra de crack são colocadas sobre a tampa de alumínio do copo e no lado oposto da tampa é feito um buraco. Alguns usuários colocam água até a altura de dois dedos, no copo, com o objetivo de impedir a aspiração das partículas sólidas (cinza) existente na fumaça. Nesta forma de consumo não há como se obter a resina (borra) - um produto da queima da pedra - muito apreciada pelos usuários. Os relatos de campo também trazem referência à qualidade da pedra de crack, reconhecida através do odor e da cor. Sobre a má qualidade do produto os usuários informam que há 10 anos atrás, o cheiro da pedra de crack parecia-se com o cheiro da cocaína, mas nos dias atuais o cheiro da cocaína é bem menor e quando a pedra de crack é queimada, exala um odor que assemelha- se ao de plástico queimado. Observam também mudanças na coloração e formato da pedra do crack, antes amarelada e quadrada, sendo agora esbranquiçada e arredondada e ainda que diversas substâncias têm sido adicionadas na produção do crack, a exemplo de querosene e solução de bateria de automóvel. Muitos dos dependentes de crack passam a ter uma aparência física que os marginaliza e estigmatiza, geralmente apresentando emagrecimento, marcas da violência pelo corpo, cicatrizes, tatuagens mal-feitas, dentes quebrados ou que faltam, sem falar nos já conhecidos problemas sociais como baixa escolaridade, desemprego e desestrutura familiar. O uso abusivo de crack está relacionado ao estigma de “sacizeiro”. A palavra “sacizeiro” é uma alusão à 4
  • 5. figura do saci-pererê, personagem do folclore brasileiro, um negrinho unípede, guardião das florestas, que usa um gorro vermelho e anda com um cachimbo na boca. O “saci”, também chamado de “ficar no saci” está associado a uma sensação após o uso do crack que lembra a paranóia ou “nóia”, onde ficam com medo, achando que estão sendo perseguidos e que a polícia pode chegar a qualquer momento. Os usuários de crack não gostam dessa denominação e há relatos de que este seja um mote de conflitos entre eles. Já o não sacizeiro é o usuário não dependente. É considerado sacizeiro quem faz o uso do crack no cachimbo, na lata ou no copo. A importância deste trabalho está em revelar mudanças no padrão de consumo das duas substâncias e discutir o uso da mistura de maconha com crack, ainda pouco abordado. No Brasil, há alguns estudos isolados sobre o mesclado, mas não existe um conhecimento sobre a dinâmica de consumo do pitilho em Salvador – Ba. Faz-se necessária uma investigação mais aprofundada sobre o tema. Outro fator importante é a mistura ter sido apontada pela população estudada como principal estratégia de redução de danos para crack, trazendo a necessidade de melhor discutir e pensar os temas tratamento de substituição e de manutenção e dando subsídios para a elaboração de políticas públicas e práticas de redução de danos mais sintônicas à realidade desses grupos. 2) Métodos Estudo etnográfico com usuários de crack com o objetivo de conhecer sobre o "pitilho" e como os usuários percebem e lidam com os efeitos adversos do crack. Utilizou a observação participante em todos os distritos sanitários onde atua e a realização de entrevistas em profundidade, associado a dados quantitativos de natureza sociodemográfica, como sexo, idade e bairro de moradia, retirados de mapas de campo preenchidos pelos agentes redutores no ato do atendimento. A observação participante com registro em diários de campo foi realizada durante um período de 9 meses, de janeiro a setembro de 2007 em todos os sete distritos sanitários onde a equipe de redutores de danos desenvolve trabalho de campo com informações e orientações para um uso menos arriscado de drogas e a distribuição de insumos. Os dados socioeconômicos foram retirados de mapas de campo durante igual período de 2007. Foram realizadas 6 entrevistas nos meses de outubro e novembro de 5
  • 6. 2007. Os UD entrevistados foram recrutados no Centro Histórico de Salvador e no Engenho Velho da Federação, bairro popular que, à semelhança do Centro Histórico, se caracteriza pela pobreza, intenso tráfico e consumo de drogas. O Pelourinho, apesar de importante centro cultural, especialmente da cultura afro- brasileira, contava com a mais precária estruturação social e familiar, com grande contingente de moradores de rua, vivendo em moradias precárias, superlotadas e maior nível de prostituição em relação aos outros bairros no momento do estudo. 3) Resultados O crack pode ser associado a outras substâncias em uso concomitante, como o tabaco ou a Cannabis, que se contrapõem ao seu efeito. Diferente do “baseado”, no Pitilho, cigarro contendo crack e maconha, o crack é triturado, adicionado à maconha e fumado em papel de seda e os seus efeitos dependem da composição do cigarro. Alguns usuários fumam com as “cabeças” da maconha (folhas e flores secas, onde está concentrado o princípio ativo), mas a maioria faz uso com a “poeira”, o pó e os restos da maconha, por facilitar a combustão. Segundo os usuários, com as cabeças da maconha, as 2 substâncias estavam juntas, porém queimavam separadas, enquanto com a poeira, os dois farelos queimavam juntos. Quando queimavam as cabeças, derretia a pedra do crack e ela entrava com mais ardor na garganta, enquanto a poeira mistura-se mais facilmente com o crack esfarelado diminuindo o ardor. - Dados sócio-demográficos: Crack users seen by the ARD-FC/School of Medicine/Federal Crack users seen by the ARD-FC/School of Medicine/Federal University of Bahia, by gender - January to setember 2007 university of Bahia, by age - January a setember 2007 4.160 1582 1430 1081 Number of attendances Number attendances New s users New s users 598 495 1.123 730 257 238 204 225 98 114 132 10 Female Male 10 to 15 y 16 to 20 y 21 to 25 y 26 to 30 y 31 to 35 y ≥ 36 y 6
  • 7. Foram realizados 5.283 atendimentos a pessoas que usam crack, entre novos e antigos usuários do serviço nas comunidades assistidas pela ARD-FC durante o ano de 2007. Os gráficos mostram a quantificação dos atendimentos a usuários de crack por sexo e faixa etária. Quando se considera apenas os casos de novos usuários, observamos que o número de mulheres (23,6%) aumenta 2,4% em relação ao número de usuários em geral; e o percentual de homens usuários cai para 76,4%. O comportamento é o mesmo em relação ao geral. O número de usuários do sexo masculino é aproximadamente 3 vezes maior que o de mulheres. A faixa de 16 a 20 anos é a de maior frequência de usuários (26,9%), seguida da faixa de 21 a 25 anos com 24,9% e da de 26 a 30 anos com 21,4%. Podemos observar com isso que a maior concentração de novos usuários de crack está entre a faixa de 16 a 30 anos. Glossário Auau Jade Pico - local de uso Baseado Lombra Pitilho Bicha – pedra Massa – maconha Pity Borra Meia dólar – maconha Pitibull Cabeças Pânica Poeira Choquito Paranóia ou Nóia Sacizeiro Dólar – maconha Pedra Trouxinha - maconha Fazer jogo Pegar - comprar Globeleza Ficar no saci Pegar uma coisa solta - Efeitos do crack puro O crack foi apontado como uma droga devastadora, com seu efeito de curta duração qu pode levar rapidamente a um uso compulsivo, desencadeando dependência. Nos usuários que fazem uso abusivo do crack, associado ao cigarro e ao álcool, sacrificando a alimentação, ocorre geralmente um processo de emagrecimento. Foram relatados efeitos/ sintomas como enjôos, náusea, ânsia de vômito, dores de cabeça, calafrios, tontura, vista escura e queda de pressão, suadeira, aumento na temperatura do corpo, quentura na ponta dos dedos e na sola dos pés após o uso, dores no peito. Há ainda as 7
  • 8. conseqüências psíquicas como confusão mental, alucinações no pós-uso, depressão, tristeza, stress e nervosismo relacionados aos períodos de abstinência, especialmente por tratar-se de população de baixa renda, muitos vivendo em situação de risco social, sem uma estabilidade na aquisição da substância. - Efeitos da maconha Os efeitos psíquicos agudos da maconha dependem muito do estado de espírito do usuário e das expectativas do uso. É absorvida por via pulmonar e se utilizada por via oral sua absorção é lenta, de trinta a sessenta minutos. O efeito da maconha como anti-emético foi relatado em todas as entrevistas. Outros efeitos relatados foram euforia e hilaridade; sonolência ou relaxamento; melhora no humor e na disposição; sensação de liberdade; aumento da sensibilidade do paladar, visual e auditiva; fome. O uso contínuo da maconha pode levar à tolerância. No entanto, a tolerância no caso da maconha, se comparada ao crack, demora para acontecer. Algumas pessoas podem desenvolver dependência e outras não. Isto vai depender da pessoa, do tempo e quantidade de uso. - O Pitilho 1. Para alguns entrevistados, todos os usuários de crack são considerados sacizeiros, enquanto que para outros a descrição de um sacizeiro assemelha- se à de um quadro de dependência, onde o usuário passa a vender ou trocar (“fazer jogo”) todos os pertences pessoais, a praticar roubos e a centrar sua atenção apenas em adquirir e consumir a substância, descuidando da aparência e higiene pessoal. O uso de Pity enseja uma relação com o produto, diferente daquela em que se configura uma relação de dependência. Enquanto o crack é visto como uma droga "demoníaca", com o poder de transformar a pessoa, o pitilho é apresentado como droga protetora e principal estratégia para reduzir os efeitos indesejáveis do crack, pois sua representação social é diferente. O usuário de crack é mal visto nas comunidades pesquisadas, enquanto que quem usa apenas pity não é chamado de sacizeiro. O uso do pitilho ameniza a imagem reduzindo isolamento social. O crack adicionado ao “baseado” fez com que moradores das próprias comunidades deixassem de 8
  • 9. apelidar pessoas que antes usavam o crack puro e migraram para o pitilho de sacizeiros. “Quem usa o pity se larga menos e quem usa no cachimbo se joga mais ao desprezo. Existe diferença entre a pessoa que utiliza o pitilho e o que usa na lata, no copo ou no cachimbo. O pity é feito com a maconha. Eles dizem que a cocaína em pó é uma droga social em relação à maconha. Falam o mesmo do pity em relação ao crack puro”. (F, masculino, usuário de Pitilho) 2. O pitilho protege os usuários da violência da polícia e dos traficantes, fazendo parte dos mecanismos de controle, inclusive para permitir lidar melhor com o traficante que costuma humilhar o usuário. Há uma assimetria entre usuários e traficantes, estes últimos não submetidos à lei do país, eles são a lei. “O usuário é humilhado pelo traficante, eles acham que quem vai comprar é sacizeiro, são todos iguais, tanto que quando nos avistam, já vão logo dizendo: - Lá vem o saci ali. A gente é muito humilhado, pior que cachorro. As pessoas nos julgam muito.” (M, masculino, usuário) 3. Afirmam conseguir diferenciar os dois baratos e sentir forte efeito resultante da mistura entre as sustâncias. Ao mesmo tempo que tem o efeito estimulante da cocaína, tem o efeito também tranqüilizante da maconha. O pitilho equilibra os efeitos do crack. A maconha reduz nervosismo, inquietação e fissura produzidos pelo crack e tem efeito de balança. “O crack fumado puro provoca mais dependência. O Pity equilibra, tem o efeito da maconha e do crack, ao mesmo tempo. É um negócio mais calmo, enquanto o crack puro dá vontade de andar, de fumar mais" (M, masculino, usuário) 4. A intensidade do efeito vai depender da qualidade dos seus componentes. “Tem pedra fraca e pedra forte, e assim com a maconha também: se a pedra for boa, ficando com a “borra” verde, o efeito do crack predomina, se a maconha for boa, e a pedra ruim (ficando com a borra marrom), a onda da maconha predomina.” (F, masculino, usuário) 5. Segundo depoimentos, com o pity os usuários se sentem mais calmos e ficam com mais disposição para trabalhar e realizar as atividades do cotidiano. Somado ao fato do pitilho proteger a imagem e amenizar o isolamento social, com as pessoas que usam deixando de ser tão malvistos em suas comunidades, dizem que na comparação da representação e status social atribuído a cada produto, o pitilho está para a cocaína, assim como a maconha está pra o crack. O pitilho e a cocaína seriam drogas “sociais”, pois seu uso 9
  • 10. pode ser feito com discrição, causando menor prejuízo moral e social, enquanto tanto a maconha quanto o crack puro seriam substâncias que ao serem consumidas exalam forte odor, sendo esse uso facilmente identificado, o que o torna mais arriscado. “Tem diferença entre a pessoa que usa pitilho e a pessoa que usa na lata, copo ou no cachimbo. O pity é com a maconha, é a mesma coisa que dizer da maconha e da cocaína, que falam que a cocaína é uma droga social, falam a mesma coisa do pity. (A, feminino, usuária) 6. O pitilho preserva a forma física dos usuários, melhora o apetite e se contrapõe à anorexia causada pelo crack. “Tenho observado que aqueles que fazem uso misturado à maconha não tem uma aparência tão devastada como quem usa puro. O crack puro tira a fome, enquanto que misturado na maconha estimula o usuário a comer depois do uso”. (Diário de campo, A, redutora de danos) 7. O Pitilho demora mais de ser consumido, tem maior duração em seu efeito, menor custo e pode ser fumado por mais pessoas. O crack puro causa mais dependência, seu efeito de curta duração leva a repetir o ato, enquanto que o pitilho diminui essa compulsão para o uso, fazendo com que desenvolvam um mecanismo de controle sobre o abuso de crack. A potência do efeito deste cigarro depende da quantidade de crack adicionada, dosando os produtos em busca do efeito desejado. "O efeito do pitilho é mais lento. Um pitilho feito com uma pedra de R$ 5,00, é suficiente para lombrar três pessoas, enquanto que fumar crack puro queima mais rápido.” (B.S. Redutor de Danos) - Outras medidas de proteção Apesar da consciência do alto grau de dependência que provoca o crack, há formas de auto-controle, pois em cada usuário o crack provoca um efeito ou reação, também conhecido por “lombra”. Esse efeito depende de cada um, há diferença entre as pessoas e nem todos os moradores da periferia vão usar para praticar delitos. Muitos continuam trabalhando para manter o vício. “O crack transforma a gente, se a pessoa estiver fraca de espírito e vai roubar, quem não é fraco de espírito, continua trabalhando pra manter o vício, nem todos vão roubar. Não é por causa da droga, é porque já fuma na intenção de fazer aquilo”. (A, feminino, usuária) 10
  • 11. 1. Além de fazer uso do pitilho como estratégia para lidar com os efeitos adversos do crack, os entrevistados relataram outras práticas como escolher um horário mais adequado para o uso. Por provável vasodilatação pós-efeito, o crack eleva a temperatura do corpo e é preferível usar à noite. Outra estratégia é tomar banho logo após o uso. “Quando é a bicha, que a gente dá um pau numa boa, em uma pedra de 5, chega bate aquela suadeira mesmo, porque ela afeta o sistema nervoso da pessoa. Eu fumo mais a noite, porque está frio. (A, feminino, usuária) 2. Chamam a atenção para as formas pessoais de consumo como um fator importante para o exercício do controle sobre o uso, pois afirmam que nem todo usuário que vive naquele contexto vai reagir da mesma forma ao estímulo do crack e há usuários que conseguem desenvolver certo controle sobre o uso, através do controle da freqüência. “Eles acham que todas as pessoas que usam drogas são iguais, mas não são. Tem usuários que conseguem ter controle sobre o uso. Tem gente que usa apenas no final de semana, usa de 1 a 2 vezes no dia, fuma um pity de manhã e outro pity à noite. São pessoas que têm o vício, mas procuram exercer um controle sobre o vício”. (M, masculino, usuário) 3. São exemplos de medidas de controle para o uso do crack estabelecer limite para gastar com a pedra; dar seu próprio dinheiro para alguém de sua confiança guardar; evitar meio onde acontece o uso; procurar distanciar-se daqueles que usam diariamente, pois muitas vezes não resistem ao convite dos amigos; procurar ocupar a mente com trabalho, estudo. - Associação com o álcool Um Importante fator que influencia no padrão de consumo relatado em todas as entrevistas foi o uso do álcool como um gatilho para o consumo do crack ou pitilho, deflagrando imediatamente o desejo de usar, pois como o uso do álcool (geralmente cerveja ou cachaça) feito de forma compulsiva, leva o usuário a fumar mais crack, uma vez que o efeito estimulante do sistema nervoso central do crack se contrapõe ao efeito depressor do álcool, sendo um meio de controlar seus efeitos. “Se eu ingerir álcool, a tendência é usar mais, álcool chama a pedra, para mim uma coisa puxa a outra. Eu acho que a pedra equilibra o álcool, se já estiver lombrado com aquela química. Se eu não beber, nem na pedra eu penso. No meu caso, o que me faz ter 11
  • 12. vontade de fumar, é o álcool. É colocar uma gota de álcool na boca, e eu amanheço o dia fumando 3, 4, 5, 6, 10 gramas”. (M, masculino, usuário) A diferença entre fumar o crack puro e beber e fumar o pity e beber é que o pity, juntamente com a cachaça fazem uma soma de efeitos em contraposição ao crack. Álcool e maconha (pura ou no pity) se potencializam. “Com o crack puro e bebendo, a pessoa fica menos travada e mais acesa, e com o pity não, por causa da maconha. Quando a pessoa fuma um cigarro de maconha puro, pra tomar cachaça, a tendência é intensificar a onda da cachaça. Com o pity também, fumar um pity e tomando cachaça, vai intensificar a lombra. A bebida não corta a onda do crack e sim aumenta. Tem dias em que eu tô bebendo, tomo 30 a 40 doses de cachaça sem contar as cervejas, só de cerveja eu tomo 10 a 15”. (F, masculino, usuário) - Outros conhecimentos obtidos no estudo 1. Há diferenças entre fumar o pitilho e fumar o crack puro seguido de maconha. No uso do crack e maconha separados, a maconha só é fumada quando o efeito rápido do crack passa e os usuários já sentem um esgotamento físico e mental decorrente desse uso abusivo. Nesse caso se fica mais sonolento o que leva a buscar novo controle sobre esse efeito. "Se você fuma crack e depois fuma um baseado, a lombra já vai ser ficar naquele processo meio sonolento, aí 20 minutos depois que você vai querer fumar um pity, vai sentir as duas lombras juntas.” (M, masculino, usuário) 2. Ao serem indagados sobre efeitos positivos do uso do crack, disseram que não há nada que considerem bom, fumam porque gostam, mas não vêem efeitos positivos, o que relatam são quadros de dependência. “Enquanto a pessoa ta ali acendendo, pra ele ta bom... acabou, quer mais, a onda dela é querer mais, e isso eu acho ruim. Eu trabalho debaixo do sol quente, pra gastar dinheiro com uma coisa que eu sei que tá me destruindo. Acho que é uma coisa desumana”. (F, masculino, usuário) 3. O crack, quando queimado, forma uma resina chamada de “borra”, armazenada dentro do recipiente usado (a lata ou o cachimbo). Depois, essa resina é raspada e reutilizada misturada à cinza do cigarro, ou antes lavam a superfície com álcool, e quando seca, raspam aquela “borra”, que é novamente fumada. Segundo relatos, esses resíduos da pedra de crack junto com cinzas de cigarro, quando queimada pela segunda vez, tem efeito ainda mais potente, provocando mais prejuízos, e os usuários disputam entre eles para ficar com aquele recipiente, bastante utilizado. 12
  • 13. “A borra é a resina que fica dentro do copo ou cachimbo quando fuma. Eles raspam ou lavam com álcool, e quando seca fica aquela borra, e aí fumam de novo. Essa substância queimada pela 2ª vez, dizem que é ainda mais forte, e há briga pra ficar com aquele recipiente, bastante usado.” (B.S. Redutor de Danos) "Muitas pessoas podem usar o recipiente e esperar meses, a fim de recolher aquela borra (resíduo) e fumar. É muito prejudicial para os pulmões, porque é uma mistura de crack e cinzas” (M, masculino, usuário) 4. Diferença de gênero: as mulheres são discriminadas Há também forte associação entre uso de crack e prostituição de mulheres. Muitas mulheres jovens passam a se prostituir para poder adquirir a substância. Fazendo muitas vezes o programa em troca de uma pedra de crack de cinco reais. Há discriminação da parte do usuário de crack para com a usuária. Eles dizem evitar fumar e relacionar-se sexualmente com a “sacizeira”, ainda que fazendo uso de preservativo, principalmente quando têm conhecimento que a mulher troca a substância por sexo. “Eu não fumo com sacizeira, a pessoa que usa a mesma coisa que eu, não faço questão de ter nada com elas, mesmo com camisinha eu tenho medo, ainda mais a mulher que se vende por causa disso” (F, masculino, usuário) 4) Conclusões e Recomendações Fumar pitilho não é propriamente um tratamento de substituição, mas sim uma mais econômica, mais segura e menos nociva forma de usar crack. Fumar pitilho é proteção e reduz a exclusão social do crack. A farmacologia do crack sobre as diferentes formas em que a droga é consumida a partir das perspectivas dos usuários podem ser um instrumento muito importante para a redução dos danos das políticas e das práticas entre usuários de crack, em toda a sua amplitude, como mostram os usuários de pitilho no presente estudo. As estratégias de redução de danos no uso de crack são ainda pouco desenvolvidas. Deve-se atentar para o conhecimento informal de uso e disseminação das técnicas entre usuários de drogas ilícitas a fim de poder utilizá-lo como recurso para o trabalho da redução de danos. 5) Bibliografia Andrade, Tarcisio; Lurie, Peter; Medina, Maria Guadalupe. Abertura do Programa de troca de agulhas na América do Sul e uma epidemia de crack em 13
  • 14. Salvador, Bahia-Brasil. Em Anderson e Ines Dourado. Aids e Comportamento, Vol. 1, Jan-março de 2001. pp 51-64. Domanico, A. Craqueiros e cracados: Bem vindo ao mundo dos nóias. Tese apresentada à UFBA. 2006. Iniciardi, J.A. Crack cocaine in the Américas. In: Monteiro MG, Iniciard JA, editors. Brazil-United States Binational Research. São Paulo: CEBRID; 1993. pp 63-75. Labigalini, E.J. O uso terapêutico de cannabis por dependentes de crack no Brasil; Em Mesquita, F & Seibel, Consumo de drogas, DESAFIOS e Perspectivas. Hucitec: São Paulo, 2000, p173-184. MacRae, Edward e Gorgulho, Mônica. Tratamento de substituição. Jornal Brasileiro de Psiquiatria. vol. 52, set-out 2003, pp. 371-374. Mesquita, F.C. Aids entre usuários de drogas injetáveis na última década do século XX, na região metropolitana de Santos, Estado de São Paulo – Brasil. Tese apresentada à USP. São Paulo, 2001 Nappo, SA Galduróz JCF, Noto AR. Crack use in São Paulo. Subst Use Misuse. 1996; 31:565-79. 14