2. Confiança e medo na cidade
.1.
mitarem a pensar apenas em si mesmas e em seu futuro.
Mas é justamente a lógica do pensamento de Bauman que
nos leva a compreender que não existem determinismos na
vida social. Isso se os atores sociais enfrentarem a realidade
Confiança e medo na cidade
e exercitarem até o fim sua capacidade de ação - que é, afinal, a capacidade de modificar o curso dos acontecimentos
a partir de novos investimentos nas relações e nos vínculos, entendidos como elementos essenciais na construção
de um novo capital social. Não de modo ingênuo, mas
segundo uma reflexão contínua e séria sobre as condições
Nos últimos anos, sobretudo, na Europa e em suas ramifi-
do próprio agir.
cações no ultramar, a forte tendência a sentir medo e a obsessão maníaca por segurança fizeram a mais espetacular
MAURO
MAGATTI*
---
das carreiras.
-
Por si só, isso já é um mistério. Afinal, como assinala
Robert Castel em sua perspicaz análise das atuais angústias
alimentadas pela insegurança,' "nós, pelo menos nos países
que se dizem avançados, vivemos em sociedades que sem
dúvida estão entre as mais seguras (sures) que já existiram".
No entanto, em contraste com essa "evidência objetiva", o
mimado e paparicado "nós" sente-se inseguro, ameaçado
e amedrontado,
mais inclinado ao pânico e mais interes-
sado em qualquer coisa que tenha a ver com tranqüilidade
e segurança que os integrantes da maior parte das outras
* Diretor do Departamento
Sacro Cuore, Milão.
de Sociologia, Università Cattolica del
12
sociedades que conhecemos.
13
3. ,
Confiança e medo na cidade
Confiança e medo-na cidad
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Igmun d Freu d Ja h'
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enigma.ê sugerindo q~e a solu~
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I
r "·pon tI!I !=cgqdo
,10,
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não os limites que um esforço pudesse superar com boa
;
pode.fi~ ser ij99~ltr;ada
vontade e justa determinação: "Não se entende por que
no desprezo tenaz da psique humana pel~ :átida ($l~gkafac-
os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não repre-
tual", Os sofrimentos humanos (inclusive o medo!de sofrer
sentam ... benefício e proteção para cada um de nós." Por
e o medo em si, que é o pior e mais penoso exemplo de
isso, se a "proteção de fato disponível e as vantagens que
sofrimento) derivam do "poder superior da natureza, da
desfrutamos não estão totalmente à altura de nossas ex-
fragilidade de nossos próprios corpos e da inadequação
pectativas; se nossas relações ainda não são aquelas que
das normas que regem os relacionamentos mútuos dos se-
gostaríamos de desenvolver; se as regras não são exatamen-
res humanos na família, no Estado e na sociedade". Em
te como deveriam e, a nosso ver, poderiam ser; tendemos
relação às duas primeiras causas expostas por Freud, po-
a imaginar maquinações hostis, cornplôs,
demos dizer que conseguimos - de algum modo - aceitar
de um inimigo que se encontra em nossa porta ou embai-
os limites do que somos capazes de fazer: sabemos que ja-
xo de nossa cama. Em suma, deve haver um culpado, um
mais poderemos dominar totalmente a natureza e que não
crime ou uma intenção criminosa.
tornaremos nossos corpos imortais, subtraindo-os do flu-
Castel chega a conclusão .. náloga
a
conspirações
quando supõe que
xo impiedoso do tempo; portanto, estamos prontos para
a insegurança moderna não deriva da perda da seguran-
nos contentar com a "segunda opção". Essa consciência,
ça, mas da "nebulosidade (ombre portée) de seu objetivo",
no entanto, é mais instigadora e estimulante - e menos
num mundo social que "foi organizado em função da con-
deprimente e inibidora. Se não podemos eliminar todos
tínua e laboriosa busca de proteção e segurança'c" A aguda
os sofrimentos, conseguimos, contudo, eliminar alguns e
e crônica experiência da insegurança é um efeito colate-
atenuar outros. O fato é que sempre vale a pena tentar e
ral da convicção de que, com as capacidades adequadas
tentar novamente.
e os esforços necessários, é possível obter uma segurança
Mas as coisas mudam quando se trata do terceiro tipo
completa. Quando percebemos que não iremos alcança-Ia,
de sofrimento: a miséria de origem social. Tudo o que foi
só conseguimos explicar o fracasso imaginando que ele se
feito pelo homem também pode ser refeito. Não aceitamos
deve a um ato mau e premeditado, o que implica a existên-
a imposição de limites para esse "refazer"; em todo caso,
cia de algum delinqüente.
14
15
4. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas
rede de vínculos sociais. A segunda, que vem logo depois
várias manifestações, é caracterizada pelo medo dos cri-
da primeira, consiste na fragilidade e vulnerabilidade sem
mes e dos criminosos. Suspeitamos dos outros e de suas
precedentes desse mesmo indivíduo, agora desprovido da
intenções, nos recusamos a confiar (ou não conseguimos
proteção que os antigos vínculos lhe garantiam.
fazê-lo) na constância e na regularidade da solidariedade
Se a primeira revelou aos indivíduos a estimulante e se-
humana. Castel atribui a culpa por esse estado de coisas
dutora existência de grandes espaços nos quais implementar
ao individualismo moderno. Segundo ele, a sociedade mo-
a construção e o aprimoramento de si mesmo, a segunda tor-
derna - substituindo as comunidades solidamente unidas
nou a primeira inacessível para a maior parte dos indivíduos.
e as corporações (que outrora definiam as regras de pro-
O resultado da ação combinada dessas duas novas tendências
teção e controlavam a aplicação dessas regras) pelo dever
foi como aplicar o ai do sentimento de culpa sobre a ferida
individual de cuidar de si próprio e de fazer por si mesmo
da impotência, infeccionando-a. Derivou disso uma doença
- foi construída sobre a areia movediça da contingência: a
que poderíamos chamar de medo de ser inadequado.
insegurança e a idéia de que o perigo está em toda parte
Desde o início, o Estado moderno teve de enfrentar
a tarefa desencorajadora de administrar o medo. Foi obri-
são inerentes a essa sociedade.
da Era Moderna,
gado a tecer de novo a rede de proteção que a revolução
também nesta a Europa desempenhou o papel precursor.
moderna havia destruído, e repará-Ia repetidas vezes, à me-
Foi a primeira a ter de enfrentar as imprevistas e perni-
dida que a modernização, promovida por ele mesmo, só a
ciosas conseqüências regulares da mudança: a estressan-
deformava e desgastava. Ao contrário do que se é levado a
te sensação de insegurança que, como se dizia, não teria
pensar, no coração do "Estado social" - êxito inevitável da
existido sem a ocorrência simultânea de duas "reviravoltas"
evolução do Estado moderno - havia mais proteção (garan-
que se manifestaram na Europa - para em seguida se dis-
tia coletiva contra as desventuras individuais) que redistri-
seminar, mais ou menos rapidamente, pelos outros lugares
buiçâo da riqueza. Para as pessoas desprovidas de recursos
do planeta. A primeira, sempre segundo a terminologia
econômicos, culturais ou sociais (de todos os recursos, ex-
de Castel, consiste na "supervalorização" (survalorisation4)
ceto da capacidade de realizar trabalhos manuais), "a pro-
do indivíduo, liberado das restrições impostas pela densa
teção só pode ser coletiva","
Como nas outras transformações
16
17
5. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
Ao contrário das redes prqtetoras pré-modernas, aque-
dependência das partes em jogo fez de seu enfrentamento
las criadas e administradas pelo Estado eram deliberada e
um investimento razoável e um sacrifício que tinha tudo
cuidadosamente
para dar bons resultados). Foi também, por outro lado, um
planejadas, ou desenvolviam-se esponta-
neamente a partir dos grandes esforços construtivos que ca-
refúgio seguro para a confiança e, conseqüentemente,
racterizaram a fase "sólida" da modernidade. Exemplos de
a negociação, a busca de compromissos e de uma convi-
proteção do primeiro tipo são as instituições e as medidas
vência "consensual".
assistenciais - às vezes chamadas de "salários sociais" -, ad-
A carreira claramente delineada,
para
a tediosa, embora
ministradas ou amparadas pelo Estado (serviços de saúde,
tranqüilizadora,
educação pública, casas populares). E também as normas
bilidade dos grupos de trabalho, a possibilidade de desfru-
industriais que definem os direitos recíprocos das partes nos
tar capacidades definitivamente adquiridas e o grande valor
contratos de trabalho, defendendo também o bem-estar e os
atribuído à experiencia no trabalho permitiam manter os
direitos dos empregados.
riscos do mercado de trabalho a distância. Permitiam tam-
O principal exemplo do segundo tipo é a solidariedade
rotina compartilhada
diariamente, a esta-
bém atenuar (ou mesmo eliminar totalmente) a incerteza,
empresarial, sindical e profissional que deitou raizes e flo-
confinando os medos no reino marginal da "má sorte" e
resceu "de modo espontâneo" no ambiente relativamente
dos "incidentes fatais", sem permitir que eles invadissem
estável da "fábrica fordista", síntese do cenário da rnoder-
a vida cotidiana. Mas, sobretudo, as muitas pessoas cujo
nidade sólida, na qual se remediava a ausência da maior
único capital era o trabalho podiam contar com o aspec-
parte dos "outros capitais". Nessa fábrica, o recíproco e
to coletivo. A solidariedade transformou
duradouro
trabalhar em capital substituto, que, como se esperava - e
empenho
das duas partes em contraposição
a capacidade de
- capital e trabalho - tornou-as independentes. Ao mes-
acertadamente -, podia servir de contrapeso para o poder
mo tempo, permitiu que se pensasse e planejasse a longo
combinado dos capitais de outro tipo.
prazo, que se empenhasse o futuro e nele se investisse. A
Os medos modernos tiveram início com a redução
"fábrica fordista" foi, portanto, um lugar caracterizado por.
do controle estatal (a chamada desregulamentaçâoi
árduas e às vezes candentes disputas que, no entanto, sem-
conseqüências individualistas, no momento em que o pa-
pre foram contornadas (o empenho a longo prazo e a inter-
rentesco entre homem e homem - aparentemente
18
19
e suas
eterno,
6. I
Confiança e meqo na cidade
Confiança e medo na cidade
ou pelo menos presente desde rempo irnemoriaís -, assim
mitidas pela modernidade
como os vínculos amigáveis eJtabeIetidos dentro de uma
ter as múltiplas pressões, reduzi-Ias ou eliminá-Ias de todo
comunidade
- vêem-se como fortalezas assediadas por forças inimigas.
ou de uma corporáção, foi fragiHzado ou até
sólida - e voltadas para comba-
rompido. O modo como a modernidade sólida administra-
Eles consideram os resquícios do Estado social um privilé-
va o medo tendia a substituir os laços "naturais" - irrepa-
gio que é preciso defender com unhas e dentes de invasores
ravelmente danificados - por outros laços, artificiais, que
que pretendem
assumiam
cente de um complô estrangeiro e o sentimento de rancor
a forma de associações, sindicatos e coletivos
pari-time (quase permanentes,
no entanto,
saqueá-Ios. A xenofobia - a suspeita cres-
pois consoli-
pelos "estranhos?" - pode ser entendida como um reflexo
dados pela rotina diariamente partilhada). A solidariedade
perverso da tentativa desesperada de salvar o que resta da
i
sucedeu a irmandade como melhor defesa para um destino
cada vez mais incerto.
A dissolução
solidariedade loc l.
Quando a solidariedade é substituída pela competição,
da solidariedade
universo no qual a modernidade
representa
o fim do
sólida administrava
medo. Agora é a vez de se desmantelarem
o
ou destruírem
os indivíduos se sentem abandonados
a si mesmos, entre-
gue~ a seus próprios recursos - escassos e claramente inadequados. A corrosão e a dissolução dos laços comunitários
as proteções modernas - artificiais, concedidas. A Europa,
nos transformaram,
primeira a sofrer a revisão moderna e todas as suas con-
víduos de jure (de direito); mas circunstâncias
seqüências, passa pela "desregulamentação
individualista
persistentes dificultam que alcancemos o status implícito
número dois", agora não por escolha própria, mas cedendo
de indivíduos de facto (de fato)." Se, entre as condições da
à pressão das incontroláveis forças globais.
modernidade
Paradoxalmente, quanto mais persistem - num determinado lugar - as proteções "do berço ao túrnulo", hoje arnea-
sem pedir nossa aprovação, em indiopressivas e
sólida, a desventura mais temida era a inca-
pacidade de se conformar, agora - depois da reviravolta da
modernidade
"líquida" - o espectro mais assustador é o
çadas em toda parte pela sensação compartilhada de um perigo iminente, mais parecem atraentes as válvulas de escape
xenófobas. Os poucos países (sobretudo escandinavos) que
relutam em abandonar
as proteções institucionais
20
trans-
* Em especial os imigrantes, que, de modo vívido e claro, recordam
que os muros podem ser derrubados, e as fronteiras canceladas; os
imigrantes por meio dos quais se queimam em efígie as misteriosas e
incontroláveis forças globalizantes.
21
7. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
da inadequação. Temor bem justificado, cumpre admitir,
Hoje a exclusão não é percebida como resultado de
quando consideramos a enorme desproporção entre a quan-
uma momentânea e remediável má sorte, mas como algo
tidade e a qualidade de recursos exigidos por uma produção
que tem toda a aparência de definitivo. Além disso, nesse
efetiva de segurança do tipo "faça você mesmo". E também
-momento, a exclusão tende a ser uma via de mão única.
quando levamos em conta a soma total de materiais, ins-
É pouco provável que se reconstruam as pontes queima-
trumentos e habilidades que a maioria dos indivíduos, de
das no passado. E são justamente a irrevogabilidade desse
forma razoável, pode esperar adquirir e conservar.
"despejo" e as escassas possibilidades de recorrer contra
essa sentença que transformam
Robert Casrel aponta também o retorno das "classes perigosas"? Gostaria de observar, contudo, que a semelhança
os excluídos de hoje em
"classes perigosas".
Essa exclusão irrevogável é a consequência direta, em-
entre a sua primeira e segunda aparição desse estrato é, no
bora imprevista, ~a decomposição
melhor dos casos, incompleta.
hoje se assemelha a uma rede de poderes constituídos,
As "classes perigosas" originais eram constituídas por
gente "em excesso", temporariamente
excluída e ainda não
do Estado social, que
ou
melhor, a um ideal, a um projeto abstrato. O declínio e o
colapso do Estado social ànunciam
definitivamente
que
reintegrada, que a aceleração do progresso econômico ha-
as oportunidades
via privado de "utilidade funcional ", e de quem a rápida
reito ao apelo será revogado; que se perderá gradualmente
pulverização das redes de vínculos retirava, ao mesmo tem-
qualquer esperança; e que qualquer vontade de resistir
po, qualquer proteção. As novas classes perigosas são, ao
acabará por se extinguir. A exclusão do trabalho é vivida
contrário, aquelas consideradas incapacitadas para a rein-
mais como uma condição de "superfluidade"
tegração e classificadas como nâo-assimildueis, porque não
a condição de alguém que está "des-empregado"
saberiam se tornar úteis nem depois de uma "reabilitação".
que implica um desvio da regra, um inconveniente
Não é correto dizer que estejam "em excesso": são supérfluas
porário que se pode - e se poderá - remediar); equivale a
e excluídas de modo permanente
ser recusado, marcado como supérfluo, inútil, inábil para
(trata-se de um dos poucos
de redenção irão desaparecer; que o di-
que como
(termo
tem-
casos permitidos de "permanência" e também dos mais ati-
o trabalho e condenado a permanecer
vamente encorajados pela sociedade "líquida").
inativo". Ser excluído do trabalho significa ser eliminá-
22
23
"economicamente
8. Confiança e medo na cidade
vel (e talvez já eliminado
definitivamente),
Confiança e medo na cidade
classificado
pessoas que seriam "reeducadas", "reabilitadas"
e "resti-
como descarte de um "progresso econômico" que afinal
tuídas à comunidade"
se reduz ao seguinte: realizar o mesmo trabalho e obter
definitivamente
os mesmos resultados econômicos
com menos força de
serem "socialmente recicladas": indivíduos que precisam
com custos inferiores aos que antes
ser impedidos de criar problemas e mantidos a distância
trabalho e, portanto,
na primeira ocasião, mas vêem-se
afastadas para as margens, inaptas para
da comunidade respeitosa das leis.
vigoravam.
Hoje, apenas uma linha sutil separa os desempregados, especialmente os crônicos, do precipício, do buraco
Como observam Gumpert e Drucker," "quanto mais nos
negro da underclass (subclasse): gente que não se soma a
separamos de nossas vizinhanças imediatas, mais confiança
qualquer categoria social legítima, indivíduos que fica-
depositamos
ram fora das classes, que não desempenham
alguma das
muitas áreas urbanas, um pouco no mundo todo, casas
funções reconhecidas, aprovadas, úteis, ou melhor, indis-
construídas para proteger seus habitantes, e não para inte-
pensáveis, em geral realizadas pelos membros "normais"
grá-los nas comunidades às quais pertencem." O comentá-
da sociedade; gente que não contribui para a vida social.
rio que fazem é: "Justamente quando estendem seus espa-
A sociedade abriria mão deles de bom grado e teria tudo a
ços de comunicação para a esfera internacional, esses mo-
ganhar se o fizesse. Não menos sutil é a linha que separa os
radores colocam a vida social porta afora, potencializando
"supérfluos" dos criminosos; underclass e "criminosos" são
os seus 'sofisticados' sistemas de segurança","
na vigilância do ambiente. ... Ex!stem~ ~m
duas subcategorias de "elementos anti-sociais" que diferem
Mais ou menos do mundo inteiro, começam a se evi-
uma da outra mais pela classificação oficial e pelo trata-
denciar nas cidades certas zonas, certos espaços - forte-
mento que recebem que por suas atitudes e comportamen-
mente correlacionados a outros espaços "de valor", situa-
tos. Assim como aqueles que são excluídos do trabalho, os
dos nas paisagens urbanas, na nação ou em outros países,
criminosos (ou seja, os que estão destinados à prisão, já es-
mesmo a distâncias enormes - nos quais, por outro lado, se
tão presos, vigiados pela polícia ou simplesmente fichados)
percebe muitas vezes uma tangível e crescente sensação de
deixaram de ser vistos como excluídos provisoriamente da
afastamento em relação às localidades e às pessoas fisica-
normalidade da vida social. Não são mais encarados como
mente vizinhas, mas social e economicamente
24
25
distantes."
9. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
Os produtos descartados por essa nova extraterritoria-
O quadro que emerge dessa descrição é o de dois mun-
lidade, por meio de conexões dos espaços urbanos privile-
dos-de-vida separados, segregados. Mas só o segundo é ter-
giados, habitados ou utilizados por uma elite que pode se
ritorialmente
dizer global, são os espaços abandonados
meio de conceitos clássicos. Já os que vivem no primeiro
e desmembrados
circunscrito
e, portanto,
compreensível por
- aqueles que Michael Schwarzer chama de "zonas fantas-
dos dois mundos-de-vida
ma", nas quais "os pesadelos substituem os sonhos, e peri-
mente como os outros, " I I" nao sao
no oca - ~ ~"daque teI al" :
oc
go e violência são mais comuns que em outros lugares".'!
não o são idealmente, com certeza, mas muitas vezes (to-
Para tornar a distância intransponível,
das as vezes que quiserem) também não o são fisicamente.
de perder ou de contaminar
e escapar do perigo
- emboram se encontrem, exata-
sua pureza local, pode ser útil
As pessoas da "primeira fila" não se identificam com o
reduzir a zero a tolerância e expulsar os sem-teto de lugares
lugar onde moram, à medida que' seus interesses estão (ou
nos quais eles poderiam não apenas viver, mas também se
melhor, flutuam)'em
fazer notar de modo invasivo e incômodo, empurrando-as
adquiriram
para esses espaços marginais, oif-limits, nos quais não po-
a não ser dos seguintes: serem deixadas em paz, livres para
dem viver nem se fazer ver.
se dedicar completamente
Como sugere Manuel Castells.F a polarização está se
acentuando.
Mais que isso, rompem-se os vínculos entre
o Lebenstoelt (mundo-de-vida)
de um e do outro tipo de
cidadãos: o espaço da "primeira fila" está normalmente
outros locais. Pode-se supor que não
pela cidade em que moram nenhum interesse,
"aos próprios entretenimentos
e
para garantir os serviços indispensáveis (não importa como
sejam definidos) às necessidades e confortos de sua vida
cotidiana. A gente da cidade não se identifica com a terra
li-
que a alimenta, com a fonte de sua riqueza ou com uma área
globais e à imensa rede de trocas,
sob sua guarda, atenção e responsabilidade, como acontecia
aberto a mensagens e experiências que incluem o mundo
com os industriais e comerciantes de idéias e bens de con-
todo. Na outra ponta do espectro, encontramos
as redes
sumo do passado. Eles não estão interessados, portanto, nos
muitas vezes de base étnica, que de-
negócios de "sua" cidade: ela não passa de um lugar como
gado às comunicações
locais fragmentárias,
positam sua confiança na própria identidade como recurso
outros e como todos, pequeno
mais precioso para a defesa de seus interesses e, conseqüen-
visto da posição privilegiada do ciberespaço, sua verdadei-
temente, de sua própria vida.
ra - embora virtual - morada.
26
27
e insignificante,
quando
10. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
o mundo-de-vida
dos outros, dos cidadãos da "última
fila", é exatamente o contrário. Em geral, para defini-lo,
pressões globalizantes e o modo como as identidades locais
são negociadas, modeladas e remodeladas.
diz-se que está fora das redes mundiais de comunicação
É um grave erro atribuir um lugar diverso aos aspectos
com as quais as pessoas da primeira fila vivem conectadas
"globais" e "locais" das condições existenciais e políticas
e com as quais sintonizam suas próprias vidas. Os cida-
contemporâneas,
dãos da última fila estão "condenados a permanecer no
cundário e ocasional - como poderia sugerir a não par-
lugar". Portanto, espera-se que sua atenção - cheia de insa-
ticipação na "primeira fila". Num
tisfações, sonhos e esperanças - dirija-se inteiramente para
publicado, Michael Peter Srnith'P se opõe à opinião (par-
as "questões locais". Para eles, é dentro da cidade em que
tilhada, segundo ele, por David Harvey e John Friedman,
moram que se declara e se combate a luta - às vezes venci-
por exemplol'" queyconrrapôe
da, mas com maior freqüência perdida - para sobreviver e
localizada dos fluxos econômicos globais" a "uma concep-
conquistar um lugar decente no mundo.
ção estática do território e da cultura local", atualmente
A segregação das novas elites globais; seu afastamento
correlacionando-os
apenas de modo se-
estudo recentemente
'uma lógica dinâmica e não
valorizados como "locais de vida", "estar-no-mundo".
Se-
dos compromissos que tinham com o populus do local no
gundo Smith, "longe de refletir uma ontologia estática da
passado; a distância crescente entre os espaços onde vivem os
existência ou da comunidade,
separatistas e o espaço onde habitam os que foram deixados
ções dinâmicas, em formação".
as localidades são constru-
para trás; estas são provavelmente as mais significativas das
Na verdade, a linha que separa o espaço abstrato dos
tendências sociais, culturais e políticas associadas à passagem
operadores globais - "que se encontra em algum lugar do
da fase sólida para a fase líquida da modernidade.
inexistente" - daquele espaço físico tangível, "aqui e agora"
Há muita verdade nesse quadro, mas isso não é tudo:
no mais alto grau, da "gente do lugar" só pode ser traça-
nele perde-se ou minimiza-se a parte essencial da verdade,
da no mundo etéreo da teoria, em que os conteúdos ema-
aquela que, mais que qualquer outra, representa a caracte-
ranhados dos mundos-de-vida
rística Fundamental (eprovavelmente a que mais conseqüên-
"colocados em ordem" e depois classificados e arquivados:
cias terá a longo prazo) da vida urbana contemporânea.
cada um em seu compartimento,
Essa característica consiste na estreita interaçâo entre as
Mas as realidades da vida urbana logo chegam para arrui-
28
29
humanos são inicialmente
por razões de clareza.
11. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
nar essas cuidadosas classificações. Os elegantes modelos
do-as. O nosso agir ou não-agir só pode "fazer a diferença"
de vida urbana, construídos com a ajuda de contraposiçôes
quando se trata de questões locais, enquanto para as outras
nítidas, podem proporcionar rnuiras satisfações aos cons-
questões, declaradamente
trutores de teorias, mas na prática não servem de muita
ternativas" - como continuam
coisa para os planejadores urbanos, e menos ainda para os
líticos, assim como os especialistas de plantão. Acabamos
habitantes que enfrentam os desafios da vida na cidade.
por suspeitar - com os recursos penosamente inadequados
Os poderes reais que criam as condições nas quais to-
"supralocais", não existem "ala afirmar nossos líderes po-
de que dispomos - que esses assuntos seguirão seu curso,
dos nós atuamos flutuam no espaço global. enquanto as
não importa o que façamos ou nos proponhamos
instituições
de maneira razoável.
políticas permanecem,
de certo modo, "em
terra", são "locais".
a fazer
Também as situações cuja origem e cujas causas são
Como continuam a ser majoritariamente
locais, as or-
indubitavelmente
globais, remotas e obscuras só entram
ganizações políticas que operam no interior do espaço ur-
no âmbito das questões políticas quando têm repercussões
bano tendem fatalmente a padecer de uma frágil capacidade
locais. A poluição do ar - notoriamente global - ou dos re-
de agir - e sobretudo de agir com eficácia, com "soberania"
cursos hídricos só diz respeito à política quando um terreno,
- no palco em que se representa o drama da política. Por
vendido abaixo do custo - em razão da presença de resíduos
outro lado, deve-se destacar a falta de política no ciberespa-
tóxicos ou de alojamentos para refugiados políticos -, está
ço extraterritorial, que é o campo de jogo do poder.
localizado aqui ao lado, praticamente em "nosso quintal",
Nesse nosso mundo que se globaliza, a política tende
a ser - cada vez mais apaixonada e conscientemente - Local. Como foi banida do ciberespaço, ou teve seu acesso
aterradoramente próximo, mas também (o que é encorajador) "ao alcance da mão".
A progressiva comercialização do setor de saúde, que
vetado, ela se volta para as questões locais, as relações de
nada mais é que um efeito das competições desenfreadas
bairro. Para a maioria de nós, e na maior parte do tempo,
entre os colossos farmacêuticos supranacionais, só entra no
elas parecem ser as únicas questões em relação às quais
campo da política quando o hospital da área começa a se
se pode "fazer alguma coisa", sobre as quais é possível in-
deteriorar, ou quando diminui
fluir, recolocando-as nos eixos, melhorando-as, modifican-
para idosos ou de instituições psiquiátricas.
30
31
o número de residências
Os habitan-
12. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
tes de uma cidade (Nova York) tiveram de enfrentar a de-
quanto mais se "fecham em si mesmas", mais ficam "de-
vastação causada pela evolução global do terrorismo, e os
sarmadas diante do vórtice global", e tendem a se tornar
conselhos municipais e prefeitos de outras cidades tiveram
também mais fracas na hora de decidir sobre os sentidos
de assumir a responsabilidade de garantir a segurança in-
e as identidades locais, que são suas exatamente por serem
dividual, ameaçada doravante por forças inimigas absolu-
locais, para grande alegria dos operadores globais, que não
tamente inatingíveis para as administrações municipais. A
têm motivo algum para temer os desarmados.
devastação global dos meios de sobrevivência e o desloca-
Como Castells sugeriu em outra oportunidade,"
mento de populações dos locais onde tinham moradia es-
criação de um "espaço de fluxos" instaura uma nova (e
tável há muito tempo só entram no horizonte da atividade
global) hierarquia de dominação por meio da ameaça de
política por meio daqueles pitorescos "imigrantes econô-
abandono. Esse "espaço de fluxos" pode "fugir de qualquer
micos" que inundam estradas outrora monótonas.
controle local", enquanto (aliás, justamente porque) "o es-
Em poucas palavras: as cidades se transformaram
depósitos de problemas causados pela globalieaçâo.
em
Os cida-
paço físico é fragmentário,
circunscrito
a
e cada vez mais
desprovido de poder em relação à versatilidade do espaço
dãos e aqueles que foram eleitos como seus representantes
de fluxos. As localidades só' podem resistir negando direi-
estão diante de uma tarefa que não podem nem sonhar em
to de desembarque aos fluxos desenfreados, para constatar
resolver: a tarefa de encontrar soluções locais para contra-
em seguida que eles desembarcam em localidades vizinhas,
dições globais.
cercando e tornando marginais as comunidades rebeldes".
Daí o paradoxo destacado por Castells: "Políticas cada
vez mais locais num mundo estruturado
por processos
A política local - e particularmente
encontra-se hoje desesperadamente
a política
sobrecarregada,
urbana
a tal
cada vez mais globais."15"Houve uma produção de sentido
ponto que não consegue mais operar. E nós pretendíamos
e de identidade: a minha vizinhança, a minha comunidade,
reduzir as conseqüências da globalização incontrolável jus-
a minha cidade, a minha escola, a minha árvore, o meu
tamente com os meios e com os recursos que a própria
rio, a minha praia, a minha igreja, a minha paz, o meu am-
globálização tornou penosamente inadequados.
biente." "As pessoas, desarmadas diante do vórtice global,
fecharam-se
em si mesmas." Gostaria de observar que,
32
Ninguém, nesse mundo que se globaliza tão depressa,
é pura e simplesmente um "operador global". Aqueles que
33
13. -,
Confiança e medo na cidade
fazem parte da oni-influente
elite globe-trotter
Confiança e medo na cidade
poderão,
regenerado no decorrer da luta em busca de sentido e iden-
no máximo, dar à própria mobilidade um objetivo mais
tidade. É nos lugares que se forma a experiência humana,
amplo. Se as coisas começam a pegar fogo, comprome-
que ela se acumula, é compartilhada,
tendo seu conforto, se o espaço que circunda suas residên-
elaborado, assimilado e negociado. E é nos lugares, e graças
cias urbanas torna-se perigoso demais, difícil demais de
aos lugares, que os desejos se desenvolvem, ganham forma,
controlar, eles podem ir para outra parte - possibilidade
alimentados pela esperança de realizar-se, e correm risco de
vetada a todos os que são (fisicamente) seus vizinhos. Essa
decepção - e, a bem da verdade, acabam decepcionados, na
possibilidade de escapar dos problemas locais permite que
maioria das vezes.
tenham uma independência com que os outros habitantes
e que seu sentido é
As cidades contemporâneas são os campos de batalha
urbanos só podem sonhar; e que exibam o luxo - que os
nos quais os poderes globais e os sentidos e identidades
outros não se podem permitir - de uma nobre indiferen-
tenazmente locais se encontram,
ça. Sua contribuição para "resolver as questões da cidade"
tentando chegar a uma solução satisfatória ou pelo menos
tende a ser menos completa e mais desprovida de restrições
aceitável para esse conflito: um modo de convivência que
que a participação dos que têm menores possibilidades de
- espera-se - possa equivaler a urna paz duradoura, mas
romper unilateralmente
que em geral se revela antes um armistício, uma trégua
os vínculos locais.
se confrontam
e lutam,
Isso não significa, contudo, que, na busca de "sentido
útil para reparar as defesas abatidas e reorganizar as unida-
e identidade" (dos quais tem necessidade e que ambiciona
des de combate. É esse confronto geral, e não algum fator
tão intensamente quanto seu próximo), a elite global pos-
particular, que aciona e orlenta;-di~i~i~~-d~-
sa desconsiderar totalmente o local onde vive e trabalha.
Como todos os outros homens e mulheres, ela também
faz parte da paisagem urbana na qual - queiram ou não
modernidade
'----~
-_.
cidad;-~;--
líquida - de todas as cidades, sem sombra de
dúvida, embora não de todas elas no mesmo grau.
Michael Peter Srnith, durante uma viagem recente a
- se inscrevem suas aspirações. Como operadores globais,
Copenhague,'? em uma única hora de estrada, encontrou
podem girar pelo ciberespaço. Mas, como seres humanos,
"pequenos grupos de imigrantes turcos, africanos e vin-
estão confinados de manhã à noite no espaço físico em
dos do Oriente Médio", viu "inúmeras mulheres árabes,
que atuam, num ambiente já predisposto e continuamente
algumas veladas, outras não", notou "letreiros escritos em
34
35
14. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
várias línguas não européias" e, "num pub inglês que ficava
te algum tipo de alívio. As ânsias acumuladas tendem a se
diante do Tivoli, teve uma interessante conversa com o
descarregar sobre aquela categoria de «forasteiros" escolhi-
garçom irlandês". Essas experiências de campo mostram-se
da para encarnar a "estrangeiridade", a não-familiaridade,
muito úteis (disse Smith durante a conferência sobre vin-
a opacidade do ambiente em que se vive e a indetermina-
culações supranacionais que fez naquela cidade) «quando
çâo dos perigos e das ameaças. Ao expulsar de suas casas e
um interlocutor insiste em dizer que o supranacionalismo
de seus negócios uma categoria particular de "forasteiros",
é um fenômeno que diz respeito apenas às 'cidades globais',
exorciza-se por algum tempo o espectro apavorante da in-
como Londres ou Nova York, e tem pouco a ver com luga-
certeza, queima-se em efígie o monstro horrendo do peri-
res mais isolados, como Copenhague".
go. Ao erguer escrupulosamente cuidadosos obstáculos de
fronteira contra os falsos pedidos de asilo e contra os imi.
((
grantes por motivos
história, e por mais radicais que sejam as mudanças em
consolidar nossa vida incerta, trôpega e imprevisível. Mas
sua estrutura e seu aspecto no decorrer dos anos ou dos
a vida na modernidade líquida está fadada a permanecer
séculos, há um traço que permenece constante: a cidade é
estranha e caprichosa, por mais numerosas que sejam as si-
um espaço em que os estrangeiros existem e se movem em
tuações críticas pelas quais os "indesejáveis estranhos" são
estreito contato.
responsabilizados. Assim, o alívio tem breve duração, e as
Componente
fixo da vida urbana, a onipresença de
estrangeiros, tão visíveis e tão próximos, acrescenta uma
puramente
A·"
Aconteça o que acontecer a uma cidade no curso de sua
econormcos , espera-se
esperanças depositadas em «medidas drásticas e decisivas"
desaparecem praticamente no nascedouro.
notável dose de inquietação às aspirações e ocupações dos
O estrangeiro é, por definição, alguém cuja ação é
habitantes da cidade. Essa presença, que só se consegue
guiada por intenções que, no máximo, se pode tentar adi-
evitar por um período bastante curto de tempo, é uma
vinhar, mas que ninguém jamais conhecerá com certeza.
fonte inexaurível de ansiedade e agressividade latente - e
O estrangeiro é a variável desconhecida no cálculo das
muitas vezes manifesta.
equações quando chega a hora de tomar decisões sobre o
O medo do desconhecido - no qual, mesmo que subli-
que fazer. Assim, mesmo quando os estrangeiros não são
minarrnente, estamos envolvidos - busca desesperadamen-
abertamente agredidos e ofendidos, sua presença em nosso
36
37
15. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
campo de ação sempre causa desconforto e transforma em
cide a forma de cada tipo de construção, impondo uma
árdua empresa a previsão dos efeitos de uma ação, suas
lógica fundada na vigilância e na distância."!"
probabilidades de sucesso ou insucesso.
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Todos que têm condições adquirem seu apartamento
espaços com os estrangeiros, viver com
num condomínio: trata-se de um lugar isolado que fisica-
eles por perto, desagradáveis e invasivos como são, é uma
mente se situa dentro da cidade, mas, social e idealmente,
condição da qual os cidadãos consideram difícil, se não
está fora dela. "Presume-se que as comunidades fechadas se-
impossível, escapar. No entanto,
dos es-
jam mundos separados. As mensagens publicitárias acenam
trangeiros é o seu destino, um modus vivendi que terão
com a promessa de 'viver plenamente' como uma alternativa
de experimentar, que deverão ensaiar com confiança para,
à qualidade de vida que a cidade e seu deteriorado espaço
enfim, instituí-lo, se quiserem tornar a convivência agradá-
público podem oferecer." Urna das características mais rele-
vel, e a vida vivível. É uma necessidade, um dado de fato e,
vantes dos cond mínios é "seu isolamento e sua distância da
enquanto tal, não-negociável; mas, naturalmente, o modo
cidade .... Isolamento quer dizer separação de todos os que
como os cidadãos se preparam para satisfazer essa necessi-
são considerados socialmente inferiores", e - corno os cons-
dade depende de suas escolhas. Estas são feitas a cada dia,
trutores e as imobiliárias insistem em dizer - "o fator-chave
agindo ou evitando agir, de propósito ou não, decidindo
para obtê-Io é a segurança. Isso significa cercas e muros ao
de maneira consciente ou seguindo cega e mecanicamente
redor dos condomínios, guardas (24 horas por dia) vigiando
os esquemas de sempre; unindo discussão e reflexão ou
os acessos e uma série de aparelhagens e serviços ... que ser-
seguindo de maneira pessoal aquilo a que damos crédito
vem para manter os outros afastados".
a vizinhança
porque continua na moda e ainda não foi desmerecido.
Corno bem sabemos, as cercas têm dois lados. Divi-
Teresa Caldeira escreve a propósito de São Paulo (a
dem um espaço antes uniforme em "dentro" e "fora", mas
primeira entre as grandes e fervilhantes cidades brasileiras
o que é "dentro" para quem está de um lado da cerca é
em rápida expansão): "Hoje é uma cidade feita de muros.
"fora" para quem está do outro. Os moradores dos condo-
Barreiras físicas são construídas por todo lado: ao redor
mínios mantêm-se fora da desconcertante,
das casas, dos condomínios, dos parques, das praças, das
e vagamente ameaçadora - por ser turbulenta
escolas, dos escritórios .... A nova estética da segurança de-
- vida urbana, para se colocarem "dentro" de um oásis de
38
39
perturbadora
e confusa
16. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
tranqüilidade e segurança. Contudo, justamente por isso,
ridade das gated and secure communities para pessoas de
mantêm todos os demais fora dos lugares decentes e segu-
todas as idades e faixas de renda; e a vigilância crescente
ros, e estão absolutamente decididos a conservar e defen-
dos locais públicos, para não falar dos contínuos alertas de
der com unhas e dentes esse padrão; tratam de manter os
perigo por parte dos meios de comunicação de massa".'?
outros nas mesmas ruas desoladas que pretendem deixar
As autênticas ou supostas ameaças à integridade pes-
do lado de fora, sem ligar para o preço que isso tem. A cer-
soal e à propriedade privada convertem-se em questões
ca separa o "gueto voluntário» dos arrogantes dos muitos
de grande alcance cada vez que se consideram as vanta-
condenados a nada ter.
gens e desvantagens de viver num determinado lugar. Elas
Para aqueles que vivem num gueto voluntário, os ou-
aparecem em primeiro lugar nas estratégias de marketing
tros guetos são espaços "nos quais não entrarão jamais".
imobiliário. A incerteza do futuro, a fragilidade da posição
Para aqueles que estão nos guetos "involuntários", a área a
social e a insegurança da existência - que sempre e em toda
que estão confinados (excluídos de qualquer outro lugar) é
parte acompanham a vida na modernidade líquida, mas
um espaço « do qual não lhes é permitido sair".
têm raízes remotas e escapam ao controle dos indivíduos
.
.;
A tendência a segregar, a excluir, que em São Paulo (a
- tendem a convergir para objetivos mais próximos e a as-
maior conurbação do Brasil, à frente do Rio de Janeiro)
sumir a forma de questões referentes à segurança pessoal:
manifesta-se da maneira mais brutal, despudorada e sem
situações desse tipo transformam-se facilmente em inci-
escrúpulos, apresenta-se - mesmo que de forma atenuada
tações à segregação-exclusão que levam - é inevitável - a
- na maior parte das metrópoles.
guerras urbanas.
Paradoxalmente, as cidades - que na origem foram
Como se depreende de uma excelente pesquisa feita
construídas para dar segurança a todos os seus habitantes
por Steven.Flusry.ê?
jovem arquiteto e crítico. da urbanís-
- hoje estão cada vez mais associadas ao perigo. Como
tica norte-americana,
diz Nan Ellin, "o fator medo [implícito na construção e
- sobretudo projetando maneiras de proibir aos In1m1-
reconstrução das cidades] aumentou, como demonstram
gos reais, potenciais e presumidos o acesso ao espaço que
o incremento dos mecanismos de tranca para automóveis;
eles reivindicam e mantendo-os
as portas blindadas e os sistemas de segurança; a popula-
- constitui o interesse maior e o objeto da mais rápida
40
41
colocar-se a serviço dessa guerra
a uma distância segura
17. I
Confiança e medo na cidade
expansão da inovação arquitetõnica e do desenvolvimento urbano das cidades nos Estados Unidos. As construções
I
Confiança e medo na cidade
de grupos de patrulhamento
e/ou de tecnologias de televi-
gilância conectadas a estações de controle."
recentes, orgulhosamente alardeádas e imitadas, não pas-
Esses e outros tipos de espaços proibidos têm um único
sam de "espaços fechados", "concebidos para interceptar,
- embora composto - objetivo: manter os enclaves extra-
filtrar ou rechaçar os aspirantes a usuário". A intenção des-
territoriais isolados do território contínuo da cidade; cons-
ses espaços vetados é claramente dividir, segregar, excluir,
truir pequenas fortalezas no interior das quais os integran-
e náo de criar pontes, convivências agradáveis e locais de
tes da elite global extraterritorial podem cuidar da própria
encontro, facilitar as comunicações e reunir os habitantes
independência física e do próprio isolamento espiritual, e
da cidade.
tratar de cultívá-los e desfrurá-Ios. Na paisagem urbana, os
Os estratagemas arquitetônico-urbanísticos
identifica-
espaços vedados transformam-se nas pedras miliárias que
I
dos e listados por Flusry são os equivalentes tecnicamente
assinalam a desintegração da vida comunitária, fundada e
atualizados dos fossos pré-modernos, das torres e das se-
compartilhada
teiras nas muralhas das cidades antigas. Mas, em lugar de
critos por Steven Flusry são manifestações altamente tec-
defender a cidade e todos os seus habitantes de um inimigo
no lógicas da onipresente mixofobia (medo de misturar-se).
exatamente ali. Os desenvolvimentos des-
externo, servem para dividir e manter separados seus ha-
Essa mixofobia não passa da difusa e muito previsível
bitantes: para defender uns dos outros, ou seja, daqueles a
reação à impressionante e exasperadora variedade de tipos
quem se atribuiu o status de adversários. Entre as invenções
humanos e de estilos de vida que se podem encontrar nas
mencionadas por Flusry, temos: o "espaço escorregadio",
ruas das cidades contemporâneas e mesmo na mais "co-
um "espaço inatingível, pois as vias de acesso são tortuosas
mum" (ou seja, não protegida por espaços vedados) das zo-
ou inexistentes"; o "espaço escabroso", que "não pode ser
nas residenciais. Uma vez que a multiforme e plurilingüís-
confortavelmente ocupado, sendo defendido por expedien-
tica cultura do ambiente urbano na era da globalização
tes como borrifadores instalados nos muros, úteis para ex-
se impõe - e, ao que tudo indica, tende a aumentar -, as
pulsar os vagabundos, ou bordas inclinadas que impedem
tensões derivadas da "estrangeiridade" incômoda e deso-
((
»«
que a pessoas se sentem; e o espaço nervoso,
.•.
que nao se
pode usar sem ser observado, por causa da vigilância ativa
42
rientadora desse cenário acabarão, provavelmente, por favorecer as tendências segregacionistas.
43
18. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
para essas tendências
- e entre as diferenças, "No processo de formação de uma
pode (temporária, mas repetidamente) dar alívio às cres-
imagem coerente de comunidade está incluído o desejo de
centes tensões. Há uma esperança: talvez seja impossível
evitar qualquer participação real. Mesmo quando podem
fazer algo para modificar as diferenças desconcertantes e
sentir os vínculos que as unem aos outros, as pessoas não
embaraçosas. Mas talvez se possa tornar a situação menos
querem vivê-los porque têm medo de participar, têm medo
nociva atribuindo a cada forma de vida particular um espa-
dos perigos e dos desafios que a participação implica, e têm
ço físico separado, inclusivo e exclusivo ao mesmo tempo,
medo de sofrer."
Encontrar
um desaguadouro
bem delimitado e defendido. À parte essa solução radical,
O impulso para uma "comunidade de semelhantes" é
talvez pudéssemos ao menos assegurar para nós mesmos,
um sinal de retirada, não somente da alteridade que existe
nossos amigos; parentes e outros "como nós", um territó-
lá fora, mas também do empenho na interação interna,
rio isento da mistura e da desordem que atormentam
que é viva, embora turbulenta,
ir-
fortalecedora, embora in-
remediavelmente as outras áreas urbanas. A mixofobia se
cômoda. A atração que uma "comunidade de iguais" exer-
manifesta como impulso em direção a ilhas de identidade
ce é semelhante à de uma apólice de seguro contra riscos
e de semelhança espalhadas no grande mar da variedade e
que caracterizam a vida cotidiana em um mundo "rnulti-
da diferença.
vocal". Não é capaz de diminuir os riscos e menos ainda
As origens da mixofobia são banais e não muito difí-
evitá-los. Como qualquer paliativo, nada promete além de
ceis de identificar. São facilmente entendidas, embora não
uma proteção contra alguns de seus efeitos mais imediatos
se possa dizer que sejam fáceis de justificar. Como sugere
e temidos.
Richard Sennert," "a sensação de 'nós', que expressaria um
Escolher a fuga, aceitando as sugestões da mixofobia,
desejo de semelhança, não é mais que um modo de fugir da
tem uma conseqüência insidiosa e deletéria: quanto mais
necessidade de olhar profundamente
um dentro do outro".
ineficaz é a estratégia, mais ela se reforça e perdura. Sen-
Poderíamos dizer que tudo isso promete algum conforto
nett explica por que as coisas são e, na verdade, devem ser
espiritual: existe a perspectiva de tornar a solidariedade
assim: "O modo como as cidades norte-americanas
mais tolerável, renunciando
a essa tentativa de entender,
senvolveram nos últimos anos tornou relativamente homo-
tratar e pacruar exigida pela convivência com as diferenças
gêneas as diversas áreas étnicas; e não por acaso o medo do
44
45
se de-
19. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
estrangeiro aumentou a ponto de excluir tais comunidades
torna-se mais complexa porque são exatamente os mesmos
étnicas."22Quanto mais tempo se permanece num ambien-
aspectos da vida na cidade que atraem e, ao mesmo tempo
te uniforme - em companhia de outros "como nós", com
ou alternadamente, repelem. A desorientadora variedade
os quaís é possível "se socializar" superficialmente, sem
do ambiente urbano é fonte de medo, em especial entre
correr o risco de mal-entendidos e sem precisar enfrentar
aqueles de nós que perderam seus modos de vida habitu-
a amolação de ter de traduzir um mundo de significados
ais e foram jogados num estado de grave incerteza pelos
em outro -, mais é provável que se "desaprenda" a arte de
processos desestabilizadores
negociar significados e um modus conuiuendi.
mesmo brilho caleidoscópico da cena urbana, nunca des-
Como as pessoas esqueceram ou negligenciaram o
aprendizado
das capacidades necessárias para conviver
da globalização. Mas esse
provido de novidades e surpresas, torna difícil resistir a
seu poder de sedução.
com a diferença, não é surpreendente que elas experimen-
Ter de enfrentar o interminável e sempre ofuscante
tem uma crescente sensação de horror diante da idéia de se
espetáculo da cidade não é, portanto, percebido somen-
encontrar frente a frente com estrangeiros. Estes tendem a
te como maldição e infelicidade. Nem se proteger é visto
parecer cada vez mais assustadores, porque cada vez mais
sempre como pura e simples bênção. A cidade induz si-
alheios, estranhos e incompreensíveis. E também há uma
multaneamente à mixofilia e à mixofobia. A vida urbana
tendência para que desapareçam - se é que já existiram - o
é intrínseca e irremediavelmente
diálogo e a interaçâo que poderiam assimilar a alteridade
maior e mais heterogênea for uma cidade, maiores serão
deles em nossa vida. É possível que o impulso para um am-
os atrativos que pode oferecer. Uma grande concentração
biente homogêneo, territorialmente isolado, tenha origem
de estrangeiros funciona como um repelente e ao mesmo
na mixofohia: no entanto, colocar em prática a separação
tempo como um potentíssimo ímã, atraindo para a grande
territorial só fará alimentar e proteger a rnixofobia (embora
cidade homens e mulheres cansados da vida no campo e
seja importante dizer que ela não é o único elemento em
nas pequenas cidades, fartos da rotina e desesperados com
jogo no campo de batalha urbano).
a falta de perspectivas. A variedade promete oportunidade:
Todos sabem que viver numa cidade é uma experiência
muitas e diversas oportunidades,
ambivalente.
Quanto
adequadas a cada gosto
arnbivalente. Ela atrai e afasta; mas a situação do citadino
e a cada competência. Por isso, quanto maior a cidade,
46
47
20. Confiança e medo na cidade
Confiança e medo na cidade
maior é a probabilidade de que atraia um número crescen-
Mas talvez seja possível fazer alguma coisa para influir
te de pessoas que recusam - ou a quem é recusada - a pos-
nas proporções em que ela e a mixofilia se combinam, de
sibilidade de viver e encontrar moradia em lugares meno-
forma a reduzir o desorientador, ansioso e torturante im-
res, menos tolerantes e com oportunidades mais escassas.
pacto da mixofobia. Na verdade, parece que os arquitetos
Podemos dizer que a mixofilia, assim como a mixofobia, é
e planejadores urbanos podem fazer muito para favorecer
uma tendência com propulsão autônoma, que se propaga
o crescimento da mixofilia e reduzir as ocasiões de reação
e se reforça sozinha. Provavelmente nenhuma das duas vai
mixofóbica diante dos desafios da vida urbana. Mas, ao
se exaurir ou perder o vigor no curso da renovação das
que tudo indica, também podem fazer muito - e na verda-
cidades e de seu espaço.
de estão fazendo - para favorecer o efeito oposto.
Mixofobia e mixofilia coexistem não apenas em cada
Como já vimos, o isolam~nto das áreas residenciais e
cidade, mas também em cada cidadão. Trata-se claramen-
dos espaços freqüentados pelo público - comercialmen-
te de uma coexistência incômoda, cheia de som e fúria,
te atraente para os construtores e para seus clientes, que
mas, mesmo assim, muito significativa para as pessoas que
entrevêem uma solução rápida para as ansiedades geradas
sofrem a ambivalência da modernidade líquida.
pela mixofobia - é, de fato, "acausa primeira da mixofobia.
" Como os estrangeiros são obrigados a levar a própria
As soluções disponíveis criam (por assim dizer) o problema
vida em covizinhança, seja qual for o rumo que a história
que pretendem resolver: os construtores de gated communi-
urbana tomar, a arte de viver pacífica e alegremente com
ties, ou de condomínios estritamente vigiados, e os arquite-
as diferenças e de extrair benefícios dessa variedade de es-
tos dos espaços vedados criam, reproduzem e intensificam
tímulos e oportunidades
a necessidade, e portanto a demanda,
está se transformando
na mais
importante das aptidões que um citadino precisa aprender
e exercitar.
que, ao contrário,
afirmam satisfazer.
A paranóia mixofóbica nutre a si mesma e age como
É improvável (pela mobilidade humana cada vez maior
uma profecia que não tem necessidade de confirmação. Se
na era da modernidade líquida, e pela aceleração das mu-
a segregação é oferecida e entendida como um remédio
danças inrroduzidas no elenco, na trama e no set da cena
radical para o perigo representado pelos estrangeiros, a
urbana) que se possa erradicar totalmente a mixofobia.
coabitação com os estrangeiros irá se tornar cada dia mais
48
49
21. Confiança e medo na cidade
difícil. Tornar os bairros residenciais uniformes para depois reduzir ao mínimo as atividades comerciais e as co-
I
I
,i
Confiança e medo na cidade
A fusão que uma compreensão recíproca exige só poderá
resultar de uma experiência compartilhada,
e certamente
municações entre um bairro e outro é uma receita infalível
não se pode pensar em compartilhar uma experiência sem
para manter e tornar mais forte a tendência a excluir, a
partilhar um espaço.
segregar. Tais procedimentos
podem atenuar o padeci-
mento de quem sofre de mixofobia, mas o remédio é por si
mesmo patogênico e torna mais profundo o tormento, de
modo que - para rnantê-lo sob controle - é preciso aumentar continuamente as doses. A uniformidade do espaço social, sublinhada e acentuada pelo isolamento espacial dos
moradores, diminui a tolerância à diferença; e multiplica,
assim, as ocasióes de reação mixofóbica, fazendo a vida na
cidade parecer mais "propensa ao perigo" e, portanto, mais
angustiante, em vez de mostrá-Ia mais segura e, portanto,
mais fácil e divertida.
Seria mais favorável à proteção e ao cultivo de sentimentos rnixófilos - no planejamento arquitetônico e urbano - a estratégia oposta: difusão de espaços públicos abertos, convidativos, acolhedores, que todo tipo de cidadão
teria vontade de freqüentar assiduamente e compartilhar
voluntariamente e de bom grado.
Como disse muito bem Hans Gadamer - em Verdade
e método -, a compreensão recíproca é obtida com uma
"fusão de horizontes"; horizontes cognitivos que são traçados e ampliados acumulando-se
50
experiências de vida.
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