1) O documento apresenta uma entrevista com o escritor e quadrinhista brasileiro Lourenço Mutarelli, onde ele fala sobre sua carreira e vida pessoal.
2) Mutarelli volta a produzir quadrinhos após um longo período afastado, experimentando a técnica da tinta acrílica em seu novo álbum.
3) Na entrevista, Mutarelli discute seu processo criativo, família e como sua esposa Lucimar o apoiou ao longo de sua carreira.
2. Redescobrindo
M U TA R E L L I
Após o lançamento de seu último romance em 2010, e de um longo
período afastado do nanquim, o escritor e quadrinhista volta à ativa
e experimenta a tinta acrílica, apresentando aos fãs um novo álbum.
A Brasileiros aproveitou a finalização dessa obra para conhecer um
pouco mais do artista, que agora faz seus trabalhos à base de muita
criatividade e nenhum remédio
texto e fotos CAMILA OLIVEIRA
uem conhece Lourenço Mutarelli apenas por suas obras não faz Lourenço é do tipo que não se sente
Q ideia de quem ele é como pessoa. Ao abrir a porta de seu aparta-
mento na tranquila Vila Mariana, São Paulo, o Mutarelli que me
recebe é um senhor com aparência pacata e até um pouco tími-
do, deslocado, nada parecido com a imagem que temos ao ler
suas primeiras obras, cheias de voracidade e peso. Apesar disso, mostra-se
bem executando a mesma fórmula
que garante sucesso, apenas por saber
que já deu certo uma vez e dará no-
vamente, ao contrário; prefere se ar-
riscar que cair no tédio, obrigando,
alguém atencioso, pacato e educado, muito agradável. Em meio a quadros, de certa forma, que seus fãs o redes-
miniaturas de personagens e outros detalhes que tornam o espaço muito pes- cubram e voltem a se apaixonar por
soal e íntimo, nos sentamos e começamos a entrevista, que mais parece uma ele a cada trabalho lançado.
conversa. Lourenço acende um cigarro e começa a falar sobre sua história. O Assim, apresenta seu mais novo
hábito de fumar teve início por volta dos 16 anos e, desde então, nunca mais álbum, que será lançado em breve,
parou e nem pensa nessa possibilidade, pois, apesar de saber que faz mal, não com selo da Companhia das Letras.
consegue ficar sem, “Isso me mantém vivo, me tira da cama. Por mais que Em Quando meu Pai se Encontrou
faça mal, também me faz bem, é uma coisa importante pra mim”, confessa. com o ET, Fazia um Dia Quente, quis
Essa é apenas uma das peculiaridades que Lourenço carrega. ter mais um desafio: decidiu testar uma
Ávido pela sensação de experimentar o novo, quando algo começa a lhe técnica nunca usada antes, a tinta
parecer fácil demais ou para de satisfazê-lo, logo ele deixa de lado; foi assim acrílica, apenas para ter o gosto de
com os quadrinhos e com a atuação. Só não sentiu isso ainda pela literatura. fazer algo diferente.
Brasileiros 47
3. capa especial quadrinhos
ROTEIRO
UM POUCO DE Ouvir Lourenço falando sobre suas
HISTÓRIA experiências de vida é algo fascinante.
1. Lourenço em seu
O artista nascido em 18 de abril de
apartamento.
2. Com alguns meses 1964 era filho de policial, e teve o
de vida (1964). primeiro contato com o mundo dos
3. Lucimar, Lourenço e quadrinhos lendo os clássicos que seu
Francisco.
4. Em Belo Horizonte
pai tinha em casa, principalmente
com Lucimar, Douglas álbuns do detetive TinTin, personagem
Quintas Reis e a querido pelo escritor que decora, até
esposa Silvana hoje, o local de trabalho e outros
(2006).
pequenos espaços de seu apartamento.
Durante a infância, já demonstrava
gosto por aquilo que viria a ser sua
profissão, aproveitando as tintas para
tecido que a mãe usava no trabalho e
mesclando cola com remédios de
cores fortes para criar suas
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primeiras ilustrações. Desde essa
época, já demonstrava dificuldades
para se relacionar com as pessoas,
não tinha muitos amigos. Só
1
começou a fazer parte de um
grupo na pré-adolescência, com
meninos que estudavam no mesmo
colégio e moravam perto dele. No
2
1° Colegial, uma garota foi
responsável pelo sucesso de
Mutarelli na sala de aula e contribuiu
para que ele fizesse amizade com
todos: o então menino tinha mania
de ficar desenhando em caixinhas de
goma de mascar desmontadas, até
que, um dia, ela viu uma dessas obras
e mostrou para todos da sala, que
adoraram.
Do mesmo jeito que os desenhos
3 fizeram com que ele conquistasse
amigos na adolescência, causaram
AR Q UI VO
certa rejeição na fase adulta, quando
grandes artistas, como Laerte e
PE SS O AL
Angeli, faziam sucesso com outro tipo
de quadrinhos, enquanto os seus eram
considerados estranhos demais para
serem publicados. Essa indiferença só
4
foi mudar quando entrou no universo
da literatura, onde todos o aceitaram
muito melhor.
48 Brasileiros
4. Homem de família
o primeiro contato com a esposa, Lucimar, veio em uma palestra
na gibiteca Henfil, em maio de 1991, onde estariam nomes
como Angeli, Glauco Mattoso e Francisco Marcatti. Lucimar,
que começou a lecionar Educação Artística naquele ano, frequentava a
gibiteca por causa de uma amiga, e gostava muito da linguagem dos
quadrinhos. Foi até a palestra e acabou se surpreendendo com
Lourenço, que substituía Angeli. “A partir do momento que ele começou
a falar, me interessou muito, porque sua fala era muito diferente da fala
do Glauco e do Marcatti”, relembra. Não hesitou em pedir seus contatos:
anotou nome, endereço, telefone, RG e, claro, estado civil, pois ali
também surgia um interesse pessoal. Dias depois, recebeu um pacote de
Mutarelli com seus primeiros trabalhos, entre eles, Transubstanciação –
que primeiro leu o texto para, depois, reler, prestando atenção nos
desenhos. O álbum a encantou tanto a ponto de escrever uma carta para
Lourenço, mas não obteve resposta.
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1 2 3
LEMBRANÇAS
Três meses depois, ao procurar na agenda o telefone de alguém para 1. Em casa, com Lucimar e
conversar, lembrou-se de Mutarelli e decidiu ligar. Do outro lado, ele Francisco (2001). 2. Avô de
revelou que também estava à procura de alguém para falar, e, no Lourenço, Francisco Mutarelli.
3. Com o filho no escritório
momento em que atendeu ao telefone, já se lembrou da menina que (2001).
conhecera na gibiteca. A empatia entre os dois foi muito grande durante
a conversa, tanto que marcaram um encontro para o sábado seguinte, e
logo começaram a namorar. “Depois desse dia, desse encontro em
agosto, a gente começou a namorar e são 20 anos sem separações”,
conta. Três anos após conhecer a futura esposa, Lourenço lançou Eu te
Amo Lucimar, considerado uma declaração de amor pública. O álbum,
que conta a história dos gêmeos Cosme e Damião, traz referências claras
a ela: o signo de Lucimar é gêmeos; os irmãos tem 11 anos cada,
porque quando Mutarelli a conheceu ela tinha 22 anos; e há uma
professora de Educação Artística no enredo. A homenageada conta “Eu
impliquei no começo com o título, porque achava meio brega, mas
depois lendo a história, o texto me comoveu muito.”. Atualmente, a
história ainda agrada seu autor, mas Lourenço diz que não gosta dos
desenhos; é assim também com a maioria de seus trabalhos antigos.
Brasileiros 49
5. capa especial quadrinhos
Do casamento, nasceu Francisco, nome que faz referência ao opinião sobre os trabalhos de
avô de Lourenço. Hoje, com 15 anos, o garoto tem todas as Lourenço. A primeira leitura é sempre
características de um adolescente comum de sua idade, preferindo feita por ela: “Eu tenho um defeito de
passar o tempo livre em redes sociais no computador, bem ser muito crítica e não pensar muito
diferente do pai que, com a mesma idade, já se dedicava ao pra falar, então eu acabava de ler e já
desenho e aos livros. Dos trabalhos de Lourenço, os maiores tecia os primeiros comentários”, diz. Já
contatos foram com as adaptações para o teatro e cinema, mídias Lourenço acha essencial saber o que a
que atingem mais facilmente essa faixa etária. Tímido, não gosta esposa pensa, mas confessa que nem
muito de falar, e só saiu de seu quarto para posar em uma foto sempre acata as sugestões. No caso do
com os pais depois que Lucimar pediu com jeito. A família, muito próximo álbum, o palpite foi aceito:
unida, possui registros fotográficos de viagens e vários momentos “Ela deu uma opinião na edição. Na
juntos, organizados pela própria Lucimar em inúmeros álbuns hora eu achei bobagem, mas quando
com legendas, datas e anotações. Ela conta que tem fotos de eu estava montando lembrei o que ela
Francisco desde que ele nasceu até agora. falou e coloquei daquele jeito. Ficou
Nos primeiros anos em que se dedicava exclusivamente aos muito melhor.”. No período em que o
quadrinhos, Lourenço pode contar com a ajuda da esposa para as autor preferia ficar enclausurado em
despesas maiores da casa, já que tinha pouco retorno financeiro. casa e dependia de remédios, a esposa
também permaneceu do seu lado.
Questionado sobre o relacionamento
com a família, Lourenço demonstra
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certo incômodo por já ter feito algumas
declarações no passado, dizendo que
hoje elas não fazem mais sentido: “Eu
acho que tem muita ficção na nossa
lembrança, é difícil ler ou ver as
entrevistas que eu já dei no passado,
porque eu mudei muito nos últimos
tempos, e essas coisas pra mim já não
tem mais muita relevância”, e se
esquiva da pergunta. Sucinto, diz
1 2 apenas que: “Pra mim, eles são muito
importantes, a gente é uma equipe”,
AMOR EM DOBRO
1. Com a esposa, em falando sobre Lucimar e Francisco. Na
Belo Horizonte (2007). verdade, nem é preciso palavras para
2. Com o filho recém- constatar que o trio tem um laço forte
nascido (1995).
de amor e amizade, pois as fotos e
desenhos emoldurados nas paredes e
Lucimar trabalhava em duas escolas, e outros detalhes revelam um Lourenço
segurava as contas com a ajuda do salário do companheiro para os dois, orgulhoso
marido, “Eu fazia isso com prazer porque era pela família que tem. “Acho que a
muito apaixonante ver a dedicação que ele tinha, família é muito importante para o
saber as histórias que ele queria contar, então ele Lourenço, essa base, de ter a casa
ia produzindo e eu não me importava, até hoje se para voltar, a esposa que sempre
precisasse eu faria com muito bom gosto”. Isso apoia, o filho. Ele é muito
mudou quando Mutarelli passou a ter contratos companheiro, agradável, é uma pessoa
no cinema e a receber melhor, passando a ser o incrível de conviver, porque não tem
mantenedor. Mas, até hoje, os contatos via e-mail nada que você não possa conversar. Eu
são administrados por ela, pois o marido tem acho que, nesses 20 anos, nunca
certa aversão ao computador. Além do apoio precisei de terapia porque ele é um
financeiro, Lucimar também participa dando ótimo ouvinte”, comprova Lucimar.
50 Brasileiros
6. Claudio, atualmente, é fotógrafo, mas entrou no curso com o mesmo
interesse de Lourenço pelas artes, em especial, a pintura. Bem humorado, dá
para sentir no tom da fala a falta que faz o período em que estudavam juntos,
relembrando os bons momentos “Nós tínhamos que entregar uma avaliação e
ele começou a desenhar eu e um amigo nosso, e eu falei vamos fazer isso. Nós
pegamos a casa da avó dele e ficamos a madrugada toda, no final, com todo
mundo cansado, ele fez um desenho de cada um já caído, e foi a conclusão do
nosso trabalho”. Ele faz parte das três pessoas que Lourenço fazia questão de
serem os primeiros a ler seus trabalhos antes de qualquer um. O time também
contava com sua esposa e seu pai, que faleceu por conta de um câncer na
próstata em 2001.
No tempo em que estudava, Mutarelli fazia dos desenhos apenas um hobbie,
e Cammarota o incentivou por considerar o trabalho dele de ótima qualidade,
algo que não existia ainda naquele momento “Eu achei o desenho muito bem
feito e elaborado e, ao mesmo tempo, tem um pouco de história, tem uma
coisa de alma, é um trabalho autoral”, diz o fotógrafo sobre o que pensou
quando viu as primeiras ilustrações do amigo. Atualmente, é bem mais fácil
encontrar desenhistas que fazem o estilo de Lourenço, contando histórias um
tanto quanto autorais e, até certo ponto, autobiográficas, dando a ele o
título de pioneiro do gênero no Brasil, já que em sua época não era algo
tão comum, como confirma Lucimar: “Depois que ele apareceu é que
A FACULDADE FOI
“ UM SONHO.
Foi a primeira vez que
começaram a surgir outros quadrinhistas mais autorais, mais calcados
nos quadrinhos europeus, argentinos, não consigo entender porque
demorou tanto.”. Claudio sempre foi companheiro, estando ao lado de
Lourenço nos momentos críticos em que sofria suas crises, e o apoiando
todas as matérias me no trabalho. Até hoje, apesar de não poderem se ver tanto por conta da
correria do cotidiano, ainda mantém a amizade da época da faculdade.
interessavam, eram Mas o companheiro de estudo de Lourenço não é seu único amigo de
fascinantes.
” longa data. Uma das características de sua personalidade é não conseguir
separar o profissional do pessoal, criando, assim, laços com seus editores
e parceiros. Seu atual editor, Thyago Nogueira, da Companhia das
Letras, define bem essa característica “Não tem Lourenço profissional e
Criança solitária no primário e Lourenço pessoa, a relação profissional passa por um campo pessoal, a coisa está
adolescente cheio de amigos no muito entranhada pra ele”. Além dele, os sócios de sua antiga editora Devir, Douglas
colégio, Lourenço lembra com mais Quintas Reis e Mauro dos Prazeres também eram muito próximos a ele, só se
saudade do curso superior “A distanciando depois que Lourenço decidiu sair de lá. Quando trabalhava com
faculdade foi um sonho. Foi a primeira Douglas, que já o conhece há cerca de 25 anos, era comum que, para resolver
vez que todas as matérias me questões profissionais, fossem tomar um café ou, até mesmo, dar uma volta no
interessavam, eram fascinantes”. parque. Não é difícil entender por que isso acontece, já que passando pouco tempo
Começou a estudar Licenciatura em com ele, conversando sobre os mais diversos assuntos, percebemos que Mutarelli é
Educação Artística na Faculdade Belas alguém muito agradável de conviver. Apesar de artista, se mostra muito próximo
Artes, em 1983, curso com duração da realidade da maioria de seus admiradores.
de dois anos. Apesar de o talento existir ESBOÇO
desde a infância, ter passado por essa Assim como é difícil separar o profissional do pessoal, Lourenço praticamente
experiência foi importante para o funde a realidade com a ficção que surge em sua na mente, em suas criações. Todo
crescimento de Lourenço. Foi lá que o universo dele pode ser observado em suas obras, pois elementos de seu dia a dia
conheceu Claudio Cammarota, que, e da sua vida são utilizados como inspiração. Seus amigos, parentes e, até mesmo,
até hoje, é seu grande amigo, seus gatos, que habitam em seu apartamento, já serviram de referência, seja
acompanhando Mutarelli em todas as explicitamente, colocando os traços e nomes iguais aos homenageados, ou apenas
fases desde o começo de sua carreira. trazendo algumas características sutis.
Brasileiros 51
7. capa especial quadrinhos
Thyago Nogueira, editor da
Companhia das Letras, considera essa
característica uma das qualidades de
Lourenço, como uma facilidade de
incorporar e misturar discursos,
mesclando referências literárias com
acontecimentos do cotidiano “Isso me
impressiona muito, a capacidade de
ser conciso e de construir cenas
complexas e profundas, delinear
personagens com uma coisa muito
sintética. (...) Tem um português
completamente coloquial misturado
com uma alta literatura sofisticada”.
A vontade de viver dos quadrinhos
apareceu enquanto ele estudava na
Faculdade Belas Artes, quando
1 Claudio Cammarota foi ver um
emprego nos estúdios Maurício de
Sousa e ele resolveu ir junto. Ficou lá
por volta de dois anos e meio, e teve
acesso a um acervo repleto de
exemplares mais contemporâneos de
histórias em quadrinhos, que iam
muito além do gênero infantil que o
estúdio produzia. Quando a revista
Circo começou a ser publicada, não
teve dúvidas: queria fazer do hobbie
um trabalho.
Suas primeiras obras, os fanzines
2 Over-12 e Solúvel, publicados em
1988 e 1989, respectivamente, pela
PE SS O AL
extinta editora Pro-C, de Francisco
AR Q UI VO
Marcatti, já traziam um pouco da
característica soturna de Lourenço,
revelando muito de sua personalidade.
Nos álbuns Transubstanciação, de
1991, e Desgraçados, de 1993, o
MOMENTOS mundo sombrio e melancólico ainda
TRANQUILOS apareciam, tendo alguma mudança
1. Com Lucimar,
em seu apartamen- apenas em Eu te Amo Lucimar, de
to. 2. Bebendo 1994, que, apesar de ainda ter uma
uísque durante a história pesada, é em homenagem a
entrevista. 3. Em
sua esposa. Em A Confluência da
um evento de
quadrinhos. Forquilha, de 1997, o foco abordado
(1996) muda para uma crítica ao momento
político vivido naquela época,
enquanto Sequelas, de 1998, traz um
apanhado das primeiras histórias do
3 começo da carreira.
52 Brasileiros
8. Sobrenome: comprometimento
D isciplina sempre foi um ponto forte na área profissional de
Lourenço. O hábito de desenhar o acompanha desde a infância,
mas foi na adolescência que começou a se dedicar realmente.
Na época, um amigo músico tinha o costume de estudar piano, pelo
menos, quatro horas por dia, o que motivou Mutarelli a aproveitar o
tempo que ficava sozinho para praticar. Sempre que está envolvido em
algum projeto, como em seus álbuns de quadrinhos, livros de romances
ou qualquer outro trabalho, a rotina é muito regrada: acorda cedo e,
depois dos principais afazeres, já começa a se dedicar, seguindo até a
noite. Atualmente, mesmo com sua última obra já finalizada, o dia a dia
não está menos corrido, pois ele está envolvido em oficinas, palestras, dá
aula para amigos e ainda tem muitas ideias para livros e peças de teatro; HOMEM TRABALHO
1. Com os sócios da Devir,
o que falta é tempo para colocá-las em prática. Para um homem cuja Mauro dos Prazeres e Douglas
mente está em constante produção, o dia, com certeza, deveria ter Quintas Reis, em Portugal
(2001). 2. Em sua mesa de
muitas horas a mais.
trabalho, por Claudio Camma-
rota (1994). 3. Oficina no
Centro Cultural São Paulo.
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CLAUDIO CAMMAROTA
1 2 3
A Brasileiros foi a uma de suas oficinas, com duração de dois dias, no Trabalhando em casa, o
Centro Cultural São Paulo, e pudemos ver o comprometimento de autor não abre mão de certos
Lourenço com seu trabalho. Sempre simpático, chegou antes do horário rituais, como ouvir música
e conversou com todos que foram até ele. Com nossa equipe, estava instrumental, tão pesada quanto
sempre disponível para ajudar no que fosse preciso, nos deixando muito seus primeiros trabalhos, quando
à vontade. Quando a aula começou, fez questão de conhecer um por um está se dedicando aos
dos inscritos, com direito a perguntar nome, profissão e ligação com o quadrinhos. O aparelho de som
desenho. Aliás, a oficina ajudou a desenvolver não só o traço dos que ele utiliza foi um presente de
participantes, mas também a escrita. Em seguida, fez algumas Lucimar. Já para o texto, o
atividades, pedindo para que duplas desenhassem (ou descrevessem) os escritor prefere o silêncio. Em
companheiros exatamente como os viam, sem se preocupar com a seu escritório, um acúmulo de
perfeição; depois, pediu para fazerem o mesmo, mas com a mão oposta material de trabalho, recados e
– os que trabalharam texto poderiam tentar a técnica dadaísta de fotos no mural, referências e
recortar as palavras e reconstruí-lo. Após os exercícios, Mutarelli revelou distrações, como seus CDs e
mais um pouco de seu cuidado, mostrando slides detalhados que ele miniaturas de personagens
mesmo preparou para contar o processo de como fazer quadrinhos, (inclusive uma do seu Cãozinho
entre outros assuntos. Para deixar o clima ainda mais descontraído, abriu sem Pernas). Para um artista tão
espaço para as dúvidas dos alunos, e não hesitou em dar uma pausa para peculiar, não poderia ser
autografar suas obras ou analisar o trabalho alheio. diferente.
Brasileiros 53
9. capa especial quadrinhos
É interessante ver como a personalidade tranquila de Lourenço conflita hábito”, revela. Com a quantidade de
com o que era retratado nos quadrinhos. Enquanto muita gente achava que projetos e afazeres, não tem tido muito
todas as obras eram completamente biográficas, sem se dar conta que algumas tempo nem mesmo para a leitura:
histórias eram absurdas demais para ser verdade, pessoas que conviviam com “Estou envolvido com muitas coisas,
ele, como Cammarota, só puderam conhecer essa outra face mais obscura do e aí o tempo que eu leria eu acabo
escritor por meio de seu trabalho, tamanha a diferença entre o real e o vendo televisão e jogando paciência,
retratado. Douglas Quintas Reis, da editora Devir, de certa forma, explica me esvaziando.”. Apesar disso, as
essa característica “Eu acho que o Lourenço é um cara tranquilo ou educado, antigas influências literárias ainda
porque ele sublima tudo no quadrinho. Ele põe tudo pra fora nas histórias que parecem estar presentes.
ele escreve, independente de ser uma coisa encomendada ou não.”. Foi dependente de remédios
A coisa só começou a mudar quando Douglas sugeriu a Lourenço que quando sofria de síndrome do Pânico,
criasse um personagem, dando a vida então a Diomedes, protagonista da entre eles, o já famoso Lorax, que
trilogia O Dobro de Cinco, O Rei do Ponto e A Soma de Tudo I e II. Na história, acabou se tornando símbolo do
o detetive é a própria personificação do pai de Lourenço, e traz também como escritor entre seus fãs mais
personagens seus antigos chefes, Douglas e Mauro dos Prazeres. Além deles, o apaixonados. Hoje, livre da
amigo e também desenhista-escritor Glauco Mattoso aparece na trama, fazendo dependência, pode voltar a beber e
o papel dele mesmo, enquanto o amigo Claudio Cammarota surge em forma consegue conviver melhor socialmente,
de vilão, como o violento Gambero. Claudio também apareceu como ele mesmo tirando o estereótipo de artista
em A Caixa de Areia ou Eu era Dois em Meu Quintal, que retrata com um antissocial, contando com uma vasta
pouco de ficção e realidade a vida de Lourenço, enquanto Douglas Quintas quantidade de amigos e boa recepção
Reis ganhou uma versão em desenho de um pesadelo que sempre tinha quando entre companheiros de trabalho.
criança, na coletânea Mundo Pet, único álbum de Lourenço completamente Algo que todos os entrevistados
em cores – já que o autor é amante declarado do nanquim em preto e branco. concordaram, dito pelo antigo amigo
Todos que participaram de alguma forma se sentem lisonjeados com a e parceiro de trabalho Rogério de
homenagem, sentem-se felizes com isso. Campos, é que L ourenço, sem
A trajetória de Lourenço pelo mundo da literatura começou por acaso, dúvida, influenciou não só a geração
quando percebeu que a ideia que teve para O Cheiro do Ralo não se adaptaria de desenhistas, mas todos de uma
muito bem como quadrinho. Após o lançamento do livro, muitas portas foram forma em geral, por insistir em fazer
abertas, tanto para a vida social quanto profissional, já que ele foi muito bem o que gosta, independente do que os
recebido no meio literário, diferente do que aconteceu nos anos 1980 com o outros acham “Ele tem uma coisa que
pessoal dos quadrinhos, principalmente depois que a obra foi levada aos cinemas, é profundamente libertadora, que é
com o diretor Heitor Dhalia e Selton Mello como protagonista. Fez muitos assim: ‘danem-se’ editores, ‘dane-se’
amigos, inclusive na área cinematográfica e no teatro, depois que outras obras todo mundo, vou fazer o que eu
ganharam adaptações. Acabou virando desenhista, escritor, ator e até diretor. quero. E ele consegue fazer, essa é a
Além da novidade de usar a técnica com tinta acrílica, outro item inédito no coisa mais bacana.(...) É na base do
novo álbum Quando meu Pai se Encontrou com o ET, Fazia um Dia Quente, ‘se ele pode eu também posso’, essa
com lançamento programado ainda para esse ano, é o fato de cada ilustração é a mensagem que o Mutarelli colocou
estar em uma página, na horizontal, contando a história de um homem que, para várias pessoas”, diz o amigo.
após perder a mulher, decide morar num barco e parte em uma viagem. Mais do que isso, Lourenço acaba
ARTE FINAL sendo um exemplo de superação.
Atualmente, com 46 anos, Lourenço parece cada vez mais maduro e Superou-se quando provou que
tranquilo. Sentado em seu sofá, acariciando a gata Mentira – que tem a poderia viver do que gostava de fazer;
companhia de outros três, Doutor, Doutora e Gepreta – e tomando um copo quando mostrou que poderia se
de uísque, revela um momento, até então, não vivido e talvez nem imaginado. libertar dos remédios e ter uma vida
Em sua época mais retraída, houve períodos em que gostava de ficar dias em tranquila; quando não quis ficar no
casa, sem sair para nada, nem ao menos para ir ao mercado. Hoje, confessa que era fácil e experimentar sempre,
que não gosta muito de sair pelas dificuldades encontradas na cidade – como aumentando cada vez mais sua
trânsito, lei antifumo, e outros – mas que gosta muito de receber os amigos. capacidade humana e artística. Seria
Além disso, dá voltas no bairro e até aprendeu a se distrair assistindo TV “De maravilhoso se tivéssemos mais
uns tempos pra cá eu comecei a assistir televisão, é uma coisa que não tinha o pessoas como Mutarelli por aí.
54 Brasileiros
10. 1
DETALHES
1. Espaço na estante da sala
de estar do apartamento.
2. Cadernos utilizados por
Lourenço para desenhar.
2
Trajetória de
SUCESSO
1988 /1989 1991 1993 1994 1997 1998
Over-12 e Solúvel Transubstanciação Desgraçados Eu Te Amo Lucimar A Confluência da Sequelas
Os dois títulos foram O protagonista passa Mutarelli continua Com arte mais limpa, o Forquilha A coletânea
fanzines com os por uma transfor- com os personagens livro conta a história de Com crise financeira traz um
primeiros trabalhos mação a partir de um sensíveis e atormentados Cosme, que assassina seu no Brasil, é uma apanhado
de Lourenço, que já momento de sua vida. vivem em um universo irmão gêmeo Damião e denúncia contra a dos primeiros
mostravam o seu es- Literalmente biográfi- de pessoas deformadas entra em depressão, só depreciação das desenhos dos
tilo. A distribuição era co, se tornou a porta de física e moralmente, com se libertando depois que histórias em quadrin- fanzines, tra-
feita pelo próprio au- entrada para o merca- traço sombrio e se apaixona pela sua hos, onde o protago- balhos inédi-
tor, com tiragem de do de quadrinhos do melancólico. professora de desenho nista trabalha apenas tos e outros.
500 exemplares. Brasil. geométrico. por dinheiro.
1999 2000 2001 2002 2004 2006
O Dobro de Cinco O Rei do Ponto A Soma de A Soma de Mundo Pet A Caixa de Areia
Apresenta Diomedes, o No segundo livro da Tudo 1 Tudo 2 Traz histórias produzi- ou Eu Era Dois
detetive incapaz de série, o detetive tenta Diomedes vira Encerra a das para o site Cy- em Meu Quintal
solucionar casos. Em solucionar mais um detetive inter- trilogia, des- bercomix. Fugindo do Auto-biográfico, traz
busca de Enigmo, enigma complexo, e continental, em vendando os preto e branco, uma história que
um antigo mágico por pouco não cai em Portugal, e ten- mistérios da Lourenço faz uso de mescla experiências
desaparecido, se uma armação. A ta solucionar trama e tam- muitas cores e recur- pessoais e ficção,
envolve mais do que história é cheia a in- um caso que vai bém o segre- sos como colagens e trazendo memórias e
devia em uma história trigas, aventura, além das aparências, do guardado pelos programas de com- devaneios da infância
cheia de mistérios. solidão e humor. confundindo sua ca- habitantes de Lisboa. putação. e dos dias atuais.
beça e dos leitores.
2002 2004 2004 2008 2009 2010
O Cheiro do Ralo O Natimorto Jesus Kid A Arte de Produzir Miguel e os Demônios Nada me Faltará
Primeiro romance Relação perturba- Um escritor estilo Efeito Sem Causa Conta a história do Apenas com diálogos,
de Lourenço, dora entre o Agente, western atravessa fase O protagonista sem policial Miguel, em conta a história de
conta a rotina que lê o destino em difícil porque seu perspectivas na vida uma trama que Paulo, que desaparece
do dono de uma maços de cigarro, e personagem não perde a tranquilidade envolve pedofilia, com esposa e filha res-
loja de anti- sua cantora recém- vende, e é contrata- quando começa a re- possessão, múmias surgindo um ano de-
guidades e sua descoberta. Com tex- do para escrever um ceber pacotes anôni- mexicanas, seitas pois, sozinho. Sem se
batalha contra to todo em diálogos, roteiro de filme. É mos com recortes an- estranhas e outros lembrar de nada,
o cheiro do ralo do se assemelha ao uma crítica ao mer- tigos, fazendo com fatos que o levam a acaba misturando
banheiro e suas ob- roteiro de uma HQ cado editorial e ao que entre no mundo um verdadeiro infer- ficção e realidade.
sessões. sem imagens. cinema. da insanidade. no.
Brasileiros 55