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(sobre)vivências
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Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
Mestre em Serviço Social (PUCRS);
Professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS);
Assistente Social da Superintendência dos Serviços Penitenciários.
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(sobre)vivências
de tratamento penal
CriminologiaS: Discursos para a Academia
Editora Lumen Juris
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2011
Copyright © 2011 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
Categoria: Criminologia
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Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.
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cesso, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A
violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e
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Todos os direitos desta edição reservados à
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Impresso no Brasil
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Aos meus avós Omar e Maria (in memorian).
Agradecimentos
Agradeço imensamente a presença de DEUS, me aco-
lhendo e me envolvendo em seu AMOR infinito.
À minha MÃE Ana Maria, agradeço pelo que sou hoje,
pela força e sensibilidade que me dedica a cada dia. À minha
irmã Maria Leonor por me trazer a alegria e a leveza da infân-
cia. Ao meu BOMdrasto Felipe, sou grata pela paciência e cari-
nho que me dispensa. Aos meus tios Antônio Braz, Ricardo,
Flor e Wilma.
Ao meu querido Luiz Antônio pelo AMOR comparti-
lhado, por nossa cumplicidade, pelo incentivo carinhoso e
nossas PAIXÕES ALEGRES!!!!
À Beatriz Aguinsky, não só pela competência profissio-
nal, mas principalmente pelo teu lado mais humano, dema-
siadamente humano. Posso dizer que tenho muito ORGU-
LHO de ter sido tua orientada. Contigo pude vislumbrar um
Serviço Social aberto às manifestações sensíveis da VIDA.
“Hermano dame tu mano vamos juntos a buscar una cosa pequeñita
que se llama libertad”. (Mercedes Sosa)
Aos meus amigos Raquel, Luciano, Anelise, Daniele,
Juliana, Thais, Mariana, Bebel, Eliana e Consuelo.
Aos queridos enigmáticos (Juli, Iuscia, Espiga, Raquel,
Alex, Marcelo e Luiz Antônio), pelos odores dos flatos, por
nossas heterotopais e percursos abolicionistas.
À Nelma e demais integrantes do instituto de Psicologia
Social Pichon Rivière, por fazerem parte do meu processo de
auto-ecoorganização.
Agradeço imensamente a CAPES (Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e ao PPGSS (Pro-
grama de Pós-Graduação em Serviço Social) pela oportunida-
de de ser bolsista e ter acessado à construção do conhecimento.
Aos professores Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e
Dra. Maria Isabel Barros Bellini, sou grata pelas contribuições
e questionamentos que possibilitaram ampliar minha proble-
matização acerca do objeto de estudo.
Aos funcionários do estabelecimento pesquisado, não
apenas pela autorização formal para a realização do estudo,
como também, pela disponibilidade com que me receberam.
Aos familiares que participaram deste estudo, sou MUI-
TO grata, pois sem vocês essa pesquisa não teria sentido. “Ma-
ria, Maria É o som, é a cor, é o suor é a dose mais forte e lenta
de uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas
aguenta... Mas é preciso ter força é preciso ter raça é preciso ter
gana sempre. Quem traz no corpo a marca Maria, Maria mis-
tura a dor e a alegria” (Milton Nascimento).
Uma história da prisão nos é contada numa escrita que
estabelece relações pessoais em histórias coletivas, pois
a experiência subjetiva não é absolutamente privada.
As palavras por mais desordenadas que se encontrem
colocadas, são mais importantes para quem somos do que
nossas personalidades vagamente policiadas. Enfrentar o
dia nosso de cada vida é ter a capacidade de permanecer
sujeito dotado de vontade. As experiências terríveis
deixam traços e essas histórias somam-se a outras
inúmeras histórias que fazem a nossa identidade.
Heleusa Câmara
Sumário
1. Introdução................................................................................. 1
2. As configurações prisionais no Brasil:
(des)proporcionalidades entre crimes, punições
e seletividades............................................................................. 11
2.1 A origem das Prisões no Brasil:
entre ímpetos civilizatórios e práticas de barbárie....... 12
2.2 As tendências de tratamento penal
na atualidade frente à complexidade penitenciária..... 25
3. Família e prisão: da sociedade disciplinar
ao sistema penitenciário............................................................ 39
3.1 Família: Rainha e Prisioneira do Social.................... 40
3.2 Inserções das Famílias nas dinâmicas prisionais.... 50
4. O percurso de pesquisa......................................................... 69
4.1 Construindo um caminho: a aproximação com o
Paradigma da Complexidade e as possibilidades
de uma visão Transdisciplinar......................................... 69
4.2 Tipo de Pesquisa.......................................................... 78
4.3 Etapas, técnicas e participantes da pesquisa........... 79
4.4 Análise e tratamento dos achados da pesquisa....... 87
4.5 Cuidados Éticos........................................................... 91
5. Sobre as vivências e sobrevivências: histórias contadas
a partir da auto-ecoorganização das famílias ....................... 93
5.1 Textos e contextos que tecem as histórias................ 94
5.1.1 O que se esconde atrás do que aparece, e o que
é revelado através do que não é permitido?.......... 95
5.1.2 Quem são as pessoas que contam as histórias?
O entre-lugares de reconhecimentos....................... 97
5.1.3 O Tratamento Penal Jurídico-Formal
e a recursividade das dinâmicas prisionais:
que relação é essa?................................................... 103
5.2 Entre as redes de apoio e o fundo da cadeia......... 110
5.3 Os dias de visitas: os ritos e seus significados....... 114
5.4 Relações familiares na prisão:
ressignificação de vínculos.............................................. 123
6. Considerações Finais........................................................... 127
7. Referências Bibliográficas .................................................. 133
1
1. Introdução
Uma viagem para além da especialização
de um saber. Viagem a um lugar (prisão) que abre
os seus mecanismos internos através de sucessivas
aproximações. Uma viagem que exige paixão
do pesquisador e uma linguagem motivada mais
do que uma linguagem que pretenda
apresentar uma nova verdade.
Miriam Guindani
Iniciar um processo de pesquisa não ocorre de modo
linear, vai acontecendo em múltiplas dimensões e despertando
diferentes sensações, que, por vezes, não são tranqüilas, reme-
tem também a tempestades. (MORAES, 2007) Tempestades de
escolhas e caminhos a serem trilhados, sobretudo, em uma área
do conhecimento com todas as implicações de uma escolha.
Os caminhos que levam até as prisões são vários, sobre-
tudo, até o que se produz e o que se reproduz acerca dessa
temática. De um lado, uma visibilidade perversa, dando ênfase
às situações limítrofes de um sistema em exaustão; de outro,
uma cientificidade conformada com a literatura que se produz,
repetindo dados de relatórios oficiais, na busca de demonstrar
que a pena de prisão nasceu falida, ou que não recupera infra-
tores e tão pouco inibe criminalidades. (GUINDANI, 2002)
Como aponta Foucault (2003, p. 160) “não teria sentido li-
mitar-se aos discursos pronunciados sobre a prisão. Há igual-
2
CriminologiaS: Discursos para a Academia
mente os que vêm da prisão”. Por esse enfoque, conhecer o
que vêm das prisões, ao invés de reproduzir o que se fala so-
bre elas, busquei através deste trabalho, conhecer as experi-
ências sociais dos familiares de apenados, os quais resistem
e sobrevivem cotidianamente a um tratamento que é penal.
A escolha por este objetivo remete à minha viagem/ cami-
nho/ percurso por entre a realidade prisional e suas dinâmicas.
E nesse sentido, não poderia refletir e problematizar o sistema
penitenciário sem vivenciar alguns aspectos cotidianos deste
processosocialemcurso.Poroutrolado,minhaconexãocomeste
contexto assume uma perspectiva relacional, em movimento.
Ao acessar este processo de pesquisa, tinha como refe-
rência a experiência do processo de formação profissional,
incluindo atividades de estágio curricular em Serviço Social,
realizado em um estabelecimento prisional, como também, ati-
vidades de iniciação científica, ambas relacionadas ao GITEP
(Grupo Interdisciplinar de Trabalhos e Estudos Criminais
penitenciários), na UCPEL (Universidade Católica de Pelotas).
Atividades pelas quais tive a oportunidade de compreender e
problematizar alguns aspectos relacionados ao sistema prisio-
nal, principalmente quanto à importância da manutenção de
vínculos socioafetivos durante o período de aprisionamento.
A partir da minha inserção no mestrado em Serviço
Social na PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul), pude problematizar outras dimensões da
execução penal as quais inserem as famílias, e por meio de
uma compreensão dialógica, pensar os antagonismos e com-
plementariedades destes mecanismos. Deste modo, ao iniciar
a pesquisa de campo e o contato com os familiares que parti-
ciparam deste estudo, pude me afectar (SPINOZA, 1983) com
o modo de inserção das famílias no tratamento penal.
Por traz de uma visão idílica, de que os familiares são
indispensáveis ao apoio de que o preso necessita, existe um
3
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
Introdução
recuo do estado em garantir as mínimas condições de cum-
primento da pena, deslocando gradativamente estas respon-
sabilidades aos familiares. Através da minha inserção no
GEPEDH (Grupo de Pesquisas e Estudos em Ética e Direi-
tos Humanos), vinculado à linha de pesquisa Serviço Social
e Políticas Sociais, pude compreender a importância do tema
sob a perspectiva do olhar para as famílias em termos da orga-
nização de políticas e programas de tratamento penal, princi-
palmente conhecendo a experiências sociais destas famílias.
Segundo Spinoza (1983) são as afecções pelo objeto que
tocam o pesquisador e o colocam em movimento, podendo
aumentar ou diminuir potências de agir. Nesse sentido, e rom-
pendo com uma visão de pesquisa que englobe apenas o agir
racional moderno, penso que em muitos momentos o contato
com o universo de pesquisa, sobretudo, em suas dimensões de
produção de dor, também me afectaram, diminuindo minha
potência em pensar modos de enfrentamento a estas práticas.
É impossível passar por uma prisão e sair sem marcas e fe-
ridas.Acontece com todos. Com os que para lá são manda-
dos, para cumprir uma pena. Com funcionários e visitan-
tes. E, por que não, com os pesquisadores. (LEMGRUBER,
1999, pg. 13)
Ainda refletindo sobre minha conexão relacional com o
tema de pesquisa, no entremeio da qualificação deste trabalho
até sua finalização, passei a trabalhar em um estabelecimento
prisional, e desse modo, a realização da pesquisa assim como
o referencial abordado neste trabalho, o Paradigma da Comple-
xidade, constituíram-se como subsídios ao enfrentamento de
práticas que hoje vivencio. “Creio profundamente que quanto
menos um pensamento for mutilador, menos mutilará os
humanos”. (MORIN, 2001, p. 122)
4
CriminologiaS: Discursos para a Academia
Também sob a possibilidade de um olhar em movi-
mento, pude compreender o meu lugar de sujeito na pesquisa
que realizei, pois na complexidade existe um elo inseparável
entre o sujeito e o objeto, ou seja, entre um sujeito pensante e o
objeto pensado (MORIN, 2001). A problematização acerca da
relação sujeito/objeto passou a me afectar a partir de minha
inserção técnica no sistema prisional. Pois também eu passei a
fazer parte dos mecanismos de controle penal (os quais foram
pensados, analisados e questionados por mim), e nesse sen-
tido, a reflexão cotidiana quanto a estas práticas é indispensá-
vel ao enfrentamento das condições que as produzem.
Se parto do sistema auto-eco-organizador e remoto, de com-
plexidade em complexidade, chego finalmente a um sujeito
reflexivo que não é outro senão eu próprio que tento pen-
sar a relação sujeito-objeto. E inversamente se parto deste
sujeito reflexivo para encontrar o seu fundamento ou pelo
menos a sua origem, encontro a minha sociedade, a história
desta sociedade na evolução da humanidade, do homem
auto-eco-organizador. (MORIN, 2001, p. 64)
Aprisão tem sido objeto de estudos de diferentes autores
e áreas diversas, transcendendo discussões outrora circunscri-
tas apenas aos operadores do direito, haja vista a necessidade
de uma visão multidimensional e transdisciplinar em rela-
ção ao tema. A produção de conhecimento em Serviço Social
nesta área manifesta-se de forma incipiente, ainda assim, os
trabalhos e pesquisas realizados por assistentes sociais, carac-
terizam-se pela visibilidade às dinâmicas e processos sociais
vigentes no sistema penitenciário.
Enfatizo as produções do Serviço Social, pois também fui
afectada pelo discurso que constitui o hábitus acadêmico (BOR-
DIEU, 1989), de que os assistentes sociais apenas operacionali-
5
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
Introdução
zam intervenções, como se esta área não estivesse apta a pro-
duções acadêmicas e pesquisas que apontem dados científicos
da realidade social, contribuindo à produção de conhecimento.
Entre as pesquisas realizadas pelo Serviço Social e que
demarcam o estado da arte na produção de conhecimento
da profissão sobre o tema, destaca-se a obra de Maria Palma
Wolf (2005), Antologia de vidas e Histórias na Prisão, pela qual a
autora demonstra a realidade prisional em suas mais diversas
dimensões, desde as expressões da Questão Social, perpas-
sando também pelo contexto familiar dos apenados, suas his-
tórias de vida e demais elementos que configuram o espaço
penitenciário, como o trabalho prisional e a elaboração de lau-
dos sociais. Outro trabalho com bastante relevância é a tese
de Miriam Guindani (2002), Violência e Prisão: uma viagem na
busca de um olhar complexo, onde a autora se propõe a dar visi-
bilidade ao fenômeno da violência no sistema penitenciário e
sua articulação com a sociedade, do qual é parte e expressão.
Também é significativa a contribuição da dissertação
Mulher de preso, mulher de respeito: uma etnografia sobre as relações
familiares entre as mulheres e seus homens presos no sistema prisio-
nal do RS, na qual a autora, Simone Ritta dos Santos (2002)
descreve como as mulheres (mães, esposas e irmãs) partici-
pam das dinâmicas que se instituem através das visitas, como
também, suas organizações externas em função do aprisiona-
mento de seus parentes, de modo a lidar com os estigmas e as
implicações de serem mulheres e parentes de sujeitos presos.
Entre outros trabalhos de pesquisa, desenvolvidos por
assistentes sociais, tem-se os realizados por Andréa Torres:
Direitos Humanos para presos? Desafios e compromisso ético e polí-
tico do Serviço Social no sistema penitenciário; e Para além da pri-
são: experiências significativas do Serviço Social na penitenciária
feminina da capital/SP (1978 – 1983). Também por Rosângela
6
CriminologiaS: Discursos para a Academia
Peixoto Santa Rita – Mães e crianças atrás das grades: em questão
o princípio da dignidade da pessoa humana; por Maria Auxilia-
dora Cesar – Exílio da Vida: O cotidiano de mulheres presidiárias;
e o de Tânia Maria Dahmer Pereira: Um estudo dos valores do
Assistente Social no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro.
Contudo, a problematização acerca da inserção dos
familiares nos mecanismos de tratamento penal, tematizando
a família como co-participante na execução da pena, mostra-
-se como um objeto de investigação até agora pouco explo-
rado, em virtude de que os estudos e análises centram-se na
importância de se manter vínculos durante o cumprimento
da pena, como um meio de se acessar o próprio tratamento
penal negligenciado pelo sistema, onde se consideram os
familiares como indispensáveis para que os parentes presos
possam suportar o ambiente de privações.
Adiscussão que se centra na família como “peça” impor-
tante para se pensar no tratamento penal, e uma possível
ressocialização dos apenados através da família (SCHMITD,
1984) reveste-se de um paradoxo apresentado por este fenô-
meno, configurando-se pela possibilidade de que ao adentrar
e participar do tratamento penal, as próprias famílias podem
estar sendo penalizadas.
A obra de Dráuzio Varella, Estação Carandiru (2005), ape-
sar de não ser considerada como um trabalho acadêmico, ou
fruto de pesquisa social, apresenta um sensível relato de sua
experiência como voluntário, o autor descreve o cotidiano pri-
sional a partir das histórias contadas pelos apenados. Assim,
contribui ao entendimento da realidade carcerária expres-
sando falas e experiências de quem vive as dinâmicas produzi-
das pela prisão. Entre várias expressões encontradas no livro,
destaca-se a seguinte: “família puxando a pena” (VARELLA,
2005), ou seja, que cumpre a pena junto com o apenado, pas-
sando também pelo seu próprio “tratamento penal”.
7
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
Introdução
Tendo por base este contexto, e o questionamento de que
as famílias podem passar por processos de penalizações, é
que cheguei até este percurso. “O meu percurso é um movi-
mento em duas frentes, aparentemente divergentes, antagôni-
cas, mas para mim inseparáveis”. (MORIN, 2001, pg. 25). Essa
compreensão faz parte de minha trajetória com o sistema pri-
sional, pelo qual, ao mesmo tempo em que pesquiso e aponto
reflexões sobre o objeto, passei a ser desafiada cotidianamente,
através de um movimento dialógico, a pensar em estratégias
possíveis que reduzam as dores e perversidades prisionais.
Poucos são os trabalhos específicos sobre famílias e pri-
sões, de modo geral, entre os autores que escrevem sobre o
funcionamento das prisões, que desvelam as “regiões escondi-
das de nosso sistema social” (FOUCAULT, 2003, p. 2), alguns
apontam em seus trabalhos a família em um item ou subitem,
como a importância de se manter vínculos, numa expectativa
de apoio ao preso, ou então enquanto grupo de referência.
A família aparece como um elemento significativo no pro-
cesso de penalização e de execução penal (...). Repercute
no cumprimento da pena, pois sua presença representa a
manutenção de vínculos sociais e é um recurso frente às
limitações materiais, administrativas e jurídicas existentes
na prisão. (WOLF, 2005, p. 34)
O termo Tratamento penal é utilizado neste trabalho não
só sob o ponto de vista jurídico-formal, pela configuração do
conjunto de serviços e atendimentos destinados aos sujeitos
que estão cumprindo pena privativa de liberdade, tendo como
marco legal a Lei de Execuções Penais de 1984 (LEP), como
também, pela polissemia que envolve o termo tratamento,
sobretudo, penal, cujo enfoque pode remeter às práticas que
são penais e geram penalizações. Na delimitação do tema de
8
CriminologiaS: Discursos para a Academia
pesquisa, utilizo o termo apenado (s) para explicitar que todos
os familiares entrevistados, realizam visitas para sujeitos pri-
vados de liberdade que já estão em cumprimento de pena.
Durante o trabalho, a terminologia preso é utilizada no sentido
de remeter aos sujeitos como aprisionados no sistema peniten-
ciário e, não obstante, aprisionados/presos em suas dinâmicas.
Também foi neste percurso que me dei conta que sempre
havia trabalhado com o termo família, embora tivesse escrito
e problematizado bastante o modelo nuclear instituído. Passei
então pensar em Famílias, e o que aparentemente parece um
detalhe, ampliou bastante minha compreensão sobre o tema.
Impõe-se pontuar a utilização do termo “famílias”, uma
vez que há uma diversidade de relações e formatações do
núcleo familiar, que preconizam a abrangência da refle-
xão quanto às configurações dos grupos familiares. (DE-
BASTIANI, BELLINI, 2007, p. 78)
A partir destas reflexões e questionamentos, o objeto
desta pesquisa, foi delimitado no seguinte tema: A inserção
de familiares de apenados nos mecanismos de tratamento
penal, em um estabelecimento prisional de Porto Alegre RS,
compreendendo o período de maio à agosto de 2009.
O objetivo geral da pesquisa foi conhecer a experiência
social vivenciada pelos familiares de apenados no decorrer
da pena privativa de liberdade, em relação a sua inserção nos
mecanismos de tratamento penal. O propósito da pesquisa
situa-se na perspectiva de que seus resultados possam oferecer
subsídios ao enfrentamento de práticas penais-punitivas que
envolvem a família no sistema penitenciário.
Os objetivos específicos foram: 1) Analisar a produção
bibliográfica acerca das tendências de tratamento penal na
atualidade, sobretudo, os mecanismos que envolvem as famí-
9
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
Introdução
lias; 2) Identificar quais são os mecanismos de tratamento
penal, previstos formalmente, que englobam a inserção das
famílias no tratamento penal; 3) Conhecer a experiência social
dos familiares de apenados em relação aos mecanismos de
tratamento penal; 4) Conhecer as concepções dos profissio-
nais integrantes das equipes de classificação (CTCS) em rela-
ção à inserção das famílias no tratamento penal, a partir de
critérios classificatórios pautados pelo principio de individu-
alização da pena, os quais prevêem a inserção das famílias;
5) Analisar os procedimentos disciplinares no cotidiano das
dinâmicas prisionais, dirigidos aos familiares.
O problema de pesquisa consistiu na seguinte ques-
tão: Qual a experiência social vivenciada pelos familiares de
apenados de um estabelecimento prisional de Porto Alegre/
RS, em decorrência de sua inserção nos mecanismos de tra-
tamento penal? Complementado-se através de outras cinco
questões norteadoras: 1) Quais as principais tendências de
tratamento penal na atualidade? 2) Quais são os mecanismos
de tratamento penal, previstos formalmente, que englobam a
inserção das famílias no tratamento penal? 3) Qual a experi-
ência social dos familiares de apenados em relação aos meca-
nismos de tratamento penal? 4) Quais as concepções dos pro-
fissionais integrantes das equipes de classificação (CTCs) em
relação à inserção das famílias no tratamento penal, a partir de
critérios classificatórios pautados pelo principio de individua-
lização o da pena, os quais prevêem a inserção das famílias? 5)
Que procedimentos disciplinares, no cotidiano das dinâmicas
prisionais, são destinados aos familiares?
Buscando responder a essas questões, bem como ao pro-
blema de pesquisa, de acordo com o objetivo geral e com os
objetivos específicos, a partir do tema escolhido, o trabalho está
estruturado em cinco capítulos. Através desta apresentação,
10
CriminologiaS: Discursos para a Academia
busquei não somente contextualizar o tema proposto, como tra-
zer elementos de minha implicação e afecções pelo objeto, apon-
tando alguns aspectos do processo de construção da pesquisa.
No segundo capítulo abordo reflexões sobre as configu-
rações penais no Brasil, desde a origem da pena de prisão,
perpassando por ímpetos civilizatórios e práticas de barbárie,
até as tendências de tratamento penal na atualidade frente à
complexidade penitenciária. Após esta problematização, no
terceiro capítulo, apresento a análise teórica sobre a constru-
ção social do sentido de família, alcançando não só as famílias
em uma sociedade disciplinar, como também, nas dinâmicas
prisionais, a partir dos modos de inserções das famílias no
sistema penitenciário e as ambigüidades correspondentes.
O percurso metodológico, bem como, o paradigma epis-
temológico que embasam este trabalho, são apresentados no
quarto capítulo, seguidos dos demais elementos de pesquisa,
como o tipo, técnicas, e sujeitos participantes. As histórias
alcançadas que revelam as experiências sociais em relação à
inserção das famílias no tratamento penal, bem como o fun-
cionamento das dinâmicas prisionais enquanto um sistema
social complexo estão presentes no capítulo cinco. Ao final são
apresentadas algumas considerações sobre os achados da pes-
quisa e necessidades de enfrentamento às práticas produzidas
pelo sistema prisional.
11
2. As configurações prisionais
no Brasil: (des)proporcionalidades
entre crimes, punições
e seletividades
Violento o pássaro que luta contra
os arames da gaiola, ou violenta será
a imóvel gaiola que o prende?
Rubem Alves
O sentido atribuído a crime, bem como suas definições,
vem perpassando diferentes contextos sociais, sendo acompa-
nhado de respostas distintas baseadas nos códigos valorativos
que cada sociedade opera diante de suas configurações eco-
nômicas, políticas, culturais e punitivas. O que indica que o
crime não é uma categoria natural ou atemporal, mas sim de
caráter histórico, uma construção social (BERGMAN e LUCK-
MANN, 1985) que acompanha as transformações societárias.
Nils Christie (1997) afirma que, ao invés de existirem em
si mesmas, ações se tornam, pois só adquirem significados
através de processos sociais. Do mesmo modo ocorre com o
que se passa a denominar de crime, já que este só existe a
partir do momento em que são acionados, através de proces-
sos sociais, sentidos em tensão e construção que, assim, então,
conferem significados específicos aos atos.
CriminologiaS: Discursos para a Academia
12
Neste contexto, a(s) penalidade(s), os arranjos penais,
surgem como um meio de responder aos crimes, acompa-
nhando as necessidades de controle social punitivo a partir
de cada configuração socio-histórica. Sob tal perspectiva,
neste capítulo, tenho por objetivo abordar como se deu a
construção social do(s) sentido(s) da punição no Brasil, bem
como de suas configurações prisionais, não a partir de uma
correlação linear entre crime e punição, mas percebendo a
historicidade e o modo dialógico e complementar como essa
relação produziu e produz sentidos, tanto no espaço prisional
como extramuros.
2.1. A origem das Prisões no Brasil:
entre ímpetos civilizatórios e práticas de barbárie
A existência das penas sob forma de suplícios corporais
registra-se, no Brasil, a partir da colonização portuguesa,
quando a concepção de um Direito Penal de base medieval
ocorreu junto a outros meios de propagação de uma cultura
advinda do modelo medieval europeu (SOARES; INGEN-
FRITZ, 2002). Tal concepção, herdada de Portugal legalizou-
-se no Brasil através da instituição das ordenações Filipinas,1
que constituíram a base do Direito no país. Mesmo com o pro-
cesso de independência brasileiro, algumas de suas disposi-
ções vigoraram até meados do século XIX. Apenas em 1916 é
que foi promulgado o primeiro código civil brasileiro.
A resolução dos conflitos sociais fundamentava-se larga-
mente nos preceitos religiosos, sendo o crime confundido com
1 	 As ordenações Filipinas correspondiam ao ordenamento jurídico em vigor à
época do Brasil Colônia, tendo sua origem em Portugal e no Brasil, a partir
de decretos onde se afirmava uma concepção européia e, sobretudo, portu-
guesa no que tange aos conflitos sociais (SOARES; INGENFRITZ, 2002).
13
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
o pecado e com a ofensa moral,2
punindo-se severamente os
hereges, apóstatas, feiticeiros e benzedores. Em consonância
com a noção de proporcionalidade estabelecida nas sociedades
típicas do antigo regime, Aguirre (2009) menciona que o castigo
aplicava-se de fato, sob mecanismos específicos, como execu-
ções públicas, açoites, trabalhos públicos, degredos e marcas
no corpo, demonstrando, assim, tipos de penalidades corporais
correspondentes às ofensas morais.
Neste contexto a punição tinha como foco reparar o mal
cometido, objetivando uma relação de proporção ao delito,
estabelecendo como elementos constitutivos da pena aspec-
tos como a exclusão, a humilhação, o trabalho forçado e até
o sacrifício do corpo como forma de expiação. Os suplícios
caracterizavam-se como uma arte quantitativa do sofrimento,
correlacionando os tipos de ferimentos físicos, sua qualidade
e intensidade de acordo com a gravidade dos crimes cometi-
dos, variando, também, conforme a pessoa do criminoso e o
nível social de sua vítima, por vezes culminando com a própria
morte do indivíduo (FOUCAULT, 2007).
Assim, a modalidade punitiva que se consolidava atra-
vés das penas corporais objetivava uma relação de temor ao
castigo, através de execuções como: açoites, mutilação, quei-
maduras e degredo,3
bem como pena de morte, que era pra-
ticada através de mecanismos como tortura e uso de fogo.
Outro modo de aplicação do castigo ocorria através da cha-
mada “morte para sempre”, em que o corpo do condenado
2	 A moral é problematizada por Foucault (2005) como um conjunto de va-
lores e regras de ação propostos aos sujeitos e aos grupos por intermédio
de aparelhos prescritivos. Os aparelhos prescritivos são instituições, como a
família, a escola, a prisão etc.
3	 As formas de degredo utilizadas ocorriam tanto com europeus que come-
tiam crimes e eram trazidos ao Brasil, quanto brasileiros que eram expulsos
de sua terra de acordo com o crime cometido.
CriminologiaS: Discursos para a Academia
14
ficava suspenso e, apodrecendo, vinha ao solo, conservando-
-se assim até que religiosos recolhessem seus restos.
Referindo-se à realidade da América Latina após os regi-
mes coloniais, Aguirre (2009) demonstra como se deu a cons-
trução de práticas sociais e jurídicas com forte correlação de
forças entre si, durante os processos de formação de Estados-
-Nação. Em nome dos direitos individuais, calcados em uma
ideologia liberal, legalizaram-se diferenças que já apontavam
categorias a serem selecionadas para a (não) proteção do
Estado e das normas jurídicas.
Depois da expulsão dos regimes coloniais espanhol e por-
tuguês, os novos países independentes iniciaram um pro-
longado e complicado processo de formação do Estado
e da nação, que, na maioria dos casos, foi moldado pelo
contínuo contraponto entre os ideais importados do re-
publicanismo, liberalismo e o império da lei, e a realidade
de estruturas sociais racistas, autoritárias e excludentes.
Em nome dos direitos individuais promovidos pelo libe-
ralismo, as elites crioulas que tomaram o poder do Estado
privaram as populações indígenas e negras das pequenas,
mas de modo algum insignificantes, vantagens que lhes
ofereciam certas normas legais e práticas sociais protecio-
nistas estabelecidas durante o período colonial. Detrás da
fachada legal da república de cidadãos, o que existia eram
sociedades profundamente hierárquicas e discriminató-
rias (AGUIRRE, 2009, p. 37).
Após a proclamação da independência brasileira, em 1822,
foi sancionado no ano de 1830 o denominado Código Criminal
do Império, instituindo a pena de prisão como forma básica de
punição, prevendo a existência de agravantes em seu cumpri-
mento de acordo com a infração cometida (CORDEIRO, 2006).
A relação entre Igreja e Estado fundamentava a teoria da pena,
15
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
haja vista a conformação de um imaginário social4
em relação
aos que cometiam crimes, ainda representados por ofensas
morais e religiosas, bem como se admitindo a pena de morte
para os crimes considerados mais graves.
Durante o século XIX a penitenciária foi adotada como um
padrão institucional carcerário na Europa e nos Estados Uni-
dos, configurando-se como um novo protótipo de penalidades.
O modelo arquitetônico que embasava o projeto punitivo foi
inspirado no panotico de Jeremy Bentham (FOUCAULT, 2007),
cuja estrutura permitia um alcance de vigilância em relação
ao todo. No que tange à estrutura normativa, ainda existia o
predomínio da moral religiosa, conferindo a esses espaços um
caráter de expiação, alternando ajuda humanitária e religiosa,
com estrutura moderna e militar. Esse complexo de penalida-
des chegou ao Brasil sob um projeto de imitação dos padrões
civilizatórios europeus que, conforme Aguirre (2009), pode ser
representado pelo desejo de alcance à “causa moderna”.
Desde meados do século XIX foram construídas algumas
penitenciárias modernas na região [América Latina], bus-
cando conseguir vários objetivos simultâneos: expandir a
intervenção do Estado nos esforços de controle social; pro-
jetar uma imagem de modernidade geralmente concebida
como a adoção de modelos estrangeiros; eliminar algumas
formas infames de castigo; oferecer às elites urbanas uma
maior sensação de segurança e, ainda, possibilitar a trans-
formação de delinqüentes em cidadãos obedientes da lei.
Sem dúvida a fundação destas penitenciárias não signifi-
cou, necessariamente, que tais objetivos tenham sido uma
4	 Imaginário Social são sentidos organizadores (mitos) que sustentam a ins-
tituição de normas, valores e linguagem, pelos quais uma sociedade pode
ser visualizada como uma totalidade. A partir desta perspectiva, normas,
valores e linguagem não são só ferramentas para fazer frente as coisas, mas
também os instrumentos para fazer indivíduos. (FERNÁNDES, 1993)
CriminologiaS: Discursos para a Academia
16
prioridade para as elites políticas e sociais. De fato a cons-
trução de modernas penitenciárias foi a exceção, não a re-
gra, e seu destino nos oferecerá evidências do lugar mais
marginal que ocuparam dentro dos mecanismos gerais de
controle e de castigo. (AGUIRRE, 2009, p. 41)
Havia, portanto, a coexistência entre um desejo civilizató-
rio e a realização cotidiana de práticas de barbárie, pois, ainda
que com influência de ideais reformadores, a realidade bra-
sileira caracterizava-se por ser a de uma sociedade marcada
pela desigualdade advinda, sobretudo, da divisão homem
livre e branco versus homem negro e escravo. Em que pese à
matéria penal do código de 1830, pode-se considerar um sen-
tido de ruptura representado pelo embasamento jurídico-legal
proposto à época, pois acompanhava as discussões iniciadas
na Europa que já apontavam para a necessidade de reformas
penais. No entanto, há que se considerar o descompasso entre
a norma jurídica e as práticas aplicadas no período.
Um dos motivos para tal incompatibilidade pode estar
referido ao fato de que se apostava em um modelo de justiça
que não dava conta da diversidade regional brasileira, pois
o paradigma civilizatório europeu procurava enquadrar juri-
dicamente um modelo de homem branco médio numa socie-
dade escravista como a brasileira, não havendo, neste ideário,
lugar para homens negros e índios, desencadeando métodos
desiguais de aplicação na norma jurídica. O modelo civiliza-
tório que era propagado no continente europeu, através do
grande encarceramento (FOUCAULT, 2007) – prendem-se lou-
cos, vagabundos, prostitutas, limpando-se o espaço da rua –
encontrava divergências políticas e ideológicas na sociedade
escravocrata brasileira, onde, embora fosse instituído um
lócus de punição e confinamento, ainda assim, “sobreviviam”
os castigos públicos, sobretudo, destinados aos escravos e
17
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
índios, deflagrando uma condição de subalternidade cultural,
econômica e étnica.
Através da consolidação do período republicano brasi-
leiro, alterou-se o Código Criminal do Império, sendo insti-
tuído, em 1890, o Código Penal da República. Foram preconi-
zadas, através deste, as modalidades para o cumprimento da
pena de prisão, eliminando-se as penas perpétuas, corporais
e coletivas, restringindo-a à privação da liberdade e normati-
zando-a, de forma a fixar o tempo para sua execução e lugares
específicos para sua aplicação. No entanto, a constituição legal
do Código de 1890 não garantiu sua aplicabilidade imediata,
pois, logo após a publicação, em face de uma realidade na qual
ele não se operacionalizava de forma direta, houve a neces-
sidade de submetê-lo a reformas (ZAFFARONI; PIERAN-
GELI, 1997). Desse modo, destaca-se o decreto nº 22.213, de
14 de dezembro de 1932, denominado como consolidação das
Leis Penais de Piragibe, pois foi criado pelo desembargador
Vicente Piragibe, que, à época, vislumbrou um modo de redi-
gir uma consolidação de leis penais para seu próprio uso, cir-
cunstância que foi aprovada e vigorou até 1940 (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 1997), quando um novo Código Penal surgiu.
O surgimento das prisões e a instituição de um estabe-
lecimento prisional ocorreram no final do século XIX e início
do século XX, período compreendido entre a instituição do
código de 1890 e a do aparato legal que garantiu sua efetiva-
ção. Desde então, foi implementada uma arquitetura própria
para a pena de prisão (CORDEIRO, 2006), vigorando também
a projeção de celas individuais e oficinas laborativas.
Apena privativa de liberdade, não obstante, conforme Fou-
cault (2007), possuidora de gênese em práticas de enclausura-
mento que se instituíram no exterior da teoria penal e por outras
razões – como, por exemplo, as workhouses e as prisões eclesiás-
CriminologiaS: Discursos para a Academia
18
ticas – foi assimilada, apropriada e fomentada a partir dos ideais
iluministas,5
vinculando-se ao nascimento da burguesia indus-
trial e do sistema de acumulação capitalista, quando a estru-
turação de um modo de produção alterou também as relações
sociais. “Para que a burguesia mantivesse a ordem estabelecida,
era importante ter um instrumento capaz de proporcionar disci-
plina e ordem, esse instrumento foi a prisão” (BARRETO, 2005,
p. 18). A partir dessa concepção, pode-se perceber a relação de
utilidade atribuída ao nascimento das prisões, rompendo-se
com uma visão naturalista e de evolução do sistema de justiça
criminal, superando a idéia de que, em detrimento dos suplí-
cios, “nasceram” configurações penais humanitárias.
A prisão, como pena universal, no que tange ao princípio
da igualdade promulgado pelos ideais advindos da revolu-
ção burguesa, assume novamente o preceito de proporcio-
nalidade, se não pelo sofrimento do corpo, pelo tempo de
liberdade que será subtraído dos indivíduos. “A proporciona-
lidade das penas para os delitos refletia e reflete ainda a nova
ideologia capitalista da sociedade: para um trabalho, um salá-
rio proporcional; para os delitos, penas proporcionais” (FOU-
CAULT, 2007, p. 153). Este modelo prevê a liberdade como
foco central, o individualismo para competir na livre concor-
rência do mercado.6
A liberdade passa a ser o foco de sanção do Estado, de
modo que ao romper o pacto social os indivíduos teriam seu
maior bem confiscado: a própria liberdade. É nesse cenário
5	 O termo Iluminismo indica um movimento intelectual que se desenvolveu
no século XVIII, cujo objetivo era a difusão da razão, a “luz”, para dirigir o
progresso da vida em todos os aspectos. Mais do que um conjunto de idéias,
foi uma nova mentalidade que influenciou grande parte da sociedade da
época, de modo particular os intelectuais e a burguesia nascente.
6	 O Liberalismo, enquanto doutrina econômica e política, mantém seu foco
no indivíduo e em liberdades individuais – cada um é responsável por sua
situação e obtenção dos requisitos necessários ao convívio em sociedade.
19
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
que se produz a categoria social do criminoso, que passa a
ser concebido como um indivíduo que, de forma livre e cons-
ciente, comete atos ilícitos – delitos e/ou crimes – e, por inter-
médio deles, rompe de forma voluntária com a moral social
garantida pelos pactos e acordos tácitos que regem e susten-
tam a sociedade (FAUSTINO; PIRES, 2007).
No Brasil essa assimilação iluminista das práticas de
enclausuramento correspondeu, desde a independência, ao
desejo de se apresentar como uma nação civilizada transitando
entre uma perspectiva de acumulação primitiva, ao modo de
acumulação capitalista, e uma trajetória de projetos moderni-
zadores da nação.
A publicação do Decreto Lei de nº 2.848 de 1940, no perí-
odo do Governo Getúlio Vargas, instaurou o atual Código
Penal (cuja parte geral foi alterada em 1984, através da Lei
7.209, coirmã da Lei de Execução Penal – a Lei 7.210/84), pre-
vendo novas regras para o cumprimento da pena, iniciando a
problematização em torno do sistema prisional.
O Código Penal brasileiro de 1940 é saudado como aquele
que finalmente incorpora as inovações trazidas por esta jo-
vem ciência, ainda que com atraso em relação aos grandes
centros e mesmo em relação a outros países da América
Latina. (RAUTER, 2003, p. 67)
Por volta de 1942 registram-se as primeiras estatísticas
acerca da população presa, publicadas pelo serviço de Esta-
tística Demográfica, Moral e Política do Ministério da Justiça
(COELHO, 2006). Os resultados apontavam os selecionados
pelo sistema de justiça criminal, de forma a serem os pretos e
pardos de baixa renda a categoria que predominava no espaço
prisional, por cometerem delitos como roubos e furtos.
Na época, esses dados eram interpretados sob forte
cunho moralizante, haja vista a percepção que se construiu da
CriminologiaS: Discursos para a Academia
20
pobreza. Ao invés de se pensar a organização da sociedade
como excludente de negros e pobres do processo de acumula-
ção, via-se nestes o estereótipo do criminoso. O que o próprio
autor vai denominar como uma “profecia autorrealizável”.
Os legisladores criam o crime ao elaborar leis cuja infra-
ção constituirá comportamento criminoso; e essas leis são
elaboradas de tal forma que as probabilidades de serem
violadas por certos tipos sociais coincidem com as pro-
babilidades imputadas ao desempenho de certos roteiros
típicos. Nesse sentido, a marginalização da criminalidade
consiste em imputar a certas classes de comportamento
probabilidades elevadas de que venham a ser realizadas
pelo tipo de indivíduo socialmente marginalizado. Mais:
a forma pela qual as leis são formuladas e implementadas
introduz elementos de self-fulfilling prophecy. Isto é, são
criados mecanismos e procedimentos pelos quais se tor-
nam altas as probabilidades empíricas de que os margina-
lizados cometam crimes (no sentido legal) e sejam penali-
zados como conseqüência (ou, inversamente, reduzem-se
as probabilidades de que os grupos de status socioeconô-
mico mais alto cometam crimes ou que sejam penalizados
por suas ações ilegais). Por essa forma, dá-se a criminali-
zação da marginalidade. (COELHO, 2005, p.285-6)
O crime e a ruptura com o pacto social, por parte das
categorias selecionadas, passaram a ser encarados como con-
dições pessoais, ou seja, centrando-se na (não) adaptação do
indivíduo à sociedade. Tal fator não significa que a pobreza
seja a grande responsável pela criminalidade, ou que só os
pobres e excluídos cometam delitos, mas sim que configuram
categorias sociais vulneráveis ao processo de exclusão e à san-
ção do Sistema Penal.7
7	 Chamamos de “sistema penal” ao controle social punitivo institucionaliza-
do, que na prática abarca desde que se detecta ou supõe detectar-se uma
21
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
Um dos principais ângulos da funcionalidade do sistema
penal, tornando invisíveis as fontes geradoras da crimina-
lidade de qualquer natureza, permite e incentiva a crença
em desvios pessoais a serem combinados, deixando enco-
bertos e intocados os desvios estruturais que o alimentam.
(KARAM, 2005, p.67)
Arelação de dominação e desigualdade no sistema de jus-
tiça criminal sustenta-se através do discurso de que a aplicação
da pena seria uma forma de se fazer cumprir a justiça, silen-
ciando, assim, as contradições sociais que estão presentes nesse
processo, cuja seletividade penal8
é a principal característica.
Ao problematizar as relações entre o sistema judiciário e
a sociedade, Sabadell (2005) situa a perspectiva crítica de que
essa relação se transforma em imposição de interesses por
parte dos grupos que exercem o poder, permitindo em nível
normativo que as diferenças em termos de status social sejam
perpetuadas também nessa esfera pública. As desigualdades
se manifestam através dos “bens” jurídicos que se produzem
no sistema de justiça, ao qual nem todos possuem as mesmas
riquezas para acesso. Àqueles que já estão fora do esquema
de trabalho-consumo são destinados os serviços de defenso-
rias públicas, cuja característica se revela pela precariedade
do atendimento.
suspeita de delito até que impõe e executa uma pena, pressupondo uma
atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a
atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação.
Esta é a idéia geral de “sistema penal” em sentido limitado, englobando a
atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes e funcionários e da
execução penal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, p. 70).
8	 Entende-se por “seletividade”, ou atuação seletiva do Sistema de Justiça Cri-
minal, a incidência dos aparatos e controles deste com maior ênfase (quanti-
tativa e qualitativa) em pessoas e grupos específicos, haja vista as caracterís-
ticas e dinâmicas do sistema e do seu funcionamento (CHIES, Mimeo).
CriminologiaS: Discursos para a Academia
22
Para a manutenção da funcionalidade das prisões no
Brasil, e do aparato repressivo que sustenta o sistema de jus-
tiça criminal, reiterando a idéia de um sistema penal, foram
sendo (re)criadas categorias punitivas de modo a legitimar as
ações desenvolvidas no ambiente prisional, sobretudo ações
de contenção e segregação.
As fontes da mudança penal e os determinantes das for-
mas penais devem ser localizados não só no raciocínio pe-
nológico, ou no interesse econômico, senão nas configura-
ções de valores, significados e emoções que denominamos
“cultura”. (GARLAND, 193, p.249)
As categorias punitivas que convergem em uma cultura
de controle valem-se da construção do conceito de periculosi-
dade, uma categoria amplamente difundida a partir da década
de 1950, quando foram criados os centros de diagnósticos para
o tratamento individualizado dos que cometiam crimes. Nesse
sentido, Rauter (2003, p. 27) aponta que: “O crime, que ante-
riormente era definido como transgressão à lei penal, converte-
-se em indício, em manifestação superficial que aponta para a
personalidade do criminoso”.Aexistência de uma fusão entre a
medicina e a criminologia passa a configurar-se como uma prá-
tica pautada em um referencial etiológico-positivista, desenca-
deando a “era da penalogia científica” (AGUIRRE, 2009).
Coexistindo com esse período histórico, a sociedade brasi-
leira foi marcada por ciclos de ditaduras, redefinindo o espaço
prisional. Entre outros elementos (como desaparecimentos, tor-
turas, mortes e exílio), a prisão política foi amplamente usada
como um recurso de censura e enclausuramento do que era
inconveniente, tornando-se um dos meios de eliminar diferen-
ças políticas que pudessem ameaçar o ordenamento vigente.
O confinamento de presos políticos é apontado como um
dos fatores que favoreceu a organização, no espaço prisional,
23
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
entre os presos comuns e as formas de pressão e resistência
para a melhoria nas condições de atendimento (PEREIRA,
1991). No entanto, esse processo não ocorreu de forma homo-
gênea, pois o convívio dentro das prisões já sinalizava uma
diferenciação entre ambos: desde o pavilhão que ocupavam
até o tratamento que recebiam da administração penitenciária.
A convivência entre os presos comuns e políticos refletia
processos distintos em relação ao ambiente prisional, pois, a
partir da diferenciação que representou a entrada de presos
políticos, pode-se pensar na categoria social que foi constru-
ída, o que lhes inferia certa superioridade moral em relação
aos demais. Ao mesmo tempo, geravam visibilidade sobre o
cotidiano da prisão, até então pouco problematizado. Alguns
presos comuns, como estratégia de sobrevivência, agiam
como delatores, situação que gerava desconforto e os separava
em grupos distintos.
Os presos políticos, em geral, revelavam certa animosida-
de em relação a estes. Esta atitude baseava-se na degenera-
ção moral e participação como informantes (delatores) da
polícia política, mas também nos preconceitos raciais e de
classe que os presos políticos traziam. Estes sempre trata-
vam de ostentar uma superioridade moral em relação aos
presos comuns e, diante de autoridades e guardas, bus-
cavam aparecer como indivíduos de maior “qualidade”
que o gatuno vulgar e o temível assassino. Exigiam, com
energia, respeito a seus direitos e esperavam receber um
tratamento adequado das autoridades o que, geralmente,
significava não serem tratados “como delinqüentes” ou
misturados fisicamente com estes. (AGUIRRE, 2009, p. 67)
Ainda assim, houve momentos em que, face às condi-
ções de vida no cárcere, os grupos precisavam juntar-se para
enfrentar o poder institucional e reivindicar melhorias que
CriminologiaS: Discursos para a Academia
24
lhes eram comuns para a sobrevivência na prisão. Por parte
dos presos políticos, estes passaram a vislumbrar nos presos
comuns possibilidades de conhecer a realidade carcerária em
suas minúcias, de outro lado, os presos comuns enxergavam
nos presos políticos o conhecimento da realidade social e
jurídica e seus níveis de organização, situações que se a priori
pareciam antagônicas, foram, aos poucos, constituindo um
processo de complementariedade.
Nesse contexto, o sistema prisional começou a redimen-
sionar algumas de suas práticas. Tem-se como exemplo uma
das primeiras portarias penitenciárias,9
que proporcionou a
regulação das visitas e das formas de contato com o mundo
externo, através das visitas periódicas ao lar, hoje transfor-
madas em saídas temporárias10
(PEREIRA, 1991). Tais possi-
bilidades caracterizavam-se por seu critério assistencial, haja
vista a necessidade de se ter bom comportamento para obter
tais vantagens em relação aos demais presos. Nos anos de
1975 e 1977 foram implantadas as primeiras experiências de
regime semiaberto. O cumprimento da pena poderia ser con-
vertido do regime fechado para o semiaberto, a partir de ava-
liações sistemáticas que visavam à averiguação e vigilância
necessárias, de forma a garantir que o preso depositário de tal
confiança não cometeria novas infrações.
9	 Portaria 278/JSP/GDG, publicada na revista penitenciária n° 1 – junho/77 –
Impressa Oficial. (PEREIRA, 1991, p. 56)
10	 As Saídas Temporárias, como direito/benefício legal, são reguladas na Sub-
seção II da Seção III (Das Autorizações de Saída) do Capítulo I (Das Penas
Privativas de Liberdade) do Título V (Da Execução das Penas em Espécie) da
Lei de Execução Penal – Lei n.º 7.210/84 – compreendendo os artigos 122 a 125
deste diploma. Sob o ponto de vista legal, podemos considerar que as Saídas
Temporárias têm por principal objetivo a gradativa reinserção do apenado no
meio social, a partir do estímulo ao senso de responsabilidade e disciplina, o
qual favorece seu convívio social; nesse sentido, é instituto que se compatibi-
liza com a lógica do sistema progressivo da pena. (CHIES, et. al 2006, p. 138)
25
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
2.2 As tendências de tratamento penal
na atualidade frente à complexidade penitenciária
A Lei de Execução Penal (LEP) de 1984, em vigor até hoje,
surgiu como um instrumento normativo que conduz direitos e
obrigações na privação de liberdade. Sob o ponto de vista da
retórica jurídica, pode-se pensar que se constituiu como avanço
e marco no sistema prisional por introduzir juridicamente a
noção de direitos. Outra característica da LEP configura-se pela
ênfase de seu artigo 1°: o cumprimento dos mandados existen-
tes na sentença judicial, como também a instrumentalização de
condições que propiciem a reintegração social do apenado.
Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as dis-
posições de sentença ou decisão criminal e proporcionar
condições para a harmônica integração social do condena-
do e do internado.
No entanto, a LEP apresenta alguns paradoxos entre dis-
curso e realidade, pois, como aponta CHIES (2009), ao men-
cionar a legislação, houve na retórica político-criminal uma
apropriação do modo de tratar o “desviante” pautando-se
pela lógica da (re)integração harmonizada ao meio social.
Outro ponto destacado pelo autor é a perspectiva de existên-
cia de objetivos isolados e incompatíveis para execução das
condições de reintegração social, esses condensam a busca
pela “justa medida” entre punição e caráter pedagógico.
Pode-se identificar, sob esse prisma organizacional, a pro-
blemática que envolve as instituições prisionais, nas quais
a punição e a recuperação, como dimensões retributiva e
socioadequadora (educativa e terapêutica) do castigo, apa-
recem em igual importância como objetivos da organiza-
ção – objetivos formais, legalmente estabelecidos e declara-
dos pelo seu caráter racional moderno. (CHIES, 2008, p. 62)
CriminologiaS: Discursos para a Academia
26
Como meio de operacionalização do padrão socioade-
quador, são previstas, através do tratamento penal, as CTCs
(Comissões Técnicas de Classificações), cujos laudos e exames
criminológicos surgem como instrumentos norteadores do
princípio da individualização da pena privativa de liberdade
(PEREIRA, 2006), seus focos recaem sobre os comportamen-
tos dos indivíduos, criando-se tratamentos diferenciados e
deferências num mesmo espaço prisional. A classificação
penal torna-se um elemento capaz de abordar a dimensão
socioadequadora, contemplando ao mesmo tempo aspectos
disciplinares cotidianos e um referencial positivista calcado
na conduta do indivíduo de modo a analisar sua vida anterior
à prisão a partir de critérios normalizantes, excluindo-se os
contextos sociais e culturais, aos quais estão inseridos.
Nesse sentido, os princípios da execução penal corres-
pondem aos motes correcionalistas constituídos no séc. XX,
os quais são apontados por Garland (2008, pg. 93), por ações
como: “reabilitação, tratamento individualizado, senten-
ças indeterminadas, pesquisa criminológica”. A partir deste
ideal pautado no individuo e na construção de uma identi-
dade vinculada ao crime, cria-se um híbrido entre o que autor
denomina como o liberalismo do processo legal e as práti-
cas punitivas de caráter correcionalista, a partir de um saber
especializado.
Condições pessoais de cada preso legalizam-se através
das manifestações de poder por parte da instituição, que de
forma maniqueísta divide a população carcerária entre bons
e maus, os que merecem o tratamento penal e a atenção tute-
lada do Estado, e tantos outros que são distanciados das con-
dições mínimas de sobrevivência dentro do cárcere. Todos
devem guiar sua conduta pelo chamado proceder carcerário,
que, segundo CHIES (2008, p. 27):
27
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
Pode-se entender tanto pelo conjunto de regras que regu-
lam o comportamento e os valores do grupo de encarcera-
dos, como, também, a própria adequação fática e subjetiva
dos reclusos a esse conjunto de regras.
Esses critérios surgem e decorrem de vários fatores e
assumem diversificados sentidos, tanto como um “prolonga-
mento da lei formal”, como através de suas brechas para a
criação de códigos paralelos e ainda em face da especificidade
das configurações carcerárias. Atuam de modo complemen-
tar e por vezes antagônico, pois podem ser pensados como
estratégias de resistência e/ou sobrevivência no cárcere em
suas múltiplas dimensões, desencadeando, entre outros efei-
tos, o de prisionização. (CLEMMER, 1970)
Os efeitos de prisionização são problematizados por
Clemmer (1970) a partir da entrada dos indivíduos no sis-
tema prisional, onde terão de se adaptar, necessariamente,
às formas de vida daquele ambiente social, incorporando
hábitos de conduta, usos, vocabulário e os códigos existentes,
engajando-se na estrutura social, identificando e assumindo
papéis, usando os símbolos desses papéis, seja nas vestimen-
tas ou na conquista de seu espaço físico, coexistindo com os
diversos grupos e lideranças.
A individualização da pena, um dos princípios instituí-
dos na atual configuração penal, prevê entrevistas e avaliações,
através das quais possam ser apreendidas as particularidades
do sujeito preso e, assim, ser aplicadas as intervenções (puniti-
vas ou recompensatórias) correspondentes. Os princípios que
pautam o tratamento penal hoje ainda são regidos por códigos
valorativos. Os indivíduos são vistos como (não) merecedores
de seus direitos, precisam conquistá-los através de seu compor-
tamento. Mesmo que esses direitos tenham atingido notorie-
dade através de um discurso de humanização das penas, não se
CriminologiaS: Discursos para a Academia
28
efetivam na realidade prisional, onde outros códigos coexistem.
“A prisão não é somente uma expressão passiva da violência e
dos modelos culturais instituídos, mas uma geradora de rela-
ções instituintes” (GUINDANI, 2001, p. 23). Por essa perspec-
tiva, a existência de códigos é problematizada a partir da defa-
sagem existente entre a proposta legal e a realidade intramuros.
O contexto intramuros é caracterizado em sua multidi-
mensionalidade e recursividade,11
através de diversos proces-
sos sociais que constituem a realidade prisional. Entre estes,
existem práticas que correspondem ao que Goffman (1990)12
denomina como sistema de privilégios, próprio de instituições
totais. As dinâmicas que constituem o sistema de privilégios
podem ser analisadas, desde o que o autor enuncia como pro-
cesso de admissão, através do qual são retirados os apoios
anteriores à prisão, que cada sujeito possui, como modo de
preparação para o convívio no ambiente de privações. Este por
sua vez, gera um processo de mortificação, pelo qual são diri-
gidos recursos ao controle diário. Como elo entre o eu mortifi-
cado e o sistema institucional e organizacional são acionados
privilégios atentando à reorganização pessoal.
Ao mesmo tempo em que o processo de mortificação se de-
senvolve, o internado começa a receber instrução formal e
11	 Através do processo recursivo (MORIN, 2001) presente em um sistema com-
plexo como a prisão, tem-se uma ruptura com a ideia simplificadora e linear
de causa/efeito, uma vez que tudo que é produzido retroage sobre o que
produziu. Nesse sentido, o sistema prisional através de suas dinâmicas que
são produzidas a partir das interações entre indivíduos, retroage com num
ciclo autoprodutor.
12	 O estudo feito Erving Goffman (1990) foi realizado em hospitais psiquiá-
tricos, no entanto, o autor ressalta que qualquer grupo de pessoas, desde
prisioneiros até pacientes desenvolvem um estilo de vida própria a partir do
nível de institucionalização ao qual estão expostos. Ressalta também, que
para conhecer estes mundos distintos é preciso submeter-se à companhia
dos que participam destas conjunturas.
29
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
informal a respeito do que aqui será denominado sistema
de privilégios. Na medida em que a ligação do internado
com seu eu civil foi abalada pelos processos de despoja-
mento da instituição, é em grande parte o sistema de pri-
vilégios que dá um esquema para a reorganização pessoal
(GOFFMAN, 1990, pg. 49-50).
São processos de expressões das relações internas e práti-
cas orientadas a um assujeitamento, entretanto, não é vivenciado
passivamente sem reações. Pois coexistindo ao sistema de privi-
légios, perpassando por processos como admissão e mortifica-
ção, há resistência dos sujeitos encarcerados frente ao ambiente
de privações. Entre estes, destaca-se o acesso (ou não) aos ser-
viços de tratamento penal, incluindo assistência social, jurídica,
médica, psicológica, educacional, etc. Bem como, o nível de pri-
vações encontradas nos ambientes prisionais, que se configuram
como motivadoras para a organização dos presos em grupos.
A presença de grupos e facções no sistema prisional gaú-
cho é abordada de modo geral através de pesquisas produzi-
das sobre a realidade do Presídio Central de Porto Alegre, ou
em produções bibliográficas que demonstram a influência das
facções no regime semiaberto. Ao ter como foco de análise as
relações entre as facções do Presídio Central de Porto Alegre,
(SALLIN, 2009) revela a priori a formação dos grupos, que não
necessariamente desenvolvem relações de lealdade e cumpli-
cidade entre si. No contexto exemplificado, os grupos mencio-
nados são: os “Crentes” (que possuem em comum o fato de
expressarem uma crença religiosa, em sua maioria católicos
ou evangélicos), os “Duque” (presos que cometeram crimes
sexuais, não sendo aceitos pelos demais, organizando seu pró-
prio espaço) e mais um grupo formado por presos que pos-
suem nível de escolaridade superior, policiais e funcionários
da SUSEPE.
CriminologiaS: Discursos para a Academia
30
Guindani (2002) ao referir os grupos prisionais, destaca o
grupo dos trabalhadores, pois para os demais, independente do
pertencimento às facções, a representação do preso trabalhador,
significa aceitar o poder formal do sistema. Entretanto, através
de um sistema recompensatório que legitima as ações de trata-
mento penal, existe a possibilidade, por parte deste grupo, de
maior acesso aos setores administrativos e técnicos, do mesmo
modo que podem usufruir com mais facilidades do sistema
progressivo da execução penal. Por outro lado, enfrentam pro-
blemas quanto à sua própria segurança, sobretudo, quanto à
progressão de regime. Nos contextos de regimes semiabertos
existe maior vulnerabilidade ao comando das facções.
A Colônia Penal Agrícola está sob o comando dos “ma-
nos”, o Instituto de Mariante e Casa Miguel Dario estão
sob o comando dos “brasas”. Porém o regime semiaberto
não está estruturado para atender a essa pseudo-indivi-
dualização, o que se tornou um fator motivador dos al-
tos índices de fuga que vêm acontecendo nesse regime.
(GUINDANI, 2002, p. 110)
Quanto à presença das facções no regime fechado, dife-
rem dos demais grupos pela sua constituição, caracterizando-
-se pelos laços de pertencimento, fidelidade ou submissão aos
líderes (SALLIN, 2008), somando-se a estes aspectos, pode-
-se aferir a forte rivalidade entre os grupos, que muitas vezes
derivam do contexto do tráfico de drogas, tanto intramuros,
quanto extramuros.13
No Presídio Central, os grupos/facções são denominados
“Os Manos”, “Os Unidos pela Paz” e “Os Aberto”. Esses
13	 Além das facções identificadas no presídio central, existem outras no con-
texto prisional gaúcho, os exemplos aqui citados correspondem às pesquisas
encontradas que abordam essa temática.
31
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
estão organizados em galerias, onde há, em média, tre-
zentos presos e, entre esses, aproximadamente trinta esta-
riam ligados diretamente ao comando das facções, sendo
esse subgrupo composto pelo líder e seus auxiliares. O lí-
der é chamado de “plantão”, “prefeito” ou “representante
da galeria”, e é escolhido pelo grupo de presos que estão
comprometidos com a facção, levando em consideração
sua capacidade de liderança, negociação e autoridade.
(SALLIM, 2008, p.18)
Referindo-se às rebeliões no estado de São Paulo, Salla
(2001) menciona os arranjos e concessões cotidianos, per-
tencentes à teia de relações prisionais, como motivadores
de eventuais rebeliões, sobretudo, em momentos onde há
enfraquecimento das interações entre os grupos prisionais.
Por esse enfoque, a resistência dos apenados não são apenas
motivadas pela falta de assistência aos mínimos sociais na
prisão, mas fazem parte de uma rede complexa que perpassa
também pelo poder formal exercido pelos demais grupos que
fazem parte deste cotidiano.
A partir dos elementos citados, que envolvem tanto a
relação de obediência ao poder formal quanto à resistência
e reconhecimento de que existe um poder informal produ-
zido pelas interações entre grupos prisionais, evidencia-se a
dimensão dialógica da execução penal. Através da concepção
dialógica, ou seja, da consideração de que existem diferen-
tes lógicas em um mesmo processo, a noção de disciplina se
interliga à de delinquência.
As organizações tem necessidade de ordem e necessidade
de desordem. Num universo onde os sistemas sofrem o
aumento da desordem e tendem a desintegrar-se, a sua or-
ganização permite reprimir, captar e utilizar a desordem.
(MORIN, 2001, pg. 129)
CriminologiaS: Discursos para a Academia
32
No contexto de ordem/ desordem que permeia o intri-
cado cotidiano prisional, o fator disciplina corresponde ao
modo de se atingir o controle a partir das práticas correciona-
listas que são alcançadas através dos parâmetros classificató-
rios. Estes estão presentes por meio de avaliações e classifica-
ções, que além da funcionalidade para obtenção de progres-
sões, permeiam o próprio tratamento penal.
De outro lado a produção da delinquência (FOUCAULT,
2006) sobrepõe-se através da resistência, produzida pelo próprio
sistema em suas interações. Morin (2001) considera o fator jogo
como fator de desordem, mas também de maleabilidade. Desse
modo, o jogo entre disciplina e delinquência constitui-se como
balizador entre aspráticasdeexecuçãopenal,chegando ao limite
de um controle perverso para manutenção da (des) ordem.
Por parte dos sujeitos aprisionados, têm-se os códigos
do cárcere os quais são analisados por Barbato Junior (2007)
como códigos prisionais extremamente rígidos. Nesse sen-
tido, as condutas dos apenados passam a ser regidas por valo-
res sociais, alheios ao poder formal, interagindo através de
uma normatividade autônoma às leis jurídicas.
Vejamos como o código normativo do cárcere opera as re-
lações políticas na prisão. Várias são as formas pelas quais
se estrutura o poder nos presídios; de acordo com a facção à
qual pertence o detento, há um padrão de comportamento
a ser seguido. No mais das vezes, separados em pavilhões
distintos, cada grupo estabelece a maneira de proceder em
certas circunstâncias. Como em quase toda organização, é o
líder quem define as sanções a serem imputadas aos infrato-
res do código imperante. (BARBATO JUNIOR, 2007, p. 55)
O conjunto destes códigos e práticas convergem a formas
de controle perverso que habitam as dinâmicas prisionais.
Sobre o controle perverso, Chantraine (2006), menciona os
33
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
mecanismos divisórios, cuja constituição produz uma divi-
são maniqueísta entre os “homens de bem” e os “homens do
mal”, o que na prisão se expressa através dos códigos morais,
também exercidos pelos profissionais em suas atividades. Ao
“bom bandido”, servil e obediente perante os mecanismos
de controle do Estado, passam a ser ofertados seus direitos
assegurados na LEP, de acordo com sua virtualidade (FOU-
CAULT, 2005), já o “mau bandido”, que não submete seu
corpo ao poder instituído, passa a ser visto como duplo trans-
gressor, que, além de ter infringido as normas sociais através
do cometimento do crime, é essencializado14
por não obedecer
às regras de bom comportamento dentro da própria prisão.
As estratégias construídas pelos presos são normalmente
interpretadas pelos profissionais de forma maniqueísta,
a partir do referencial etiológico/positivista que reforça o
olhar calcado na anormalidade e no diagnóstico de uma
patologia. (WOLF, 2005, p. 176)
Nessaperspectiva,pode-sepensarnadimensãovalorativa15
como uma prática recorrente, nos espaços prisionais, sendo a
criação de estereótipos um meio de se obter subserviências entre
a população carcerária com seus diferentes grupos e sistemas.
Compreende-se que, numa sociedade diferenciada, o efei-
to de universalização é um dos mecanismos, sem dúvida
14	 Segundo Young (2002) a essencialização ocorre a partir do distanciamento
socialmente produzido e aplicado ao outro, de categorias sociais diferentes,
de modo a naturalizar condutas a partir de ações individuais sem problema-
tizar as circunstâncias sociais que as produzem.
15	 Vários estudos que abordam as relações no interior das prisões revelam essa
dimensão valorativa “bom preso x mau preso”. Entre estes, ver: HASSEN
(1999), “O Trabalho e os dias”; COELHO (2005), “Oficina do Diabo e outros
escritos prisionais; PEREIRA(1991), “Um estudo dos valores dos Assistentes
Sociais no sistema penitenciário”.
CriminologiaS: Discursos para a Academia
34
dos mais poderosos, por meio dos quais se exerce a do-
minação simbólica ou, se prefere, a imposição da legiti-
midade de uma ordem social. A norma jurídica , quando
consagra em forma de um conjunto formalmente coeren-
te regras oficiais e, por definição, sociais, ‘universais’, os
princípios práticos do estilo de vida simbolicamente do-
minante, tende a informar realmente as práticas do con-
junto de agentes, para além das diferenças de condição
e de estilo de vida: o efeito de universalização, a que se
poderia também chamar efeito de normalização, vem au-
mentar o efeito de autoridade social que a cultura legítima
e os seus detentores já exercem para dar toda a sua eficá-
cia prática à coerção jurídica (BORDIEU, 1989, p. 246).
O tratamento penal com base na individualização, ori-
ginado a partir de uma lei que introduz a noção de direitos
no espaço prisional, encobre ambiguidades, pois não propor-
ciona as condições necessárias para o enfrentamento das vul-
nerabilidades sociais e penais às quais os sujeitos são expos-
tos. Trata-se de uma sistematização de mecanismos punitivos
que não dão conta de atender às reais necessidades da popu-
lação carcerária, que, não obstante, em sua grande maioria
caracteriza-se por situações de desigualdade social.
Segundo Busso (2008, p. 8), a vulnerabilidade pode ser
pensada como:
Un proceso multidimensional que confluye en el riesgo
o probabilidad del individuo, hogar o comunidad de ser
herido, lesionado o dañado ante cambios o permanencia
de situaciones externas y/o internas. La vulnerabilidad
social de sujetos y colectivos de población se expresa de
varias formas, ya sea como fragilidad e indefensión ante
cambios originados en el entorno, como desamparo ins-
titucional desde el Estado que no contribuye a fortalecer
ni cuida sistemáticamente de sus ciudadanos; como de-
bilidad interna para afrontar concretamente los cambios
35
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
necesarios del individuo u hogar para aprovechar el con-
junto de oportunidades que se le presenta; como insegu-
ridad permanente que paraliza, incapacita y desmotiva la
posibilidad de pensar estrategias y actuar a futuro para
lograr mejores niveles de bienestar.
As intervenções realizadas no interior das prisões, se pau-
tadas por critérios individualizantes, recolocam no indivíduo
a culpabilização por sua condição social, não possibilitando o
questionamento e a reflexão sobre a sociedade excludente que
produz as situações conflitivas bem como modos de resistência
ao contexto social. Tais práticas têm como foco a reprodução
da seletividade social e penal que há na sociedade extramuros,
da qual são parte e expressão. Evidencia-se a particularização
da Questão Social16
nos próprios indivíduos, e não o sistema
penitenciário como expressão da Questão Social. As expres-
sões que se manifestam no sistema penitenciário perpassam
circunstâncias de pobreza, não acesso à proteção social, preca-
rização das relações de trabalho, entre outras, configurando a
realidade social dos sujeitos presos e seus familiares.
Questão social e penalidade são normalmente vistas como
dois processos independentes; quando se estabelece uma
relação entre ambas é para identificar, de forma simplista,
pobreza e criminalidade. No entanto, esta relação é mais
complexa, pois estes dois aspectos originam-se no mesmo
contexto econômico e social e, por isto, possuem as mes-
mas motivações e determinações. Faces da mesma moeda
são também as políticas públicas que daí emergem: por
16	 As principais manifestações da “questão social” – a pauperização, a exclu-
são, as desigualdades sociais – são decorrências das contradições inerentes
ao sistema capitalista, cujos traços particulares vão depender das caracterís-
ticas históricas da formação econômica e política de cada país e/ou região.
Diferentes estágios capitalistas produzem distintas expressões da “questão
social” (PASTORINI, 2004, p. 97)
CriminologiaS: Discursos para a Academia
36
um lado, a questão social e como sua decorrência as po-
líticas sociais, e, por outro, a delinqüência e as políticas
criminais. (WOLF, 2005, p. 1)
Young (2002) diferencia a sociedade atual por sua carac-
terística excludente, sobrepondo-se às ações que outrora
direcionavam as políticas penais no sentido de serem inclu-
sivas com relação ao desvio, ou seja, através de uma série de
aparatos que visavam incluir o que estava fora do esquema
trabalho-consumo. Por essa linha de pensamento, sobretudo,
no período posterior aos anos 1980, houve uma transforma-
ção no modo de tratar a exclusão, atentando ao sentido de
eliminação do que está fora do circuito social que engloba os
consumidores falhos (BAUMAN, 1999).
Trata-se de um processo de duas partes, implicando em
primeiro lugar a transformação e a separação dos mer-
cados de trabalho e um aumento maciço do desemprego
estrutural, e em segundo a exclusão decorrente das tenta-
tivas de controlar a criminalidade resultante das circuns-
tâncias transformadas e da natureza excludente do pró-
prio comportamento anti-social (YOUNG, 2002, pg. 23).
Os efeitos da globalização17
e do neoliberalismo18
também
se manifestam no sistema penitenciário, através de dispositi-
17	 Em termos de globalização, pode-se pensar que há uma ampla mobilidade
do capital e dos capitalistas, volatilidade dos investimentos e deslocamentos
de capitais financeiros e bases industriais espalhadas em todos os países; co-
existindo com este processo, as suas “conseqüências humanas”, os “párias”
gerados pelo modo de produção capitalista, são cada vez mais abandonados
à própria sorte, pois a globalização, ao mesmo tempo em que se utiliza de
mão-de-obra barata, a descarta deixando grupos de seres humanos à mercê
de seus efeitos voláteis (BAUMAN, 1999). Por Estado penalizador, procu-
ram-se mostrar dimensões atuais dos efeitos da globalização nas segrega-
ções, confinamentos e extermínios de populações pobres (PASSETI, 2003)
18	 Neoliberalismo aqui entendido enquanto uma corrente de pensamento e
também uma prática político-econômica baseada nas idéias dos pensadores
37
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes,
punições e seletividades
vos de controle sobre a população encarcerada, os quais, cada
vez mais, estabelecem uma relação de confinamento das cate-
gorias indesejáveis ao processo de retroalimentação capitalista.
(MÉSZÁROS, 2002)
A dialógica de formas sociais que marcam as origens da
prisão com aparência de modernidade, encobrindo práticas de
barbárie, não se encontra apenas no passado, pois se reapre-
senta no curso da história através de renovados mecanismos
de tratamento penal que configuram as desproporcionalida-
des punitivas e excludentes. Desse modo, tem-se um percurso
de modelos prisionais que aprimoram suas “técnicas” penais,
mas, ainda assim, como em uma malha de subtrações, reti-
ram dos indivíduos possibilidades, pois se antes tais técnicas
foram marcadas pelos suplícios corporais, hoje deixam suas
marcas através de uma rede complexa, culminando em uma
configuração penal que perpassa subjetividades, vulnerabili-
dades, seletividades e, até mesmo, o corpo dos aprisionados.
economicistas, defendendo uma redução da ação do Estado no social (AN-
DERSON, 1995).
39
3. Família e prisão:
da sociedade disciplinar
ao sistema penitenciário
A história recente estampa uma sociedade
disciplinadora e punitiva na qual a vigilância, o
controle e as medidas preventivas se superpõem
às penas estabelecidas, em culpas assumidas ou
mascaradas, na rejeição ou complacência consigo
mesmo, na admiração e/ou inveja pelo outro, na
sujeição e/ou dominação de si pelo outro. Uma
visão confusa que mistura e alterna papéis nas
micro e macroinstâncias de poder (in) visível que
estabelecem portas de acesso ao mundo social
ou de exclusão dele. Vive-se sob um estado de
suspeição e de prevenção, a fim de tornar (in)
visível aquilo que assusta, que incomoda, para
a introjeção das separações, da impotência e da
pequenez do homem.
Heleusa Câmara
As formas de controle na sociedade disciplinar se dão em
diferentes contextos e âmbitos da vida em sociedade. A orga-
nização de instituições basilares para o disciplinamento dos
indivíduos transfere às famílias um papel central na manuten-
ção dos paradigmas sociais que a precedem e a constroem.
40
CriminologiaS: Discursos para a Academia
A inserção das famílias nas dinâmicas prisionais reveste-
-se de mecanismos disciplinadores, antagônicos e complemen-
tares, os quais serão apresentados neste capítulo, como base de
compreensão para análise das histórias apresentadas no decor-
rer da dissertação. Destaco, também, as previsões legais e as
punições instituídas no interior dos estabelecimentos penais,
através de uma rede de aspectos que envolvem as famílias em
suas dinâmicas e as ambiguidades correspondentes.
3.1 Família: Rainha e Prisioneira do Social
Rainha e Prisioneira do Social é uma expressão utilizada
pelo autor Jaques Donzelot (1986), em seu livro “A Polícia
das Famílias”, ao tratar da complementariedade das configu-
rações que as famílias assumem na sociedade em um mesmo
processo. Coexistem diferentes lógicas ao se pensar a relação
entre Família e Estado, pois esta se torna Rainha, sendo o foco
de atenção, através de mecanismos coercitivos, pelos quais
ela detém o controle de seus membros e, ao mesmo tempo,
prisioneira, por ser o lócus onde todas as instituições1
se fazem
presentes.
Nesse sentido, as famílias vivenciam um processo de
auto-ecoorganização, que segundo Morin (2001) caracteriza-
-se pela autonomia/dependência em relação ao meio. Assim, a
autonomia alimenta-se da dependência, esta compreendida a
partir da educação, da linguagem, dos valores sociais de cada
época e culturamente produzidos.
1	 Instituições aqui pensadas como lógicas. São árvores de composições lógicas
que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis,
podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta,
podem ser hábitos ou regularidades de comportamentos. (BAREMBLIT, 2002,
p. 15) Nesta perspectiva, pode se considerar a educação, a cultura, a política,
a punição e a própria família.
41
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário
No período em que se edificam as prisões, a sociedade
também se encontra vigiada e encarcerada, e é neste contexto
que o disciplinamento social2
ganha espaço como forma de
prevenção geral e controle do que os indivíduos podem vir
a fazer ou não. O conjunto de instituições que regem a socie-
dade disciplinar, para além do enclausuramento em estabe-
lecimentos prisionais, ampliou-se no campo social, transfor-
mando as situações conflitivas em objeto de investigação e
vigilância, como aparelhos e técnicas para gestão das massas
humanas. (RAUTER, 2003)
Para que ocorra a conformação do disciplinamento e
da vigilância sociais, é necessária a formação de instituições
capazes de assegurar a ordem vigente, de modo que os pro-
cedimentos de controle e observação, presentes na prisão,
transformam-se, também, em mecanismos policialescos para
manutenção da sociedade como um todo.
“Ordem” permitam-me explicar, significa monotonia, re-
gularidade, repetição e previsibilidade; dizemos que uma
situação está – em ordem – se e somente se alguns eventos
têm maior probabilidade de acontecer do que suas alter-
nativas, enquanto outros eventos são altamente imprová-
veis ou estão inteiramente fora de questão (BAUMAN,
1999, p. 66).
Nesse contexto, a instituição família torna-se um ele-
mento fundamental para a estruturação da sociedade disci-
plinar. Ao mesmo tempo em que família pode ser conside-
2	 O disciplinamento social é uma modalidade de aplicação do poder que
aparece no início do século XIX e expande-se ao social de forma a vigiar
e controlar condutas e comportamentos. A disciplina não nasceu neste sé-
culo, existia dentro de instituições, e neste período torna-se uma fórmula
de dominação para toda sociedade, através da conduta dos corpos-dóceis.
(FOUCAULT, 2005)
42
CriminologiaS: Discursos para a Academia
rada como o termo que designa a relação entre indivíduos,
também pode ser pensada como a instituição que rege esses
laços. Enquanto instituição, está submersa em universos de
significações totalizantes, normas que podem produzir com-
portamentos em favor de subjetividades, as quais constroem
jeitos de ser e estar no mundo.
A conexão que se estabelece entre famílias e mecanismos
policialescos (DONZELOT, 1986) rege-se por linhas normati-
vas do social, a fim de determinar e construir um sentimento
de família, moldando, assim, estilos e condutas no que tange
à organização e estruturação familiar. Não obstante, repre-
senta a própria noção de sociedade que se constrói, na inter-
secção histórica e social de paradigmas que estão em cons-
tante mutação.
Tal é o fundamento da ontologia específica de grupos
sociais (famílias, etnias, ou nações): inscritos, ao mesmo
tempo, na objetividade das estruturas sociais e na subje-
tividade das estruturas mentais objetivamente orquestra-
das, eles se apresentam à experiência com a opacidade e
resistência das coisas, ainda que sejam o produto de atos
de construção que, como sugere certa crítica etnometo-
dológica, aparentemente os remete à não existência das
criaturas puras do pensamento. (BORDIEU, 1996, p. 128)
Vários são os estudos acerca das famílias, estes vão desde
a sua origem até as tentativas de entender sua estrutura.
Neste item, enfoco como se deu a construção de um modelo
de família no imaginário social. Fonseca (2006) afirma que a
família foi sendo reduzida a compartimentos, como forma de
enclausuramento progressivo.
Tal realidade teve início no século XVIII, através da con-
solidação do Estado e da propriedade. A partir da individuali-
zação dos salários, as redes extensas de parentela foram redi-
43
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário
mensionadas, formando-se núcleos familiares geralmente
compostos por um casal e seus filhos. Ao mesmo tempo em
que esse ideal ampliou-se, só foi atingido plenamente nas
famílias burguesas, quando as mulheres, ao abdicarem da
parceria no comércio e demais atividades extradomésticas,
foram confinadas ao espaço privado: a casa.
Frente a esse contexto, foram construídas categorias
sociais a fim de propagar o modelo de estrutura familiar
nuclear, sustentando-se no discurso científico e sanitário. O
discurso masculino e moralizante dos médicos e sanitaristas
procurava persuadir “cientificamente” a mulher, tanto das
camadas altas como das baixas, à sua tarefa “natural” de cria-
ção e educação dos filhos. Através do saber médico, foi disse-
minada a valorização do desempenho da “boa mãe”, criando-
-se o mito do amor materno. Nessa perspectiva, foram reali-
zados projetos para regulamentar o serviço das amas de leite,
visando a eliminar as impurezas transmitidas de uma catego-
ria social à outra através da amamentação. (RAGO, 1997)
Por esse estereótipo, a “nova” mãe passa a ser vista
como a rainha do lar, criando-se uma oposição entre o espaço
doméstico e o espaço da rua. O espaço privado (doméstico) é
por conjectura associado ao lugar de formação do caráter das
crianças, onde se adquirem os traços que definirão a conduta
da nova força de trabalho.
Criam-se dois estereótipos da mulher: a dona de casa e
a mulher da rua. A prostituição passa a ser objeto de investi-
gação da ciência e é classificada pelo saber médico como um
vício. Havia um controle rígido da vida cotidiana da prosti-
tuta, de forma a se acumular conhecimento sobre a mulher
“pública” e difundir-se o estereótipo da puta. (RAGO, 1997)
Às crianças, foram direcionadas medidas educacionais
corretivas, geralmente com a ajuda de especialistas. A ade-
44
CriminologiaS: Discursos para a Academia
quação a esse formato não se deu de forma homogênea entre
aqueles que não possuíam os mesmos recursos das famílias
burguesas. Assim, iniciaram-se as medidas coercitivas aos
grupos que resistiam a esse modelo.
Em seu estudo antropológico, Fonseca (2006) problema-
tiza a naturalização acerca das famílias, rompendo com esse
mito, pois constata o enorme leque de organizações familiares
na realidade brasileira, dando prova da criatividade humana
para (re)inventar as relações domésticas e sociais, como, por
exemplo, a prática de circulação de crianças entre as classes
populares coexistindo com as práticas de disciplinamento.
No cenário social correspondente a esse período, regis-
tra-se a construção acerca da família e da higienização da
pobreza no Brasil (RAGO, 1997), de modo que a instituição do
imaginário social em torno da família pudesse dar conta das
novas configurações do capitalismo urbano-industrial, sendo
as famílias, um meio de contenção do desvio, regulando, tam-
bém, as relações entre os sujeitos.
Constitui-se na sociedade e, paralelamente, dentro das
prisões um complexo tutelar (DONZELOT, 1986) por parte
do Estado, com o intuito de eliminar diferenças, sendo as ins-
tituições assistenciais e policiais as responsáveis pela propa-
gação de uma identidade moralizada e tutelada. No entanto,
a adaptação a esse modelo não se deu de modo uniforme, em
vista dos diversos arranjos familiares e da predominância da
família extensa entre os grupos populares. (FONSECA, 2006)
As medidas repressivas desencadeadas pela adequação
a esse formato implicaram a atenção normatizante do Estado,
visando ao saneamento social (RAGO, 1997). Dessa forma
foram criadas as casas de correção, que tinham por objetivo
“limpar” os espaços públicos, retirando da rua o que era
inconveniente.As estratégias para a coação também contavam
45
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário
com a ajuda de tutores e voluntários de famílias “superiores”,
que através de suas benesses cerceavam de perto as configu-
rações do social, para que não ocorresse nenhum desajuste.
Inicia-se, assim, um modelo de família conjugal e nuclear
que, por mais que seja debatido e contestado, naturalizou-se
através do imaginário criado. Mead (1987) constata que pen-
sar em família na modernidade é pensar em um número cada
vez menor de pessoas, pois se antes o grupo familiar agre-
gava, hoje, separa. Um exemplo é a exclusão gradativa que os
avós vêm sofrendo, sendo expurgados do convívio familiar. A
época de amor líquido, como aponta Bauman (2004), também
é a época do convívio destruído.
Entretanto, não se trata aqui de fazer um juízo de valo-
res, afirmando qual modelo de família é melhor, mas de pen-
sar que o “exemplo” atual não é natural, é uma construção
social que foi naturalizada e, por ser um modelo, jamais vai
dar conta das plúrimas relações familiares. Os preconceitos
em relação a outras formas de se vivenciar essas relações não
isentam a família nuclear, pois há uma produção do papel
de cada sujeito, uma padronização afetiva. Um exemplo é a
situação de casais homossexuais e a luta que enfrentam para
adotar uma criança.
A formação desse ideal de família acompanhou proces-
sos históricos, sociais e políticos, pois sua implicação social
também é elemento de disputas, embates e lutas. Portanto, ao
mesmo tempo em que a família é atacada, também é defen-
dida. De acordo com Donzelot (1986), os defensores da famí-
lia são os conservadores e partidários de uma ordem esta-
belecida centrada na hierarquia familiar, que manifesta um
regime político liberal, por nela enxergarem a preservação da
propriedade privada e uma barreira à intervenção do Estado,
pois, se a família encaixa-se nesse modelo, não necessita de
46
CriminologiaS: Discursos para a Academia
uma intervenção estatal que a reestruture. De outro lado estão
os que atacam a família, socialistas utópicos ou científicos,
que o fazem por enxergar na família as mesmas funções das
classes dominantes, acreditando que o desaparecimento da
instituição família pode se dar por um regime socialista; estes
desconsideram a produção de subjetividades, como se um
regime político pudesse propor o fim de uma verdade natu-
ralizada no imaginário social.
No âmbito da Seguridade Social, que envolve Saúde, Pre-
vidência e Assistência Social, no que se refere à última, tem-se
na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), aprovada
em 2004, um enfoque na família como elemento central; isso
ocorre tanto através de programas direcionados, como por
meio de responsabilidades que lhe vão sendo deslocadas gra-
dualmente, pois o regime está pautado por uma orientação
familista: a família como o centro de responsabilidades para
que sejam efetuadas ações, por parte dos programas.
Família, independentemente dos formatos ou modelos
que assume, é mediadora das relações entre os sujeitos e
a coletividade, delimitando, continuamente, os desloca-
mentos entre o público e o privado, bem como geradora
de modalidades comunitárias de vida. (SUAS, 2004, p. 35)
No entanto, cabe questionar a centralidade da família
nesse novo marco regulatório, pois vem sendo desencadeado
um processo gradativo de familização social, através do qual, é
de responsabilidade das famílias suprir não somente o “bem
estar” de seus membros, como também os direitos que lhes
vêm sendo negados pelo Estado. Mesmo com uma concep-
ção mais aberta, a PNAS gera as mesmas expectativas sobre
o papel das famílias e recoloca na figura materna seu prin-
cipal elemento. Ou seja, ainda que avance na concepção de
47
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário
famílias, esbarra nos papéis familiares, pois, nesse sentido, as
famílias transformam-se em um instrumental para a PNAS.
Os ordenamentos jurídicos, muitas vezes, não acompa-
nham os novos desenhos dos grupos familiares, fato que,
inclusive, compromete a ação governamental, dado que
ao administrador público só é legítimo agir dentro do que
a lei autoriza. Há, em curso, um descompasso entre o que
“deve ou se supõe ser” e o que “está sendo”. Há um des-
compasso entre o “vivido”, o “idealizado” e o “legislado”.
(FONSECA, [A] 2006, p. 3)
O processo de familismo social é abordado por Sánchez
Vera; Díaz (2009, pg. 122) ao citar o caso espanhol:
El familismo de la sociedades está frecuentemente ligado
a las limitaciones que presentam lós Estados de Bienestar
al hacer recaer sobre ellas um protagonismo excessivo.
Referido a La sociedad española, lós câmbios sociales han
sido importantes y rápidos, hasta el extremo que em algu-
nos casos puedem transmitir la imagem de crisis familiar,
pero sim embrago, la familia goza de uma gran salud y
sigue siendo de manera constante la institución más valo-
rada por lós españoles.
O exemplo espanhol, apesar de considerar as limitações
do Estado de Bem-Estar, que não se emprega à realidade bra-
sileira, pode ser considerado a partir da ideia de proteção
social, e neste sentido, as limitações do Estado em fornecer tal
proteção. Frente às limitações, o recurso estatal recai sobre a
família como fonte de proteção e cuidado entre seus membros,
desencadeando um processo excessivo de protagonismo, que
muitas vezes distancia-se da realidade das famílias brasileiras.
Com relação à familização nas políticas de tratamento
penal, este processo é abordado por Jardim; Santos; Aguinsky
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  • 3. Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim Mestre em Serviço Social (PUCRS); Professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS); Assistente Social da Superintendência dos Serviços Penitenciários. Famílias e Prisões: (sobre)vivências de tratamento penal CriminologiaS: Discursos para a Academia Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2011
  • 4. Copyright © 2011 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim Categoria: Criminologia Capa Martino Dornelles Piccinini Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pela originalidade desta obra. É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou pro- cesso, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 10.695, de 1º/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
  • 5. Aos meus avós Omar e Maria (in memorian).
  • 6.
  • 7. Agradecimentos Agradeço imensamente a presença de DEUS, me aco- lhendo e me envolvendo em seu AMOR infinito. À minha MÃE Ana Maria, agradeço pelo que sou hoje, pela força e sensibilidade que me dedica a cada dia. À minha irmã Maria Leonor por me trazer a alegria e a leveza da infân- cia. Ao meu BOMdrasto Felipe, sou grata pela paciência e cari- nho que me dispensa. Aos meus tios Antônio Braz, Ricardo, Flor e Wilma. Ao meu querido Luiz Antônio pelo AMOR comparti- lhado, por nossa cumplicidade, pelo incentivo carinhoso e nossas PAIXÕES ALEGRES!!!! À Beatriz Aguinsky, não só pela competência profissio- nal, mas principalmente pelo teu lado mais humano, dema- siadamente humano. Posso dizer que tenho muito ORGU- LHO de ter sido tua orientada. Contigo pude vislumbrar um Serviço Social aberto às manifestações sensíveis da VIDA. “Hermano dame tu mano vamos juntos a buscar una cosa pequeñita que se llama libertad”. (Mercedes Sosa) Aos meus amigos Raquel, Luciano, Anelise, Daniele, Juliana, Thais, Mariana, Bebel, Eliana e Consuelo. Aos queridos enigmáticos (Juli, Iuscia, Espiga, Raquel, Alex, Marcelo e Luiz Antônio), pelos odores dos flatos, por nossas heterotopais e percursos abolicionistas. À Nelma e demais integrantes do instituto de Psicologia Social Pichon Rivière, por fazerem parte do meu processo de auto-ecoorganização.
  • 8. Agradeço imensamente a CAPES (Coordenação de Aper- feiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e ao PPGSS (Pro- grama de Pós-Graduação em Serviço Social) pela oportunida- de de ser bolsista e ter acessado à construção do conhecimento. Aos professores Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Dra. Maria Isabel Barros Bellini, sou grata pelas contribuições e questionamentos que possibilitaram ampliar minha proble- matização acerca do objeto de estudo. Aos funcionários do estabelecimento pesquisado, não apenas pela autorização formal para a realização do estudo, como também, pela disponibilidade com que me receberam. Aos familiares que participaram deste estudo, sou MUI- TO grata, pois sem vocês essa pesquisa não teria sentido. “Ma- ria, Maria É o som, é a cor, é o suor é a dose mais forte e lenta de uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta... Mas é preciso ter força é preciso ter raça é preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca Maria, Maria mis- tura a dor e a alegria” (Milton Nascimento).
  • 9. Uma história da prisão nos é contada numa escrita que estabelece relações pessoais em histórias coletivas, pois a experiência subjetiva não é absolutamente privada. As palavras por mais desordenadas que se encontrem colocadas, são mais importantes para quem somos do que nossas personalidades vagamente policiadas. Enfrentar o dia nosso de cada vida é ter a capacidade de permanecer sujeito dotado de vontade. As experiências terríveis deixam traços e essas histórias somam-se a outras inúmeras histórias que fazem a nossa identidade. Heleusa Câmara
  • 10.
  • 11. Sumário 1. Introdução................................................................................. 1 2. As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades............................................................................. 11 2.1 A origem das Prisões no Brasil: entre ímpetos civilizatórios e práticas de barbárie....... 12 2.2 As tendências de tratamento penal na atualidade frente à complexidade penitenciária..... 25 3. Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário............................................................ 39 3.1 Família: Rainha e Prisioneira do Social.................... 40 3.2 Inserções das Famílias nas dinâmicas prisionais.... 50 4. O percurso de pesquisa......................................................... 69 4.1 Construindo um caminho: a aproximação com o Paradigma da Complexidade e as possibilidades de uma visão Transdisciplinar......................................... 69 4.2 Tipo de Pesquisa.......................................................... 78 4.3 Etapas, técnicas e participantes da pesquisa........... 79 4.4 Análise e tratamento dos achados da pesquisa....... 87 4.5 Cuidados Éticos........................................................... 91
  • 12. 5. Sobre as vivências e sobrevivências: histórias contadas a partir da auto-ecoorganização das famílias ....................... 93 5.1 Textos e contextos que tecem as histórias................ 94 5.1.1 O que se esconde atrás do que aparece, e o que é revelado através do que não é permitido?.......... 95 5.1.2 Quem são as pessoas que contam as histórias? O entre-lugares de reconhecimentos....................... 97 5.1.3 O Tratamento Penal Jurídico-Formal e a recursividade das dinâmicas prisionais: que relação é essa?................................................... 103 5.2 Entre as redes de apoio e o fundo da cadeia......... 110 5.3 Os dias de visitas: os ritos e seus significados....... 114 5.4 Relações familiares na prisão: ressignificação de vínculos.............................................. 123 6. Considerações Finais........................................................... 127 7. Referências Bibliográficas .................................................. 133
  • 13. 1 1. Introdução Uma viagem para além da especialização de um saber. Viagem a um lugar (prisão) que abre os seus mecanismos internos através de sucessivas aproximações. Uma viagem que exige paixão do pesquisador e uma linguagem motivada mais do que uma linguagem que pretenda apresentar uma nova verdade. Miriam Guindani Iniciar um processo de pesquisa não ocorre de modo linear, vai acontecendo em múltiplas dimensões e despertando diferentes sensações, que, por vezes, não são tranqüilas, reme- tem também a tempestades. (MORAES, 2007) Tempestades de escolhas e caminhos a serem trilhados, sobretudo, em uma área do conhecimento com todas as implicações de uma escolha. Os caminhos que levam até as prisões são vários, sobre- tudo, até o que se produz e o que se reproduz acerca dessa temática. De um lado, uma visibilidade perversa, dando ênfase às situações limítrofes de um sistema em exaustão; de outro, uma cientificidade conformada com a literatura que se produz, repetindo dados de relatórios oficiais, na busca de demonstrar que a pena de prisão nasceu falida, ou que não recupera infra- tores e tão pouco inibe criminalidades. (GUINDANI, 2002) Como aponta Foucault (2003, p. 160) “não teria sentido li- mitar-se aos discursos pronunciados sobre a prisão. Há igual-
  • 14. 2 CriminologiaS: Discursos para a Academia mente os que vêm da prisão”. Por esse enfoque, conhecer o que vêm das prisões, ao invés de reproduzir o que se fala so- bre elas, busquei através deste trabalho, conhecer as experi- ências sociais dos familiares de apenados, os quais resistem e sobrevivem cotidianamente a um tratamento que é penal. A escolha por este objetivo remete à minha viagem/ cami- nho/ percurso por entre a realidade prisional e suas dinâmicas. E nesse sentido, não poderia refletir e problematizar o sistema penitenciário sem vivenciar alguns aspectos cotidianos deste processosocialemcurso.Poroutrolado,minhaconexãocomeste contexto assume uma perspectiva relacional, em movimento. Ao acessar este processo de pesquisa, tinha como refe- rência a experiência do processo de formação profissional, incluindo atividades de estágio curricular em Serviço Social, realizado em um estabelecimento prisional, como também, ati- vidades de iniciação científica, ambas relacionadas ao GITEP (Grupo Interdisciplinar de Trabalhos e Estudos Criminais penitenciários), na UCPEL (Universidade Católica de Pelotas). Atividades pelas quais tive a oportunidade de compreender e problematizar alguns aspectos relacionados ao sistema prisio- nal, principalmente quanto à importância da manutenção de vínculos socioafetivos durante o período de aprisionamento. A partir da minha inserção no mestrado em Serviço Social na PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), pude problematizar outras dimensões da execução penal as quais inserem as famílias, e por meio de uma compreensão dialógica, pensar os antagonismos e com- plementariedades destes mecanismos. Deste modo, ao iniciar a pesquisa de campo e o contato com os familiares que parti- ciparam deste estudo, pude me afectar (SPINOZA, 1983) com o modo de inserção das famílias no tratamento penal. Por traz de uma visão idílica, de que os familiares são indispensáveis ao apoio de que o preso necessita, existe um
  • 15. 3 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim Introdução recuo do estado em garantir as mínimas condições de cum- primento da pena, deslocando gradativamente estas respon- sabilidades aos familiares. Através da minha inserção no GEPEDH (Grupo de Pesquisas e Estudos em Ética e Direi- tos Humanos), vinculado à linha de pesquisa Serviço Social e Políticas Sociais, pude compreender a importância do tema sob a perspectiva do olhar para as famílias em termos da orga- nização de políticas e programas de tratamento penal, princi- palmente conhecendo a experiências sociais destas famílias. Segundo Spinoza (1983) são as afecções pelo objeto que tocam o pesquisador e o colocam em movimento, podendo aumentar ou diminuir potências de agir. Nesse sentido, e rom- pendo com uma visão de pesquisa que englobe apenas o agir racional moderno, penso que em muitos momentos o contato com o universo de pesquisa, sobretudo, em suas dimensões de produção de dor, também me afectaram, diminuindo minha potência em pensar modos de enfrentamento a estas práticas. É impossível passar por uma prisão e sair sem marcas e fe- ridas.Acontece com todos. Com os que para lá são manda- dos, para cumprir uma pena. Com funcionários e visitan- tes. E, por que não, com os pesquisadores. (LEMGRUBER, 1999, pg. 13) Ainda refletindo sobre minha conexão relacional com o tema de pesquisa, no entremeio da qualificação deste trabalho até sua finalização, passei a trabalhar em um estabelecimento prisional, e desse modo, a realização da pesquisa assim como o referencial abordado neste trabalho, o Paradigma da Comple- xidade, constituíram-se como subsídios ao enfrentamento de práticas que hoje vivencio. “Creio profundamente que quanto menos um pensamento for mutilador, menos mutilará os humanos”. (MORIN, 2001, p. 122)
  • 16. 4 CriminologiaS: Discursos para a Academia Também sob a possibilidade de um olhar em movi- mento, pude compreender o meu lugar de sujeito na pesquisa que realizei, pois na complexidade existe um elo inseparável entre o sujeito e o objeto, ou seja, entre um sujeito pensante e o objeto pensado (MORIN, 2001). A problematização acerca da relação sujeito/objeto passou a me afectar a partir de minha inserção técnica no sistema prisional. Pois também eu passei a fazer parte dos mecanismos de controle penal (os quais foram pensados, analisados e questionados por mim), e nesse sen- tido, a reflexão cotidiana quanto a estas práticas é indispensá- vel ao enfrentamento das condições que as produzem. Se parto do sistema auto-eco-organizador e remoto, de com- plexidade em complexidade, chego finalmente a um sujeito reflexivo que não é outro senão eu próprio que tento pen- sar a relação sujeito-objeto. E inversamente se parto deste sujeito reflexivo para encontrar o seu fundamento ou pelo menos a sua origem, encontro a minha sociedade, a história desta sociedade na evolução da humanidade, do homem auto-eco-organizador. (MORIN, 2001, p. 64) Aprisão tem sido objeto de estudos de diferentes autores e áreas diversas, transcendendo discussões outrora circunscri- tas apenas aos operadores do direito, haja vista a necessidade de uma visão multidimensional e transdisciplinar em rela- ção ao tema. A produção de conhecimento em Serviço Social nesta área manifesta-se de forma incipiente, ainda assim, os trabalhos e pesquisas realizados por assistentes sociais, carac- terizam-se pela visibilidade às dinâmicas e processos sociais vigentes no sistema penitenciário. Enfatizo as produções do Serviço Social, pois também fui afectada pelo discurso que constitui o hábitus acadêmico (BOR- DIEU, 1989), de que os assistentes sociais apenas operacionali-
  • 17. 5 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim Introdução zam intervenções, como se esta área não estivesse apta a pro- duções acadêmicas e pesquisas que apontem dados científicos da realidade social, contribuindo à produção de conhecimento. Entre as pesquisas realizadas pelo Serviço Social e que demarcam o estado da arte na produção de conhecimento da profissão sobre o tema, destaca-se a obra de Maria Palma Wolf (2005), Antologia de vidas e Histórias na Prisão, pela qual a autora demonstra a realidade prisional em suas mais diversas dimensões, desde as expressões da Questão Social, perpas- sando também pelo contexto familiar dos apenados, suas his- tórias de vida e demais elementos que configuram o espaço penitenciário, como o trabalho prisional e a elaboração de lau- dos sociais. Outro trabalho com bastante relevância é a tese de Miriam Guindani (2002), Violência e Prisão: uma viagem na busca de um olhar complexo, onde a autora se propõe a dar visi- bilidade ao fenômeno da violência no sistema penitenciário e sua articulação com a sociedade, do qual é parte e expressão. Também é significativa a contribuição da dissertação Mulher de preso, mulher de respeito: uma etnografia sobre as relações familiares entre as mulheres e seus homens presos no sistema prisio- nal do RS, na qual a autora, Simone Ritta dos Santos (2002) descreve como as mulheres (mães, esposas e irmãs) partici- pam das dinâmicas que se instituem através das visitas, como também, suas organizações externas em função do aprisiona- mento de seus parentes, de modo a lidar com os estigmas e as implicações de serem mulheres e parentes de sujeitos presos. Entre outros trabalhos de pesquisa, desenvolvidos por assistentes sociais, tem-se os realizados por Andréa Torres: Direitos Humanos para presos? Desafios e compromisso ético e polí- tico do Serviço Social no sistema penitenciário; e Para além da pri- são: experiências significativas do Serviço Social na penitenciária feminina da capital/SP (1978 – 1983). Também por Rosângela
  • 18. 6 CriminologiaS: Discursos para a Academia Peixoto Santa Rita – Mães e crianças atrás das grades: em questão o princípio da dignidade da pessoa humana; por Maria Auxilia- dora Cesar – Exílio da Vida: O cotidiano de mulheres presidiárias; e o de Tânia Maria Dahmer Pereira: Um estudo dos valores do Assistente Social no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Contudo, a problematização acerca da inserção dos familiares nos mecanismos de tratamento penal, tematizando a família como co-participante na execução da pena, mostra- -se como um objeto de investigação até agora pouco explo- rado, em virtude de que os estudos e análises centram-se na importância de se manter vínculos durante o cumprimento da pena, como um meio de se acessar o próprio tratamento penal negligenciado pelo sistema, onde se consideram os familiares como indispensáveis para que os parentes presos possam suportar o ambiente de privações. Adiscussão que se centra na família como “peça” impor- tante para se pensar no tratamento penal, e uma possível ressocialização dos apenados através da família (SCHMITD, 1984) reveste-se de um paradoxo apresentado por este fenô- meno, configurando-se pela possibilidade de que ao adentrar e participar do tratamento penal, as próprias famílias podem estar sendo penalizadas. A obra de Dráuzio Varella, Estação Carandiru (2005), ape- sar de não ser considerada como um trabalho acadêmico, ou fruto de pesquisa social, apresenta um sensível relato de sua experiência como voluntário, o autor descreve o cotidiano pri- sional a partir das histórias contadas pelos apenados. Assim, contribui ao entendimento da realidade carcerária expres- sando falas e experiências de quem vive as dinâmicas produzi- das pela prisão. Entre várias expressões encontradas no livro, destaca-se a seguinte: “família puxando a pena” (VARELLA, 2005), ou seja, que cumpre a pena junto com o apenado, pas- sando também pelo seu próprio “tratamento penal”.
  • 19. 7 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim Introdução Tendo por base este contexto, e o questionamento de que as famílias podem passar por processos de penalizações, é que cheguei até este percurso. “O meu percurso é um movi- mento em duas frentes, aparentemente divergentes, antagôni- cas, mas para mim inseparáveis”. (MORIN, 2001, pg. 25). Essa compreensão faz parte de minha trajetória com o sistema pri- sional, pelo qual, ao mesmo tempo em que pesquiso e aponto reflexões sobre o objeto, passei a ser desafiada cotidianamente, através de um movimento dialógico, a pensar em estratégias possíveis que reduzam as dores e perversidades prisionais. Poucos são os trabalhos específicos sobre famílias e pri- sões, de modo geral, entre os autores que escrevem sobre o funcionamento das prisões, que desvelam as “regiões escondi- das de nosso sistema social” (FOUCAULT, 2003, p. 2), alguns apontam em seus trabalhos a família em um item ou subitem, como a importância de se manter vínculos, numa expectativa de apoio ao preso, ou então enquanto grupo de referência. A família aparece como um elemento significativo no pro- cesso de penalização e de execução penal (...). Repercute no cumprimento da pena, pois sua presença representa a manutenção de vínculos sociais e é um recurso frente às limitações materiais, administrativas e jurídicas existentes na prisão. (WOLF, 2005, p. 34) O termo Tratamento penal é utilizado neste trabalho não só sob o ponto de vista jurídico-formal, pela configuração do conjunto de serviços e atendimentos destinados aos sujeitos que estão cumprindo pena privativa de liberdade, tendo como marco legal a Lei de Execuções Penais de 1984 (LEP), como também, pela polissemia que envolve o termo tratamento, sobretudo, penal, cujo enfoque pode remeter às práticas que são penais e geram penalizações. Na delimitação do tema de
  • 20. 8 CriminologiaS: Discursos para a Academia pesquisa, utilizo o termo apenado (s) para explicitar que todos os familiares entrevistados, realizam visitas para sujeitos pri- vados de liberdade que já estão em cumprimento de pena. Durante o trabalho, a terminologia preso é utilizada no sentido de remeter aos sujeitos como aprisionados no sistema peniten- ciário e, não obstante, aprisionados/presos em suas dinâmicas. Também foi neste percurso que me dei conta que sempre havia trabalhado com o termo família, embora tivesse escrito e problematizado bastante o modelo nuclear instituído. Passei então pensar em Famílias, e o que aparentemente parece um detalhe, ampliou bastante minha compreensão sobre o tema. Impõe-se pontuar a utilização do termo “famílias”, uma vez que há uma diversidade de relações e formatações do núcleo familiar, que preconizam a abrangência da refle- xão quanto às configurações dos grupos familiares. (DE- BASTIANI, BELLINI, 2007, p. 78) A partir destas reflexões e questionamentos, o objeto desta pesquisa, foi delimitado no seguinte tema: A inserção de familiares de apenados nos mecanismos de tratamento penal, em um estabelecimento prisional de Porto Alegre RS, compreendendo o período de maio à agosto de 2009. O objetivo geral da pesquisa foi conhecer a experiência social vivenciada pelos familiares de apenados no decorrer da pena privativa de liberdade, em relação a sua inserção nos mecanismos de tratamento penal. O propósito da pesquisa situa-se na perspectiva de que seus resultados possam oferecer subsídios ao enfrentamento de práticas penais-punitivas que envolvem a família no sistema penitenciário. Os objetivos específicos foram: 1) Analisar a produção bibliográfica acerca das tendências de tratamento penal na atualidade, sobretudo, os mecanismos que envolvem as famí-
  • 21. 9 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim Introdução lias; 2) Identificar quais são os mecanismos de tratamento penal, previstos formalmente, que englobam a inserção das famílias no tratamento penal; 3) Conhecer a experiência social dos familiares de apenados em relação aos mecanismos de tratamento penal; 4) Conhecer as concepções dos profissio- nais integrantes das equipes de classificação (CTCS) em rela- ção à inserção das famílias no tratamento penal, a partir de critérios classificatórios pautados pelo principio de individu- alização da pena, os quais prevêem a inserção das famílias; 5) Analisar os procedimentos disciplinares no cotidiano das dinâmicas prisionais, dirigidos aos familiares. O problema de pesquisa consistiu na seguinte ques- tão: Qual a experiência social vivenciada pelos familiares de apenados de um estabelecimento prisional de Porto Alegre/ RS, em decorrência de sua inserção nos mecanismos de tra- tamento penal? Complementado-se através de outras cinco questões norteadoras: 1) Quais as principais tendências de tratamento penal na atualidade? 2) Quais são os mecanismos de tratamento penal, previstos formalmente, que englobam a inserção das famílias no tratamento penal? 3) Qual a experi- ência social dos familiares de apenados em relação aos meca- nismos de tratamento penal? 4) Quais as concepções dos pro- fissionais integrantes das equipes de classificação (CTCs) em relação à inserção das famílias no tratamento penal, a partir de critérios classificatórios pautados pelo principio de individua- lização o da pena, os quais prevêem a inserção das famílias? 5) Que procedimentos disciplinares, no cotidiano das dinâmicas prisionais, são destinados aos familiares? Buscando responder a essas questões, bem como ao pro- blema de pesquisa, de acordo com o objetivo geral e com os objetivos específicos, a partir do tema escolhido, o trabalho está estruturado em cinco capítulos. Através desta apresentação,
  • 22. 10 CriminologiaS: Discursos para a Academia busquei não somente contextualizar o tema proposto, como tra- zer elementos de minha implicação e afecções pelo objeto, apon- tando alguns aspectos do processo de construção da pesquisa. No segundo capítulo abordo reflexões sobre as configu- rações penais no Brasil, desde a origem da pena de prisão, perpassando por ímpetos civilizatórios e práticas de barbárie, até as tendências de tratamento penal na atualidade frente à complexidade penitenciária. Após esta problematização, no terceiro capítulo, apresento a análise teórica sobre a constru- ção social do sentido de família, alcançando não só as famílias em uma sociedade disciplinar, como também, nas dinâmicas prisionais, a partir dos modos de inserções das famílias no sistema penitenciário e as ambigüidades correspondentes. O percurso metodológico, bem como, o paradigma epis- temológico que embasam este trabalho, são apresentados no quarto capítulo, seguidos dos demais elementos de pesquisa, como o tipo, técnicas, e sujeitos participantes. As histórias alcançadas que revelam as experiências sociais em relação à inserção das famílias no tratamento penal, bem como o fun- cionamento das dinâmicas prisionais enquanto um sistema social complexo estão presentes no capítulo cinco. Ao final são apresentadas algumas considerações sobre os achados da pes- quisa e necessidades de enfrentamento às práticas produzidas pelo sistema prisional.
  • 23. 11 2. As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades Violento o pássaro que luta contra os arames da gaiola, ou violenta será a imóvel gaiola que o prende? Rubem Alves O sentido atribuído a crime, bem como suas definições, vem perpassando diferentes contextos sociais, sendo acompa- nhado de respostas distintas baseadas nos códigos valorativos que cada sociedade opera diante de suas configurações eco- nômicas, políticas, culturais e punitivas. O que indica que o crime não é uma categoria natural ou atemporal, mas sim de caráter histórico, uma construção social (BERGMAN e LUCK- MANN, 1985) que acompanha as transformações societárias. Nils Christie (1997) afirma que, ao invés de existirem em si mesmas, ações se tornam, pois só adquirem significados através de processos sociais. Do mesmo modo ocorre com o que se passa a denominar de crime, já que este só existe a partir do momento em que são acionados, através de proces- sos sociais, sentidos em tensão e construção que, assim, então, conferem significados específicos aos atos.
  • 24. CriminologiaS: Discursos para a Academia 12 Neste contexto, a(s) penalidade(s), os arranjos penais, surgem como um meio de responder aos crimes, acompa- nhando as necessidades de controle social punitivo a partir de cada configuração socio-histórica. Sob tal perspectiva, neste capítulo, tenho por objetivo abordar como se deu a construção social do(s) sentido(s) da punição no Brasil, bem como de suas configurações prisionais, não a partir de uma correlação linear entre crime e punição, mas percebendo a historicidade e o modo dialógico e complementar como essa relação produziu e produz sentidos, tanto no espaço prisional como extramuros. 2.1. A origem das Prisões no Brasil: entre ímpetos civilizatórios e práticas de barbárie A existência das penas sob forma de suplícios corporais registra-se, no Brasil, a partir da colonização portuguesa, quando a concepção de um Direito Penal de base medieval ocorreu junto a outros meios de propagação de uma cultura advinda do modelo medieval europeu (SOARES; INGEN- FRITZ, 2002). Tal concepção, herdada de Portugal legalizou- -se no Brasil através da instituição das ordenações Filipinas,1 que constituíram a base do Direito no país. Mesmo com o pro- cesso de independência brasileiro, algumas de suas disposi- ções vigoraram até meados do século XIX. Apenas em 1916 é que foi promulgado o primeiro código civil brasileiro. A resolução dos conflitos sociais fundamentava-se larga- mente nos preceitos religiosos, sendo o crime confundido com 1 As ordenações Filipinas correspondiam ao ordenamento jurídico em vigor à época do Brasil Colônia, tendo sua origem em Portugal e no Brasil, a partir de decretos onde se afirmava uma concepção européia e, sobretudo, portu- guesa no que tange aos conflitos sociais (SOARES; INGENFRITZ, 2002).
  • 25. 13 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades o pecado e com a ofensa moral,2 punindo-se severamente os hereges, apóstatas, feiticeiros e benzedores. Em consonância com a noção de proporcionalidade estabelecida nas sociedades típicas do antigo regime, Aguirre (2009) menciona que o castigo aplicava-se de fato, sob mecanismos específicos, como execu- ções públicas, açoites, trabalhos públicos, degredos e marcas no corpo, demonstrando, assim, tipos de penalidades corporais correspondentes às ofensas morais. Neste contexto a punição tinha como foco reparar o mal cometido, objetivando uma relação de proporção ao delito, estabelecendo como elementos constitutivos da pena aspec- tos como a exclusão, a humilhação, o trabalho forçado e até o sacrifício do corpo como forma de expiação. Os suplícios caracterizavam-se como uma arte quantitativa do sofrimento, correlacionando os tipos de ferimentos físicos, sua qualidade e intensidade de acordo com a gravidade dos crimes cometi- dos, variando, também, conforme a pessoa do criminoso e o nível social de sua vítima, por vezes culminando com a própria morte do indivíduo (FOUCAULT, 2007). Assim, a modalidade punitiva que se consolidava atra- vés das penas corporais objetivava uma relação de temor ao castigo, através de execuções como: açoites, mutilação, quei- maduras e degredo,3 bem como pena de morte, que era pra- ticada através de mecanismos como tortura e uso de fogo. Outro modo de aplicação do castigo ocorria através da cha- mada “morte para sempre”, em que o corpo do condenado 2 A moral é problematizada por Foucault (2005) como um conjunto de va- lores e regras de ação propostos aos sujeitos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos. Os aparelhos prescritivos são instituições, como a família, a escola, a prisão etc. 3 As formas de degredo utilizadas ocorriam tanto com europeus que come- tiam crimes e eram trazidos ao Brasil, quanto brasileiros que eram expulsos de sua terra de acordo com o crime cometido.
  • 26. CriminologiaS: Discursos para a Academia 14 ficava suspenso e, apodrecendo, vinha ao solo, conservando- -se assim até que religiosos recolhessem seus restos. Referindo-se à realidade da América Latina após os regi- mes coloniais, Aguirre (2009) demonstra como se deu a cons- trução de práticas sociais e jurídicas com forte correlação de forças entre si, durante os processos de formação de Estados- -Nação. Em nome dos direitos individuais, calcados em uma ideologia liberal, legalizaram-se diferenças que já apontavam categorias a serem selecionadas para a (não) proteção do Estado e das normas jurídicas. Depois da expulsão dos regimes coloniais espanhol e por- tuguês, os novos países independentes iniciaram um pro- longado e complicado processo de formação do Estado e da nação, que, na maioria dos casos, foi moldado pelo contínuo contraponto entre os ideais importados do re- publicanismo, liberalismo e o império da lei, e a realidade de estruturas sociais racistas, autoritárias e excludentes. Em nome dos direitos individuais promovidos pelo libe- ralismo, as elites crioulas que tomaram o poder do Estado privaram as populações indígenas e negras das pequenas, mas de modo algum insignificantes, vantagens que lhes ofereciam certas normas legais e práticas sociais protecio- nistas estabelecidas durante o período colonial. Detrás da fachada legal da república de cidadãos, o que existia eram sociedades profundamente hierárquicas e discriminató- rias (AGUIRRE, 2009, p. 37). Após a proclamação da independência brasileira, em 1822, foi sancionado no ano de 1830 o denominado Código Criminal do Império, instituindo a pena de prisão como forma básica de punição, prevendo a existência de agravantes em seu cumpri- mento de acordo com a infração cometida (CORDEIRO, 2006). A relação entre Igreja e Estado fundamentava a teoria da pena,
  • 27. 15 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades haja vista a conformação de um imaginário social4 em relação aos que cometiam crimes, ainda representados por ofensas morais e religiosas, bem como se admitindo a pena de morte para os crimes considerados mais graves. Durante o século XIX a penitenciária foi adotada como um padrão institucional carcerário na Europa e nos Estados Uni- dos, configurando-se como um novo protótipo de penalidades. O modelo arquitetônico que embasava o projeto punitivo foi inspirado no panotico de Jeremy Bentham (FOUCAULT, 2007), cuja estrutura permitia um alcance de vigilância em relação ao todo. No que tange à estrutura normativa, ainda existia o predomínio da moral religiosa, conferindo a esses espaços um caráter de expiação, alternando ajuda humanitária e religiosa, com estrutura moderna e militar. Esse complexo de penalida- des chegou ao Brasil sob um projeto de imitação dos padrões civilizatórios europeus que, conforme Aguirre (2009), pode ser representado pelo desejo de alcance à “causa moderna”. Desde meados do século XIX foram construídas algumas penitenciárias modernas na região [América Latina], bus- cando conseguir vários objetivos simultâneos: expandir a intervenção do Estado nos esforços de controle social; pro- jetar uma imagem de modernidade geralmente concebida como a adoção de modelos estrangeiros; eliminar algumas formas infames de castigo; oferecer às elites urbanas uma maior sensação de segurança e, ainda, possibilitar a trans- formação de delinqüentes em cidadãos obedientes da lei. Sem dúvida a fundação destas penitenciárias não signifi- cou, necessariamente, que tais objetivos tenham sido uma 4 Imaginário Social são sentidos organizadores (mitos) que sustentam a ins- tituição de normas, valores e linguagem, pelos quais uma sociedade pode ser visualizada como uma totalidade. A partir desta perspectiva, normas, valores e linguagem não são só ferramentas para fazer frente as coisas, mas também os instrumentos para fazer indivíduos. (FERNÁNDES, 1993)
  • 28. CriminologiaS: Discursos para a Academia 16 prioridade para as elites políticas e sociais. De fato a cons- trução de modernas penitenciárias foi a exceção, não a re- gra, e seu destino nos oferecerá evidências do lugar mais marginal que ocuparam dentro dos mecanismos gerais de controle e de castigo. (AGUIRRE, 2009, p. 41) Havia, portanto, a coexistência entre um desejo civilizató- rio e a realização cotidiana de práticas de barbárie, pois, ainda que com influência de ideais reformadores, a realidade bra- sileira caracterizava-se por ser a de uma sociedade marcada pela desigualdade advinda, sobretudo, da divisão homem livre e branco versus homem negro e escravo. Em que pese à matéria penal do código de 1830, pode-se considerar um sen- tido de ruptura representado pelo embasamento jurídico-legal proposto à época, pois acompanhava as discussões iniciadas na Europa que já apontavam para a necessidade de reformas penais. No entanto, há que se considerar o descompasso entre a norma jurídica e as práticas aplicadas no período. Um dos motivos para tal incompatibilidade pode estar referido ao fato de que se apostava em um modelo de justiça que não dava conta da diversidade regional brasileira, pois o paradigma civilizatório europeu procurava enquadrar juri- dicamente um modelo de homem branco médio numa socie- dade escravista como a brasileira, não havendo, neste ideário, lugar para homens negros e índios, desencadeando métodos desiguais de aplicação na norma jurídica. O modelo civiliza- tório que era propagado no continente europeu, através do grande encarceramento (FOUCAULT, 2007) – prendem-se lou- cos, vagabundos, prostitutas, limpando-se o espaço da rua – encontrava divergências políticas e ideológicas na sociedade escravocrata brasileira, onde, embora fosse instituído um lócus de punição e confinamento, ainda assim, “sobreviviam” os castigos públicos, sobretudo, destinados aos escravos e
  • 29. 17 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades índios, deflagrando uma condição de subalternidade cultural, econômica e étnica. Através da consolidação do período republicano brasi- leiro, alterou-se o Código Criminal do Império, sendo insti- tuído, em 1890, o Código Penal da República. Foram preconi- zadas, através deste, as modalidades para o cumprimento da pena de prisão, eliminando-se as penas perpétuas, corporais e coletivas, restringindo-a à privação da liberdade e normati- zando-a, de forma a fixar o tempo para sua execução e lugares específicos para sua aplicação. No entanto, a constituição legal do Código de 1890 não garantiu sua aplicabilidade imediata, pois, logo após a publicação, em face de uma realidade na qual ele não se operacionalizava de forma direta, houve a neces- sidade de submetê-lo a reformas (ZAFFARONI; PIERAN- GELI, 1997). Desse modo, destaca-se o decreto nº 22.213, de 14 de dezembro de 1932, denominado como consolidação das Leis Penais de Piragibe, pois foi criado pelo desembargador Vicente Piragibe, que, à época, vislumbrou um modo de redi- gir uma consolidação de leis penais para seu próprio uso, cir- cunstância que foi aprovada e vigorou até 1940 (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997), quando um novo Código Penal surgiu. O surgimento das prisões e a instituição de um estabe- lecimento prisional ocorreram no final do século XIX e início do século XX, período compreendido entre a instituição do código de 1890 e a do aparato legal que garantiu sua efetiva- ção. Desde então, foi implementada uma arquitetura própria para a pena de prisão (CORDEIRO, 2006), vigorando também a projeção de celas individuais e oficinas laborativas. Apena privativa de liberdade, não obstante, conforme Fou- cault (2007), possuidora de gênese em práticas de enclausura- mento que se instituíram no exterior da teoria penal e por outras razões – como, por exemplo, as workhouses e as prisões eclesiás-
  • 30. CriminologiaS: Discursos para a Academia 18 ticas – foi assimilada, apropriada e fomentada a partir dos ideais iluministas,5 vinculando-se ao nascimento da burguesia indus- trial e do sistema de acumulação capitalista, quando a estru- turação de um modo de produção alterou também as relações sociais. “Para que a burguesia mantivesse a ordem estabelecida, era importante ter um instrumento capaz de proporcionar disci- plina e ordem, esse instrumento foi a prisão” (BARRETO, 2005, p. 18). A partir dessa concepção, pode-se perceber a relação de utilidade atribuída ao nascimento das prisões, rompendo-se com uma visão naturalista e de evolução do sistema de justiça criminal, superando a idéia de que, em detrimento dos suplí- cios, “nasceram” configurações penais humanitárias. A prisão, como pena universal, no que tange ao princípio da igualdade promulgado pelos ideais advindos da revolu- ção burguesa, assume novamente o preceito de proporcio- nalidade, se não pelo sofrimento do corpo, pelo tempo de liberdade que será subtraído dos indivíduos. “A proporciona- lidade das penas para os delitos refletia e reflete ainda a nova ideologia capitalista da sociedade: para um trabalho, um salá- rio proporcional; para os delitos, penas proporcionais” (FOU- CAULT, 2007, p. 153). Este modelo prevê a liberdade como foco central, o individualismo para competir na livre concor- rência do mercado.6 A liberdade passa a ser o foco de sanção do Estado, de modo que ao romper o pacto social os indivíduos teriam seu maior bem confiscado: a própria liberdade. É nesse cenário 5 O termo Iluminismo indica um movimento intelectual que se desenvolveu no século XVIII, cujo objetivo era a difusão da razão, a “luz”, para dirigir o progresso da vida em todos os aspectos. Mais do que um conjunto de idéias, foi uma nova mentalidade que influenciou grande parte da sociedade da época, de modo particular os intelectuais e a burguesia nascente. 6 O Liberalismo, enquanto doutrina econômica e política, mantém seu foco no indivíduo e em liberdades individuais – cada um é responsável por sua situação e obtenção dos requisitos necessários ao convívio em sociedade.
  • 31. 19 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades que se produz a categoria social do criminoso, que passa a ser concebido como um indivíduo que, de forma livre e cons- ciente, comete atos ilícitos – delitos e/ou crimes – e, por inter- médio deles, rompe de forma voluntária com a moral social garantida pelos pactos e acordos tácitos que regem e susten- tam a sociedade (FAUSTINO; PIRES, 2007). No Brasil essa assimilação iluminista das práticas de enclausuramento correspondeu, desde a independência, ao desejo de se apresentar como uma nação civilizada transitando entre uma perspectiva de acumulação primitiva, ao modo de acumulação capitalista, e uma trajetória de projetos moderni- zadores da nação. A publicação do Decreto Lei de nº 2.848 de 1940, no perí- odo do Governo Getúlio Vargas, instaurou o atual Código Penal (cuja parte geral foi alterada em 1984, através da Lei 7.209, coirmã da Lei de Execução Penal – a Lei 7.210/84), pre- vendo novas regras para o cumprimento da pena, iniciando a problematização em torno do sistema prisional. O Código Penal brasileiro de 1940 é saudado como aquele que finalmente incorpora as inovações trazidas por esta jo- vem ciência, ainda que com atraso em relação aos grandes centros e mesmo em relação a outros países da América Latina. (RAUTER, 2003, p. 67) Por volta de 1942 registram-se as primeiras estatísticas acerca da população presa, publicadas pelo serviço de Esta- tística Demográfica, Moral e Política do Ministério da Justiça (COELHO, 2006). Os resultados apontavam os selecionados pelo sistema de justiça criminal, de forma a serem os pretos e pardos de baixa renda a categoria que predominava no espaço prisional, por cometerem delitos como roubos e furtos. Na época, esses dados eram interpretados sob forte cunho moralizante, haja vista a percepção que se construiu da
  • 32. CriminologiaS: Discursos para a Academia 20 pobreza. Ao invés de se pensar a organização da sociedade como excludente de negros e pobres do processo de acumula- ção, via-se nestes o estereótipo do criminoso. O que o próprio autor vai denominar como uma “profecia autorrealizável”. Os legisladores criam o crime ao elaborar leis cuja infra- ção constituirá comportamento criminoso; e essas leis são elaboradas de tal forma que as probabilidades de serem violadas por certos tipos sociais coincidem com as pro- babilidades imputadas ao desempenho de certos roteiros típicos. Nesse sentido, a marginalização da criminalidade consiste em imputar a certas classes de comportamento probabilidades elevadas de que venham a ser realizadas pelo tipo de indivíduo socialmente marginalizado. Mais: a forma pela qual as leis são formuladas e implementadas introduz elementos de self-fulfilling prophecy. Isto é, são criados mecanismos e procedimentos pelos quais se tor- nam altas as probabilidades empíricas de que os margina- lizados cometam crimes (no sentido legal) e sejam penali- zados como conseqüência (ou, inversamente, reduzem-se as probabilidades de que os grupos de status socioeconô- mico mais alto cometam crimes ou que sejam penalizados por suas ações ilegais). Por essa forma, dá-se a criminali- zação da marginalidade. (COELHO, 2005, p.285-6) O crime e a ruptura com o pacto social, por parte das categorias selecionadas, passaram a ser encarados como con- dições pessoais, ou seja, centrando-se na (não) adaptação do indivíduo à sociedade. Tal fator não significa que a pobreza seja a grande responsável pela criminalidade, ou que só os pobres e excluídos cometam delitos, mas sim que configuram categorias sociais vulneráveis ao processo de exclusão e à san- ção do Sistema Penal.7 7 Chamamos de “sistema penal” ao controle social punitivo institucionaliza- do, que na prática abarca desde que se detecta ou supõe detectar-se uma
  • 33. 21 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades Um dos principais ângulos da funcionalidade do sistema penal, tornando invisíveis as fontes geradoras da crimina- lidade de qualquer natureza, permite e incentiva a crença em desvios pessoais a serem combinados, deixando enco- bertos e intocados os desvios estruturais que o alimentam. (KARAM, 2005, p.67) Arelação de dominação e desigualdade no sistema de jus- tiça criminal sustenta-se através do discurso de que a aplicação da pena seria uma forma de se fazer cumprir a justiça, silen- ciando, assim, as contradições sociais que estão presentes nesse processo, cuja seletividade penal8 é a principal característica. Ao problematizar as relações entre o sistema judiciário e a sociedade, Sabadell (2005) situa a perspectiva crítica de que essa relação se transforma em imposição de interesses por parte dos grupos que exercem o poder, permitindo em nível normativo que as diferenças em termos de status social sejam perpetuadas também nessa esfera pública. As desigualdades se manifestam através dos “bens” jurídicos que se produzem no sistema de justiça, ao qual nem todos possuem as mesmas riquezas para acesso. Àqueles que já estão fora do esquema de trabalho-consumo são destinados os serviços de defenso- rias públicas, cuja característica se revela pela precariedade do atendimento. suspeita de delito até que impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta é a idéia geral de “sistema penal” em sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes e funcionários e da execução penal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, p. 70). 8 Entende-se por “seletividade”, ou atuação seletiva do Sistema de Justiça Cri- minal, a incidência dos aparatos e controles deste com maior ênfase (quanti- tativa e qualitativa) em pessoas e grupos específicos, haja vista as caracterís- ticas e dinâmicas do sistema e do seu funcionamento (CHIES, Mimeo).
  • 34. CriminologiaS: Discursos para a Academia 22 Para a manutenção da funcionalidade das prisões no Brasil, e do aparato repressivo que sustenta o sistema de jus- tiça criminal, reiterando a idéia de um sistema penal, foram sendo (re)criadas categorias punitivas de modo a legitimar as ações desenvolvidas no ambiente prisional, sobretudo ações de contenção e segregação. As fontes da mudança penal e os determinantes das for- mas penais devem ser localizados não só no raciocínio pe- nológico, ou no interesse econômico, senão nas configura- ções de valores, significados e emoções que denominamos “cultura”. (GARLAND, 193, p.249) As categorias punitivas que convergem em uma cultura de controle valem-se da construção do conceito de periculosi- dade, uma categoria amplamente difundida a partir da década de 1950, quando foram criados os centros de diagnósticos para o tratamento individualizado dos que cometiam crimes. Nesse sentido, Rauter (2003, p. 27) aponta que: “O crime, que ante- riormente era definido como transgressão à lei penal, converte- -se em indício, em manifestação superficial que aponta para a personalidade do criminoso”.Aexistência de uma fusão entre a medicina e a criminologia passa a configurar-se como uma prá- tica pautada em um referencial etiológico-positivista, desenca- deando a “era da penalogia científica” (AGUIRRE, 2009). Coexistindo com esse período histórico, a sociedade brasi- leira foi marcada por ciclos de ditaduras, redefinindo o espaço prisional. Entre outros elementos (como desaparecimentos, tor- turas, mortes e exílio), a prisão política foi amplamente usada como um recurso de censura e enclausuramento do que era inconveniente, tornando-se um dos meios de eliminar diferen- ças políticas que pudessem ameaçar o ordenamento vigente. O confinamento de presos políticos é apontado como um dos fatores que favoreceu a organização, no espaço prisional,
  • 35. 23 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades entre os presos comuns e as formas de pressão e resistência para a melhoria nas condições de atendimento (PEREIRA, 1991). No entanto, esse processo não ocorreu de forma homo- gênea, pois o convívio dentro das prisões já sinalizava uma diferenciação entre ambos: desde o pavilhão que ocupavam até o tratamento que recebiam da administração penitenciária. A convivência entre os presos comuns e políticos refletia processos distintos em relação ao ambiente prisional, pois, a partir da diferenciação que representou a entrada de presos políticos, pode-se pensar na categoria social que foi constru- ída, o que lhes inferia certa superioridade moral em relação aos demais. Ao mesmo tempo, geravam visibilidade sobre o cotidiano da prisão, até então pouco problematizado. Alguns presos comuns, como estratégia de sobrevivência, agiam como delatores, situação que gerava desconforto e os separava em grupos distintos. Os presos políticos, em geral, revelavam certa animosida- de em relação a estes. Esta atitude baseava-se na degenera- ção moral e participação como informantes (delatores) da polícia política, mas também nos preconceitos raciais e de classe que os presos políticos traziam. Estes sempre trata- vam de ostentar uma superioridade moral em relação aos presos comuns e, diante de autoridades e guardas, bus- cavam aparecer como indivíduos de maior “qualidade” que o gatuno vulgar e o temível assassino. Exigiam, com energia, respeito a seus direitos e esperavam receber um tratamento adequado das autoridades o que, geralmente, significava não serem tratados “como delinqüentes” ou misturados fisicamente com estes. (AGUIRRE, 2009, p. 67) Ainda assim, houve momentos em que, face às condi- ções de vida no cárcere, os grupos precisavam juntar-se para enfrentar o poder institucional e reivindicar melhorias que
  • 36. CriminologiaS: Discursos para a Academia 24 lhes eram comuns para a sobrevivência na prisão. Por parte dos presos políticos, estes passaram a vislumbrar nos presos comuns possibilidades de conhecer a realidade carcerária em suas minúcias, de outro lado, os presos comuns enxergavam nos presos políticos o conhecimento da realidade social e jurídica e seus níveis de organização, situações que se a priori pareciam antagônicas, foram, aos poucos, constituindo um processo de complementariedade. Nesse contexto, o sistema prisional começou a redimen- sionar algumas de suas práticas. Tem-se como exemplo uma das primeiras portarias penitenciárias,9 que proporcionou a regulação das visitas e das formas de contato com o mundo externo, através das visitas periódicas ao lar, hoje transfor- madas em saídas temporárias10 (PEREIRA, 1991). Tais possi- bilidades caracterizavam-se por seu critério assistencial, haja vista a necessidade de se ter bom comportamento para obter tais vantagens em relação aos demais presos. Nos anos de 1975 e 1977 foram implantadas as primeiras experiências de regime semiaberto. O cumprimento da pena poderia ser con- vertido do regime fechado para o semiaberto, a partir de ava- liações sistemáticas que visavam à averiguação e vigilância necessárias, de forma a garantir que o preso depositário de tal confiança não cometeria novas infrações. 9 Portaria 278/JSP/GDG, publicada na revista penitenciária n° 1 – junho/77 – Impressa Oficial. (PEREIRA, 1991, p. 56) 10 As Saídas Temporárias, como direito/benefício legal, são reguladas na Sub- seção II da Seção III (Das Autorizações de Saída) do Capítulo I (Das Penas Privativas de Liberdade) do Título V (Da Execução das Penas em Espécie) da Lei de Execução Penal – Lei n.º 7.210/84 – compreendendo os artigos 122 a 125 deste diploma. Sob o ponto de vista legal, podemos considerar que as Saídas Temporárias têm por principal objetivo a gradativa reinserção do apenado no meio social, a partir do estímulo ao senso de responsabilidade e disciplina, o qual favorece seu convívio social; nesse sentido, é instituto que se compatibi- liza com a lógica do sistema progressivo da pena. (CHIES, et. al 2006, p. 138)
  • 37. 25 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades 2.2 As tendências de tratamento penal na atualidade frente à complexidade penitenciária A Lei de Execução Penal (LEP) de 1984, em vigor até hoje, surgiu como um instrumento normativo que conduz direitos e obrigações na privação de liberdade. Sob o ponto de vista da retórica jurídica, pode-se pensar que se constituiu como avanço e marco no sistema prisional por introduzir juridicamente a noção de direitos. Outra característica da LEP configura-se pela ênfase de seu artigo 1°: o cumprimento dos mandados existen- tes na sentença judicial, como também a instrumentalização de condições que propiciem a reintegração social do apenado. Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as dis- posições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condena- do e do internado. No entanto, a LEP apresenta alguns paradoxos entre dis- curso e realidade, pois, como aponta CHIES (2009), ao men- cionar a legislação, houve na retórica político-criminal uma apropriação do modo de tratar o “desviante” pautando-se pela lógica da (re)integração harmonizada ao meio social. Outro ponto destacado pelo autor é a perspectiva de existên- cia de objetivos isolados e incompatíveis para execução das condições de reintegração social, esses condensam a busca pela “justa medida” entre punição e caráter pedagógico. Pode-se identificar, sob esse prisma organizacional, a pro- blemática que envolve as instituições prisionais, nas quais a punição e a recuperação, como dimensões retributiva e socioadequadora (educativa e terapêutica) do castigo, apa- recem em igual importância como objetivos da organiza- ção – objetivos formais, legalmente estabelecidos e declara- dos pelo seu caráter racional moderno. (CHIES, 2008, p. 62)
  • 38. CriminologiaS: Discursos para a Academia 26 Como meio de operacionalização do padrão socioade- quador, são previstas, através do tratamento penal, as CTCs (Comissões Técnicas de Classificações), cujos laudos e exames criminológicos surgem como instrumentos norteadores do princípio da individualização da pena privativa de liberdade (PEREIRA, 2006), seus focos recaem sobre os comportamen- tos dos indivíduos, criando-se tratamentos diferenciados e deferências num mesmo espaço prisional. A classificação penal torna-se um elemento capaz de abordar a dimensão socioadequadora, contemplando ao mesmo tempo aspectos disciplinares cotidianos e um referencial positivista calcado na conduta do indivíduo de modo a analisar sua vida anterior à prisão a partir de critérios normalizantes, excluindo-se os contextos sociais e culturais, aos quais estão inseridos. Nesse sentido, os princípios da execução penal corres- pondem aos motes correcionalistas constituídos no séc. XX, os quais são apontados por Garland (2008, pg. 93), por ações como: “reabilitação, tratamento individualizado, senten- ças indeterminadas, pesquisa criminológica”. A partir deste ideal pautado no individuo e na construção de uma identi- dade vinculada ao crime, cria-se um híbrido entre o que autor denomina como o liberalismo do processo legal e as práti- cas punitivas de caráter correcionalista, a partir de um saber especializado. Condições pessoais de cada preso legalizam-se através das manifestações de poder por parte da instituição, que de forma maniqueísta divide a população carcerária entre bons e maus, os que merecem o tratamento penal e a atenção tute- lada do Estado, e tantos outros que são distanciados das con- dições mínimas de sobrevivência dentro do cárcere. Todos devem guiar sua conduta pelo chamado proceder carcerário, que, segundo CHIES (2008, p. 27):
  • 39. 27 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades Pode-se entender tanto pelo conjunto de regras que regu- lam o comportamento e os valores do grupo de encarcera- dos, como, também, a própria adequação fática e subjetiva dos reclusos a esse conjunto de regras. Esses critérios surgem e decorrem de vários fatores e assumem diversificados sentidos, tanto como um “prolonga- mento da lei formal”, como através de suas brechas para a criação de códigos paralelos e ainda em face da especificidade das configurações carcerárias. Atuam de modo complemen- tar e por vezes antagônico, pois podem ser pensados como estratégias de resistência e/ou sobrevivência no cárcere em suas múltiplas dimensões, desencadeando, entre outros efei- tos, o de prisionização. (CLEMMER, 1970) Os efeitos de prisionização são problematizados por Clemmer (1970) a partir da entrada dos indivíduos no sis- tema prisional, onde terão de se adaptar, necessariamente, às formas de vida daquele ambiente social, incorporando hábitos de conduta, usos, vocabulário e os códigos existentes, engajando-se na estrutura social, identificando e assumindo papéis, usando os símbolos desses papéis, seja nas vestimen- tas ou na conquista de seu espaço físico, coexistindo com os diversos grupos e lideranças. A individualização da pena, um dos princípios instituí- dos na atual configuração penal, prevê entrevistas e avaliações, através das quais possam ser apreendidas as particularidades do sujeito preso e, assim, ser aplicadas as intervenções (puniti- vas ou recompensatórias) correspondentes. Os princípios que pautam o tratamento penal hoje ainda são regidos por códigos valorativos. Os indivíduos são vistos como (não) merecedores de seus direitos, precisam conquistá-los através de seu compor- tamento. Mesmo que esses direitos tenham atingido notorie- dade através de um discurso de humanização das penas, não se
  • 40. CriminologiaS: Discursos para a Academia 28 efetivam na realidade prisional, onde outros códigos coexistem. “A prisão não é somente uma expressão passiva da violência e dos modelos culturais instituídos, mas uma geradora de rela- ções instituintes” (GUINDANI, 2001, p. 23). Por essa perspec- tiva, a existência de códigos é problematizada a partir da defa- sagem existente entre a proposta legal e a realidade intramuros. O contexto intramuros é caracterizado em sua multidi- mensionalidade e recursividade,11 através de diversos proces- sos sociais que constituem a realidade prisional. Entre estes, existem práticas que correspondem ao que Goffman (1990)12 denomina como sistema de privilégios, próprio de instituições totais. As dinâmicas que constituem o sistema de privilégios podem ser analisadas, desde o que o autor enuncia como pro- cesso de admissão, através do qual são retirados os apoios anteriores à prisão, que cada sujeito possui, como modo de preparação para o convívio no ambiente de privações. Este por sua vez, gera um processo de mortificação, pelo qual são diri- gidos recursos ao controle diário. Como elo entre o eu mortifi- cado e o sistema institucional e organizacional são acionados privilégios atentando à reorganização pessoal. Ao mesmo tempo em que o processo de mortificação se de- senvolve, o internado começa a receber instrução formal e 11 Através do processo recursivo (MORIN, 2001) presente em um sistema com- plexo como a prisão, tem-se uma ruptura com a ideia simplificadora e linear de causa/efeito, uma vez que tudo que é produzido retroage sobre o que produziu. Nesse sentido, o sistema prisional através de suas dinâmicas que são produzidas a partir das interações entre indivíduos, retroage com num ciclo autoprodutor. 12 O estudo feito Erving Goffman (1990) foi realizado em hospitais psiquiá- tricos, no entanto, o autor ressalta que qualquer grupo de pessoas, desde prisioneiros até pacientes desenvolvem um estilo de vida própria a partir do nível de institucionalização ao qual estão expostos. Ressalta também, que para conhecer estes mundos distintos é preciso submeter-se à companhia dos que participam destas conjunturas.
  • 41. 29 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades informal a respeito do que aqui será denominado sistema de privilégios. Na medida em que a ligação do internado com seu eu civil foi abalada pelos processos de despoja- mento da instituição, é em grande parte o sistema de pri- vilégios que dá um esquema para a reorganização pessoal (GOFFMAN, 1990, pg. 49-50). São processos de expressões das relações internas e práti- cas orientadas a um assujeitamento, entretanto, não é vivenciado passivamente sem reações. Pois coexistindo ao sistema de privi- légios, perpassando por processos como admissão e mortifica- ção, há resistência dos sujeitos encarcerados frente ao ambiente de privações. Entre estes, destaca-se o acesso (ou não) aos ser- viços de tratamento penal, incluindo assistência social, jurídica, médica, psicológica, educacional, etc. Bem como, o nível de pri- vações encontradas nos ambientes prisionais, que se configuram como motivadoras para a organização dos presos em grupos. A presença de grupos e facções no sistema prisional gaú- cho é abordada de modo geral através de pesquisas produzi- das sobre a realidade do Presídio Central de Porto Alegre, ou em produções bibliográficas que demonstram a influência das facções no regime semiaberto. Ao ter como foco de análise as relações entre as facções do Presídio Central de Porto Alegre, (SALLIN, 2009) revela a priori a formação dos grupos, que não necessariamente desenvolvem relações de lealdade e cumpli- cidade entre si. No contexto exemplificado, os grupos mencio- nados são: os “Crentes” (que possuem em comum o fato de expressarem uma crença religiosa, em sua maioria católicos ou evangélicos), os “Duque” (presos que cometeram crimes sexuais, não sendo aceitos pelos demais, organizando seu pró- prio espaço) e mais um grupo formado por presos que pos- suem nível de escolaridade superior, policiais e funcionários da SUSEPE.
  • 42. CriminologiaS: Discursos para a Academia 30 Guindani (2002) ao referir os grupos prisionais, destaca o grupo dos trabalhadores, pois para os demais, independente do pertencimento às facções, a representação do preso trabalhador, significa aceitar o poder formal do sistema. Entretanto, através de um sistema recompensatório que legitima as ações de trata- mento penal, existe a possibilidade, por parte deste grupo, de maior acesso aos setores administrativos e técnicos, do mesmo modo que podem usufruir com mais facilidades do sistema progressivo da execução penal. Por outro lado, enfrentam pro- blemas quanto à sua própria segurança, sobretudo, quanto à progressão de regime. Nos contextos de regimes semiabertos existe maior vulnerabilidade ao comando das facções. A Colônia Penal Agrícola está sob o comando dos “ma- nos”, o Instituto de Mariante e Casa Miguel Dario estão sob o comando dos “brasas”. Porém o regime semiaberto não está estruturado para atender a essa pseudo-indivi- dualização, o que se tornou um fator motivador dos al- tos índices de fuga que vêm acontecendo nesse regime. (GUINDANI, 2002, p. 110) Quanto à presença das facções no regime fechado, dife- rem dos demais grupos pela sua constituição, caracterizando- -se pelos laços de pertencimento, fidelidade ou submissão aos líderes (SALLIN, 2008), somando-se a estes aspectos, pode- -se aferir a forte rivalidade entre os grupos, que muitas vezes derivam do contexto do tráfico de drogas, tanto intramuros, quanto extramuros.13 No Presídio Central, os grupos/facções são denominados “Os Manos”, “Os Unidos pela Paz” e “Os Aberto”. Esses 13 Além das facções identificadas no presídio central, existem outras no con- texto prisional gaúcho, os exemplos aqui citados correspondem às pesquisas encontradas que abordam essa temática.
  • 43. 31 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades estão organizados em galerias, onde há, em média, tre- zentos presos e, entre esses, aproximadamente trinta esta- riam ligados diretamente ao comando das facções, sendo esse subgrupo composto pelo líder e seus auxiliares. O lí- der é chamado de “plantão”, “prefeito” ou “representante da galeria”, e é escolhido pelo grupo de presos que estão comprometidos com a facção, levando em consideração sua capacidade de liderança, negociação e autoridade. (SALLIM, 2008, p.18) Referindo-se às rebeliões no estado de São Paulo, Salla (2001) menciona os arranjos e concessões cotidianos, per- tencentes à teia de relações prisionais, como motivadores de eventuais rebeliões, sobretudo, em momentos onde há enfraquecimento das interações entre os grupos prisionais. Por esse enfoque, a resistência dos apenados não são apenas motivadas pela falta de assistência aos mínimos sociais na prisão, mas fazem parte de uma rede complexa que perpassa também pelo poder formal exercido pelos demais grupos que fazem parte deste cotidiano. A partir dos elementos citados, que envolvem tanto a relação de obediência ao poder formal quanto à resistência e reconhecimento de que existe um poder informal produ- zido pelas interações entre grupos prisionais, evidencia-se a dimensão dialógica da execução penal. Através da concepção dialógica, ou seja, da consideração de que existem diferen- tes lógicas em um mesmo processo, a noção de disciplina se interliga à de delinquência. As organizações tem necessidade de ordem e necessidade de desordem. Num universo onde os sistemas sofrem o aumento da desordem e tendem a desintegrar-se, a sua or- ganização permite reprimir, captar e utilizar a desordem. (MORIN, 2001, pg. 129)
  • 44. CriminologiaS: Discursos para a Academia 32 No contexto de ordem/ desordem que permeia o intri- cado cotidiano prisional, o fator disciplina corresponde ao modo de se atingir o controle a partir das práticas correciona- listas que são alcançadas através dos parâmetros classificató- rios. Estes estão presentes por meio de avaliações e classifica- ções, que além da funcionalidade para obtenção de progres- sões, permeiam o próprio tratamento penal. De outro lado a produção da delinquência (FOUCAULT, 2006) sobrepõe-se através da resistência, produzida pelo próprio sistema em suas interações. Morin (2001) considera o fator jogo como fator de desordem, mas também de maleabilidade. Desse modo, o jogo entre disciplina e delinquência constitui-se como balizador entre aspráticasdeexecuçãopenal,chegando ao limite de um controle perverso para manutenção da (des) ordem. Por parte dos sujeitos aprisionados, têm-se os códigos do cárcere os quais são analisados por Barbato Junior (2007) como códigos prisionais extremamente rígidos. Nesse sen- tido, as condutas dos apenados passam a ser regidas por valo- res sociais, alheios ao poder formal, interagindo através de uma normatividade autônoma às leis jurídicas. Vejamos como o código normativo do cárcere opera as re- lações políticas na prisão. Várias são as formas pelas quais se estrutura o poder nos presídios; de acordo com a facção à qual pertence o detento, há um padrão de comportamento a ser seguido. No mais das vezes, separados em pavilhões distintos, cada grupo estabelece a maneira de proceder em certas circunstâncias. Como em quase toda organização, é o líder quem define as sanções a serem imputadas aos infrato- res do código imperante. (BARBATO JUNIOR, 2007, p. 55) O conjunto destes códigos e práticas convergem a formas de controle perverso que habitam as dinâmicas prisionais. Sobre o controle perverso, Chantraine (2006), menciona os
  • 45. 33 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades mecanismos divisórios, cuja constituição produz uma divi- são maniqueísta entre os “homens de bem” e os “homens do mal”, o que na prisão se expressa através dos códigos morais, também exercidos pelos profissionais em suas atividades. Ao “bom bandido”, servil e obediente perante os mecanismos de controle do Estado, passam a ser ofertados seus direitos assegurados na LEP, de acordo com sua virtualidade (FOU- CAULT, 2005), já o “mau bandido”, que não submete seu corpo ao poder instituído, passa a ser visto como duplo trans- gressor, que, além de ter infringido as normas sociais através do cometimento do crime, é essencializado14 por não obedecer às regras de bom comportamento dentro da própria prisão. As estratégias construídas pelos presos são normalmente interpretadas pelos profissionais de forma maniqueísta, a partir do referencial etiológico/positivista que reforça o olhar calcado na anormalidade e no diagnóstico de uma patologia. (WOLF, 2005, p. 176) Nessaperspectiva,pode-sepensarnadimensãovalorativa15 como uma prática recorrente, nos espaços prisionais, sendo a criação de estereótipos um meio de se obter subserviências entre a população carcerária com seus diferentes grupos e sistemas. Compreende-se que, numa sociedade diferenciada, o efei- to de universalização é um dos mecanismos, sem dúvida 14 Segundo Young (2002) a essencialização ocorre a partir do distanciamento socialmente produzido e aplicado ao outro, de categorias sociais diferentes, de modo a naturalizar condutas a partir de ações individuais sem problema- tizar as circunstâncias sociais que as produzem. 15 Vários estudos que abordam as relações no interior das prisões revelam essa dimensão valorativa “bom preso x mau preso”. Entre estes, ver: HASSEN (1999), “O Trabalho e os dias”; COELHO (2005), “Oficina do Diabo e outros escritos prisionais; PEREIRA(1991), “Um estudo dos valores dos Assistentes Sociais no sistema penitenciário”.
  • 46. CriminologiaS: Discursos para a Academia 34 dos mais poderosos, por meio dos quais se exerce a do- minação simbólica ou, se prefere, a imposição da legiti- midade de uma ordem social. A norma jurídica , quando consagra em forma de um conjunto formalmente coeren- te regras oficiais e, por definição, sociais, ‘universais’, os princípios práticos do estilo de vida simbolicamente do- minante, tende a informar realmente as práticas do con- junto de agentes, para além das diferenças de condição e de estilo de vida: o efeito de universalização, a que se poderia também chamar efeito de normalização, vem au- mentar o efeito de autoridade social que a cultura legítima e os seus detentores já exercem para dar toda a sua eficá- cia prática à coerção jurídica (BORDIEU, 1989, p. 246). O tratamento penal com base na individualização, ori- ginado a partir de uma lei que introduz a noção de direitos no espaço prisional, encobre ambiguidades, pois não propor- ciona as condições necessárias para o enfrentamento das vul- nerabilidades sociais e penais às quais os sujeitos são expos- tos. Trata-se de uma sistematização de mecanismos punitivos que não dão conta de atender às reais necessidades da popu- lação carcerária, que, não obstante, em sua grande maioria caracteriza-se por situações de desigualdade social. Segundo Busso (2008, p. 8), a vulnerabilidade pode ser pensada como: Un proceso multidimensional que confluye en el riesgo o probabilidad del individuo, hogar o comunidad de ser herido, lesionado o dañado ante cambios o permanencia de situaciones externas y/o internas. La vulnerabilidad social de sujetos y colectivos de población se expresa de varias formas, ya sea como fragilidad e indefensión ante cambios originados en el entorno, como desamparo ins- titucional desde el Estado que no contribuye a fortalecer ni cuida sistemáticamente de sus ciudadanos; como de- bilidad interna para afrontar concretamente los cambios
  • 47. 35 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades necesarios del individuo u hogar para aprovechar el con- junto de oportunidades que se le presenta; como insegu- ridad permanente que paraliza, incapacita y desmotiva la posibilidad de pensar estrategias y actuar a futuro para lograr mejores niveles de bienestar. As intervenções realizadas no interior das prisões, se pau- tadas por critérios individualizantes, recolocam no indivíduo a culpabilização por sua condição social, não possibilitando o questionamento e a reflexão sobre a sociedade excludente que produz as situações conflitivas bem como modos de resistência ao contexto social. Tais práticas têm como foco a reprodução da seletividade social e penal que há na sociedade extramuros, da qual são parte e expressão. Evidencia-se a particularização da Questão Social16 nos próprios indivíduos, e não o sistema penitenciário como expressão da Questão Social. As expres- sões que se manifestam no sistema penitenciário perpassam circunstâncias de pobreza, não acesso à proteção social, preca- rização das relações de trabalho, entre outras, configurando a realidade social dos sujeitos presos e seus familiares. Questão social e penalidade são normalmente vistas como dois processos independentes; quando se estabelece uma relação entre ambas é para identificar, de forma simplista, pobreza e criminalidade. No entanto, esta relação é mais complexa, pois estes dois aspectos originam-se no mesmo contexto econômico e social e, por isto, possuem as mes- mas motivações e determinações. Faces da mesma moeda são também as políticas públicas que daí emergem: por 16 As principais manifestações da “questão social” – a pauperização, a exclu- são, as desigualdades sociais – são decorrências das contradições inerentes ao sistema capitalista, cujos traços particulares vão depender das caracterís- ticas históricas da formação econômica e política de cada país e/ou região. Diferentes estágios capitalistas produzem distintas expressões da “questão social” (PASTORINI, 2004, p. 97)
  • 48. CriminologiaS: Discursos para a Academia 36 um lado, a questão social e como sua decorrência as po- líticas sociais, e, por outro, a delinqüência e as políticas criminais. (WOLF, 2005, p. 1) Young (2002) diferencia a sociedade atual por sua carac- terística excludente, sobrepondo-se às ações que outrora direcionavam as políticas penais no sentido de serem inclu- sivas com relação ao desvio, ou seja, através de uma série de aparatos que visavam incluir o que estava fora do esquema trabalho-consumo. Por essa linha de pensamento, sobretudo, no período posterior aos anos 1980, houve uma transforma- ção no modo de tratar a exclusão, atentando ao sentido de eliminação do que está fora do circuito social que engloba os consumidores falhos (BAUMAN, 1999). Trata-se de um processo de duas partes, implicando em primeiro lugar a transformação e a separação dos mer- cados de trabalho e um aumento maciço do desemprego estrutural, e em segundo a exclusão decorrente das tenta- tivas de controlar a criminalidade resultante das circuns- tâncias transformadas e da natureza excludente do pró- prio comportamento anti-social (YOUNG, 2002, pg. 23). Os efeitos da globalização17 e do neoliberalismo18 também se manifestam no sistema penitenciário, através de dispositi- 17 Em termos de globalização, pode-se pensar que há uma ampla mobilidade do capital e dos capitalistas, volatilidade dos investimentos e deslocamentos de capitais financeiros e bases industriais espalhadas em todos os países; co- existindo com este processo, as suas “conseqüências humanas”, os “párias” gerados pelo modo de produção capitalista, são cada vez mais abandonados à própria sorte, pois a globalização, ao mesmo tempo em que se utiliza de mão-de-obra barata, a descarta deixando grupos de seres humanos à mercê de seus efeitos voláteis (BAUMAN, 1999). Por Estado penalizador, procu- ram-se mostrar dimensões atuais dos efeitos da globalização nas segrega- ções, confinamentos e extermínios de populações pobres (PASSETI, 2003) 18 Neoliberalismo aqui entendido enquanto uma corrente de pensamento e também uma prática político-econômica baseada nas idéias dos pensadores
  • 49. 37 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades vos de controle sobre a população encarcerada, os quais, cada vez mais, estabelecem uma relação de confinamento das cate- gorias indesejáveis ao processo de retroalimentação capitalista. (MÉSZÁROS, 2002) A dialógica de formas sociais que marcam as origens da prisão com aparência de modernidade, encobrindo práticas de barbárie, não se encontra apenas no passado, pois se reapre- senta no curso da história através de renovados mecanismos de tratamento penal que configuram as desproporcionalida- des punitivas e excludentes. Desse modo, tem-se um percurso de modelos prisionais que aprimoram suas “técnicas” penais, mas, ainda assim, como em uma malha de subtrações, reti- ram dos indivíduos possibilidades, pois se antes tais técnicas foram marcadas pelos suplícios corporais, hoje deixam suas marcas através de uma rede complexa, culminando em uma configuração penal que perpassa subjetividades, vulnerabili- dades, seletividades e, até mesmo, o corpo dos aprisionados. economicistas, defendendo uma redução da ação do Estado no social (AN- DERSON, 1995).
  • 50.
  • 51. 39 3. Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário A história recente estampa uma sociedade disciplinadora e punitiva na qual a vigilância, o controle e as medidas preventivas se superpõem às penas estabelecidas, em culpas assumidas ou mascaradas, na rejeição ou complacência consigo mesmo, na admiração e/ou inveja pelo outro, na sujeição e/ou dominação de si pelo outro. Uma visão confusa que mistura e alterna papéis nas micro e macroinstâncias de poder (in) visível que estabelecem portas de acesso ao mundo social ou de exclusão dele. Vive-se sob um estado de suspeição e de prevenção, a fim de tornar (in) visível aquilo que assusta, que incomoda, para a introjeção das separações, da impotência e da pequenez do homem. Heleusa Câmara As formas de controle na sociedade disciplinar se dão em diferentes contextos e âmbitos da vida em sociedade. A orga- nização de instituições basilares para o disciplinamento dos indivíduos transfere às famílias um papel central na manuten- ção dos paradigmas sociais que a precedem e a constroem.
  • 52. 40 CriminologiaS: Discursos para a Academia A inserção das famílias nas dinâmicas prisionais reveste- -se de mecanismos disciplinadores, antagônicos e complemen- tares, os quais serão apresentados neste capítulo, como base de compreensão para análise das histórias apresentadas no decor- rer da dissertação. Destaco, também, as previsões legais e as punições instituídas no interior dos estabelecimentos penais, através de uma rede de aspectos que envolvem as famílias em suas dinâmicas e as ambiguidades correspondentes. 3.1 Família: Rainha e Prisioneira do Social Rainha e Prisioneira do Social é uma expressão utilizada pelo autor Jaques Donzelot (1986), em seu livro “A Polícia das Famílias”, ao tratar da complementariedade das configu- rações que as famílias assumem na sociedade em um mesmo processo. Coexistem diferentes lógicas ao se pensar a relação entre Família e Estado, pois esta se torna Rainha, sendo o foco de atenção, através de mecanismos coercitivos, pelos quais ela detém o controle de seus membros e, ao mesmo tempo, prisioneira, por ser o lócus onde todas as instituições1 se fazem presentes. Nesse sentido, as famílias vivenciam um processo de auto-ecoorganização, que segundo Morin (2001) caracteriza- -se pela autonomia/dependência em relação ao meio. Assim, a autonomia alimenta-se da dependência, esta compreendida a partir da educação, da linguagem, dos valores sociais de cada época e culturamente produzidos. 1 Instituições aqui pensadas como lógicas. São árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser hábitos ou regularidades de comportamentos. (BAREMBLIT, 2002, p. 15) Nesta perspectiva, pode se considerar a educação, a cultura, a política, a punição e a própria família.
  • 53. 41 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário No período em que se edificam as prisões, a sociedade também se encontra vigiada e encarcerada, e é neste contexto que o disciplinamento social2 ganha espaço como forma de prevenção geral e controle do que os indivíduos podem vir a fazer ou não. O conjunto de instituições que regem a socie- dade disciplinar, para além do enclausuramento em estabe- lecimentos prisionais, ampliou-se no campo social, transfor- mando as situações conflitivas em objeto de investigação e vigilância, como aparelhos e técnicas para gestão das massas humanas. (RAUTER, 2003) Para que ocorra a conformação do disciplinamento e da vigilância sociais, é necessária a formação de instituições capazes de assegurar a ordem vigente, de modo que os pro- cedimentos de controle e observação, presentes na prisão, transformam-se, também, em mecanismos policialescos para manutenção da sociedade como um todo. “Ordem” permitam-me explicar, significa monotonia, re- gularidade, repetição e previsibilidade; dizemos que uma situação está – em ordem – se e somente se alguns eventos têm maior probabilidade de acontecer do que suas alter- nativas, enquanto outros eventos são altamente imprová- veis ou estão inteiramente fora de questão (BAUMAN, 1999, p. 66). Nesse contexto, a instituição família torna-se um ele- mento fundamental para a estruturação da sociedade disci- plinar. Ao mesmo tempo em que família pode ser conside- 2 O disciplinamento social é uma modalidade de aplicação do poder que aparece no início do século XIX e expande-se ao social de forma a vigiar e controlar condutas e comportamentos. A disciplina não nasceu neste sé- culo, existia dentro de instituições, e neste período torna-se uma fórmula de dominação para toda sociedade, através da conduta dos corpos-dóceis. (FOUCAULT, 2005)
  • 54. 42 CriminologiaS: Discursos para a Academia rada como o termo que designa a relação entre indivíduos, também pode ser pensada como a instituição que rege esses laços. Enquanto instituição, está submersa em universos de significações totalizantes, normas que podem produzir com- portamentos em favor de subjetividades, as quais constroem jeitos de ser e estar no mundo. A conexão que se estabelece entre famílias e mecanismos policialescos (DONZELOT, 1986) rege-se por linhas normati- vas do social, a fim de determinar e construir um sentimento de família, moldando, assim, estilos e condutas no que tange à organização e estruturação familiar. Não obstante, repre- senta a própria noção de sociedade que se constrói, na inter- secção histórica e social de paradigmas que estão em cons- tante mutação. Tal é o fundamento da ontologia específica de grupos sociais (famílias, etnias, ou nações): inscritos, ao mesmo tempo, na objetividade das estruturas sociais e na subje- tividade das estruturas mentais objetivamente orquestra- das, eles se apresentam à experiência com a opacidade e resistência das coisas, ainda que sejam o produto de atos de construção que, como sugere certa crítica etnometo- dológica, aparentemente os remete à não existência das criaturas puras do pensamento. (BORDIEU, 1996, p. 128) Vários são os estudos acerca das famílias, estes vão desde a sua origem até as tentativas de entender sua estrutura. Neste item, enfoco como se deu a construção de um modelo de família no imaginário social. Fonseca (2006) afirma que a família foi sendo reduzida a compartimentos, como forma de enclausuramento progressivo. Tal realidade teve início no século XVIII, através da con- solidação do Estado e da propriedade. A partir da individuali- zação dos salários, as redes extensas de parentela foram redi-
  • 55. 43 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário mensionadas, formando-se núcleos familiares geralmente compostos por um casal e seus filhos. Ao mesmo tempo em que esse ideal ampliou-se, só foi atingido plenamente nas famílias burguesas, quando as mulheres, ao abdicarem da parceria no comércio e demais atividades extradomésticas, foram confinadas ao espaço privado: a casa. Frente a esse contexto, foram construídas categorias sociais a fim de propagar o modelo de estrutura familiar nuclear, sustentando-se no discurso científico e sanitário. O discurso masculino e moralizante dos médicos e sanitaristas procurava persuadir “cientificamente” a mulher, tanto das camadas altas como das baixas, à sua tarefa “natural” de cria- ção e educação dos filhos. Através do saber médico, foi disse- minada a valorização do desempenho da “boa mãe”, criando- -se o mito do amor materno. Nessa perspectiva, foram reali- zados projetos para regulamentar o serviço das amas de leite, visando a eliminar as impurezas transmitidas de uma catego- ria social à outra através da amamentação. (RAGO, 1997) Por esse estereótipo, a “nova” mãe passa a ser vista como a rainha do lar, criando-se uma oposição entre o espaço doméstico e o espaço da rua. O espaço privado (doméstico) é por conjectura associado ao lugar de formação do caráter das crianças, onde se adquirem os traços que definirão a conduta da nova força de trabalho. Criam-se dois estereótipos da mulher: a dona de casa e a mulher da rua. A prostituição passa a ser objeto de investi- gação da ciência e é classificada pelo saber médico como um vício. Havia um controle rígido da vida cotidiana da prosti- tuta, de forma a se acumular conhecimento sobre a mulher “pública” e difundir-se o estereótipo da puta. (RAGO, 1997) Às crianças, foram direcionadas medidas educacionais corretivas, geralmente com a ajuda de especialistas. A ade-
  • 56. 44 CriminologiaS: Discursos para a Academia quação a esse formato não se deu de forma homogênea entre aqueles que não possuíam os mesmos recursos das famílias burguesas. Assim, iniciaram-se as medidas coercitivas aos grupos que resistiam a esse modelo. Em seu estudo antropológico, Fonseca (2006) problema- tiza a naturalização acerca das famílias, rompendo com esse mito, pois constata o enorme leque de organizações familiares na realidade brasileira, dando prova da criatividade humana para (re)inventar as relações domésticas e sociais, como, por exemplo, a prática de circulação de crianças entre as classes populares coexistindo com as práticas de disciplinamento. No cenário social correspondente a esse período, regis- tra-se a construção acerca da família e da higienização da pobreza no Brasil (RAGO, 1997), de modo que a instituição do imaginário social em torno da família pudesse dar conta das novas configurações do capitalismo urbano-industrial, sendo as famílias, um meio de contenção do desvio, regulando, tam- bém, as relações entre os sujeitos. Constitui-se na sociedade e, paralelamente, dentro das prisões um complexo tutelar (DONZELOT, 1986) por parte do Estado, com o intuito de eliminar diferenças, sendo as ins- tituições assistenciais e policiais as responsáveis pela propa- gação de uma identidade moralizada e tutelada. No entanto, a adaptação a esse modelo não se deu de modo uniforme, em vista dos diversos arranjos familiares e da predominância da família extensa entre os grupos populares. (FONSECA, 2006) As medidas repressivas desencadeadas pela adequação a esse formato implicaram a atenção normatizante do Estado, visando ao saneamento social (RAGO, 1997). Dessa forma foram criadas as casas de correção, que tinham por objetivo “limpar” os espaços públicos, retirando da rua o que era inconveniente.As estratégias para a coação também contavam
  • 57. 45 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário com a ajuda de tutores e voluntários de famílias “superiores”, que através de suas benesses cerceavam de perto as configu- rações do social, para que não ocorresse nenhum desajuste. Inicia-se, assim, um modelo de família conjugal e nuclear que, por mais que seja debatido e contestado, naturalizou-se através do imaginário criado. Mead (1987) constata que pen- sar em família na modernidade é pensar em um número cada vez menor de pessoas, pois se antes o grupo familiar agre- gava, hoje, separa. Um exemplo é a exclusão gradativa que os avós vêm sofrendo, sendo expurgados do convívio familiar. A época de amor líquido, como aponta Bauman (2004), também é a época do convívio destruído. Entretanto, não se trata aqui de fazer um juízo de valo- res, afirmando qual modelo de família é melhor, mas de pen- sar que o “exemplo” atual não é natural, é uma construção social que foi naturalizada e, por ser um modelo, jamais vai dar conta das plúrimas relações familiares. Os preconceitos em relação a outras formas de se vivenciar essas relações não isentam a família nuclear, pois há uma produção do papel de cada sujeito, uma padronização afetiva. Um exemplo é a situação de casais homossexuais e a luta que enfrentam para adotar uma criança. A formação desse ideal de família acompanhou proces- sos históricos, sociais e políticos, pois sua implicação social também é elemento de disputas, embates e lutas. Portanto, ao mesmo tempo em que a família é atacada, também é defen- dida. De acordo com Donzelot (1986), os defensores da famí- lia são os conservadores e partidários de uma ordem esta- belecida centrada na hierarquia familiar, que manifesta um regime político liberal, por nela enxergarem a preservação da propriedade privada e uma barreira à intervenção do Estado, pois, se a família encaixa-se nesse modelo, não necessita de
  • 58. 46 CriminologiaS: Discursos para a Academia uma intervenção estatal que a reestruture. De outro lado estão os que atacam a família, socialistas utópicos ou científicos, que o fazem por enxergar na família as mesmas funções das classes dominantes, acreditando que o desaparecimento da instituição família pode se dar por um regime socialista; estes desconsideram a produção de subjetividades, como se um regime político pudesse propor o fim de uma verdade natu- ralizada no imaginário social. No âmbito da Seguridade Social, que envolve Saúde, Pre- vidência e Assistência Social, no que se refere à última, tem-se na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), aprovada em 2004, um enfoque na família como elemento central; isso ocorre tanto através de programas direcionados, como por meio de responsabilidades que lhe vão sendo deslocadas gra- dualmente, pois o regime está pautado por uma orientação familista: a família como o centro de responsabilidades para que sejam efetuadas ações, por parte dos programas. Família, independentemente dos formatos ou modelos que assume, é mediadora das relações entre os sujeitos e a coletividade, delimitando, continuamente, os desloca- mentos entre o público e o privado, bem como geradora de modalidades comunitárias de vida. (SUAS, 2004, p. 35) No entanto, cabe questionar a centralidade da família nesse novo marco regulatório, pois vem sendo desencadeado um processo gradativo de familização social, através do qual, é de responsabilidade das famílias suprir não somente o “bem estar” de seus membros, como também os direitos que lhes vêm sendo negados pelo Estado. Mesmo com uma concep- ção mais aberta, a PNAS gera as mesmas expectativas sobre o papel das famílias e recoloca na figura materna seu prin- cipal elemento. Ou seja, ainda que avance na concepção de
  • 59. 47 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário famílias, esbarra nos papéis familiares, pois, nesse sentido, as famílias transformam-se em um instrumental para a PNAS. Os ordenamentos jurídicos, muitas vezes, não acompa- nham os novos desenhos dos grupos familiares, fato que, inclusive, compromete a ação governamental, dado que ao administrador público só é legítimo agir dentro do que a lei autoriza. Há, em curso, um descompasso entre o que “deve ou se supõe ser” e o que “está sendo”. Há um des- compasso entre o “vivido”, o “idealizado” e o “legislado”. (FONSECA, [A] 2006, p. 3) O processo de familismo social é abordado por Sánchez Vera; Díaz (2009, pg. 122) ao citar o caso espanhol: El familismo de la sociedades está frecuentemente ligado a las limitaciones que presentam lós Estados de Bienestar al hacer recaer sobre ellas um protagonismo excessivo. Referido a La sociedad española, lós câmbios sociales han sido importantes y rápidos, hasta el extremo que em algu- nos casos puedem transmitir la imagem de crisis familiar, pero sim embrago, la familia goza de uma gran salud y sigue siendo de manera constante la institución más valo- rada por lós españoles. O exemplo espanhol, apesar de considerar as limitações do Estado de Bem-Estar, que não se emprega à realidade bra- sileira, pode ser considerado a partir da ideia de proteção social, e neste sentido, as limitações do Estado em fornecer tal proteção. Frente às limitações, o recurso estatal recai sobre a família como fonte de proteção e cuidado entre seus membros, desencadeando um processo excessivo de protagonismo, que muitas vezes distancia-se da realidade das famílias brasileiras. Com relação à familização nas políticas de tratamento penal, este processo é abordado por Jardim; Santos; Aguinsky