A carta expressa solidariedade a Lula e indignação com a situação política no Brasil desde o impeachment de Dilma em 2016. A autora conta como cresceu em um bairro pobre em São Paulo e como as cotas raciais permitiram que ela frequentasse a USP, onde se formou em Ciências Sociais. Ela mora na França há 10 anos e vê Lula como uma figura respeitada por lá, ilustrando a mobilidade social.
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Querido Lula,
Escrevo-lhe para expressar minha solidariedade a sua pessoa e minha imensa indignaçao com a situaçao
de regressao de direitos no Brasil, que se degrada desde o golpe de 2016 que destituiu a querida
presidenta Dilma Roussef.
Nasci em 1984 e vivi até os 19 anos no bairro do Grajau, localizado no extremo sul da cidade de Sao Paulo
e considerado por algumas pesquisas como um dos bairros mais pobres e deficientes em serviço publico
da cidade de Sao Paulo. Os indices de violência sao elevados e os locais de lazer praticamente
inexistentes.
Desde pequena minha mae, pernambucana da cidade de Pesqueira, dizia : « Eu so quero uma coisa na
vida : ver Lula ser presidente. Se Lula for presidente, eu posso morrer tranquila ». Essa declaraçao me fez
desde cedo ter um afeto muito grande pela vossa figura.
Lula e o PT fazem parte da minha vida, sao lembranças de enfância.
Em 2004, entrei pela porta dos fundos no curso de Ciências Sociais na USP. Passei raspando da primeira
para a segunda fase do vestibular graças aos três pontos que ganhei pelas cotas sociais (que atribuiam
um ponto por cada ano do Ensino Médio passado em escola publica). Fui morar no CRUSP, residência
estudantil. Na USP, eu me sentia a mais pobre e, consequentemente, a mais burra, a que tinha lido menos
por ter menos livros, a que sabia menos porque nunca tinha viajado durante as férias e que passava todo
o tempo livre em frente à TV.
Enfim, com muito sufoco, formei-me na USP em dezembro de 2008. No dia 25 de janeiro de 2009, eu
embarquei para a França para ser Fille Au Pair (baba). Em 2019 fara 10 anos que moro no exterior. A
imigraçao é algo muito dificil de se explicar. Acho que somente quem passou por essa experiência sabe as
alegrias e as tristezas dessa situaçao. Muita gente pensa que eu nao devo dar palpite sobre a situaçao no
Brasil pois ja faz muito tempo que nao moro no pais. Assim, alguns acham que eu deveria calar a boca.
Esse é um pensamento autoritario que acha possivel eu esquecer o pais onde eu nasci e onde eu vivi até
meus 24 anos.
Justamente, o fato de ver de fora o que se passa no Brasil, me faz ter um outro olhar. Além disso, vejo
como as coisas se passam nos paises onde as desigualdades sociais sao menos gritantes que as do Brasil.
Saiba que aqui na França e por onde eu passei pela Europa o senhor é uma figura muito respeitada. Uma
vez um françês me disse que ele tinha inveja dos brasileiros pois, visto o alto grau de elitizaçao da politica
francesa e o desinteresse dos mais pobres pela politica, seria quase impossivel a França ter um
presidente opérario oriundo das classes populares como o senhor.
Fiz meu mestrado na Universidade Paris 7-Diderot. Depois de muito trabalhar em empregos subalternos
aqui na França, eu consegui em setembro de 2016 virar professora de S.E.S (ciências economicas e
sociais), uma disciplina que mistura economia, sociologia e ciência politica e que é ministrada somente
no Ensino Médio. Para a minha surpresa, quando comecei a procurar ajuda nos manuais de S.E.S para
construir os meus cursos, deparei-me com exercicios que utilizam o senhor para ilustrar a noçao de
mobilidade social. A sua historia de superaçao é contada nos manuais françeses. Eu fiquei super
orgulhosa. Envio ao senhor as xeros como prova.
Termino por aqui pois quero guardar conteudo para as proximas cartas que escreverei ao senhor. Espero
que essas linhas te tragam um pouco de conforto.
Um grande abraço com muito afeto ao querido e eterno presidente Lula. Força !
Aline
PS : Milhares pensam no senhor nesse momento mas nao sabem como escrever ou tem medo.