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339
BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. Trad. Ana Luísa
Amêndola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2003.
VICTOR HUGO GOMES LOPES*
A identidade funcional da polícia somente
é de fato conhecida quando focada nos aspectos
do trabalho policial. A vaga noção de mero
instrumento estatal de coação física, aos moldes
de Max Weber, não é suficiente para dar-lhe
identidade específica como agente social. Desde
a criação da polícia moderna, a partir dos moldes
adotados na Inglaterra na metade do século
XIX, suas atribuições sofreram alterações pro-
fundas; de mecanismo estatal de controle de
manifestações públicas à atual tentativa em se
construir um modelo de polícia comunitária, a
instituição passou por mudanças ao longo dos
anos, durante os quais uma geração procura
aprimorar a atuação da anterior.
O livro Aspectos do trabalho policial, do
sociólogo norte-americano Egon Bittner, editado
no Brasil pela Edusp para a coleção Polícia e
sociedade, reúne quatorze de seus principais
estudos, divididos entre artigos e ensaios, com
enfoque sobre as diferentes maneiras de se
atuar como um policial na sociedade contem-
porânea. A obra cobre 25 anos de pesquisas
empíricas de Bittner – algumas inclusive etno-
gráficas – e estudos que resultaram em confe-
rências e workshops. O autor auxiliou na criação
da Commission onAccreditation for Law Enfor-
cement Agencies (Calea), que instituiu um
prêmio anual, batizado com seu nome, para
chefes de polícia.
A obra de Bittner auxilia na compreensão
das alterações pelas quais têm passado o trabalho
da polícia. Os estudos do autor são focados na
polícia norte-americana, apesar de recorrentes
citações sobre modelos da polícia européia, em
especial a inglesa e a irlandesa. Bittner procura
alicerçar as bases de uma sociologia da polícia
– que se soma aos estudos de outros autores,
como Eric Monkkonen, Jean-Claude Monet e
Herman Goldstein, além de criminólogos como
Edwin Sutherland.
O autor, em um interessante estudo sobre
as skid rows (áreas deterioradas), indica que o
poder discricionário da polícia na manutenção
de paz permite uma série de maleabilidades,
como a opção em prender ou não um indivíduo.
O controle policial nessas áreas ocorre devido
ao conhecimento que os policiais têm de seus
habitantes. Nessa análise, permite apontar que
as representações que a polícia faz de tipos so-
ciais – como o preconceito em relação ao jovem
negro pobre – são determinadas pela experiência
profissional e pelos estereótipos socialmente
construídos.
A manutenção da paz nem sempre é feita
com prisão; os policiais valem-se do diálogo e
de outros tipos de abordagem. Nas skid rows,
a detenção não é necessariamente um estigma;
portanto, pode ser utilizada como forma de
controle social, especialmente em casos de
excesso de bebedeira. Bittner utiliza o conceito
weberiano de racionalidade como eficiência; o
planejamento de ação, entretanto, não é sufi-
ciente para explicar alguns aspectos do trabalho
policial.
Essa modificação no modus operandi da
polícia – que se viu obrigada a aperfeiçoar as
técnicas de investigação, a criar mecanismos
especificados que não a subordinem demais ao
* Jornalista e mestrando em Sociologia pela Universidade
Federal de Goiás.
340
LOPES, VICTOR HUGO G. Aspectos do trabalho policial (Egon Bittner)
sistema judiciário e a aprimorar a formação de
seus integrantes – apresenta uma evolução
histórica e deve ser compreendida, de acordo
com Bittner, conforme as necessidades exigidas
pela sociedade. Há atualmente uma clara preo-
cupação em estruturar um paradigma comuni-
tário-preventivo em substituição ao modelo de
polícia repressora, ao envolver a polícia com a
comunidade.
As primeiras experiências com o policia-
mento comunitário – que surge como um tipo
de relações públicas – atestaram o isolamento
da polícia em relação à comunidade.Atentativa
de aproximação mostrou essa distância em
todas as camadas e classes sociais; Bittner
afirma que a polícia funciona à parte do sistema
judiciário, apesar de fazer parte desse sistema.
O autor sugere que as leis de exclusão (exclu-
sionary rules) – em que um juiz é obrigado a
não admitir uma acusação criminal baseada em
evidências ilegalmente obtidas – têm sido uma
liçãosobreprincípiosdelegalidadeparaapolícia.
A obra de Bittner, ao focar a atuação poli-
cial, é estruturada como um grande rede hierar-
quizada, em que cada policial têm poder – não
necessariamente fiscalizado pelo departamento
de polícia – de agir ou não, de acordo com as
circunstâncias, seguindo um tênue princípio de
legalidade. O conceito de microfísica do poder,
de Michel Foucault, orienta as análises de
Bittner e permite uma interessante reconstrução
do trabalho da polícia como uma intrincada rede
de ação, baseada em decisões quase sempre
individuais, realizadas diretamente pelo policial
em questão.
Os princípios weberianos de racionalidade
e individualismo somam-se à descentralização
do poder em uma ampla rede proposta por
Foucault na obra de Bittner, que não esquece
de citar o conceito de solidariedade orgânica de
Durkheim como importante fator na atuação
policial em relação à divisão social do trabalho.
Trata-se de uma ampla tentativa em definir o
papel da polícia na sociedade a partir de uma
perspectiva evolutiva, histórica. Esse aspecto
leva a uma análise mais detida sobre o estudo
mais importante do livro: “As funções da polícia
na sociedade moderna: uma revisão dos fatores
históricos, das práticas atuais e dos possíveis
modelos do papel da polícia”.
Bittner traz uma interessante discussão
sobre como a sociedade representa a polícia e
o que essa instituição faz para atender os anseios
da primeira. O autor sustenta que a polícia pode
ser vista como uma força corrupta; entretanto,
também é encarada como a opção mais recor-
rente para sanar diferentes conflitos na socie-
dade. Há nesse paradoxo uma adequação do
tratamento que a polícia oferece ao cidadão.
Nesse ponto, o autor analisa a possibilidade de
um mundo sem força policial ou, em termos
realistas, uma polícia que seja menos bruta no
tratamento com as pessoas.
Para Bittner, a partir da possibilidade citada
acima, a polícia deve ser considerada a partir
da possibilidade de relativa independência em
sua atuação prática, mas sem romper os limites
da legalidade. Bittner escreve que “a indepen-
dência institucional da polícia em relação ao
judiciário está baseada na percepção de que os
policiais inevitavelmente estão envolvidos em
atividades que não podem ser totalmente exer-
cidas sobre a regra da lei ou estado de direito”.
Apesar dessa observação, a polícia não é
a “tênue linha azul” (thin blue line) que separa
a civilização do caos e da barbárie. Bittner indica
no estudo que a polícia torna o mundo um pouco
melhor, mas há quem não goste de estar à sua
mercê. O autor discute a pouca valorização do
trabalhosocialcomoumprocessohistoricamente
construído e fruto da falta de obrigatoriedade
de formação acadêmica específica ao policial.
O grau de grosseria no tratamento com o público
– apesar de tolerado na origem da instituição –
não é mais aceito; portanto, se faz ainda mais
necessária uma sólida formação do policial.
O livro de Bittner é revestido de conceitos
humanistas que hoje têm se incorporado ao
discurso das academias de polícia. Fala-se em
humanidade e polidez no trato com o público;
discute-se o poder discricionário no agir do
policial, aos moldes da distribuição de poder
segundo Foucault; apontam-se outras funções
da polícia que não a de mero policiamento e
repressão ao crime. A leveza com que o texto é
escrito permite ao leigo e ao estudioso apro-
veitar-se do conteúdo bem esclarecido. Os
exemplos trabalhados aos olhos da etnografia
reforçam o prazer da leitura, ao mesmo tempo
em que discutem situações concretas sobre a
341
SOCIEDADE E CULTURA, V. 9, N. 2, JUL./DEZ. 2006, P. 339-341
atuação policial. Há uma boa quantidade de
notas explicativas, mas sem ocupar muito espaço
do texto.As referências bibliográficas são claras
e objetivas. Há um único senão: uma maior acui-
dade na revisão ortográfica do texto.
Aspectos do trabalho policial permite que
a leitura de Bittner sobre a polícia norte-ameri-
cana possa ser empregada na realidade brasi-
leira, uma vez que os desafios são semelhantes.
Bittner sugere que o policial moderno é “um
profissional informado, decidido, e tecnicamente
eficiente, que sabe como deve operar nos limites
estabelecidos pela moral e pela confiança na
legalidade”.Ter-se-ia uma polícia mais eficiente
comumaprimoramentomaiselevadodotrabalho
policial, constando como carreira acadêmica,
com produção científica própria e disciplinas de
formação humanísticas. Trata-se, então, de uma
obra instrumental que defende uma posição a
favor da formação acadêmica para uma carreira
que, seja no Brasil ou nos Estados Unidos, não
conta com devida valorização, dada a sua
importância no cotidiano das pessoas.
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  • 1. 339 BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. Trad. Ana Luísa Amêndola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. VICTOR HUGO GOMES LOPES* A identidade funcional da polícia somente é de fato conhecida quando focada nos aspectos do trabalho policial. A vaga noção de mero instrumento estatal de coação física, aos moldes de Max Weber, não é suficiente para dar-lhe identidade específica como agente social. Desde a criação da polícia moderna, a partir dos moldes adotados na Inglaterra na metade do século XIX, suas atribuições sofreram alterações pro- fundas; de mecanismo estatal de controle de manifestações públicas à atual tentativa em se construir um modelo de polícia comunitária, a instituição passou por mudanças ao longo dos anos, durante os quais uma geração procura aprimorar a atuação da anterior. O livro Aspectos do trabalho policial, do sociólogo norte-americano Egon Bittner, editado no Brasil pela Edusp para a coleção Polícia e sociedade, reúne quatorze de seus principais estudos, divididos entre artigos e ensaios, com enfoque sobre as diferentes maneiras de se atuar como um policial na sociedade contem- porânea. A obra cobre 25 anos de pesquisas empíricas de Bittner – algumas inclusive etno- gráficas – e estudos que resultaram em confe- rências e workshops. O autor auxiliou na criação da Commission onAccreditation for Law Enfor- cement Agencies (Calea), que instituiu um prêmio anual, batizado com seu nome, para chefes de polícia. A obra de Bittner auxilia na compreensão das alterações pelas quais têm passado o trabalho da polícia. Os estudos do autor são focados na polícia norte-americana, apesar de recorrentes citações sobre modelos da polícia européia, em especial a inglesa e a irlandesa. Bittner procura alicerçar as bases de uma sociologia da polícia – que se soma aos estudos de outros autores, como Eric Monkkonen, Jean-Claude Monet e Herman Goldstein, além de criminólogos como Edwin Sutherland. O autor, em um interessante estudo sobre as skid rows (áreas deterioradas), indica que o poder discricionário da polícia na manutenção de paz permite uma série de maleabilidades, como a opção em prender ou não um indivíduo. O controle policial nessas áreas ocorre devido ao conhecimento que os policiais têm de seus habitantes. Nessa análise, permite apontar que as representações que a polícia faz de tipos so- ciais – como o preconceito em relação ao jovem negro pobre – são determinadas pela experiência profissional e pelos estereótipos socialmente construídos. A manutenção da paz nem sempre é feita com prisão; os policiais valem-se do diálogo e de outros tipos de abordagem. Nas skid rows, a detenção não é necessariamente um estigma; portanto, pode ser utilizada como forma de controle social, especialmente em casos de excesso de bebedeira. Bittner utiliza o conceito weberiano de racionalidade como eficiência; o planejamento de ação, entretanto, não é sufi- ciente para explicar alguns aspectos do trabalho policial. Essa modificação no modus operandi da polícia – que se viu obrigada a aperfeiçoar as técnicas de investigação, a criar mecanismos especificados que não a subordinem demais ao * Jornalista e mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás.
  • 2. 340 LOPES, VICTOR HUGO G. Aspectos do trabalho policial (Egon Bittner) sistema judiciário e a aprimorar a formação de seus integrantes – apresenta uma evolução histórica e deve ser compreendida, de acordo com Bittner, conforme as necessidades exigidas pela sociedade. Há atualmente uma clara preo- cupação em estruturar um paradigma comuni- tário-preventivo em substituição ao modelo de polícia repressora, ao envolver a polícia com a comunidade. As primeiras experiências com o policia- mento comunitário – que surge como um tipo de relações públicas – atestaram o isolamento da polícia em relação à comunidade.Atentativa de aproximação mostrou essa distância em todas as camadas e classes sociais; Bittner afirma que a polícia funciona à parte do sistema judiciário, apesar de fazer parte desse sistema. O autor sugere que as leis de exclusão (exclu- sionary rules) – em que um juiz é obrigado a não admitir uma acusação criminal baseada em evidências ilegalmente obtidas – têm sido uma liçãosobreprincípiosdelegalidadeparaapolícia. A obra de Bittner, ao focar a atuação poli- cial, é estruturada como um grande rede hierar- quizada, em que cada policial têm poder – não necessariamente fiscalizado pelo departamento de polícia – de agir ou não, de acordo com as circunstâncias, seguindo um tênue princípio de legalidade. O conceito de microfísica do poder, de Michel Foucault, orienta as análises de Bittner e permite uma interessante reconstrução do trabalho da polícia como uma intrincada rede de ação, baseada em decisões quase sempre individuais, realizadas diretamente pelo policial em questão. Os princípios weberianos de racionalidade e individualismo somam-se à descentralização do poder em uma ampla rede proposta por Foucault na obra de Bittner, que não esquece de citar o conceito de solidariedade orgânica de Durkheim como importante fator na atuação policial em relação à divisão social do trabalho. Trata-se de uma ampla tentativa em definir o papel da polícia na sociedade a partir de uma perspectiva evolutiva, histórica. Esse aspecto leva a uma análise mais detida sobre o estudo mais importante do livro: “As funções da polícia na sociedade moderna: uma revisão dos fatores históricos, das práticas atuais e dos possíveis modelos do papel da polícia”. Bittner traz uma interessante discussão sobre como a sociedade representa a polícia e o que essa instituição faz para atender os anseios da primeira. O autor sustenta que a polícia pode ser vista como uma força corrupta; entretanto, também é encarada como a opção mais recor- rente para sanar diferentes conflitos na socie- dade. Há nesse paradoxo uma adequação do tratamento que a polícia oferece ao cidadão. Nesse ponto, o autor analisa a possibilidade de um mundo sem força policial ou, em termos realistas, uma polícia que seja menos bruta no tratamento com as pessoas. Para Bittner, a partir da possibilidade citada acima, a polícia deve ser considerada a partir da possibilidade de relativa independência em sua atuação prática, mas sem romper os limites da legalidade. Bittner escreve que “a indepen- dência institucional da polícia em relação ao judiciário está baseada na percepção de que os policiais inevitavelmente estão envolvidos em atividades que não podem ser totalmente exer- cidas sobre a regra da lei ou estado de direito”. Apesar dessa observação, a polícia não é a “tênue linha azul” (thin blue line) que separa a civilização do caos e da barbárie. Bittner indica no estudo que a polícia torna o mundo um pouco melhor, mas há quem não goste de estar à sua mercê. O autor discute a pouca valorização do trabalhosocialcomoumprocessohistoricamente construído e fruto da falta de obrigatoriedade de formação acadêmica específica ao policial. O grau de grosseria no tratamento com o público – apesar de tolerado na origem da instituição – não é mais aceito; portanto, se faz ainda mais necessária uma sólida formação do policial. O livro de Bittner é revestido de conceitos humanistas que hoje têm se incorporado ao discurso das academias de polícia. Fala-se em humanidade e polidez no trato com o público; discute-se o poder discricionário no agir do policial, aos moldes da distribuição de poder segundo Foucault; apontam-se outras funções da polícia que não a de mero policiamento e repressão ao crime. A leveza com que o texto é escrito permite ao leigo e ao estudioso apro- veitar-se do conteúdo bem esclarecido. Os exemplos trabalhados aos olhos da etnografia reforçam o prazer da leitura, ao mesmo tempo em que discutem situações concretas sobre a
  • 3. 341 SOCIEDADE E CULTURA, V. 9, N. 2, JUL./DEZ. 2006, P. 339-341 atuação policial. Há uma boa quantidade de notas explicativas, mas sem ocupar muito espaço do texto.As referências bibliográficas são claras e objetivas. Há um único senão: uma maior acui- dade na revisão ortográfica do texto. Aspectos do trabalho policial permite que a leitura de Bittner sobre a polícia norte-ameri- cana possa ser empregada na realidade brasi- leira, uma vez que os desafios são semelhantes. Bittner sugere que o policial moderno é “um profissional informado, decidido, e tecnicamente eficiente, que sabe como deve operar nos limites estabelecidos pela moral e pela confiança na legalidade”.Ter-se-ia uma polícia mais eficiente comumaprimoramentomaiselevadodotrabalho policial, constando como carreira acadêmica, com produção científica própria e disciplinas de formação humanísticas. Trata-se, então, de uma obra instrumental que defende uma posição a favor da formação acadêmica para uma carreira que, seja no Brasil ou nos Estados Unidos, não conta com devida valorização, dada a sua importância no cotidiano das pessoas.