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DILMA, TEMER
E
BOLSONARO
crise, ruptura e tendências
na política brasileira
4
DIREÇÃO EDITORIAL: Willames Frank
DIAGRAMAÇÃO: Willames Frank
DESIGNER DE CAPA: Willames Frank
O padrão ortográfico, o sistema de citações e referências bibliográficas são
prerrogativas do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu autor.
Todos os livros publicados pela Editora Phillos estão sob os direitos
da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
2020 Editora PHILLOS ACADEMY
Av. Santa Maria, Parque Oeste, 601.
Goiânia-GO
www.phillosacademy.com
phillosacademy@gmail.com
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
S170p
BOITO JR, Armando.
Dilma, Temer e Bolsonaro: crise, ruptura e tendências na política
brasileira. [recurso digital] / Armando Boito Jr.. Coleção Párias Ideias: Orgs.
Antônio Camêlo; Virgínio Gouveia. – Goiânia-GO: Editora Phillos Academy,
2020.
ISBN: 978-65-88994-00-9
Disponível em: http://www.phillosacademy.com
1. Política. 2. Democracia. 3. História do Brasil. 4. Sociedade Brasileira.
5. Ciência Política. I. Título.
CDD: 320
Índices para catálogo sistemático:
Ciência Política 320
5
ARMANDO BOITO JR.
DILMA, TEMER
E
BOLSONARO
crise, ruptura e tendências
na política brasileira
6
Direção Editorial
Willames Frank da Silva Nascimento
Comitê Científico Editorial
Dr. Alberto Vivar Flores
Universidade Federal de Alagoas | UFAL (Brasil)
Drª. María Josefina Israel Semino
Universidade Federal do Rio Grande | FURG (Brasil)
Dr. Arivaldo Sezyshta
Universidade Federal da Paraíba | UFPB (Brasil)
Dr. Dante Ramaglia
Universidad Nacional de Cuyo | UNCUYO (Argentina)
Dr. Francisco Pereira Sousa
Universidade Federal de Alagoas | UFAL (Brasil)
Dr. Sirio Lopez Velasco
Universidade Federal do Rio Grande | FURG(Brasil)
Dr. Thierno Diop
Université Cheikh Anta Diop de Dakar | (Senegal)
Dr. Pablo Díaz Estevez
Universidad De La República Uruguay | UDELAR (Uruguai)
7
SOBRE A COLEÇÃO PÁRIAS IDEIAS
Párias Ideias pretende ser uma contribuição a influir
no presente, para que este, em lugar de se tornar uma
reencarnação de mitologias dantescas do jovem pretérito
nacional, venha a ser um futuro com todas as possibilidades
de liberdades abertas pelas veias da história.
A presente coleção surge em uma ocasião oportuna.
Uma vez que o sub-humanismo organizado pretende reviver
um passado recente – de quando algumas disciplinas e
pensamentos foram criminalizados e banidos das salas de aula
–, ao passo que acusa determinadas ideias, grupos e classes
como sendo “párias”, urge, assim acreditamos, a necessidade
de que o conhecimento volte a ser perigoso para o status
oficial e confronte a censura, resistindo à mordaça. Ir de
encontro - munidos pela crítica criadora - às atuais
governantes formas silenciadores e repressoras da atividade
do pensar e de - 10 - sentir é o objetivo da Coleção de bolso
Párias Ideias.
Nesse sentido, é que as temáticas tratadas e
problematizadas de nossa Coleção – longe de dogmas – giram
em torno dos seguintes eixos temáticos: Retorno à KM; Nova
Esquerda; Memória; Sub-humanismo; Retroescravismo;
Marxismo etc. É com o espírito convicto que convidamos os
leitores a um passeio crítico, com reflexão éticopraticante,
para caminhar pelas avenidas abertas de nossas páginas e
contribuir na tentativa de não deixar a caverna autoritária
engolir com suas sombras e falsas ideias nossa realidade
histórico - cultural.
8
SUMÁRIO
POR QUE ESTE PEQUENO LIVRO? ..............................11
PARTE 1
Dilma e Temer: a crise do neodesenvolvimentismo e o
golpe neoliberal........................................................................14
A NATUREZA DA CRISE POLÍTICA DE 2015-2016...15
Antes da crise.........................................................................17
A hora da crise .......................................................................21
O movimento popular e a crise política.............................27
BALANÇO DO CICLO DE GOVERNOS DO PT ........29
Conquistas e acumulação de forças ....................................30
Limites e debilidades.............................................................32
O governo instável de Michel Temer e a nossa posição..37
A BURGUESIA BRASILEIRA E O GOLPE DO
IMPEACHMENT.....................................................................44
OS TRABALHADORES DA MASSA MARGINAL E O
GOLPE DO IMPEACHMENT............................................49
AS RECLAMAÇÕES TARDIAS DA FIESP......................54
O CONFLITO INSTITUCIONAL COMO CONFLITO
DE CLASSE...............................................................................57
NOVIDADES SOBRE O PAPEL DA BURGUESIA NO
GOLPE DO IMPEACHMENT............................................61
Em que pé estava o debate...................................................61
As novidades ..........................................................................63
O médio capital no golpe de Estado de 2016 ...................65
A OPACIDADE DO PROCESSO POLÍTICO E AS
FACETAS OCULTAS DA LAVA-JATO............................70
9
A intransparência do processo político..............................70
O lugar da corrupção para a classe média..........................74
O imperialismo, a burguesia e a burocracia de Estado ....77
POR QUE O GOVERNO TEMER É UM GOVERNO
INSTÁVEL?...............................................................................81
QUAIS SÃO OS REAIS MOTIVOS DAS DIVISÕES NO
CAMPO GOLPISTA?..............................................................85
PARTE 2
O Governo Bolsonaro, o neofascismo
e o neoliberalismo....................................................................90
O FASCISMO É UM FENÔMENO HISTÓRICO
IRREPETÍVEL?........................................................................91
O NEOFASCISMO JÁ É REALIDADE NO BRASIL....97
AS DIFICULDADES DA LUTA POPULAR DIANTE DO
FASCISMO ..............................................................................104
A BURGUESIA, O “LUMPESINATO” E O GOVERNO
BOLSONARO ........................................................................113
O que mais importa é o conteúdo da decisão.................114
Dois conceitos de representação política .......................117
A quem serve a “desconstrução do país” .......................121
A POLÍTICA ECONÔMICA DE BOLSONARO SERIA
CONTRÁRIA AO CAPITAL FINANCEIRO? ...............124
O CONTEÚDO DO NACIONALISMO DE
BOLSONARO ........................................................................130
A DEMOCRACIA EM PEDAÇOS: O PERIGO DE
GOLPE FASCISTA ...............................................................137
O golpe de 2016 e o nascimento do movimento fascista
................................................................................................138
10
Os fascistas, os militares e os liberais ...............................143
A ofensiva política fascista .................................................149
A TRÉGUA: CONCILIAÇÃO DA OPOSIÇÃO LIBERAL
COM O GOVERNO NEOFASCISTA .............................155
ENTREVISTA SOBRE A HISTÓRIA POLÍTICA
RECENTE DO BRASIL.......................................................159
11
POR QUE ESTE PEQUENO LIVRO?
Este livro reúne textos mais ou menos curtos
publicados em diversos jornais, revistas e sites sobre a política
brasileira contemporânea. Apresenta para um público não
acadêmico artigos sobre a crise política do impeachment,
sobre o papel de diferentes classes sociais e frações de classe
nessa crise, sobre a herança dos governos do PT, sobre a
instabilidade política que tem caracterizado há alguns anos a
política brasileira, sobre a dimensão política e social da
Operação Lava-Jato, sobre os interesses defendidos pelo
Governo Temer e pelo Governo Bolsonaro – que é aqui
caracterizado como um governo neoliberal e neofascista – e
sobre a conjuntura do primeiro semestre de 2020. Essa
conjuntura é um momento crítico da história brasileira. Ela
reuniu a crise sanitária provocada pela epidemia do novo
coronavirus e potencializada pela política negacionista do
Governo Bolsonaro; a crise econômica, que precedeu a crise
sanitária e foi por ela agravada; e a crise política, provocada
pela tentativa de Jair Bolsonaro de efetuar um golpe de Estado
para implantar uma ditadura no Brasil. Os textos iniciais do
livro, referentes à crise do impeachment e ao balanço dos
governos do PT, retomam, com formulações distintas, o
essencial de teses que desenvolvi no meu livro Reforma e crise
política no Brasil – os conflitos de classe nos governos do PT
(Coedição das Editoras da Unicamp e da Unesp, 2018). Todos
os demais textos são fruto de reflexões posteriores nas quais
faço um esforço para esclarecer os rumos da política brasileira
a partir do impeachment de 2016. Com duas ou três exceções,
12
os textos seguem a ordem cronológica de sua produção que
coincide com a cronologia da evolução dos acontecimentos.
Para facilitar ao leitor a percepção do conjunto e da unidade
do livro, alterei o título original de alguns dos textos aqui
compilados.
Faço um rápido esclarecimento dos motivos pelos
quais considero e denomino ao longo do livro o impeachment
de Dilma Rousseff um golpe de Estado. O processo de
impeachment imputou a Dilma Rousseff um suposto crime
de responsabilidade representado por uma prática fiscal
corrente nos executivos federal, estaduais e municipais do
país. O Senador Antonio Anastasia (PSDB – MG), relator do
processo de impeachment no Senado da República, foi
criticado em plenário por defender o impeachment alegando
como motivo uma operação fiscal que ele próprio, Anastasia,
tinha realizado mais de trinta vezes quando governador de
Minas Gerais. Com a esperteza e a frieza que lembra o
comportamento daqueles que vivem de expedientes,
respondeu que não era ele o réu do processo que então
relatava. E seguiu adiante. O impeachment, além de negar a
universalidade da lei, aplicando a Dilma Rousseff o que não
fora aplicado aos demais chefes de poder executivo – tanto
aos que a antecederam, quanto aos seus contemporâneos –
mudou o rumo da política econômica, social, cultural e
externa do Estado brasileiro. Foi uma ruptura da legalidade
democrática visando a mudar o rumo da política nacional.
Este livro está voltado para um público amplo, debate
com ideias presentes nas análises correntes sobre a política
brasileira e procura intervir no debate político. Alguns textos
que o integram analisam conjunturas e acontecimentos
13
específicos, enquanto outros apresentam reflexões que
possuem a pretensão de esclarecer, inclusive com breves
incursões na teoria política, temas mais abrangentes
suscitados pelas sucessivas conjunturas do período – como é
o caso dos textos que caracterizam o Governo Bolsonaro
como fascista, do texto sobre a natureza social e política da
Operação Lava-Jato e daquele que trata das relações entre, de
um lado, os conflitos institucionais que têm atravessado o
Estado brasileiro nas conjunturas recentes e, de outro, os
conflitos de interesses presentes na economia e na sociedade.
O momento político brasileiro é muito grave para o
campo democrático e popular. Espero que este pequeno livro
contribua para o debate sobre essa situação e, assim fazendo,
possa contribuir, ainda que muito modestamente, para
superá-la.
São Paulo, agosto de 2020
14
Dilma e Temer
a crise do
neodesenvolvimentismo
e o golpe neoliberal
15
A NATUREZA DA CRISE POLÍTICA DE 2015-2016
Vamos começar por um truísmo: neste mês de março
de 2016, a conjuntura política é complexa e difícil para as
classes populares e para a democracia no Brasil e na América
Latina. No caso do Brasil, em que consistem essa
complexidade e essa dificuldade? Ambas procedem,
fundamentalmente, de duas características interligadas e
definidoras da crise política atual: a ofensiva política restauradora
da direita neoliberal, que foi a iniciativa que provocou a crise
política, e a decisão do governo neodesenvolvimentista de
Dilma Rousseff de adotar uma política de recuo passivo diante
da ofensiva política da qual é vítima.
Essa ofensiva pode ser denominada restauradora
porque ela visa a restaurar, por intermédio do resgate do
programa neoliberal da década de 1990, a hegemonia no bloco
no poder do grande capital internacional e da fração da
burguesia brasileira a ele integrada. Tal ofensiva restauradora
tem como base social de apoio mais ativa a fração superior da
classe média, que tem tomado as ruas do país em
manifestações pelo impeachment da Presidenta Dilma
Roussef, e logrou, também, neutralizar ou atrair setores
burgueses e populares que, anteriormente, dispensavam apoio
político aos governos do PT. A Fiesp, que até há pouco
perfilava com os governos petistas, passou a fazer oposição à
política econômica do Governo Dilma Rousseff, e a Força
Sindical, na sequência de seus movimentos giratórios, acabou

Artigo publicado no Le Monde Diplomatique – Brasil. Edição número 104,
de março de 2016.
16
estacionando numa posição militante pelo impeachment da
presidenta. Para uma referência rápida, podemos dizer que
esse campo representa “a direita”. Porém, é preciso ter claro
quais são as classes e frações de classe social que o integram e
quais interesses elas perseguem, sem o que ficaremos
prisioneiros de uma visão superficial e distorcida da crise
política.
O recuo passivo do Governo Dilma Rousseff dificulta
a definição da estratégia dos movimentos populares na crise
atual. Se o governo resistisse à ofensiva política restauradora,
mesmo que fazendo concessões menores e táticas para dividir
o inimigo, os movimentos populares teriam um quadro mais
favorável para, em primeiro lugar, barrar o golpe de Estado
branco que ainda se encontra em marcha, uma vez que nessa
luta estariam somando forças com o governo, e poderiam, em
segundo lugar e ao mesmo tempo, lutar pela adoção de um
programa mais ambicioso de reformas, posto que as reformas
modestas da era PT estariam preservadas. Teríamos, nesse
cenário, uma continuidade, em bases novas, do quadro que se
desenhou no segundo turno da eleição presidencial de 2014:
Dilma respondeu, no discurso de campanha, à ofensiva
restauradora que a direita já então iniciara. O seu discurso e a
publicidade de TV bateram de frente com a ofensiva
neoliberal. Porém, uma vez eleita, tendo optado – e se tratou
sim de uma opção – por adotar uma política de recuo passivo,
e tendo, inclusive, dado mostras de compartilhar ideias da
oposição neoliberal, o Governo Dilma Roussef criou um
cenário novo e muito desfavorável para os trabalhadores.
Esse cenário obrigou as classes populares a lutarem –
praticamente sozinhas pois a resistência do governo e do seu
17
partido tem sido pífia – contra a tentativa de golpe de Estado
branco da direita e, ao mesmo tempo, resistirem às medidas e
às ameaças do Governo Dilma Rousseff às pequenas
conquistas dos últimos anos. A situação é de defensiva em
toda a linha.
Antes da crise
Os governos do PT, inclusive o Governo Dilma
Rousseff, expressaram e expressam os interesses
heterogêneos de uma ampla frente política que poderíamos
denominar frente neodesenvolvimentista1
.
A força social hegemônica nessa frente política foi a
grande burguesia interna brasileira, que é composta pelas
grandes empresas nacionais que atuam na construção pesada,
na construção naval, no agronegócio, na mineração, em
variados ramos industriais e, inclusive, no setor financeiro.
Isso significa que a burguesia brasileira não se integrou de
maneira homogênea e geral ao capitalismo internacional. É
certo que não estamos diante de uma burguesia nacional, que
seria interessada em combater o imperialismo, mas existe sim
um setor da burguesia com base de acumulação própria, no
interior do país, que possui conflitos com o capital
internacional, mesmo que seja dependente dele. Essa fração
burguesa não criou o seu partido político. O que ela fez foi
assediar e envolver um partido político que fora criado pelos
movimentos populares para que esse partido, que é o PT, e
1 Ver a esse respeito Armando Boito Jr. Reforma e crise política no Brasil – os
conflitos de classe nos governos do PT. Campinas e São Paulo: coedição
Unicamp e Unesp. 2018. [Nota de 2020]
18
principalmente os governos encabeçados por esse partido,
passassem a representar, prioritariamente, os seus interesses.
É essa prioridade, que não deve ser confundia com
exclusividade, que indica a hegemonia política.
Na década de 1990, a burguesia interna, embora tenha
se beneficiado com vários aspectos do modelo político
neoliberal, teve, também, muitos de seus interesses
contrariados pela abertura comercial e pelo definhamento do
papel do Estado e do BNDES como propulsores dos
investimentos produtivos. No final dos anos 90, essa fração
burguesa se foi se aproximando do PT e da CUT. A diretoria
da Fiesp chegou a prestar apoio oficial, público e ativo à greve
geral contra a recessão convocada pela CUT e pela Força
Sindical em junho de 19962
. Com a ascensão dos governos do
PT, essa fração da burguesia foi contemplada com a
intervenção do Estado na economia para estimular, embora
dentro dos limites dados pelo modelo capitalista neoliberal, o
crescimento econômico. A política de investimentos públicos
em obras de infraestrutura – usinas hidrelétricas, desvio do
leito do São Francisco, estradas de ferro, obras da Copa do
Mundo e da Olímpiada –, a política de conteúdo local que
prioriza a compra de produtos e serviços nacionais,
protegendo parte da produção interna frente à concorrência
estrangeira, o ativismo do BNDES como financiador das
grandes empresas nacionais e as medidas anticíclicas de
política econômica diante da crise econômica internacional
formaram um contraste gritante com a abertura comercial
sem peias, com o Estado raquítico, o BNDES privatizante e
2 Armando Boito Jr., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo:
Editora Xamã. 1999. [Nota de 2020]
19
as medidas monetaristas ortodoxas do governo diante das
crises internacionais que caracterizaram o período FHC.
Porém, além dessa força hegemônica, a frente
neodesenvolvimentista incorporou setores importantes das
classes populares. A política neodesenvolvimentista da grande
burguesia interna fez crescer o emprego, favoreceu a luta
sindical por aumento real dos salários, e esteve ligada a uma
série de políticas sociais que atenderam alguns interesses de
distintos setores populares. Os programas de transferência de
renda, a recuperação do salário mínimo, o programa de
construção de casas populares, o financiamento da agricultura
familiar, as quotas raciais e sociais, o programa de construção
de cisternas no semiárido, a reabertura dos concursos
públicos, a expansão do ensino superior público e a facilitação
do acesso às universidades públicas e privadas, essas de outras
políticas sociais fizeram com que grande parte da baixa classe
média, do operariado, do campesinato e dos trabalhadores da
massa marginal se tornassem, de maneiras distintas, base de
apoio popular à política dos governos petistas.
A oposição neoliberal ortodoxa, capitaneada no plano
partidário pelo PSDB, vinha expressando e ainda expressa
interesses, também heterogêneos, de outro campo político.
Na cabeça desse campo, temos o grande capital internacional
e a fração da burguesia brasileira integrada, das maneiras as
mais diversas, a esse capital. O grande capital internacional se
relaciona de modos variados com a economia brasileira e a sua
vinculação a essa economia apresenta uma certa gradação: vai
desde uma relação eventual e exterior até uma relação mais
orgânica e permanente. Esse capital engloba os fundos
financeiros internacionais que especulam com títulos da
20
dívida pública, com divisas e com ações das empresas
brasileiras; as empresas industriais europeias, estadunidense e
outras que, sem plantas no Brasil, limitam-se a exportar seus
produtos para o mercado brasileiro; as seguradoras que
abriram filiais no país e, ainda mais integradas à economia
nacional, temos as empresas multinacionais do setor
produtivo, industriais e do agronegócio, que possuem plantas
e filiais no Brasil. A fração da burguesia brasileira integrada
como sócia menor ou dependente desse capital internacional
engloba as casas de importação de veículos, de confecções, de
alimentos, bebidas e tantos outros produtos; os fornecedores
de componentes para as empresas estrangeiras aqui
implantadas – como a indústria de autopeças; os capitalistas
nacionais que são sócios minoritários em empreendimentos
com o capital forâneo. É o bloco voltado para fora, o mais
interessado – embora não seja sempre o único interessado –
na abertura da economia, na redução do papel do Estado, na
privatização, na política monetarista mais rígida e no
definhamento do BNDES, enfim, no programa neoliberal
puro e duro aplicado na década de 1990. Como indicamos
acima, o principal representante partidário do capital
internacional e da fração da burguesia brasileira a ele associada
é o PSDB.
Fora do âmbito da classe dominante, esse campo
político neoliberal tem contado com o apoio militante da
fração superior da classe média – a alta classe média. Foi essa
fração da classe média que, como indicam abundantemente os
levantamentos empíricos feitos por diversos institutos de
pesquisa, que tomou as ruas das grandes cidades do país em
manifestações contra o Governo Dilma Rousseff ao longo do
21
ano de 2015 e nesse início de 2016. A alta classe média
mobiliza-se contra o governo por razões econômicas e
ideológicas e o que mais a incomoda não é a política
econômica dos governos do PT, mas, sim, a sua política social.
O alto funcionalismo público, os diretores, gerentes e alto
funcionariado das empresas privadas, os profissionais liberais
economicamente bem-sucedidos, todos esses setores
abastados da classe média têm a percepção de que são eles
quem pagam, com impostos que consideram escorchantes, as
políticas sociais voltadas para a população de baixa renda.
Ademais, veem com maus olhos a presença de indivíduos
oriundos das classes populares frequentando instituições e
locais que, antes, eram frequentados apenas pelos “bem
nascidos”. Esse mal-estar da alta classe média é visível nas
diversas redes sociais. Ademais, esse campo conservador
conta, também, com algum apoio popular. Há uma central
sindical, a Força Sindical, que ao longo do período de
governos petistas, sempre oscilou entre o
neodesenvolvimentismo e o neoliberalismo ortodoxo. Mais
recentemente, a agitação em torno da corrupção, obtida por
intermédio da ação articulada de instituições do Estado com
a grande imprensa, permitiu que o campo neoliberal ortodoxo
neutralizasse e até atraísse setores importantes das classes
populares.
A hora da crise
As divisões socioeconômicas de classe e de fração não
se reproduzem de modo exato e fixo no processo político.
Dito de outro modo, a linha que divide o campo
22
neodesenvolvimentista do campo neoliberal ortodoxo não é
reta nem rígida. É sinuosa e flexível. Um fato conhecido e
estudado é que a partir da eleição presidencial de 2006, grande
parte dos trabalhadores da massa marginal, que votavam nos
candidatos do campo conservador, bandearam-se para o lado
do PT3
. A política da frente neodesenvolvimentista estava,
então, ingressando no seu período de ouro com apoio político
crescente, com a economia internacional marcada pelo
aumento de preços das commodities e com o PIB nacional
obtendo, num ou noutro ano, taxas de crescimento jamais
imaginadas nos anos 90. Os neoliberais do PSDB
encontravam-se na defensiva. A figura do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso estava em franco declínio. Os
candidatos a cargos executivos do PSDB esquivavam-se do
ex-presidente e evitavam o seu apoio eleitoral. Nas eleições
municipais de 2012, a oposição teve péssima performance.
Foi no início de 2013 que a correlação de forças começou a
mudar.
A economia, que crescera 7,5% em 2010, permaneceu
o biênio de 2011 e 2012 com crescimento próximo de zero. A
oposição neoliberal levantou, então, a cabeça. Percebeu uma
oportunidade e retomou a iniciativa política. Elegeu o ex-
Ministro da Fazenda Guido Mantega e a sua “nova matriz de
política econômica” como inimigo principal. Os cadernos de
economia dos grandes jornais passaram a martelar na
necessidade de reduzir os gastos do Estado, acabar com as
desonerações fiscais e aumentar a taxa de juros. A Selic tinha
sido reduzida gradativamente da casa de 12,50% em julho de
3 André Singer, Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras.
2012.
23
2011 para 7,25% em março de 2013. A inflação anual em
2011, 2012 e 2013 foi, respectivamente, de 6,50% 5,84% e
5,91%. O rendimento dos investimentos financeiros
aproximaram-se de zero pela primeira vez em duas décadas.
Esse ponto é fundamental. Quem provocou a crise foi
a ofensiva política do campo neoliberal ortodoxo, dirigido
pelo capital internacional e pela fração da burguesia brasileira
a ele integrada, e não a luta popular. Muitos se confundem ao
examinar esse problema. O fato de as pesquisas de opinião
indicarem que a imagem do Governo Dilma Rousseff foi
abalada em decorrência das manifestações de junho de 2013
e, desde então, nunca mais ter voltado aos patamares
anteriores àquelas manifestações, esse fato leva alguns
analistas e observadores a sugerirem que a crise política foi
provocada pelo ascenso da luta popular. Duplo engano.
Primeiro, porque apenas a primeira fase das manifestações de
junho de 2013 teve um caráter popular. Foi a fase em que o
Movimento Passe Livre (MPL) lutava contra o aumento das
tarifas de transporte. Foi a chamada Revolta da Tarifa que, de
resto, saiu-se vitoriosa. Numa segunda fase, as manifestações
diversificaram os setores sociais envolvidos, incorporaram a
alta classe média e mudaram também suas palavras-de-ordem,
substituindo a luta contra o aumento das tarifas pelo discurso
genérico contra a corrupção, pegando carona na agitação da
mídia no ano anterior, de 2012, durante a Ação Penal 470 – a
dita Crise do Mensalão. Surgiram os cartazes contra a PEC 37
e as manifestações, até então combatidas pela mídia, se
tornaram dependentes dela que passou a orientá-las contra o
governo federal. Um movimento inicialmente popular foi
apropriado pelo campo neoliberal, prolongou-se na agitação
24
contra a Copa do Mundo e desembocou no crescimento das
candidaturas neoliberais na eleição presidencial de 2014.
O que temos aí é uma articulação complexa entre dois
tipos de contradição. A contradição principal, que provocou
a crise política, que é aquela que opõe o campo da burguesia
internacional ao campo da frente neodesenvolvimentista,
articulou-se, de maneira favorável ao campo neoliberal
ortodoxo, com as contradições existentes no próprio interior
da frente neodesenvolvimentisa. A Revolta da Tarifa reuniu,
como mostram as pesquisas disponíveis, jovens de baixa
classe média, trabalhadores que, na maioria dos casos, são
também estudantes. É o setor beneficiário da política dos
governos petistas de expansão do ensino superior público e
privado e de facilitação de acesso dos trabalhadores às
universidades. Essa política, da qual fazem parte o Prouni, o
Reuni e o Fies, dobrou o número de universitários brasileiros.
Ocorre que o mercado de trabalho para os diplomados nas
universidades cresceu muito pouco. Os empregos gerados nos
governos do PT foram, devido à reativação da função
primário-exportadora da economia brasileira,
predominantemente empregos que dispensam alta
qualificação e pagam baixo salário4
. Foi a frustração da
juventude de baixa classe média que se expressou na Revolta
da Tarifa e mesmo na segunda fase das manifestações de
junho5
. Essa frustração, contudo, como permaneceu
politicamente acéfala, inclusive devido ao culto do
4 Marcio Pochmann, Nova Classe Média? São Paulo: Boitempo. 2012.
5 Marcelo Ridenti, “Que juventude é essa?”. Folha de S Paulo. 23 de junho
de 2013. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06/1299690-marcelo-
ridenti-que-juventude-e-essa.shtml
25
espontaneísmo que caracteriza o MPL, pôde ser confiscada
pela reação e canalizada para o crescimento das candidaturas
neoliberais no ano seguinte.
Como indicamos acima, há contradições no seio da
frente neodesenvolvimentista. A contradição da juventude de
baixa classe média com a frente foi uma contradição nova, que
se desenvolveu conforme se expandia o estudantado
universitário sem a correspondente expansão dos empregos
para os diplomados. Mas, havia e há, também, contradições
originárias, que estiveram presentes desde o início dos
governos da frente neodesenvolvimentista. No campo das
classes populares, o movimento sindical foi muito ativo nesse
período na luta grevista e logrou obter uma melhoria geral dos
salários6
. Conflitos econômicos duros ocorreram entre os
sindicatos e os grupos da grande burguesia interna. O
movimento camponês, apesar das políticas sociais que
beneficiaram os camponeses assentados, sempre esteve
insatisfeito com a drástica redução das desapropriações de
terra para a criação de novos assentamentos. No âmbito das
classes dominantes, havia e há contradições no interior da
própria burguesia interna. O mais notório é o conflito entre
os grandes bancos nacionais e o setor produtivo nacional em
torno da política fiscal e da taxa de juro. Surgiram, também,
contradições novas. O deslocamento da política energética da
prioridade para o etanol para a prioridade para o petróleo do
6 Armando Boito Jr., Andréia Galvão e Paula Marcelino, "A nova fase do
sindicalismo brasileiro", In Seminário Internacional 'Sindicalismo
Contemporâneo: 1º de maio – uma nova visão para o Movimento Sindical Brasileiro',
Campinas: Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit),
Unicamp. 2015. pp.206-223,
26
pré-sal afastou o setor sucroalcooleiro do Governo Dilma
Rousseff.
O fato é o seguinte: quando o campo neoliberal
ortodoxo iniciou a sua ofensiva política restauradora, a frente
neodesenvolvimentista vinha se esgarçando. Isso apareceu em
diversos aspectos da cena política. Acabou o apoio unânime
das grandes centrais sindicais em torno do Governo Dilma
Rousseff, o Partido Socialista Brasileiro passou para o campo
da oposição, o PMDB dividiu-se e uma entidade empresarial
da importância da Fiesp passou, como já indicamos, do apoio
ativo aos governos neodesenvolvimentistas a uma política de
oposição7
.
Um ponto que mereceria uma análise à parte é o uso
político da corrupção que é feito pela oposição neoliberal. O
discurso contra a corrupção, muito usado na história política
brasileira contra os governos desenvolvimentistas como o de
Getúlio Vargas, é um discurso enganoso que ilude o
observador, esconde a verdadeira natureza da crise política e
neutraliza ou atrai setores das classes populares para o campo
da reação. A oposição neoliberal não pode mostrar para o
grande público o seu programa político real que é mais
abertura da economia, mais privatização, mais
desregulamentação do trabalho. Esse programa e suas
consequências não são bem vistos pela maioria da população
trabalhadora. Ela agita, então, um programa retórico de
combate à corrupção. Ela pode levantar essa bandeira
7 Para o apoio ativo da Fiesp ao segundo Governo Lula ver Armando
Boito Jr., “Governos Lula: a nova burguesia nacional no poder”. In
Armando Boito Jr. e Andréia Galvão, Política e classes sociais no Brasil dos anos
2000. São Paulo: Editora Alameda. 2012.
27
fundamentalmente por dois motivos. Primeiro, porque o PT,
tendo abandonado a política de organização da massa
trabalhadora em núcleos de base e, consequentemente, a
política de autofinanciamento do partido baseada na
contribuição dos militantes, está envolvido, de fato, com
ampla e diversificada prática de corrupção para financiamento
de campanhas eleitorais. Em segundo lugar, a oposição
neoliberal pode agir à vontade na apuração da corrupção
porque sabe que o Judiciário, o Ministério Público e a Política
Federal são rigorosos e até abusivos na investigação da
corrupção dos políticos do governo e das grandes empresas
que integram a burguesia interna e condescendentes e
cúmplices com a corrupção dos governos e dos partidos da
oposição neoliberal. Os juízes, procuradores e delegados que
controlam aquelas instituições do Estado pertencem, eles
próprios, à alta classe média e estão engajados na luta contra
os governos do PT.
O movimento popular e a crise política
Em caso de deposição do Governo Dilma Rousseff
apenas a oposição burguesa neoliberal ortodoxa tem
condições de assumir o governo. O movimento popular
encontra-se, ainda, numa fase de luta reivindicativa e a sua luta
é segmentada. Não há programa e organização política
orientando e enquadrando as massas trabalhadoras. Nessa
situação, o principal inimigo a ser combatido é o golpe de
Estado branco preparado pelo PSDB com o apoio das
instituições estatais incumbidas de manter a ordem – Polícia
Federal, Ministério Público, Judiciário. Contudo, quanto mais
o Governo Dilma Rousseff afunda-se na sua política de recuo
28
passivo frente à ofensiva restauradora, mais o movimento
popular tem de combater a política desse governo e, portanto,
afastar-se dele. No limite, pode se tornar inviável a defesa do
governo que, nesse caso, ver-se-á isolado diante da ofensiva
da reação.
Março de 2016
29
BALANÇO DO CICLO DE GOVERNOS DO PT 
O governo Dilma Rousseff foi deposto por um golpe
de Estado parlamentar que interrompeu o ciclo de quatro
governos consecutivos do PT. A admissibilidade do processo
de impeachment venceu, em 17 abril de 2016, por 367 votos
contra 137 na Câmara Federal e o impeachment foi aprovado,
em 31 de agosto do mesmo ano, por 61 votos contra apenas
20 no Senado. Derrota acachapante do governo, ainda mais
se tivermos em conta que grande parte dos que votaram pelo
impeachment compunham, até então, a base de apoio do
governo no Congresso Nacional e que a maioria dos
deputados fez questão de justificar o seu voto recorrendo a
valores retrógrados do patriarcalismo e de um hipócrita
“combate à corrupção”.
Neste momento, setembro de 2016, e ainda no calor
da hora, devemos, nós da Consulta Popular, levantar algumas
questões. Como é que as organizações socialistas e populares
que, sem participar de tais governos, dispensaram-lhes apoio
crítico devem avaliar o período que agora se encerra? Temos
de nos precaver contra as avaliações unilaterais e precipitadas
que podem ser estimuladas pelo momento atual que é um
momento de derrota. Temos de fazer um esforço para
contemplar todos os aspectos, favoráveis e desfavoráveis ao
movimento operário e popular, e que devem ser considerados
numa avaliação séria desse período.

Artigo publicado no Caderno de Debates da organização política
Consulta Popular. Número 1, setembro de 2016.
30
Conquistas e acumulação de forças
Em primeiro lugar, não podemos nos esquecer que,
nesses governos, os trabalhadores obtiveram conquistas
materiais modestas, mas importantes. A política econômica
propiciou um crescimento econômico maior, reduziu
drasticamente o desemprego e fortaleceu o setor capitalista de
Estado e privado nacional. A política social permitiu uma
moderada distribuição da renda, maior acesso das camadas
pauperizadas a serviços públicos e equipamentos básicos –
iluminação, água, atendimento médico, moradia e outros.
Promoveu também medidas de democratização do acesso ao
ensino universitário e técnico para a baixa classe média, a
classe operária e para os trabalhadores da massa marginal e
fortaleceu a agricultura familiar. A política externa dos
governos petistas deu uma retaguarda econômica, política e
diplomática aos governos de esquerda da América Latina. A
política de reconhecimento dos direitos das mulheres, da
população negra e indígena e das minorias sexuais, embora
tímida, representou um contraste significativo com a situação
das décadas anteriores. Em segundo lugar, o fato de os
governos do PT reconhecerem o direito à reivindicação das
classes populares criou condições mais propícias para a sua
organização e para a sua luta. O movimento operário e
popular acumulou força.
Nesse período, o movimento sindical logrou uma
forte recuperação. A segunda metade da década de 1990 e os
primeiros anos da década de 2000 foram um período de
refluxo e de derrotas para o movimento sindical. No ano de
2003, quando se inicia o ciclo de governos petistas, começou
31
a recuperação. Em 2003, ocorreram 312 greves e apenas 18%
das convenções coletivas e dos acordos assinados entre
trabalhadores e patrões estabeleceram um reajuste maior que
a inflação passada. Ou seja, a enormidade de 82% dos
trabalhadores permaneceram com salários congelados ou
tiveram seus ganhos diminuídos. Após um crescimento
contínuo desses dois indicadores, chegou-se no ano de 2013
ao total de 2150 greves, um recorde histórico no Brasil, e ao
impressionante escore de 95% das convenções coletivas e dos
acordos assinados com reajuste acima da inflação passada. O
aumento real de salário tinha se tornado regra. Somente a
partir de 2015, mas, principalmente, em 2016, com o grande
crescimento do desemprego e com o comando do país
entregue ao governo Michel Temer é que essa linha
ascendente está sofrendo uma brusca inflexão.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra,
que fora sistematicamente perseguido e criminalizado durante
o segundo mandato de FHC, conquistou maior liberdade de
ação, obteve mais créditos e mercados institucionais para a
agricultura familiar, embora não tenha logrado obter um
programa de desapropriações de terra. A luta por moradia
também se fortaleceu muito e, como se sabe, produziu
resultados no plano da política habitacional. Nenhum
movimento popular, feminista, negro ou de minorias sexuais
sofreu retrocesso. As condições de organização e de luta
foram favoráveis. Superamos o refluxo da década de 1990.
Isso ficou claro na reativação da Frente Brasil Popular no
momento de resistência ao golpe parlamentar.
As organizações socialistas e populares que
dispensaram apoio crítico aos governos petistas, combinando
32
de maneira complexa o apoio a tais governos com a crítica, a
cobrança, a pressão e a luta, definiram a tática correta para
esse período. As duas outras opções, tanto a de integrar-se aos
governos petistas, quanto a de defini-los como o inimigo
principal, ambas revelaram-se prejudiciais para a luta socialista
e popular. No momento crítico do golpe parlamentar que
depôs Dilma Rousseff, o campo popular, que soube combinar
o apoio com a crítica e a pressão sobre os governos petistas,
esteve na linha de frente de resistência aos golpistas. Os
governistas demoraram muito para reagir, e quando o fizeram
priorizaram ou circunscreveram a luta no Judiciário e no
Congresso Nacional, enquanto os ultraesquerdistas
permaneceram neutros, indiferentes diante da violação da
democracia, e suas organizações entraram em crise.
Limites e debilidades
A nossa organização, a Consulta Popular, nunca
nutriu ilusões diante dos governos do PT.
Não dissemos, como pretendiam muitos petistas, que
se tratava de um governo popular ou dos trabalhadores. O
fato de tais governos não terem realizado reformas estruturais
e de aplicarem uma política econômica cujo objetivo central
foi o de fortalecer os grandes bancos e as grandes empresas
em geral é suficiente para afastarmos a hipótese de que esse
seria um governo dos trabalhadores. A lista de reformas
engavetadas é grande, mas uma singela comparação com o
neoperonismo na Argentina basta para constatarmos o
quanto os governos petistas ficaram devendo. No país
vizinho, os governos de Nestor e Cristina Kirchner puniram
33
os torturadores da época da ditadura militar e os seus
mandantes, realizaram uma reforma antimonopolista da mídia
e estabeleceram um imposto sobre a exportação de
commodities. Se fizéssemos comparações com outros
governos latino-americanos, o PT ficaria ainda pior na
fotografia.
Mas nós não caímos, tampouco, no simplismo de
identificar os governos do PT como governos neoliberais e de
afirmar que os governos petistas representariam a burguesia
no seu conjunto, ao contrário da análise das organizações
ultraesquerdistas. Com tal análise, essas organizações nunca
puderam explicar como e porque os governos do PT foram,
ao longo de todo esse período, alvo de uma persistente e ativa
oposição burguesa. Tampouco se deram conta de que
também eles, que tanto criticam toda e qualquer política de
frente com qualquer setor da burguesia, formavam, na luta
prática, uma frente política com a fração burguesa que se
opunha ao neodesenvolvimentismo e que defendia o golpe de
Estado.
Nossa tese era a de que esses governos representavam
uma fração da burguesia brasileira, que denominamos grande
burguesia interna, em conflito com outra fração importante,
essa completamente integrada ao capital internacional e que
era, esta sim, a parte da burguesia que sempre fez oposição
aos governos do PT. Se tais governos propiciaram algo às
classes populares foi porque a grande burguesia interna
apoiou-se numa frente política ampla, heterogênea e
contraditória que reuniu importantes contingentes das classes
populares – operariado, baixa classe média, campesinato e
trabalhadores da massa marginal. Numa situação como a
34
brasileira, que não é revolucionária, o movimento operário e
popular, impossibilitado que está de fazer a revolução, não
pode ignorar as divisões no seio da burguesia quando tais
divisões podem ser exploradas em proveito dos interesses
materiais e políticos das classes populares. Foi o que se fez.
Alertamos, contudo, que essa frente era instável e que o seu
prazo de validade poderia ser curto.
Foi o programa dessa frente que denominamos
neodesenvolvimentista. Salientamos que se tratava de um
desenvolvimentismo fraco quando comparado com o
desenvolvimentismo clássico e esclarecemos que se tratava do
desenvolvimentismo possível para um partido e um governo
que se recusavam a romper com o modelo capitalista
neoliberal. Aqui, cabem alguns esclarecimentos.
É preciso distinguir o conceito de modelo econômico
capitalista do conceito de política econômica e social. O
primeiro indica a unidade de certo perfil da economia com
instituições funcionais para a sua reprodução, enquanto o
segundo indica medidas de política de Estado que se inserem
dentro de um determinado modelo de capitalismo. O modelo
capitalista desenvolvimentista clássico era baseado no
intervencionismo do Estado em prol do crescimento
econômico, no estímulo à industrialização, no protecionismo
do mercado interno, e no tripé empresas estatais, empresas
estrangeiras e empresas nacionais. Foi o modelo que
substituiu a velha forma de dependência baseada na produção
agromercantil voltada para a exportação de bens primários,
instituindo uma nova forma de dependência compatível com
a industrialização capitalista do país. Dentro desse modelo,
couberam políticas econômicas e sociais distintas. Basta ver o
35
contraste entre o nacionalismo econômico do segundo
governo Vargas (1951-1954) com a política de abertura ao
capital estrangeiro industrializante do governo Juscelino
Kubitschek (1956-1961). O modelo capitalista neoliberal, que
substituiu o modelo desenvolvimentista, é baseado no Estado
mínimo, no fortalecimento do capitalismo privado, na
abertura comercial desindustrializante, na internacionalização
crescente da economia nacional e na dominação do capital
financeiro. Dentro desse modelo, também cabem políticas
distintas e foi essa possibilidade que os governos do PT
exploraram. Sem pôr abaixo os pilares do modelo, trataram
de moderar os seus efeitos necessariamente negativos sobre o
crescimento econômico e sobre a distribuição de renda.
Os governos do PT aceitaram a dominância do capital
financeiro, a política de juros elevados, a abertura comercial e
a desregulamentação do mercado de trabalho que tinham sido
legadas pelos governos FHC. Trataram, porém, de moderar
os efeitos negativos desses pilares do modelo capitalista
neoliberal sobre o crescimento econômico com o
fortalecimento do BNDES e dos bancos públicos e suas
políticas ambiciosas de financiamento das grandes empresas
nacionais, com o fortalecimento da Petrobrás, com a política
de conteúdo local para estimular a produção interna e
tomaram algumas medidas visando à formalização do
mercado de trabalho. Em resumo, todas medidas que, agora,
estão sendo minadas ou revogadas pelo governo Michel
Temer que representa a vitória do grande capital internacional
e da fração da burguesia brasileira a ele integrada.
A frente neodesenvolvimentista possuía várias
debilidades, tanto na sua cúpula como na sua base.
36
Na cúpula, a sua força dirigente era uma fração da
burguesia que, embora concorra com o capital estrangeiro na
disputa pelo mercado nacional, é, ao mesmo tempo, uma
força dependente daquele capital. Depende dele
tecnologicamente e financeiramente, pois aspira à
incorporação de tecnologia dos países centrais e conta com a
poupança externa para ampliar os seus negócios. Ademais, a
burguesia interna é uma fração burguesa atravessada por
conflitos – entre o capital bancário e o capital produtivo, entre
o grande e o médio capital e outras – e alçou voo no plano
internacional, com investimentos importantes nos países
dependentes menos desenvolvidos.
Na base popular da frente, a insatisfação cresceu
conforme caiu o crescimento econômico e a agitação sobre a
corrupção fez o resto. Grande parte dos setores populares,
mormente os trabalhadores da massa marginal, que era
beneficiado pela política neodesenvolvimentista do PT
encontrava-se desorganizado e politicamente impotente. Os
governos Lula da Silva e Dilma Rousseff entabularam com
esses setores uma relação de tipo populista, tradicional na
política brasileira, beneficiando-os do alto e sem qualquer
preocupação em transformar esse benefício em apoio político
organizado e consciente. Eles não compareceram, no
momento do golpe, para defender o governo. Outro
segmento popular, esse organizado, que esteve ausente da
resistência contra o golpe foi o movimento sindical – as
direções da CUT, da CTB e da Intersindical lutaram contra o
golpe, mas os grandes sindicatos primaram pela ausência. A
responsabilidade aqui cabe tanto ao governo, quanto ao
sindicalismo. De um lado, os governos petistas ignoraram
37
pontos fundamentais da pauta sindical – jornada de 40 horas,
fim do fator previdenciário, regulamentação restritiva da
terceirização – e, de outro, os sindicalistas brasileiros,
educados pela estrutura sindical corporativa de Estado, focam
sua ação na campanha salarial da sua categoria, descurando ou
ignorando a importância da política nacional para o seu
movimento. Como dissemos, as direções da CUT, da CTB e
da Intersindical compareceram nas manifestações contra o
golpe, mas os grandes sindicatos ausentaram-se por completo
da luta. No momento da crise política, portanto, parte da
burguesia interna bandeou-se para o lado do movimento
golpista e grande parte das classes populares assistiu de longe
e passivamente a deposição do governo Dilma Rousseff.
Por último, o Partido dos Trabalhadores e os
governos petistas não se mostraram à altura da tarefa histórica
de resistir ao golpe de Estado. Privilegiaram a luta na cúpula
do Estado capitalista – no Congresso Nacional e no
Judiciário; subestimaram o perigo representado pela
mobilização massiva da alta classe média; não organizaram a
resistência nas ruas e a presidenta Dilma Rousseff não
participou de nenhuma manifestação contra o movimento
golpista pelo menos até a admissão do processo de
impeachment pela Câmara dos Deputados, que foi o passo
primeiro e decisivo do golpe de Estado. Quando acordou, era
tarde.
O governo instável de Michel Temer e a nossa posição
O episódio da crise política que redundou no golpe
parlamentar que depôs a presidenta Dilma Rousseff não é um
38
detalhe menor. Ele representa uma tentativa de restaurar a
plataforma neoliberal da década de 1990 e está promovendo
uma desidratação da democracia brasileira. A partir de agora,
toda eleição para prefeito, governador ou presidente estará
pendente à espera do veredito dos legislativos que podem
sobrepor-se ao voto popular. É um novo tipo de degola,
semelhante à prática em uso na época da República Velha,
quando os candidatos que desagradavam a oligarquia quando
eleitos não eram diplomados. Por essas duas razões, o golpe
parlamentar, portanto, marca profundamente a política
brasileira. Ora, as organizações e os intelectuais que se
guiavam pela tese segundo a qual os governos do PT eram
governos neoliberais sem mais, que apenas dariam
continuidade aos governos FHC, essas organizações não têm
como explicar nem a crise política, nem o golpe de Estado. Se
os governos do PT fossem iguais aos governos do PSDB, por
que é que esse último organizaria um golpe contra o primeiro?
O golpe parlamentar foi o resultado de uma ofensiva
restauradora da fração da grande burguesia integrada ao
capital internacional que, apoiada na alta classe média
mobilizada pelos grandes meios de comunicação e pela
Operação Lava Jato, logrou depor o governo Dilma Rousseff
e procura agora, sob o governo Michel Temer, retomar o
programa de reformas neoliberais. O governo Michel Temer
tem futuro? Representa o início do fim definitivo do ciclo de
governos petistas?
É moeda corrente a ideia de que estaríamos
presenciando o fim do neodesenvolvimentismo e do ciclo de
governos do PT. Essa ideia pode significar duas coisas muito
diferentes. A primeira é a seguinte: o neodesenvolvimentismo
39
esgotou-se no sentido de que ele, com a derrota de 2016, não
logrará mais se recompor. A segunda significação possível
dessa tese é diferente: mesmo que o neodesenvolvimentismo
recomponha-se, não é mais do interesse das classes populares
dispensar apoio, ainda que crítico, a governos
neodesenvolvimentistas.
Examinemos a primeira significação. É certo que o
neodesenvolvimentismo tem contra si as crises econômicas
internacional e nacional, que se revelam prolongadas, e
restringem a margem de manobra para uma política de
crescimento sem rompimento com o modelo capitalista
neoliberal. O neodesenvolvimentismo sofre também o
assédio das forças conjugadas do campo imperialista e
neoliberal, a mobilização estridente da alta classe média e o
desgaste profundo daquele que foi, até aqui, seu principal
instrumento político, o Partido dos Trabalhadores. Sem
dúvida, encontrará dificuldade para se reerguer. Porém, o
campo imperialista e neoliberal não está alçando voo num céu
de brigadeiro. Esse campo chegou ao poder por intermédio
de uma manobra golpista, sem voto, e é obrigado a governar,
não com os seus representantes políticos orgânicos, que são o
PSDB e o DEM, mas com o fisiológico PMDB. O governo
Michel Temer tem hesitado muito, recuou diversas vezes, é
assediado pela Lava Jato e encontra dificuldade em manter sua
unidade interna devido às cobranças neoliberais mais
ortodoxas dos tucanos. Esse não parece ser um governo que
disponha de força para bloquear as pressões organizadas e
difusas das classes populares por distribuição de renda e
tampouco para conter a pressão pelo crescimento econômico
que virá, também, dos empresários. Seria um erro descartar a
40
possibilidade de recomposição do neodesenvolvimentismo,
seja com o PT de Lula, com o PDT de Ciro Gomes ou com
outra via.
Se o neodesenvolvimentismo se recompuser, isto é, se
o poder governamental voltar às mãos de um governo
comprometido com o crescimento econômico moderado e a
distribuição de renda modesta que é o que se pode fazer se
não se rompe com o modelo capitalista neoliberal, deveria o
movimento popular eleger esse governo como o seu inimigo
principal? Deveria entender que o neodesenvolvimentismo,
mesmo não tendo se esgotado historicamente, teria se
esgotado politicamente para as classes populares? Essa
pergunta, é claro, só pode ser respondida diante de um
governo real e específico, mas não em geral e em tese. O
neodesenvolvimentismo pode voltar ao poder com política
externa e política social mais tímidas e, num caso como esse,
o movimento popular poderá ter de reavaliar a tática que
defendeu até aqui.
O que, sim, podemos avançar é que, em primeiro
lugar, interessa ao movimento popular colocar em pé um
programa mais ambicioso que o programa
neodesenvolvimentista. Estando esse programa em crise, é
hora de fazermos avançar nossas propostas de reformas
estruturais e procurar consagrá-las num programa político que
aglutine forças mais amplas: Constituinte para a reforma do
sistema político, democratização da mídia, reforma agrária e
outras.
Não devemos, contudo, descartar, de saída, acordos
ou frentes com todo e qualquer setor da burguesia. Sobre isso,
cabem duas observações.
41
Primeiro, não é correto afirmar pura e simplesmente
que “a burguesia interna” aderiu ao golpe. As posições
políticas no seio dessa fração foram variadas. Tivemos, num
dos extremos, a atividade pública e militante da Fiesp pelo
golpe de Estado e, noutro, a posição de resistência do
segmento da construção pesada à perseguição que lhe faz a
Operação Lava Jato. A posição da Fiesp deve refletir
fundamentalmente os interesses da indústria local de
transformação cujo mercado foi invadido por produtos
importados, mormente chineses. Exceção feita ao período de
2006 a 2011, a indústria de transformação perdeu participação
no PIB. Para um governo neodesenvolvimentista, que, como
tal, não cogita romper com o modelo capitalista neoliberal, é
muito mais fácil criar nichos protecionistas nas compras
públicas, com a política de conteúdo local, do que erguer, por
intermédio da depreciação cambial ou de medidas
alfandegárias, proteção para a indústria de transformação
local. Já, a indústria da construção pesada e da construção
naval, que foram mais bem aquinhoadas com a política de
conteúdo local do neodesenvolvimentismo, esse segmento
teve uma posição diferente na crise do governo Dilma
Rousseff. A posição que parece ter predominado
considerando os diferentes segmentos da burguesia interna
foi a posição que consistiu em manter-se neutra diante da
crise, com as suas associações corporativas apresentando
reivindicações que indicavam, ora a aspiração por um governo
que retomasse o programa de reformas neoliberais, ora a
aspiração por um governo disposto a intervir na economia em
prol do crescimento econômico. Esse fato indica, inclusive, as
42
dificuldades que o governo Michel Temer deverá enfrentar
junto à classe dominante.
A segunda observação a ser feita no que respeita à
possibilidade de acordos com setores da burguesia é que a
divisão entre a burguesia interna e a burguesia associada não
é a única divisão existente na classe dominante. Há outras, e
elas se articulam de modo complexo com a divisão já citada.
No período atual, ainda é a divisão entre a grande burguesia
interna e a grande burguesia associada que tem se mantido
como contradição principal no seio da classe dominante e, de
resto, na política brasileira. Porém, as contradições
secundárias existentes na classe burguesa poderão se
desenvolver e se aguçar. Uma que interessa de perto ao
movimento operário e popular é a clivagem existente entre o
grande e o médio capital. O segmento priorizado pela política
neodesenvolvimentista foi o grande capital – é por isso que
falamos em grande burguesia interna. Um número muito
pequeno de empresas nacionais gigantes nas áreas da
mineração, da construção civil, da construção naval, do setor
bancário e do agronegócio foi o foco da política econômica
petista. É verdade que as pequenas e médias empresas não
possuem organização politicamente relevante, mas não se
pode descartar a possibilidade de vir a ocorrer um
aguçamento do conflito das pequenas e médias empresas
rurais e urbanas com as grandes empresas nacionais e
internacionais. O programa mais avançado que o movimento
popular deve elaborar para a etapa atual deve ter em mente
essa situação e procurar explorá-la politicamente.
Voltemos às exigências práticas do momento atual. O
quadro político do país está indefinido. O governo Dilma
43
Rousseff foi deposto, mas a crise política não acabou e o
governo Michel Temer ainda vive uma situação de
instabilidade. Neste momento, a luta pela deposição desse
governo é nossa tarefa central.
Setembro de 2016
44
A BURGUESIA BRASILEIRA E O GOLPE DO
IMPEACHMENT
Por que, durante a crise política de 2015-2016, a
presidenta Dilma Rousseff foi abandonada por setores sociais
que, até então, vinham se beneficiando com as políticas
implementadas por seu governo? Essa pergunta vale, dentre
outros, para o movimento sindical, para os trabalhadores da
massa marginal e, também, para boa parte da burguesia
brasileira. Ao longo das próximas semanas, vamos tentar
oferecer alguns elementos de resposta para cada um desses
casos. No texto que publicamos agora, veremos o caso da
burguesia.
Para obtermos informação sobre a posição dos
setores burgueses frente à política governamental, podemos
usar, com método e parcimônia, as reportagens da grande
imprensa, mas devemos dar especial atenção à imprensa
própria das grandes associações empresariais. A burguesia
brasileira está organizada em sindicatos oficiais, agrupados em
federações e confederações, e também em associações civis
que reúnem segmentos empresariais determinados e que têm
um papel importante na vocalização e na organização de
interesses. Coordenamos um levantamento de informações
no material publicado pela imprensa de algumas importantes
entidades empresariais durante o primeiro governo Dilma e
durante os anos da crise política. O levantamento contemplou
confederações, federações, sindicatos e associações

Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 06 de janeiro de 2017.
45
estratégicos da agricultura e da indústria – com destaque para
a Confederação Nacional da Indústria (CNI), Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Sindicato da
Indústria Naval (Sinaval), Associação Brasileira da Indústria
de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), Associação Brasileira
de Infraestrutura e Indústria de Base (ABDIB), Confederação
Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), e
Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Partimos,
como é necessário e inevitável, de alguns conceitos prévios
relativos à burguesia e à sua relação com o Estado.
A burguesia brasileira mantém relações variadas e
complexas com o capital internacional. Não há no Brasil uma
burguesia nacional antiimperialista, mas tampouco chegou-se
a uma situação na qual todas as empresas capitalistas aqui
atuantes seriam empresas estrangeiras e empresas integradas
ao capital internacional. Temos uma fração da burguesia
brasileira, a burguesia interna, que, embora não hostilize o
capital estrangeiro, concorre com ele, disputando posições na
economia nacional e, em menor grau, também na economia
internacional. Os governos do PT representavam essa fração
da burguesia apoiados em setores das classes populares e o
golpe contra o governo Dilma foi dirigido, justamente, pelo
capital internacional e pelo setor da burguesia brasileira a ele
associado, contando com o apoio ativo da fração superior da
classe média. O fato notório e muito importante de o governo
Temer ter abandonado a política (moderadamente)
nacionalista para a cadeia do petróleo e gás – regime de
exploração, refino, fornecimento de navios, de equipamentos
pesados etc. – serve para ilustrar essa tese. Pois, bem, por que
é que a fração burguesa que vinha sendo beneficiada pelos
46
governos do PT não defendeu o governo Dilma?
A burguesia e suas frações agem premidas por
circunstâncias dadas. Elas não possuem a clareza de interesses,
a unidade política, a capacidade de organização e a liberdade
de ação que supõem muitos dos analistas de esquerda. No
caso do Brasil, a burguesia interna era representada pelo
governo organizado por um partido político que não fora
construído pela própria burguesia, mas que, justamente por
isso, teve maior liberdade para impor alguns sacrifícios à
burguesia interna, angariando-lhe com isso uma base de apoio
popular. Foi o que permitiu que os interesses maiores dessa
fração prevalecessem frente ao capital internacional e à
burguesia associada. Nascia a frente política
neodesenvolvimentista que encerrou a hegemonia exercida
pelo capital internacional e pela burguesia associada durante a
década de 1990. A leitura da imprensa das associações
empresarias permite ver que, durante os anos de crescimento
econômico, e quando ainda estava fresca na memória da
burguesia interna a estagnação e a abertura econômica radical
dos governos FHC, essa fração burguesa aceitou tais
sacrifícios – valorização do salário mínimo, transferência de
renda, reconhecimento do direito dos trabalhadores à luta
reivindicativa, expansão do serviço público etc. Os
documentos das associações empresariais não concediam
destaque à política social dos governos do PT quando
arrolavam aqueles que seriam os problemas, gargalos e
dificuldades da economia brasileira.
A situação começou a mudar a partir de 2013. Os
fatos relevantes foram o baixo crescimento econômico, a
ofensiva ideológica do capital internacional contra a nova
47
matriz de política econômica ensaiada pelo Ministro Guido
Mantega e, finalmente, o ajuste fiscal do segundo governo
Dilma. Foi nessa nova conjuntura que os sacrifícios burgueses
que garantiam o apoio popular ao neodesenvolvimentismo
passaram a ser vistos como um preço muito alto.
As associações de industriais e do setor agrícola
pesquisadas têm algumas reivindicações que aparecem de
modo recorrente ao longo de todo o segundo mandato Dilma
Rousseff e durante o período de crise. Nesse elenco de
reivindicações destacam-se dois grupos. O primeiro aponta
contra os interesses do capital internacional e financeiro,
enquanto o segundo aponta contra os trabalhadores; o
primeiro prevaleceu durante o primeiro biênio do governo,
enquanto o segundo foi ganhando destaque a partir do ano de
2013. No primeiro grupo de reivindicações recorrentes,
temos: juro baixo, câmbio depreciado, financiamento público
a juro subsidiado para os investimentos, investimento em
infraestrutura, política de conteúdo local, política industrial e
outras. No segundo grupo de reivindicações recorrentes,
temos: reforma da previdência, reforma trabalhista, ajuste
fiscal baseado na redução dos gastos sociais e no arrocho do
funcionalismo e outras. Acompanhando a imprensa das
associações empresariais, fica claro que o segundo grupo de
reivindicações vai ganhando proeminência à medida que o
período de crescimento baixo e de crise econômica
prolongava-se e que a campanha pelo ajuste fiscal pesado
ganhava força.
A burguesia interna não fez esse movimento em
bloco. Parte dela foi perseguida judicialmente, graças ao fato
de as forças articuladas do imperialismo, da burguesia
48
associada e da alta classe média terem utilizado a corrupção
como arma para isolar e mesmo destruir as empresas
nacionais de construção e engenharia pesada; parte aderiu
ativamente ao golpe – os casos mais importantes são a CNI,
a Fiesp, pelo que se pode constatar lendo a imprensa dessas
associações. A indústria de transformação encontrava-se,
desde 2011, em trajetória declinante devido à penetração dos
manufaturados chineses; parte da burguesia interna, ainda,
ficou neutra na crise – foi o caso da indústria de construção
naval que, tendo crescido a taxas de 19% ao ano, relutou em
aderir ao golpe do impeachment e hoje está em campanha
contra o desmonte da política de conteúdo local pelo governo
Temer.
A resultante, contudo, foi que se abriu uma crise de
representação. O representado, a grande burguesia interna,
não se reconhecia mais no representante, o governo Dilma –
governo que, repito, fora apoiado e aplaudido por essa fração
burguesa até pelo menos o ano de 2012. A ofensiva
restauradora do grande capital internacional e da fração da
burguesia brasileira a ele associada, apoiados na mobilização
da alta classe média, encontrou, então, caminho livre para
avançar.
Janeiro de 2017
49
OS TRABALHADORES DA MASSA MARGINAL E O
GOLPE DO IMPEACHMENT
Este artigo é o segundo de uma série na qual analiso a
debilidade da resistência ao golpe que depôs a presidente
Dilma Rousseff em 31 agosto de 2016.
No artigo anterior, também publicado no portal do
Brasil de Fato, analisamos a atuação da burguesia interna na
crise política de 2015-2016. Vimos que diferentes segmentos
dessa fração da burguesia, cujos interesses foram priorizados
pelos governos do PT, assumiram posições distintas na crise
política. A construção pesada brasileira foi designada como
alvo principal da campanha golpista promovida pelo capital
internacional, pela fração da burguesia brasileira a ele
associada e pela alta classe média, tornando as grandes
construtoras vítima da Lava Jato e colocando-as fora de
combate ainda nos capítulos iniciais da crise. Já a construção
naval e outros segmentos mantiveram-se neutros, enquanto a
indústria de transformação, com o crescimento bloqueado
pela importação de manufaturados chineses, aderiu
ativamente ao movimento golpista. Tentamos indicar, naquele
primeiro artigo, as razões dessa divisão. No presente texto,
iremos analisar a posição política dos trabalhadores da massa
marginal.
O capitalismo dependente brasileiro sempre manteve
um grande contingente de trabalhadores apenas periférica e
superficialmente integrado à produção estritamente
capitalista. A maneira específica de o capitalismo integrar o

Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 20 de janeiro de 2017.
50
trabalhador é o assalariamento para a produção e a realização
da mais-valia. Ora, os trabalhadores e trabalhadoras
domésticas, os camponeses com pouca terra, os trabalhadores
urbanos por conta própria, os camelôs, prestadores de
serviços variados, os subempregados e outros não são
assalariados em empresas capitalistas ou integram-se a essas
empresas apenas como assalariados eventuais, como
vendedores ocasionais e autônomos de mercadorias
eventualmente produzidas pelas empresas capitalistas ou, no
limite, apenas como consumidores. Estão na margem do
sistema. O modelo capitalista neoliberal e dependente fez
crescer o contingente de trabalhadores dessa massa marginal.
Como é sabido, esses trabalhadores votavam, em sua grande
maioria, nos candidatos à presidência do Partido dos
Trabalhadores. Eles formaram a principal base eleitoral de
massa dos governos do PT.
Essa relação política nada tem a ver com aquilo que
imaginam e apregoam os liberais, os seus partidos e a
imprensa comercial. Não se trata de cidadãos cuja opção de
voto resultaria da desinformação, do suposto carisma de Lula
ou do clientelismo. Os governos do PT atenderam a interesses
reais desses setores e o fizeram com uma política de massa e
não com favores pontuais em troca de apoio político, como é
próprio do clientelismo. Não custa lembrar, estamos nos
referindo ao Bolsa Família, ao incentivo ao usufruto do
Auxílio de Prestação Continuada, ao Luz para Todos, ao
Pronatec, ao Minha Casa, Minha Vida, ao Programa de
Cisternas para o Semi-árido e a outros programas de
transferência de renda e de fornecimento de bens e serviços a
setores populares que tiveram a massa marginal como
51
beneficiária principal ou importante. Os trabalhadores da
massa marginal ao descarregarem o seu voto no PT
procediam, portanto, do mesmo modo que procedem todas
as demais classes e camadas sociais: votavam no candidato
que, de algum modo e com maior ou menor amplitude,
atendia aos seus interesses.
Apesar desse elemento geral, a relação desses
trabalhadores com os governos do PT apresentava uma
particularidade. Era uma relação de tipo populista, ou, para
ser mais preciso neopopulista. Sabemos bem que esse
conceito é mal visto por grande parte dos intelectuais de
esquerda. Mas, atenção, não convém se perder em discussões
terminológicas. Já mostramos, no parágrafo anterior, que,
embora usemos a palavra populismo, não utilizamos o
mesmo conceito – ideia – de populismo que é mobilizado
pelos liberais. Para esses, o político populista obtém apoio
popular engabelando, tapeando ou até hipnotizando as
“massas incultas”. Já indicamos que na relação populista o
político deve atender, minimamente, os interesses de sua base
social. No caso do Brasil, esse interesse é a distribuição de
renda que, pelo seu caráter popular e progressista, diferencia
o populismo do bonapartismo, já que nesse último a demanda
da base social é conservadora.
Getúlio Vargas, no populismo clássico brasileiro,
apoiou-se no proletariado recém-chegado do campo e sem
experiência organizativa – a nova geração proletária que
substituía a geração de operários imigrantes europeus da
República Velha – amealhando apoio popular para a política
desenvolvimentista de industrialização. Sua arma e bandeira
foi a Consolidação dos Direitos do Trabalho, a CLT, estatuto
52
legal que, até os dias de hoje, assombra os neoliberais. No
período posterior ao regime militar, o novo sindicalismo
evidenciou que a classe operária e demais assalariados urbanos
tinham maior capacidade de organização e de luta que os
trabalhadores do período pré-1964. Lula da Silva e Dilma
Rousseff, para implantarem o neopopulismo, apoiaram-se
nos trabalhadores da massa marginal, composta por
segmentos das classes trabalhadoras com baixa capacidade de
organização e de pressão, encontrando então nesses
segmentos apoio popular para o neodesenvolvimentismo, a
política que reformou o modelo capitalista neoliberal até hoje
vigente no Brasil. A tradição populista brasileira encontrou
um novo assento e falou mais alto que as intenções iniciais
dos fundadores do Partido dos Trabalhadores que visavam,
justamente, a superar a Era Vargas pela esquerda.
Pois bem, a relação populista imobiliza politicamente
o trabalhador. Um setor social com baixa capacidade de
organização, interpelado do alto por políticos profissionais ou
governos, torna-se prisioneiro daquilo que poderíamos
denominar o culto ou fetiche do Estado protetor. Ele delega
ao Estado capitalista, cujas instituições parecem situar-se
acima das classes sociais, a função de proteger os “pobres”. É
verdade que parte dos trabalhadores da massa marginal
organiza-se e luta em movimentos pela terra e por moradia.
Essa parte esteve, de resto, ativa na resistência ao golpe.
Contudo, ela representa ainda uma pequena minoria. O
grande contingente de trabalhadores da massa marginal
ausentou-se da luta e deixou a caravana do golpe de Estado
passar. Esse contingente vê o Estado como uma entidade livre
e soberana, a qual deve tomar a iniciativa de proteger os
53
“pobres” e cuja ação independe da relação de forças entre as
classes sociais – residindo aí o motivo de utilizarmos também
a expressão fetiche do Estado.
O trabalhador da massa marginal foi de fundamental
importância para as vitórias eleitorais dos candidatos à
presidência do PT, mas ele não tem consciência clara desse
fato. Não percebe o impacto do seu voto na situação política
nacional; não percebe que se os seus interesses dependiam dos
governos petistas, esses, por sua vez, dependiam, e ainda mais,
do apoio político e não apenas eleitoral da massa marginal.
No momento da crise, quando a força e a soberania do
governo petista desmancharam-se no ar, os trabalhadores da
massa marginal não tinham condições ideológicas e nem
organizativas para saírem na defesa do governo. Os governos
Lula e Dilma e o próprio PT abriram mão de organizar essa
massa, de levá-la a superar o populismo e fazê-la ver que ela
deve depender de suas próprias forças. Não quiseram e não
puderam recorrer a ela em sua defesa.
No populismo clássico, em agosto de 1954, a
passividade política dos segmentos populares mantidos sob o
fascínio do populismo transformou-se no seu contrário e
idêntico: irrompeu nas ruas em grandes e impotentes quebra-
quebras, ataques à grande imprensa comercial e a consulados
estadunidenses. Carlos Lacerda, apavorado, fugiu para a
Bolívia. Em agosto de 2016, nem esse espetáculo de revolta e
impotência o neopopulismo nos ofereceu. Aécio Neves e
outros desfilam tranquilos pelas ruas do Rio de Janeiro e de
Curitiba. Dilma Rousseff tampouco deixou algo que
lembrasse o apelo trágico da Carta Testamento de Vargas.
Janeiro de 2017
54
AS RECLAMAÇÕES TARDIAS DA FIESP
Depois participarem do movimento golpista ou
ficarem (favoravelmente) neutros diante desse movimento,
lideranças empresariais importantes, como Paulo Skaf,
presidente da Fiesp e candidato a político profissional, e
Benjamin Steinbruch, do Grupo Vicunha, da CSN, do Banco
Fibra e 1o
vice-presidente da Fiesp, vieram a público, por
intermédio de artigos seguidos, publicados no jornal Folha de
S. Paulo, fazer críticas à política econômica do governo Temer.
Paulo Skaf saiu em defesa da política de conteúdo local para
a cadeia do petróleo e gás, enalteceu, e alguns poderão
considerar que cinicamente, a política aplicada nos últimos 13
anos, e criticou a nova onda de importação de equipamentos
pela Petrobrás. No dia seguinte, Benjamin Steinbruch elevou
a crítica para um plano mais geral: o erro é o neoliberalismo
exacerbado que abre o mercado interno até num momento
em que vários países fazem o caminho no sentido oposto.
A relação das grandes empresas brasileiras, em vários
setores da economia, com o programa neoliberal de
desregulamentação de direitos dos trabalhadores, abertura
comercial e financeira e privatizações é complexa. Na década
de 1990, após apoiarem ativamente FHC, foram, aos poucos,
afastando-se do programa neoliberal e se aproximando da
plataforma neodesenvolvimentista do PT e da candidatura
Lula. Nunca apoiaram integralmente o neoliberalismo.

Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 17 de fevereiro de
2017.
55
Sempre reclamaram – a palavra é essa mesmo: reclamaram –
da abertura comercial, ou melhor, da “abertura comercial
exagerada”, enquanto apoiavam as privatizações, com as quais
grandes empresas ampliaram seu patrimônio adquirindo
estatais a preço vil, e, evidentemente, e apoiavam o corte dos
direitos sociais e trabalhistas. Quando aderiram ao programa
dos governos petistas de moderar o neoliberalismo para
estimular o crescimento econômico, tampouco aderiram sem
reservas. Sempre foram críticos ou reticentes diante do
crescimento do gasto do Estado com assistência e direitos
sociais, não pararam de criticar a carga tributária – excessiva,
segundo a burguesia brasileira – e sempre temeram o
intervencionismo excessivo na economia.
Essa posição origina uma espécie de movimento
pendular da grande burguesia interna, exatamente como já
destacaram os pioneiros na análise crítica do capitalismo
brasileiro – Florestan Fernandes, Jacob Gorender e outros. A
trajetória política foi a seguinte: na década de 1990, a
burguesia interna esteve com FHC; na década de 2000, com
o PT; e, agora, na década de 2010, iniciou um movimento de
retorno à posição política dos anos 90.
Os grandes empresários brasileiros privilegiam um ou
outro ponto da política econômica de acordo com a situação
econômica do país, com a conjuntura política e ideológica.
Recentemente, com a queda do crescimento econômico,
foram convencidos, pela luta ideológica no próprio interior da
burguesia, que o caminho seria apertar os cintos dos
trabalhadores. Os documentos e publicações da CNI, da
Fiesp, da CNA e de outras grandes associações empresariais
passaram a enfatizar, não mais a crítica à abertura comercial,
56
ao juro extorsivo ou aos estrangulamentos da infraestrutura,
mas, sim, o excesso do gasto público, principalmente da
previdência, a dita “camisa de força” dos direitos trabalhistas
e por aí embarcaram no movimento golpistas ou, como
dissemos, assumiram uma postura de neutralidade que
favoreceu o golpe.
O movimento popular deve acompanhar e analisar
esses movimentos. É motivo de revolta ver Paulo Skaf depois
de fazer o que fez para depor a Presidenta Dilma Rousseff,
vir a público reclamar do resultado de sua própria ação como
se a abertura do pré-sal fosse algo inesperado e inexplicável.
Mas, é preciso, também, notar que essas reclamações
arranham a base de apoio do governo Temer na grande
burguesia sem ter ilusões quanto ao protagonismo desses
setores burgueses na reversão do estado de coisas atual.
Fevereiro de 2017
57
O CONFLITO INSTITUCIONAL COMO CONFLITO DE
CLASSE
É público e notório que se instalou um conflito
institucional no Estado brasileiro. Ele opõe tanto o Executivo
quanto o Legislativo Federal a setores politicamente ativos do
Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal. O que
não é do conhecimento de todos é que esse conflito
institucional que atravessa o Estado brasileiro é, também e
principalmente, um conflito de classes. Os setores
politicamente ativos do Judiciário, do Ministério Público e da
Polícia Federal representam de um modo muito peculiar,
embora já verificado em outros momentos da história política
do Brasil, a alta classe média, que foi a base de apoio do golpe
de Estado que depôs Dilma Rousseff; o Executivo Federal e
as forças majoritárias no Legislativo representam a fração da
burguesia que foi a força dirigente desse golpe de Estado. A
força política dirigente do golpe, a fração da burguesia
brasileira associada ao capital internacional e interessada na
restauração do neoliberalismo puro e duro, perdeu o controle
da base de massa do golpe, cuja mobilização a burguesia
incentivou, até agosto de 2016, para poder depor a presidente
Dilma.
Os conflitos políticos envolvem classes e frações de
classe variadas e repercutem, de maneiras distintas, nas
instituições políticas e nas lutas de ideias. Parte importante do

Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 07 de dezembro de
2016.
58
pensamento socialista e de esquerda no Brasil não logra
analisar o conflito institucional atual como conflito de classe
porque restringe a observação ao conflito capital/trabalho e
descura a importância do fracionamento que divide a
burguesia e também a importância da presença política da
classe média. Até 2014, a burguesia brasileira encontrava-se
dividida diante da política econômica, social e externa dos
governos do Partido dos Trabalhadores (PT). A fração que
denominamos burguesia interna apoiava ativamente, como se
pode verificar pela consulta à imprensa das associações
empresariais, a política neodesenvolvimentista desses
governos, enquanto a fração integrada ao capital internacional
e esse próprio capital, cujos interesses eram vocalizados pelo
PSDB e por agências internacionais variadas, opunham-se a
tais políticas.
A partir de 2013, a burguesia associada, valendo-se
principalmente da oportunidade oferecida pela queda do
crescimento econômico e pela mobilização da alta classe
média contra o governo, iniciou uma ofensiva política
restauradora para derrotar o neodesenvolvimentismo e
restaurar a política neoliberal. As peripécias da crise, seus
variados componentes, fizeram com que parte importante da
burguesia interna mantivesse uma posição de neutralidade
favorável à ofensiva da fração adversária ou, inclusive,
aderisse a ela – como foi o caso patente dos industriais
paulistas representados pela Fiesp. Parte ainda da burguesia
interna foi violentamente atacada pela Operação Lava Jato e
capitulou. A correlação de forças mudou radicalmente e o
golpe de Estado foi bem-sucedido. Muitos analistas e
observadores socialistas imaginavam que, deposto o Governo
59
Dilma, o comando da Lava Jato desmobilizaria em pouco
tempo a operação. Não foi o que aconteceu. O PT é sim o
inimigo principal da Lava Jato e da alta classe média, mas não
é o seu único inimigo.
Juízes, procuradores e delegados são, ao mesmo
tempo, burocratas do ramo repressivo do aparelho de Estado
e integrantes da fração superior da alta classe média. A ação
desses agentes está, por isso, duplamente determinada. Como
agentes da ordem, insurgiram-se contra aquilo que
consideram a condescendência dos governos do PT para com
os movimentos populares. Preferem a repressão dura dos
governos tucanos – FHC, Alckmin, Beto Richa e outros.
Como segmento social e economicamente privilegiado do
funcionalismo público, têm a mesma disposição da alta classe
média contra as políticas distributivas dos governos do PT.
Até aí, falavam a linguagem do campo burguês. Ocorre que
foi a agitação contra a corrupção que uniu esses agentes do
Estado à mobilização de rua da alta classe média. Por razões
que não podemos analisar aqui, a centralidade da bandeira da
luta contra a corrupção é tradição da classe média, não do
movimento camponês ou do movimento operário. Esse tipo
de agitação moralista desse setor social é uma constante nas
crises políticas da história do Brasil republicano. A alta classe
média, convocada pelo MBL e pelo Vem pra Rua, passou a se
reconhecer politicamente na Operação Lava Jato e os
responsáveis dessa operação assumiram o papel de
representantes políticos desse setor social. Depor o governo
do PT era o objetivo principal, mas o discurso contra a
corrupção não era mera pretexto. Mesmo sem o respaldo da
mídia burguesa e mesmo contra os aliados da véspera, a alta
60
classe média, ou parte dela, não se conforma com uma postura
de acomodação e quer dar sequência àquilo que julgam ser a
moralização do Brasil.
O Governo Temer está cumprindo tudo o que
prometeu ao capital internacional e à burguesia associada, mas
há diferenças de interesses e de valores entre a alta classe
média e a burguesia. A base de apoio do golpe quer prosseguir
na luta e está criando turbulência política que não interessa em
nada à força dirigente do golpe de Estado. Essa última
pretende “estancar a sangria da Lava Jato” – para retomar a
frase dita em ligação telefônica vazada para a imprensa pelo
Senador Romero Jucá – e voltar à normalidade para impor
tranquilamente o arrocho fiscal, as novas rodadas de
privatização e de abertura da economia ao capital
internacional.
A grande burguesia, quando atiçou ao longo do ano
de 2015 e de 2016 manifestações na Avenida Paulista, em
Copacabana, no Farol da Barra e em outros logradouros de
nossas capitais, liberou forças que não está conseguindo mais
controlar. Domingo, dia 04 de dezembro, o MBL e o Vem pra
Rua realizaram novas manifestações em dezenas de cidades
do país e desta vez contra o presidente do Senado e da Câmara
Federal e em defesa do “Partido da Lava Jato”. A destituição
de Renan Calheiros da presidência do Senado na segunda-
feira por um ministro do STF foi mais uma demonstração da
sintonia fina existente entre o Judiciário e a alta classe média.
A relação é forte: representantes e representados
reconhecem-se mutuamente como tais. Até onde conseguirão
ir?
Dezembro de 2016
61
NOVIDADES SOBRE O PAPEL DA BURGUESIA NO
GOLPE DO IMPEACHMENT
Quem deu o golpe? Este dossiê está reaberto. A
pesquisa científica não para e as fronteiras do conhecido
avançam. Pesquisas recém encerradas ou ainda em curso têm
trazido novidades sobre essa matéria. A questão que colocam
é esta: onde estavam e o que fizeram as pequenas e médias
empresas na conjuntura do impeachment?
A resposta para a pergunta sobre quem deu o golpe
não parte, e não pode partir, apenas e diretamente dos fatos,
ao contrário do que supõe o empirismo radical. Tal pesquisa
depende também do dispositivo conceitual que o analista
mobiliza. Seguindo a tradição marxista, que concebe o
processo político como a resultante de um conflito entre
classes e frações de classe que, na cena política, organizam-se
em partidos e associações diversas, a pergunta sobre o papel
da burguesia no golpe de 2016 é fundamental.
Em que pé estava o debate
Não existe entre aqueles que trabalham com o
enfoque das classes sociais uma resposta consensual para a
questão sobre a autoria do golpe de 2016. Alguns entendem
que o golpe do impeachment foi uma ação do conjunto da
classe burguesa, concebida como um coletivo sem fissuras,
contra a ascensão da luta e das conquistas, ainda que

Artigo publicado no site A terra é redonda em 18 de junho de 2020.
62
modestas, das classes trabalhadoras. Pensamos que isso é
parte da verdade, mas não é a verdade toda. Outros detectam
divisões no interior da burguesia, não se satisfazem com a
ideia de uma burguesia homogênea. Uma primeira versão
dessa linha de análise, e que é a versão predominante, sem
negar que as diferentes frações da classe dominante acabaram
em boa medida convergindo no final de 2015 e início de 2016
para uma posição favorável à deposição do Governo Dilma,
afirmam que se tratou de uma ação dirigida principalmente
pelo segmento rentista da classe dominante contra o setor
produtivo dessa mesma classe social, setor produtivo que,
paradoxalmente, já que também insatisfeito com o Governo
Dilma, acabou abandonando-o. Uma segunda versão da
análise que se preocupa com o conflito de classes e que
valoriza analiticamente as divisões no interior da burguesia,
versão que desenvolvo em livro que publiquei sobre o tema
(Reforma e crise política no Brasil – os conflitos de classe nos
governos do PT, Editoras Unicamp e Unesp, 2018), sustenta
que a força dirigente do golpe foi a burguesia associada ao
capital internacional. A grande burguesia interna, fração
ao mesmo tempo dependente e concorrente do capital
internacional, e cujos interesses os governos do PT
priorizavam, acabou, também devido a insatisfações com o
Governo Dilma e com a ascensão do movimento popular, se
dividindo – uma parte defendeu Dilma até as vésperas do
impeachment, outra permaneceu politicamente neutra e uma
terceira parte aderiu ativamente ao golpe.
63
As novidades
As análises acima citadas têm os olhos voltados para a
grande burguesia. Não têm examinado de perto o
comportamento político do segmento da pequena e média
empresa que, como é sabido, é o contingente, de longe,
majoritário no universo das empresas brasileiras. Esse olhar
seletivo, voltado para as grandes empresas, em parte é
justificado. O médio capital não tem agido como força social
autônoma no processo político brasileiro. Isto é, embora
exista como força social distinta, já que tem interesses
próprios e tais interesses podem provocar efeitos
pertinentes no processo político nacional, não possui
programa político próprio, deixando, por causa disso, de
contar entre as forças sociais que mais pesam na definição
dos rumos da política brasileira. Porém, os tais efeitos
pertinentes podem ser também muito importantes. É o que
mostra a ótima dissertação de mestrado de Fernanda Perrin
defendida este mês de junho na USP e intitulada O ovo do pato
– uma análise do deslocamento político da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo. É o que estão mostrando
também as pesquisas de Felipe Queiroz Braga sobre a mesma
Fiesp e de Octávio Fonseca Del Passo sobre a construção
civil. Em todas elas, aparece a importância da presença da
média burguesia do setor industrial na política brasileira
contemporânea. De certo modo, o tema aparecera também
no livro de Danilo Martuscelli intitulado Crises políticas e
capitalismo neoliberal no Brasil (Editora CRV, 2015).
Peço licença ao leitor para falar da análise que tenho
feito da política brasileira de modo a poder esclarecê-lo sobre
64
esta minha intervenção neste debate. Nessa análise, a fração
burguesa que Nicos Poulantzas denominou burguesia
interna, eu sempre a denominei, para tratar da política
brasileira contemporânea, grande burguesia interna e
considerei essa fração burguesa como a fração hegemônica
nos governos encabeçados pelo PT. Isso quer dizer que as
políticas econômica, social e externa desses governos, sem
excluir os interesses das demais frações burguesas e inclusive
da burguesia associada e do próprio capital internacional,
priorizaram os interesses daquela fração. Eu combino dois
sistemas de fracionamento ao falar de grande burguesia
interna. O fracionamento pelo porte do capital – trata-se do
grande capital – e o fracionamento pela origem do capital – é
o capital nacional, embora não seja uma burguesia nacional
antiimperialista. Ocorre que, se faz sentido falar em grande
burguesia interna, é porque, e somente porque, deve existir
uma média burguesia interna.
No primeiro capítulo do meu citado livro, eu formulei
a seguinte ideia. A política econômica neoliberal estabelece
uma hierarquia no interior do bloco no poder. Ela privilegia,
no que respeita à função do capital, o capital financeiro; no
que respeita ao porte das empresas, o grande capital; e no que
respeita à nacionalidade, o capital estrangeiro e associado.
Concluía que no topo da hierarquia desse bloco no poder
encontrava-se o capital financeiro internacional, e na sua base,
o médio capital produtivo nacional voltado para o mercado
interno. Entre o topo e a base dessa hierarquia distribuíam-se
outras combinações desse fracionamento (Reforma e crise política
no Brasil – p. 51). Há um médio capital bancário na posição
intermediária. O pesquisador Ary Minella, pioneiro no estudo
65
político dos bancos, mostrou que no Governo FHC cerca de
200 bancos de médio e pequeno porte foram à falência. É
preciso, como mostra Francisco Farias em um ensaio teórico
intitulado “Frações burguesas e bloco no poder”, publicado
na revista Crítica Marxista n. 28, chamar a atenção para o fato
que os sistemas de fracionamento – função do capital, seu
porte, sua origem e outros – se cruzam o que indica a
complexidade que é a análise do bloco no poder. Contudo,
voltando ao que eu dizia sobre o meu próprio trabalho, eu não
pesquisei o comportamento político desse segmento burguês,
a média burguesia interna e ignorava, até pouco tempo,
pesquisas mais sistemáticas que o tivessem feito. As pesquisas
acima citadas trazem novidades importantes justamente sobre
isso e podem exigir da parte nossa, todos os que pesquisamos
a política brasileira como resultado de um conflito de classes
e frações de classe, acréscimos ou retificações, maiores ou
menores, na nossa análise.
O médio capital no golpe de Estado de 2016
O que mostra a dissertação de Fernanda Perrin? Ela
argumenta, e até que novas pesquisas demonstrem o contrário
a argumentação é convincente, que a Fiesp sob a gestão de
Paulo Skaf está apoiada, fundamentalmente, no médio capital,
isto é, nas pequenas e médias empresas industriais que são
empresas de capital nacional – explico logo abaixo porque
prefiro dizer “está apoiada” e não que “representa” esse
médio capital. O argumento de Felipe Queiroz Braga é o
mesmo. Ambos pesquisadores realizaram numerosas
entrevistas com diretores da Fiesp, de sindicatos que integram
66
essa federação e com dirigentes de pequenas e médias
empresas. Mostraram, inclusive, a insatisfação dos pequenos
e médios empresários com aspectos importantes da política
econômica dos governos do PT. Em destaque, a insatisfação
desses pequenos e médios empresários com a política de
financiamento do BNDES focada nos chamados “Campeões
Nacionais”, que, como a própria expressão indica, designa um
seleto grupo de empresas brasileiras grandes e poderosas. As
consequências dessa descoberta são importantes.
O inefável Paulo Skaf quando mobilizou a Fiesp
contra o Governo Dilma fazia-o, é o que argumenta Fernanda
Perrin na sua dissertação, representando, afirma ela, as
pequenas e médias empresas e não na grande burguesia. Os
grandes empresários, diferentemente, teriam hesitado muito
em aderir à campanha do impeachment, tanto grandes
empresários do setor produtivo, quanto grandes empresários
do setor bancário. Fernanda Perrin, cuja dissertação logo
estará disponível no repositório de teses da USP, mostra isso
utilizando reportagens da imprensa e entrevistas que realizou.
André Flores, em dissertação de mestrado defendida na
Unicamp (Divisão e reunificação do capital financeiro – do
impeachment ao Governo Temer), tinha mostrado que o
capital bancário nacional manteve o seu apoio ao Governo
Dilma até fevereiro de 2016. Temos, então, dois
comportamentos políticos distintos num momento crucial da
história política do Brasil: o médio capital industrial e
nacional, segmento do qual se poderia esperar um
comportamento mais progressista, assumiu uma posição mais
conservadora que o grande capital produtivo ou bancário
nacional. Tal fato enseja muitas reflexões.
67
A primeira delas é a seguinte: isso significa, então, que
o golpe do impeachment foi uma ação vitoriosa da média
burguesia interna contra a grande? Uma vitória das
pequenas empresas brasileiras contra o grande capital nacional
ou estrangeiro? A dissertação de Fernanda Perrin sugere essa
tese em inúmeras passagens. Na banca de defesa de sua
dissertação, ela esclareceu que não era essa a sua intenção. Mas
a questão permanece: qual foi o papel político do médio
capital? Penso que nesse ponto, que é crucial para entender os
interesses envolvidos naquele golpe, devemos fazer intervir os
conceitos de força dirigente e de força motriz de um
processo político qualquer. Mao Zedong elabora esses
conceitos discorrendo sobre os processos revolucionários. A
força dirigente é a classe social ou a fração de classe que logra
impor os objetivos políticos da luta e a força motriz é a classe
ou fração que fornece os quadros e os ativistas para tal luta –
Mao distingue ainda a força motriz principal que é aquela
que fornece a maioria dos quadros e dos ativistas. Pois bem,
tenho para mim – e até segunda ordem porque a pesquisa e as
descobertas não param... – que a força dirigente do
movimento golpista foi sim o capital estrangeiro e a burguesia
associada que procurou, depondo o governo da frente política
neodesenvolvimentista capitaneada pela grande burguesia
interna, restaurar a hegemonia política que usufruíra na
década de 1990. Porém entre as força motrizes desse golpe
contou, a julgar pelas pesquisas que estou comentando, o
médio capital, além das frações abastada e remediada da classe
média, organizadas em movimentos como o Vem pra Rua e o
Movimento Brasil Livre (MBL). O golpe não representou uma
vitória do médio contra o grande capital. Na verdade, o
68
grande capital internacional e a grande burguesia associada
instrumentalizaram politicamente a insatisfação do médio
capital nacional, jogando-o contra o grande capital também
nacional.
Uma questão, ainda relacionada com o problema da
força dirigente do golpe, ficou em aberto. Refiro-me ao
seguinte. Paulo Skaf apoiou-se no médio capital, mas não
apresentou um programa positivo de defesa dos interesses
dessa fração burguesa. Esse é também um ponto sobre o qual
essas novas e excelentes pesquisas precisariam refletir. Paulo
Skaf aliou-se ao vice-presidente Michel Temer e defendeu,
junto ao empresariado, o programa do MDB Uma ponte para o
futuro. Ele só poderia ser considerado um representante
orgânico do médio capital, se tivesse organizado um programa
político específico representando os interesses desse
segmento. Mas não foi isso que aconteceu. Ele, segundo
minha avaliação, apenas se apoiou na insatisfação do médio
capital. É por isso que estou usando a palavra apoio e não
representação. Esse é outro ponto para mais reflexão e
pesquisa.
É uma ironia da história: o segmento politicamente
mais conservador do capitalismo brasileiro, o grande capital
estrangeiro e a burguesia associada, atacou o governo do PT
“pela esquerda”. Ou seja, exploraram os privilégios
concedidos aos grandes capitalistas para atiçar o médio capital
nacional contra o grande, fazendo, paradoxalmente, passar a
sua proposta reacionária de mais abertura e mais
internacionalização da economia brasileira. Cabe lembrar
inclusive que mais de um integrante das equipes
governamentais de Temer e de Bolsonaro, diretores do
69
BNDES e do Banco do Brasil, valeram-se do fato de os
governos do PT terem privilegiado o grande capital nacional,
para proferirem um discurso demagógico de defesa dos
pequenos e médios empresários. Discursaram em defesa “dos
pequenos que mais necessitam de crédito” – em defesa do
“seu Manoel da padaria” disse um deles – contra os
privilegiados “campeões nacionais”. Enquanto faziam esse
discurso demagógico vendiam e entregavam o que resta de
nacional na economia brasileira.
Podemos verificar que essas novidades introduzem
mais um ponto para o balanço dos governos do PT: a
esquerda pode sim, penso eu, e de maneiras específicas que
não cabe discutir aqui, defender empresas nacionais frente a
empresas estrangeiras, mas não pode atrelar-se aos interesses
do capital monopolista contra os interesses do médio capital.
Esse procedimento inverteu tudo aquilo que o movimento
comunista latino-americano e europeu tinham estabelecido
sobre a questão das alianças de classe possíveis e desejáveis
nas primeiras etapas da revolução.
Junho de 2020
Crise política no Brasil
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Crise política no Brasil

  • 1. 1
  • 2. 2
  • 3. 3 DILMA, TEMER E BOLSONARO crise, ruptura e tendências na política brasileira
  • 4. 4 DIREÇÃO EDITORIAL: Willames Frank DIAGRAMAÇÃO: Willames Frank DESIGNER DE CAPA: Willames Frank O padrão ortográfico, o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu autor. Todos os livros publicados pela Editora Phillos estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR 2020 Editora PHILLOS ACADEMY Av. Santa Maria, Parque Oeste, 601. Goiânia-GO www.phillosacademy.com phillosacademy@gmail.com Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S170p BOITO JR, Armando. Dilma, Temer e Bolsonaro: crise, ruptura e tendências na política brasileira. [recurso digital] / Armando Boito Jr.. Coleção Párias Ideias: Orgs. Antônio Camêlo; Virgínio Gouveia. – Goiânia-GO: Editora Phillos Academy, 2020. ISBN: 978-65-88994-00-9 Disponível em: http://www.phillosacademy.com 1. Política. 2. Democracia. 3. História do Brasil. 4. Sociedade Brasileira. 5. Ciência Política. I. Título. CDD: 320 Índices para catálogo sistemático: Ciência Política 320
  • 5. 5 ARMANDO BOITO JR. DILMA, TEMER E BOLSONARO crise, ruptura e tendências na política brasileira
  • 6. 6 Direção Editorial Willames Frank da Silva Nascimento Comitê Científico Editorial Dr. Alberto Vivar Flores Universidade Federal de Alagoas | UFAL (Brasil) Drª. María Josefina Israel Semino Universidade Federal do Rio Grande | FURG (Brasil) Dr. Arivaldo Sezyshta Universidade Federal da Paraíba | UFPB (Brasil) Dr. Dante Ramaglia Universidad Nacional de Cuyo | UNCUYO (Argentina) Dr. Francisco Pereira Sousa Universidade Federal de Alagoas | UFAL (Brasil) Dr. Sirio Lopez Velasco Universidade Federal do Rio Grande | FURG(Brasil) Dr. Thierno Diop Université Cheikh Anta Diop de Dakar | (Senegal) Dr. Pablo Díaz Estevez Universidad De La República Uruguay | UDELAR (Uruguai)
  • 7. 7 SOBRE A COLEÇÃO PÁRIAS IDEIAS Párias Ideias pretende ser uma contribuição a influir no presente, para que este, em lugar de se tornar uma reencarnação de mitologias dantescas do jovem pretérito nacional, venha a ser um futuro com todas as possibilidades de liberdades abertas pelas veias da história. A presente coleção surge em uma ocasião oportuna. Uma vez que o sub-humanismo organizado pretende reviver um passado recente – de quando algumas disciplinas e pensamentos foram criminalizados e banidos das salas de aula –, ao passo que acusa determinadas ideias, grupos e classes como sendo “párias”, urge, assim acreditamos, a necessidade de que o conhecimento volte a ser perigoso para o status oficial e confronte a censura, resistindo à mordaça. Ir de encontro - munidos pela crítica criadora - às atuais governantes formas silenciadores e repressoras da atividade do pensar e de - 10 - sentir é o objetivo da Coleção de bolso Párias Ideias. Nesse sentido, é que as temáticas tratadas e problematizadas de nossa Coleção – longe de dogmas – giram em torno dos seguintes eixos temáticos: Retorno à KM; Nova Esquerda; Memória; Sub-humanismo; Retroescravismo; Marxismo etc. É com o espírito convicto que convidamos os leitores a um passeio crítico, com reflexão éticopraticante, para caminhar pelas avenidas abertas de nossas páginas e contribuir na tentativa de não deixar a caverna autoritária engolir com suas sombras e falsas ideias nossa realidade histórico - cultural.
  • 8. 8 SUMÁRIO POR QUE ESTE PEQUENO LIVRO? ..............................11 PARTE 1 Dilma e Temer: a crise do neodesenvolvimentismo e o golpe neoliberal........................................................................14 A NATUREZA DA CRISE POLÍTICA DE 2015-2016...15 Antes da crise.........................................................................17 A hora da crise .......................................................................21 O movimento popular e a crise política.............................27 BALANÇO DO CICLO DE GOVERNOS DO PT ........29 Conquistas e acumulação de forças ....................................30 Limites e debilidades.............................................................32 O governo instável de Michel Temer e a nossa posição..37 A BURGUESIA BRASILEIRA E O GOLPE DO IMPEACHMENT.....................................................................44 OS TRABALHADORES DA MASSA MARGINAL E O GOLPE DO IMPEACHMENT............................................49 AS RECLAMAÇÕES TARDIAS DA FIESP......................54 O CONFLITO INSTITUCIONAL COMO CONFLITO DE CLASSE...............................................................................57 NOVIDADES SOBRE O PAPEL DA BURGUESIA NO GOLPE DO IMPEACHMENT............................................61 Em que pé estava o debate...................................................61 As novidades ..........................................................................63 O médio capital no golpe de Estado de 2016 ...................65 A OPACIDADE DO PROCESSO POLÍTICO E AS FACETAS OCULTAS DA LAVA-JATO............................70
  • 9. 9 A intransparência do processo político..............................70 O lugar da corrupção para a classe média..........................74 O imperialismo, a burguesia e a burocracia de Estado ....77 POR QUE O GOVERNO TEMER É UM GOVERNO INSTÁVEL?...............................................................................81 QUAIS SÃO OS REAIS MOTIVOS DAS DIVISÕES NO CAMPO GOLPISTA?..............................................................85 PARTE 2 O Governo Bolsonaro, o neofascismo e o neoliberalismo....................................................................90 O FASCISMO É UM FENÔMENO HISTÓRICO IRREPETÍVEL?........................................................................91 O NEOFASCISMO JÁ É REALIDADE NO BRASIL....97 AS DIFICULDADES DA LUTA POPULAR DIANTE DO FASCISMO ..............................................................................104 A BURGUESIA, O “LUMPESINATO” E O GOVERNO BOLSONARO ........................................................................113 O que mais importa é o conteúdo da decisão.................114 Dois conceitos de representação política .......................117 A quem serve a “desconstrução do país” .......................121 A POLÍTICA ECONÔMICA DE BOLSONARO SERIA CONTRÁRIA AO CAPITAL FINANCEIRO? ...............124 O CONTEÚDO DO NACIONALISMO DE BOLSONARO ........................................................................130 A DEMOCRACIA EM PEDAÇOS: O PERIGO DE GOLPE FASCISTA ...............................................................137 O golpe de 2016 e o nascimento do movimento fascista ................................................................................................138
  • 10. 10 Os fascistas, os militares e os liberais ...............................143 A ofensiva política fascista .................................................149 A TRÉGUA: CONCILIAÇÃO DA OPOSIÇÃO LIBERAL COM O GOVERNO NEOFASCISTA .............................155 ENTREVISTA SOBRE A HISTÓRIA POLÍTICA RECENTE DO BRASIL.......................................................159
  • 11. 11 POR QUE ESTE PEQUENO LIVRO? Este livro reúne textos mais ou menos curtos publicados em diversos jornais, revistas e sites sobre a política brasileira contemporânea. Apresenta para um público não acadêmico artigos sobre a crise política do impeachment, sobre o papel de diferentes classes sociais e frações de classe nessa crise, sobre a herança dos governos do PT, sobre a instabilidade política que tem caracterizado há alguns anos a política brasileira, sobre a dimensão política e social da Operação Lava-Jato, sobre os interesses defendidos pelo Governo Temer e pelo Governo Bolsonaro – que é aqui caracterizado como um governo neoliberal e neofascista – e sobre a conjuntura do primeiro semestre de 2020. Essa conjuntura é um momento crítico da história brasileira. Ela reuniu a crise sanitária provocada pela epidemia do novo coronavirus e potencializada pela política negacionista do Governo Bolsonaro; a crise econômica, que precedeu a crise sanitária e foi por ela agravada; e a crise política, provocada pela tentativa de Jair Bolsonaro de efetuar um golpe de Estado para implantar uma ditadura no Brasil. Os textos iniciais do livro, referentes à crise do impeachment e ao balanço dos governos do PT, retomam, com formulações distintas, o essencial de teses que desenvolvi no meu livro Reforma e crise política no Brasil – os conflitos de classe nos governos do PT (Coedição das Editoras da Unicamp e da Unesp, 2018). Todos os demais textos são fruto de reflexões posteriores nas quais faço um esforço para esclarecer os rumos da política brasileira a partir do impeachment de 2016. Com duas ou três exceções,
  • 12. 12 os textos seguem a ordem cronológica de sua produção que coincide com a cronologia da evolução dos acontecimentos. Para facilitar ao leitor a percepção do conjunto e da unidade do livro, alterei o título original de alguns dos textos aqui compilados. Faço um rápido esclarecimento dos motivos pelos quais considero e denomino ao longo do livro o impeachment de Dilma Rousseff um golpe de Estado. O processo de impeachment imputou a Dilma Rousseff um suposto crime de responsabilidade representado por uma prática fiscal corrente nos executivos federal, estaduais e municipais do país. O Senador Antonio Anastasia (PSDB – MG), relator do processo de impeachment no Senado da República, foi criticado em plenário por defender o impeachment alegando como motivo uma operação fiscal que ele próprio, Anastasia, tinha realizado mais de trinta vezes quando governador de Minas Gerais. Com a esperteza e a frieza que lembra o comportamento daqueles que vivem de expedientes, respondeu que não era ele o réu do processo que então relatava. E seguiu adiante. O impeachment, além de negar a universalidade da lei, aplicando a Dilma Rousseff o que não fora aplicado aos demais chefes de poder executivo – tanto aos que a antecederam, quanto aos seus contemporâneos – mudou o rumo da política econômica, social, cultural e externa do Estado brasileiro. Foi uma ruptura da legalidade democrática visando a mudar o rumo da política nacional. Este livro está voltado para um público amplo, debate com ideias presentes nas análises correntes sobre a política brasileira e procura intervir no debate político. Alguns textos que o integram analisam conjunturas e acontecimentos
  • 13. 13 específicos, enquanto outros apresentam reflexões que possuem a pretensão de esclarecer, inclusive com breves incursões na teoria política, temas mais abrangentes suscitados pelas sucessivas conjunturas do período – como é o caso dos textos que caracterizam o Governo Bolsonaro como fascista, do texto sobre a natureza social e política da Operação Lava-Jato e daquele que trata das relações entre, de um lado, os conflitos institucionais que têm atravessado o Estado brasileiro nas conjunturas recentes e, de outro, os conflitos de interesses presentes na economia e na sociedade. O momento político brasileiro é muito grave para o campo democrático e popular. Espero que este pequeno livro contribua para o debate sobre essa situação e, assim fazendo, possa contribuir, ainda que muito modestamente, para superá-la. São Paulo, agosto de 2020
  • 14. 14 Dilma e Temer a crise do neodesenvolvimentismo e o golpe neoliberal
  • 15. 15 A NATUREZA DA CRISE POLÍTICA DE 2015-2016 Vamos começar por um truísmo: neste mês de março de 2016, a conjuntura política é complexa e difícil para as classes populares e para a democracia no Brasil e na América Latina. No caso do Brasil, em que consistem essa complexidade e essa dificuldade? Ambas procedem, fundamentalmente, de duas características interligadas e definidoras da crise política atual: a ofensiva política restauradora da direita neoliberal, que foi a iniciativa que provocou a crise política, e a decisão do governo neodesenvolvimentista de Dilma Rousseff de adotar uma política de recuo passivo diante da ofensiva política da qual é vítima. Essa ofensiva pode ser denominada restauradora porque ela visa a restaurar, por intermédio do resgate do programa neoliberal da década de 1990, a hegemonia no bloco no poder do grande capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele integrada. Tal ofensiva restauradora tem como base social de apoio mais ativa a fração superior da classe média, que tem tomado as ruas do país em manifestações pelo impeachment da Presidenta Dilma Roussef, e logrou, também, neutralizar ou atrair setores burgueses e populares que, anteriormente, dispensavam apoio político aos governos do PT. A Fiesp, que até há pouco perfilava com os governos petistas, passou a fazer oposição à política econômica do Governo Dilma Rousseff, e a Força Sindical, na sequência de seus movimentos giratórios, acabou  Artigo publicado no Le Monde Diplomatique – Brasil. Edição número 104, de março de 2016.
  • 16. 16 estacionando numa posição militante pelo impeachment da presidenta. Para uma referência rápida, podemos dizer que esse campo representa “a direita”. Porém, é preciso ter claro quais são as classes e frações de classe social que o integram e quais interesses elas perseguem, sem o que ficaremos prisioneiros de uma visão superficial e distorcida da crise política. O recuo passivo do Governo Dilma Rousseff dificulta a definição da estratégia dos movimentos populares na crise atual. Se o governo resistisse à ofensiva política restauradora, mesmo que fazendo concessões menores e táticas para dividir o inimigo, os movimentos populares teriam um quadro mais favorável para, em primeiro lugar, barrar o golpe de Estado branco que ainda se encontra em marcha, uma vez que nessa luta estariam somando forças com o governo, e poderiam, em segundo lugar e ao mesmo tempo, lutar pela adoção de um programa mais ambicioso de reformas, posto que as reformas modestas da era PT estariam preservadas. Teríamos, nesse cenário, uma continuidade, em bases novas, do quadro que se desenhou no segundo turno da eleição presidencial de 2014: Dilma respondeu, no discurso de campanha, à ofensiva restauradora que a direita já então iniciara. O seu discurso e a publicidade de TV bateram de frente com a ofensiva neoliberal. Porém, uma vez eleita, tendo optado – e se tratou sim de uma opção – por adotar uma política de recuo passivo, e tendo, inclusive, dado mostras de compartilhar ideias da oposição neoliberal, o Governo Dilma Roussef criou um cenário novo e muito desfavorável para os trabalhadores. Esse cenário obrigou as classes populares a lutarem – praticamente sozinhas pois a resistência do governo e do seu
  • 17. 17 partido tem sido pífia – contra a tentativa de golpe de Estado branco da direita e, ao mesmo tempo, resistirem às medidas e às ameaças do Governo Dilma Rousseff às pequenas conquistas dos últimos anos. A situação é de defensiva em toda a linha. Antes da crise Os governos do PT, inclusive o Governo Dilma Rousseff, expressaram e expressam os interesses heterogêneos de uma ampla frente política que poderíamos denominar frente neodesenvolvimentista1 . A força social hegemônica nessa frente política foi a grande burguesia interna brasileira, que é composta pelas grandes empresas nacionais que atuam na construção pesada, na construção naval, no agronegócio, na mineração, em variados ramos industriais e, inclusive, no setor financeiro. Isso significa que a burguesia brasileira não se integrou de maneira homogênea e geral ao capitalismo internacional. É certo que não estamos diante de uma burguesia nacional, que seria interessada em combater o imperialismo, mas existe sim um setor da burguesia com base de acumulação própria, no interior do país, que possui conflitos com o capital internacional, mesmo que seja dependente dele. Essa fração burguesa não criou o seu partido político. O que ela fez foi assediar e envolver um partido político que fora criado pelos movimentos populares para que esse partido, que é o PT, e 1 Ver a esse respeito Armando Boito Jr. Reforma e crise política no Brasil – os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas e São Paulo: coedição Unicamp e Unesp. 2018. [Nota de 2020]
  • 18. 18 principalmente os governos encabeçados por esse partido, passassem a representar, prioritariamente, os seus interesses. É essa prioridade, que não deve ser confundia com exclusividade, que indica a hegemonia política. Na década de 1990, a burguesia interna, embora tenha se beneficiado com vários aspectos do modelo político neoliberal, teve, também, muitos de seus interesses contrariados pela abertura comercial e pelo definhamento do papel do Estado e do BNDES como propulsores dos investimentos produtivos. No final dos anos 90, essa fração burguesa se foi se aproximando do PT e da CUT. A diretoria da Fiesp chegou a prestar apoio oficial, público e ativo à greve geral contra a recessão convocada pela CUT e pela Força Sindical em junho de 19962 . Com a ascensão dos governos do PT, essa fração da burguesia foi contemplada com a intervenção do Estado na economia para estimular, embora dentro dos limites dados pelo modelo capitalista neoliberal, o crescimento econômico. A política de investimentos públicos em obras de infraestrutura – usinas hidrelétricas, desvio do leito do São Francisco, estradas de ferro, obras da Copa do Mundo e da Olímpiada –, a política de conteúdo local que prioriza a compra de produtos e serviços nacionais, protegendo parte da produção interna frente à concorrência estrangeira, o ativismo do BNDES como financiador das grandes empresas nacionais e as medidas anticíclicas de política econômica diante da crise econômica internacional formaram um contraste gritante com a abertura comercial sem peias, com o Estado raquítico, o BNDES privatizante e 2 Armando Boito Jr., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo: Editora Xamã. 1999. [Nota de 2020]
  • 19. 19 as medidas monetaristas ortodoxas do governo diante das crises internacionais que caracterizaram o período FHC. Porém, além dessa força hegemônica, a frente neodesenvolvimentista incorporou setores importantes das classes populares. A política neodesenvolvimentista da grande burguesia interna fez crescer o emprego, favoreceu a luta sindical por aumento real dos salários, e esteve ligada a uma série de políticas sociais que atenderam alguns interesses de distintos setores populares. Os programas de transferência de renda, a recuperação do salário mínimo, o programa de construção de casas populares, o financiamento da agricultura familiar, as quotas raciais e sociais, o programa de construção de cisternas no semiárido, a reabertura dos concursos públicos, a expansão do ensino superior público e a facilitação do acesso às universidades públicas e privadas, essas de outras políticas sociais fizeram com que grande parte da baixa classe média, do operariado, do campesinato e dos trabalhadores da massa marginal se tornassem, de maneiras distintas, base de apoio popular à política dos governos petistas. A oposição neoliberal ortodoxa, capitaneada no plano partidário pelo PSDB, vinha expressando e ainda expressa interesses, também heterogêneos, de outro campo político. Na cabeça desse campo, temos o grande capital internacional e a fração da burguesia brasileira integrada, das maneiras as mais diversas, a esse capital. O grande capital internacional se relaciona de modos variados com a economia brasileira e a sua vinculação a essa economia apresenta uma certa gradação: vai desde uma relação eventual e exterior até uma relação mais orgânica e permanente. Esse capital engloba os fundos financeiros internacionais que especulam com títulos da
  • 20. 20 dívida pública, com divisas e com ações das empresas brasileiras; as empresas industriais europeias, estadunidense e outras que, sem plantas no Brasil, limitam-se a exportar seus produtos para o mercado brasileiro; as seguradoras que abriram filiais no país e, ainda mais integradas à economia nacional, temos as empresas multinacionais do setor produtivo, industriais e do agronegócio, que possuem plantas e filiais no Brasil. A fração da burguesia brasileira integrada como sócia menor ou dependente desse capital internacional engloba as casas de importação de veículos, de confecções, de alimentos, bebidas e tantos outros produtos; os fornecedores de componentes para as empresas estrangeiras aqui implantadas – como a indústria de autopeças; os capitalistas nacionais que são sócios minoritários em empreendimentos com o capital forâneo. É o bloco voltado para fora, o mais interessado – embora não seja sempre o único interessado – na abertura da economia, na redução do papel do Estado, na privatização, na política monetarista mais rígida e no definhamento do BNDES, enfim, no programa neoliberal puro e duro aplicado na década de 1990. Como indicamos acima, o principal representante partidário do capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele associada é o PSDB. Fora do âmbito da classe dominante, esse campo político neoliberal tem contado com o apoio militante da fração superior da classe média – a alta classe média. Foi essa fração da classe média que, como indicam abundantemente os levantamentos empíricos feitos por diversos institutos de pesquisa, que tomou as ruas das grandes cidades do país em manifestações contra o Governo Dilma Rousseff ao longo do
  • 21. 21 ano de 2015 e nesse início de 2016. A alta classe média mobiliza-se contra o governo por razões econômicas e ideológicas e o que mais a incomoda não é a política econômica dos governos do PT, mas, sim, a sua política social. O alto funcionalismo público, os diretores, gerentes e alto funcionariado das empresas privadas, os profissionais liberais economicamente bem-sucedidos, todos esses setores abastados da classe média têm a percepção de que são eles quem pagam, com impostos que consideram escorchantes, as políticas sociais voltadas para a população de baixa renda. Ademais, veem com maus olhos a presença de indivíduos oriundos das classes populares frequentando instituições e locais que, antes, eram frequentados apenas pelos “bem nascidos”. Esse mal-estar da alta classe média é visível nas diversas redes sociais. Ademais, esse campo conservador conta, também, com algum apoio popular. Há uma central sindical, a Força Sindical, que ao longo do período de governos petistas, sempre oscilou entre o neodesenvolvimentismo e o neoliberalismo ortodoxo. Mais recentemente, a agitação em torno da corrupção, obtida por intermédio da ação articulada de instituições do Estado com a grande imprensa, permitiu que o campo neoliberal ortodoxo neutralizasse e até atraísse setores importantes das classes populares. A hora da crise As divisões socioeconômicas de classe e de fração não se reproduzem de modo exato e fixo no processo político. Dito de outro modo, a linha que divide o campo
  • 22. 22 neodesenvolvimentista do campo neoliberal ortodoxo não é reta nem rígida. É sinuosa e flexível. Um fato conhecido e estudado é que a partir da eleição presidencial de 2006, grande parte dos trabalhadores da massa marginal, que votavam nos candidatos do campo conservador, bandearam-se para o lado do PT3 . A política da frente neodesenvolvimentista estava, então, ingressando no seu período de ouro com apoio político crescente, com a economia internacional marcada pelo aumento de preços das commodities e com o PIB nacional obtendo, num ou noutro ano, taxas de crescimento jamais imaginadas nos anos 90. Os neoliberais do PSDB encontravam-se na defensiva. A figura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso estava em franco declínio. Os candidatos a cargos executivos do PSDB esquivavam-se do ex-presidente e evitavam o seu apoio eleitoral. Nas eleições municipais de 2012, a oposição teve péssima performance. Foi no início de 2013 que a correlação de forças começou a mudar. A economia, que crescera 7,5% em 2010, permaneceu o biênio de 2011 e 2012 com crescimento próximo de zero. A oposição neoliberal levantou, então, a cabeça. Percebeu uma oportunidade e retomou a iniciativa política. Elegeu o ex- Ministro da Fazenda Guido Mantega e a sua “nova matriz de política econômica” como inimigo principal. Os cadernos de economia dos grandes jornais passaram a martelar na necessidade de reduzir os gastos do Estado, acabar com as desonerações fiscais e aumentar a taxa de juros. A Selic tinha sido reduzida gradativamente da casa de 12,50% em julho de 3 André Singer, Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras. 2012.
  • 23. 23 2011 para 7,25% em março de 2013. A inflação anual em 2011, 2012 e 2013 foi, respectivamente, de 6,50% 5,84% e 5,91%. O rendimento dos investimentos financeiros aproximaram-se de zero pela primeira vez em duas décadas. Esse ponto é fundamental. Quem provocou a crise foi a ofensiva política do campo neoliberal ortodoxo, dirigido pelo capital internacional e pela fração da burguesia brasileira a ele integrada, e não a luta popular. Muitos se confundem ao examinar esse problema. O fato de as pesquisas de opinião indicarem que a imagem do Governo Dilma Rousseff foi abalada em decorrência das manifestações de junho de 2013 e, desde então, nunca mais ter voltado aos patamares anteriores àquelas manifestações, esse fato leva alguns analistas e observadores a sugerirem que a crise política foi provocada pelo ascenso da luta popular. Duplo engano. Primeiro, porque apenas a primeira fase das manifestações de junho de 2013 teve um caráter popular. Foi a fase em que o Movimento Passe Livre (MPL) lutava contra o aumento das tarifas de transporte. Foi a chamada Revolta da Tarifa que, de resto, saiu-se vitoriosa. Numa segunda fase, as manifestações diversificaram os setores sociais envolvidos, incorporaram a alta classe média e mudaram também suas palavras-de-ordem, substituindo a luta contra o aumento das tarifas pelo discurso genérico contra a corrupção, pegando carona na agitação da mídia no ano anterior, de 2012, durante a Ação Penal 470 – a dita Crise do Mensalão. Surgiram os cartazes contra a PEC 37 e as manifestações, até então combatidas pela mídia, se tornaram dependentes dela que passou a orientá-las contra o governo federal. Um movimento inicialmente popular foi apropriado pelo campo neoliberal, prolongou-se na agitação
  • 24. 24 contra a Copa do Mundo e desembocou no crescimento das candidaturas neoliberais na eleição presidencial de 2014. O que temos aí é uma articulação complexa entre dois tipos de contradição. A contradição principal, que provocou a crise política, que é aquela que opõe o campo da burguesia internacional ao campo da frente neodesenvolvimentista, articulou-se, de maneira favorável ao campo neoliberal ortodoxo, com as contradições existentes no próprio interior da frente neodesenvolvimentisa. A Revolta da Tarifa reuniu, como mostram as pesquisas disponíveis, jovens de baixa classe média, trabalhadores que, na maioria dos casos, são também estudantes. É o setor beneficiário da política dos governos petistas de expansão do ensino superior público e privado e de facilitação de acesso dos trabalhadores às universidades. Essa política, da qual fazem parte o Prouni, o Reuni e o Fies, dobrou o número de universitários brasileiros. Ocorre que o mercado de trabalho para os diplomados nas universidades cresceu muito pouco. Os empregos gerados nos governos do PT foram, devido à reativação da função primário-exportadora da economia brasileira, predominantemente empregos que dispensam alta qualificação e pagam baixo salário4 . Foi a frustração da juventude de baixa classe média que se expressou na Revolta da Tarifa e mesmo na segunda fase das manifestações de junho5 . Essa frustração, contudo, como permaneceu politicamente acéfala, inclusive devido ao culto do 4 Marcio Pochmann, Nova Classe Média? São Paulo: Boitempo. 2012. 5 Marcelo Ridenti, “Que juventude é essa?”. Folha de S Paulo. 23 de junho de 2013. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06/1299690-marcelo- ridenti-que-juventude-e-essa.shtml
  • 25. 25 espontaneísmo que caracteriza o MPL, pôde ser confiscada pela reação e canalizada para o crescimento das candidaturas neoliberais no ano seguinte. Como indicamos acima, há contradições no seio da frente neodesenvolvimentista. A contradição da juventude de baixa classe média com a frente foi uma contradição nova, que se desenvolveu conforme se expandia o estudantado universitário sem a correspondente expansão dos empregos para os diplomados. Mas, havia e há, também, contradições originárias, que estiveram presentes desde o início dos governos da frente neodesenvolvimentista. No campo das classes populares, o movimento sindical foi muito ativo nesse período na luta grevista e logrou obter uma melhoria geral dos salários6 . Conflitos econômicos duros ocorreram entre os sindicatos e os grupos da grande burguesia interna. O movimento camponês, apesar das políticas sociais que beneficiaram os camponeses assentados, sempre esteve insatisfeito com a drástica redução das desapropriações de terra para a criação de novos assentamentos. No âmbito das classes dominantes, havia e há contradições no interior da própria burguesia interna. O mais notório é o conflito entre os grandes bancos nacionais e o setor produtivo nacional em torno da política fiscal e da taxa de juro. Surgiram, também, contradições novas. O deslocamento da política energética da prioridade para o etanol para a prioridade para o petróleo do 6 Armando Boito Jr., Andréia Galvão e Paula Marcelino, "A nova fase do sindicalismo brasileiro", In Seminário Internacional 'Sindicalismo Contemporâneo: 1º de maio – uma nova visão para o Movimento Sindical Brasileiro', Campinas: Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit), Unicamp. 2015. pp.206-223,
  • 26. 26 pré-sal afastou o setor sucroalcooleiro do Governo Dilma Rousseff. O fato é o seguinte: quando o campo neoliberal ortodoxo iniciou a sua ofensiva política restauradora, a frente neodesenvolvimentista vinha se esgarçando. Isso apareceu em diversos aspectos da cena política. Acabou o apoio unânime das grandes centrais sindicais em torno do Governo Dilma Rousseff, o Partido Socialista Brasileiro passou para o campo da oposição, o PMDB dividiu-se e uma entidade empresarial da importância da Fiesp passou, como já indicamos, do apoio ativo aos governos neodesenvolvimentistas a uma política de oposição7 . Um ponto que mereceria uma análise à parte é o uso político da corrupção que é feito pela oposição neoliberal. O discurso contra a corrupção, muito usado na história política brasileira contra os governos desenvolvimentistas como o de Getúlio Vargas, é um discurso enganoso que ilude o observador, esconde a verdadeira natureza da crise política e neutraliza ou atrai setores das classes populares para o campo da reação. A oposição neoliberal não pode mostrar para o grande público o seu programa político real que é mais abertura da economia, mais privatização, mais desregulamentação do trabalho. Esse programa e suas consequências não são bem vistos pela maioria da população trabalhadora. Ela agita, então, um programa retórico de combate à corrupção. Ela pode levantar essa bandeira 7 Para o apoio ativo da Fiesp ao segundo Governo Lula ver Armando Boito Jr., “Governos Lula: a nova burguesia nacional no poder”. In Armando Boito Jr. e Andréia Galvão, Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000. São Paulo: Editora Alameda. 2012.
  • 27. 27 fundamentalmente por dois motivos. Primeiro, porque o PT, tendo abandonado a política de organização da massa trabalhadora em núcleos de base e, consequentemente, a política de autofinanciamento do partido baseada na contribuição dos militantes, está envolvido, de fato, com ampla e diversificada prática de corrupção para financiamento de campanhas eleitorais. Em segundo lugar, a oposição neoliberal pode agir à vontade na apuração da corrupção porque sabe que o Judiciário, o Ministério Público e a Política Federal são rigorosos e até abusivos na investigação da corrupção dos políticos do governo e das grandes empresas que integram a burguesia interna e condescendentes e cúmplices com a corrupção dos governos e dos partidos da oposição neoliberal. Os juízes, procuradores e delegados que controlam aquelas instituições do Estado pertencem, eles próprios, à alta classe média e estão engajados na luta contra os governos do PT. O movimento popular e a crise política Em caso de deposição do Governo Dilma Rousseff apenas a oposição burguesa neoliberal ortodoxa tem condições de assumir o governo. O movimento popular encontra-se, ainda, numa fase de luta reivindicativa e a sua luta é segmentada. Não há programa e organização política orientando e enquadrando as massas trabalhadoras. Nessa situação, o principal inimigo a ser combatido é o golpe de Estado branco preparado pelo PSDB com o apoio das instituições estatais incumbidas de manter a ordem – Polícia Federal, Ministério Público, Judiciário. Contudo, quanto mais o Governo Dilma Rousseff afunda-se na sua política de recuo
  • 28. 28 passivo frente à ofensiva restauradora, mais o movimento popular tem de combater a política desse governo e, portanto, afastar-se dele. No limite, pode se tornar inviável a defesa do governo que, nesse caso, ver-se-á isolado diante da ofensiva da reação. Março de 2016
  • 29. 29 BALANÇO DO CICLO DE GOVERNOS DO PT  O governo Dilma Rousseff foi deposto por um golpe de Estado parlamentar que interrompeu o ciclo de quatro governos consecutivos do PT. A admissibilidade do processo de impeachment venceu, em 17 abril de 2016, por 367 votos contra 137 na Câmara Federal e o impeachment foi aprovado, em 31 de agosto do mesmo ano, por 61 votos contra apenas 20 no Senado. Derrota acachapante do governo, ainda mais se tivermos em conta que grande parte dos que votaram pelo impeachment compunham, até então, a base de apoio do governo no Congresso Nacional e que a maioria dos deputados fez questão de justificar o seu voto recorrendo a valores retrógrados do patriarcalismo e de um hipócrita “combate à corrupção”. Neste momento, setembro de 2016, e ainda no calor da hora, devemos, nós da Consulta Popular, levantar algumas questões. Como é que as organizações socialistas e populares que, sem participar de tais governos, dispensaram-lhes apoio crítico devem avaliar o período que agora se encerra? Temos de nos precaver contra as avaliações unilaterais e precipitadas que podem ser estimuladas pelo momento atual que é um momento de derrota. Temos de fazer um esforço para contemplar todos os aspectos, favoráveis e desfavoráveis ao movimento operário e popular, e que devem ser considerados numa avaliação séria desse período.  Artigo publicado no Caderno de Debates da organização política Consulta Popular. Número 1, setembro de 2016.
  • 30. 30 Conquistas e acumulação de forças Em primeiro lugar, não podemos nos esquecer que, nesses governos, os trabalhadores obtiveram conquistas materiais modestas, mas importantes. A política econômica propiciou um crescimento econômico maior, reduziu drasticamente o desemprego e fortaleceu o setor capitalista de Estado e privado nacional. A política social permitiu uma moderada distribuição da renda, maior acesso das camadas pauperizadas a serviços públicos e equipamentos básicos – iluminação, água, atendimento médico, moradia e outros. Promoveu também medidas de democratização do acesso ao ensino universitário e técnico para a baixa classe média, a classe operária e para os trabalhadores da massa marginal e fortaleceu a agricultura familiar. A política externa dos governos petistas deu uma retaguarda econômica, política e diplomática aos governos de esquerda da América Latina. A política de reconhecimento dos direitos das mulheres, da população negra e indígena e das minorias sexuais, embora tímida, representou um contraste significativo com a situação das décadas anteriores. Em segundo lugar, o fato de os governos do PT reconhecerem o direito à reivindicação das classes populares criou condições mais propícias para a sua organização e para a sua luta. O movimento operário e popular acumulou força. Nesse período, o movimento sindical logrou uma forte recuperação. A segunda metade da década de 1990 e os primeiros anos da década de 2000 foram um período de refluxo e de derrotas para o movimento sindical. No ano de 2003, quando se inicia o ciclo de governos petistas, começou
  • 31. 31 a recuperação. Em 2003, ocorreram 312 greves e apenas 18% das convenções coletivas e dos acordos assinados entre trabalhadores e patrões estabeleceram um reajuste maior que a inflação passada. Ou seja, a enormidade de 82% dos trabalhadores permaneceram com salários congelados ou tiveram seus ganhos diminuídos. Após um crescimento contínuo desses dois indicadores, chegou-se no ano de 2013 ao total de 2150 greves, um recorde histórico no Brasil, e ao impressionante escore de 95% das convenções coletivas e dos acordos assinados com reajuste acima da inflação passada. O aumento real de salário tinha se tornado regra. Somente a partir de 2015, mas, principalmente, em 2016, com o grande crescimento do desemprego e com o comando do país entregue ao governo Michel Temer é que essa linha ascendente está sofrendo uma brusca inflexão. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, que fora sistematicamente perseguido e criminalizado durante o segundo mandato de FHC, conquistou maior liberdade de ação, obteve mais créditos e mercados institucionais para a agricultura familiar, embora não tenha logrado obter um programa de desapropriações de terra. A luta por moradia também se fortaleceu muito e, como se sabe, produziu resultados no plano da política habitacional. Nenhum movimento popular, feminista, negro ou de minorias sexuais sofreu retrocesso. As condições de organização e de luta foram favoráveis. Superamos o refluxo da década de 1990. Isso ficou claro na reativação da Frente Brasil Popular no momento de resistência ao golpe parlamentar. As organizações socialistas e populares que dispensaram apoio crítico aos governos petistas, combinando
  • 32. 32 de maneira complexa o apoio a tais governos com a crítica, a cobrança, a pressão e a luta, definiram a tática correta para esse período. As duas outras opções, tanto a de integrar-se aos governos petistas, quanto a de defini-los como o inimigo principal, ambas revelaram-se prejudiciais para a luta socialista e popular. No momento crítico do golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff, o campo popular, que soube combinar o apoio com a crítica e a pressão sobre os governos petistas, esteve na linha de frente de resistência aos golpistas. Os governistas demoraram muito para reagir, e quando o fizeram priorizaram ou circunscreveram a luta no Judiciário e no Congresso Nacional, enquanto os ultraesquerdistas permaneceram neutros, indiferentes diante da violação da democracia, e suas organizações entraram em crise. Limites e debilidades A nossa organização, a Consulta Popular, nunca nutriu ilusões diante dos governos do PT. Não dissemos, como pretendiam muitos petistas, que se tratava de um governo popular ou dos trabalhadores. O fato de tais governos não terem realizado reformas estruturais e de aplicarem uma política econômica cujo objetivo central foi o de fortalecer os grandes bancos e as grandes empresas em geral é suficiente para afastarmos a hipótese de que esse seria um governo dos trabalhadores. A lista de reformas engavetadas é grande, mas uma singela comparação com o neoperonismo na Argentina basta para constatarmos o quanto os governos petistas ficaram devendo. No país vizinho, os governos de Nestor e Cristina Kirchner puniram
  • 33. 33 os torturadores da época da ditadura militar e os seus mandantes, realizaram uma reforma antimonopolista da mídia e estabeleceram um imposto sobre a exportação de commodities. Se fizéssemos comparações com outros governos latino-americanos, o PT ficaria ainda pior na fotografia. Mas nós não caímos, tampouco, no simplismo de identificar os governos do PT como governos neoliberais e de afirmar que os governos petistas representariam a burguesia no seu conjunto, ao contrário da análise das organizações ultraesquerdistas. Com tal análise, essas organizações nunca puderam explicar como e porque os governos do PT foram, ao longo de todo esse período, alvo de uma persistente e ativa oposição burguesa. Tampouco se deram conta de que também eles, que tanto criticam toda e qualquer política de frente com qualquer setor da burguesia, formavam, na luta prática, uma frente política com a fração burguesa que se opunha ao neodesenvolvimentismo e que defendia o golpe de Estado. Nossa tese era a de que esses governos representavam uma fração da burguesia brasileira, que denominamos grande burguesia interna, em conflito com outra fração importante, essa completamente integrada ao capital internacional e que era, esta sim, a parte da burguesia que sempre fez oposição aos governos do PT. Se tais governos propiciaram algo às classes populares foi porque a grande burguesia interna apoiou-se numa frente política ampla, heterogênea e contraditória que reuniu importantes contingentes das classes populares – operariado, baixa classe média, campesinato e trabalhadores da massa marginal. Numa situação como a
  • 34. 34 brasileira, que não é revolucionária, o movimento operário e popular, impossibilitado que está de fazer a revolução, não pode ignorar as divisões no seio da burguesia quando tais divisões podem ser exploradas em proveito dos interesses materiais e políticos das classes populares. Foi o que se fez. Alertamos, contudo, que essa frente era instável e que o seu prazo de validade poderia ser curto. Foi o programa dessa frente que denominamos neodesenvolvimentista. Salientamos que se tratava de um desenvolvimentismo fraco quando comparado com o desenvolvimentismo clássico e esclarecemos que se tratava do desenvolvimentismo possível para um partido e um governo que se recusavam a romper com o modelo capitalista neoliberal. Aqui, cabem alguns esclarecimentos. É preciso distinguir o conceito de modelo econômico capitalista do conceito de política econômica e social. O primeiro indica a unidade de certo perfil da economia com instituições funcionais para a sua reprodução, enquanto o segundo indica medidas de política de Estado que se inserem dentro de um determinado modelo de capitalismo. O modelo capitalista desenvolvimentista clássico era baseado no intervencionismo do Estado em prol do crescimento econômico, no estímulo à industrialização, no protecionismo do mercado interno, e no tripé empresas estatais, empresas estrangeiras e empresas nacionais. Foi o modelo que substituiu a velha forma de dependência baseada na produção agromercantil voltada para a exportação de bens primários, instituindo uma nova forma de dependência compatível com a industrialização capitalista do país. Dentro desse modelo, couberam políticas econômicas e sociais distintas. Basta ver o
  • 35. 35 contraste entre o nacionalismo econômico do segundo governo Vargas (1951-1954) com a política de abertura ao capital estrangeiro industrializante do governo Juscelino Kubitschek (1956-1961). O modelo capitalista neoliberal, que substituiu o modelo desenvolvimentista, é baseado no Estado mínimo, no fortalecimento do capitalismo privado, na abertura comercial desindustrializante, na internacionalização crescente da economia nacional e na dominação do capital financeiro. Dentro desse modelo, também cabem políticas distintas e foi essa possibilidade que os governos do PT exploraram. Sem pôr abaixo os pilares do modelo, trataram de moderar os seus efeitos necessariamente negativos sobre o crescimento econômico e sobre a distribuição de renda. Os governos do PT aceitaram a dominância do capital financeiro, a política de juros elevados, a abertura comercial e a desregulamentação do mercado de trabalho que tinham sido legadas pelos governos FHC. Trataram, porém, de moderar os efeitos negativos desses pilares do modelo capitalista neoliberal sobre o crescimento econômico com o fortalecimento do BNDES e dos bancos públicos e suas políticas ambiciosas de financiamento das grandes empresas nacionais, com o fortalecimento da Petrobrás, com a política de conteúdo local para estimular a produção interna e tomaram algumas medidas visando à formalização do mercado de trabalho. Em resumo, todas medidas que, agora, estão sendo minadas ou revogadas pelo governo Michel Temer que representa a vitória do grande capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele integrada. A frente neodesenvolvimentista possuía várias debilidades, tanto na sua cúpula como na sua base.
  • 36. 36 Na cúpula, a sua força dirigente era uma fração da burguesia que, embora concorra com o capital estrangeiro na disputa pelo mercado nacional, é, ao mesmo tempo, uma força dependente daquele capital. Depende dele tecnologicamente e financeiramente, pois aspira à incorporação de tecnologia dos países centrais e conta com a poupança externa para ampliar os seus negócios. Ademais, a burguesia interna é uma fração burguesa atravessada por conflitos – entre o capital bancário e o capital produtivo, entre o grande e o médio capital e outras – e alçou voo no plano internacional, com investimentos importantes nos países dependentes menos desenvolvidos. Na base popular da frente, a insatisfação cresceu conforme caiu o crescimento econômico e a agitação sobre a corrupção fez o resto. Grande parte dos setores populares, mormente os trabalhadores da massa marginal, que era beneficiado pela política neodesenvolvimentista do PT encontrava-se desorganizado e politicamente impotente. Os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff entabularam com esses setores uma relação de tipo populista, tradicional na política brasileira, beneficiando-os do alto e sem qualquer preocupação em transformar esse benefício em apoio político organizado e consciente. Eles não compareceram, no momento do golpe, para defender o governo. Outro segmento popular, esse organizado, que esteve ausente da resistência contra o golpe foi o movimento sindical – as direções da CUT, da CTB e da Intersindical lutaram contra o golpe, mas os grandes sindicatos primaram pela ausência. A responsabilidade aqui cabe tanto ao governo, quanto ao sindicalismo. De um lado, os governos petistas ignoraram
  • 37. 37 pontos fundamentais da pauta sindical – jornada de 40 horas, fim do fator previdenciário, regulamentação restritiva da terceirização – e, de outro, os sindicalistas brasileiros, educados pela estrutura sindical corporativa de Estado, focam sua ação na campanha salarial da sua categoria, descurando ou ignorando a importância da política nacional para o seu movimento. Como dissemos, as direções da CUT, da CTB e da Intersindical compareceram nas manifestações contra o golpe, mas os grandes sindicatos ausentaram-se por completo da luta. No momento da crise política, portanto, parte da burguesia interna bandeou-se para o lado do movimento golpista e grande parte das classes populares assistiu de longe e passivamente a deposição do governo Dilma Rousseff. Por último, o Partido dos Trabalhadores e os governos petistas não se mostraram à altura da tarefa histórica de resistir ao golpe de Estado. Privilegiaram a luta na cúpula do Estado capitalista – no Congresso Nacional e no Judiciário; subestimaram o perigo representado pela mobilização massiva da alta classe média; não organizaram a resistência nas ruas e a presidenta Dilma Rousseff não participou de nenhuma manifestação contra o movimento golpista pelo menos até a admissão do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados, que foi o passo primeiro e decisivo do golpe de Estado. Quando acordou, era tarde. O governo instável de Michel Temer e a nossa posição O episódio da crise política que redundou no golpe parlamentar que depôs a presidenta Dilma Rousseff não é um
  • 38. 38 detalhe menor. Ele representa uma tentativa de restaurar a plataforma neoliberal da década de 1990 e está promovendo uma desidratação da democracia brasileira. A partir de agora, toda eleição para prefeito, governador ou presidente estará pendente à espera do veredito dos legislativos que podem sobrepor-se ao voto popular. É um novo tipo de degola, semelhante à prática em uso na época da República Velha, quando os candidatos que desagradavam a oligarquia quando eleitos não eram diplomados. Por essas duas razões, o golpe parlamentar, portanto, marca profundamente a política brasileira. Ora, as organizações e os intelectuais que se guiavam pela tese segundo a qual os governos do PT eram governos neoliberais sem mais, que apenas dariam continuidade aos governos FHC, essas organizações não têm como explicar nem a crise política, nem o golpe de Estado. Se os governos do PT fossem iguais aos governos do PSDB, por que é que esse último organizaria um golpe contra o primeiro? O golpe parlamentar foi o resultado de uma ofensiva restauradora da fração da grande burguesia integrada ao capital internacional que, apoiada na alta classe média mobilizada pelos grandes meios de comunicação e pela Operação Lava Jato, logrou depor o governo Dilma Rousseff e procura agora, sob o governo Michel Temer, retomar o programa de reformas neoliberais. O governo Michel Temer tem futuro? Representa o início do fim definitivo do ciclo de governos petistas? É moeda corrente a ideia de que estaríamos presenciando o fim do neodesenvolvimentismo e do ciclo de governos do PT. Essa ideia pode significar duas coisas muito diferentes. A primeira é a seguinte: o neodesenvolvimentismo
  • 39. 39 esgotou-se no sentido de que ele, com a derrota de 2016, não logrará mais se recompor. A segunda significação possível dessa tese é diferente: mesmo que o neodesenvolvimentismo recomponha-se, não é mais do interesse das classes populares dispensar apoio, ainda que crítico, a governos neodesenvolvimentistas. Examinemos a primeira significação. É certo que o neodesenvolvimentismo tem contra si as crises econômicas internacional e nacional, que se revelam prolongadas, e restringem a margem de manobra para uma política de crescimento sem rompimento com o modelo capitalista neoliberal. O neodesenvolvimentismo sofre também o assédio das forças conjugadas do campo imperialista e neoliberal, a mobilização estridente da alta classe média e o desgaste profundo daquele que foi, até aqui, seu principal instrumento político, o Partido dos Trabalhadores. Sem dúvida, encontrará dificuldade para se reerguer. Porém, o campo imperialista e neoliberal não está alçando voo num céu de brigadeiro. Esse campo chegou ao poder por intermédio de uma manobra golpista, sem voto, e é obrigado a governar, não com os seus representantes políticos orgânicos, que são o PSDB e o DEM, mas com o fisiológico PMDB. O governo Michel Temer tem hesitado muito, recuou diversas vezes, é assediado pela Lava Jato e encontra dificuldade em manter sua unidade interna devido às cobranças neoliberais mais ortodoxas dos tucanos. Esse não parece ser um governo que disponha de força para bloquear as pressões organizadas e difusas das classes populares por distribuição de renda e tampouco para conter a pressão pelo crescimento econômico que virá, também, dos empresários. Seria um erro descartar a
  • 40. 40 possibilidade de recomposição do neodesenvolvimentismo, seja com o PT de Lula, com o PDT de Ciro Gomes ou com outra via. Se o neodesenvolvimentismo se recompuser, isto é, se o poder governamental voltar às mãos de um governo comprometido com o crescimento econômico moderado e a distribuição de renda modesta que é o que se pode fazer se não se rompe com o modelo capitalista neoliberal, deveria o movimento popular eleger esse governo como o seu inimigo principal? Deveria entender que o neodesenvolvimentismo, mesmo não tendo se esgotado historicamente, teria se esgotado politicamente para as classes populares? Essa pergunta, é claro, só pode ser respondida diante de um governo real e específico, mas não em geral e em tese. O neodesenvolvimentismo pode voltar ao poder com política externa e política social mais tímidas e, num caso como esse, o movimento popular poderá ter de reavaliar a tática que defendeu até aqui. O que, sim, podemos avançar é que, em primeiro lugar, interessa ao movimento popular colocar em pé um programa mais ambicioso que o programa neodesenvolvimentista. Estando esse programa em crise, é hora de fazermos avançar nossas propostas de reformas estruturais e procurar consagrá-las num programa político que aglutine forças mais amplas: Constituinte para a reforma do sistema político, democratização da mídia, reforma agrária e outras. Não devemos, contudo, descartar, de saída, acordos ou frentes com todo e qualquer setor da burguesia. Sobre isso, cabem duas observações.
  • 41. 41 Primeiro, não é correto afirmar pura e simplesmente que “a burguesia interna” aderiu ao golpe. As posições políticas no seio dessa fração foram variadas. Tivemos, num dos extremos, a atividade pública e militante da Fiesp pelo golpe de Estado e, noutro, a posição de resistência do segmento da construção pesada à perseguição que lhe faz a Operação Lava Jato. A posição da Fiesp deve refletir fundamentalmente os interesses da indústria local de transformação cujo mercado foi invadido por produtos importados, mormente chineses. Exceção feita ao período de 2006 a 2011, a indústria de transformação perdeu participação no PIB. Para um governo neodesenvolvimentista, que, como tal, não cogita romper com o modelo capitalista neoliberal, é muito mais fácil criar nichos protecionistas nas compras públicas, com a política de conteúdo local, do que erguer, por intermédio da depreciação cambial ou de medidas alfandegárias, proteção para a indústria de transformação local. Já, a indústria da construção pesada e da construção naval, que foram mais bem aquinhoadas com a política de conteúdo local do neodesenvolvimentismo, esse segmento teve uma posição diferente na crise do governo Dilma Rousseff. A posição que parece ter predominado considerando os diferentes segmentos da burguesia interna foi a posição que consistiu em manter-se neutra diante da crise, com as suas associações corporativas apresentando reivindicações que indicavam, ora a aspiração por um governo que retomasse o programa de reformas neoliberais, ora a aspiração por um governo disposto a intervir na economia em prol do crescimento econômico. Esse fato indica, inclusive, as
  • 42. 42 dificuldades que o governo Michel Temer deverá enfrentar junto à classe dominante. A segunda observação a ser feita no que respeita à possibilidade de acordos com setores da burguesia é que a divisão entre a burguesia interna e a burguesia associada não é a única divisão existente na classe dominante. Há outras, e elas se articulam de modo complexo com a divisão já citada. No período atual, ainda é a divisão entre a grande burguesia interna e a grande burguesia associada que tem se mantido como contradição principal no seio da classe dominante e, de resto, na política brasileira. Porém, as contradições secundárias existentes na classe burguesa poderão se desenvolver e se aguçar. Uma que interessa de perto ao movimento operário e popular é a clivagem existente entre o grande e o médio capital. O segmento priorizado pela política neodesenvolvimentista foi o grande capital – é por isso que falamos em grande burguesia interna. Um número muito pequeno de empresas nacionais gigantes nas áreas da mineração, da construção civil, da construção naval, do setor bancário e do agronegócio foi o foco da política econômica petista. É verdade que as pequenas e médias empresas não possuem organização politicamente relevante, mas não se pode descartar a possibilidade de vir a ocorrer um aguçamento do conflito das pequenas e médias empresas rurais e urbanas com as grandes empresas nacionais e internacionais. O programa mais avançado que o movimento popular deve elaborar para a etapa atual deve ter em mente essa situação e procurar explorá-la politicamente. Voltemos às exigências práticas do momento atual. O quadro político do país está indefinido. O governo Dilma
  • 43. 43 Rousseff foi deposto, mas a crise política não acabou e o governo Michel Temer ainda vive uma situação de instabilidade. Neste momento, a luta pela deposição desse governo é nossa tarefa central. Setembro de 2016
  • 44. 44 A BURGUESIA BRASILEIRA E O GOLPE DO IMPEACHMENT Por que, durante a crise política de 2015-2016, a presidenta Dilma Rousseff foi abandonada por setores sociais que, até então, vinham se beneficiando com as políticas implementadas por seu governo? Essa pergunta vale, dentre outros, para o movimento sindical, para os trabalhadores da massa marginal e, também, para boa parte da burguesia brasileira. Ao longo das próximas semanas, vamos tentar oferecer alguns elementos de resposta para cada um desses casos. No texto que publicamos agora, veremos o caso da burguesia. Para obtermos informação sobre a posição dos setores burgueses frente à política governamental, podemos usar, com método e parcimônia, as reportagens da grande imprensa, mas devemos dar especial atenção à imprensa própria das grandes associações empresariais. A burguesia brasileira está organizada em sindicatos oficiais, agrupados em federações e confederações, e também em associações civis que reúnem segmentos empresariais determinados e que têm um papel importante na vocalização e na organização de interesses. Coordenamos um levantamento de informações no material publicado pela imprensa de algumas importantes entidades empresariais durante o primeiro governo Dilma e durante os anos da crise política. O levantamento contemplou confederações, federações, sindicatos e associações  Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 06 de janeiro de 2017.
  • 45. 45 estratégicos da agricultura e da indústria – com destaque para a Confederação Nacional da Indústria (CNI), Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Sindicato da Indústria Naval (Sinaval), Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústria de Base (ABDIB), Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), e Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Partimos, como é necessário e inevitável, de alguns conceitos prévios relativos à burguesia e à sua relação com o Estado. A burguesia brasileira mantém relações variadas e complexas com o capital internacional. Não há no Brasil uma burguesia nacional antiimperialista, mas tampouco chegou-se a uma situação na qual todas as empresas capitalistas aqui atuantes seriam empresas estrangeiras e empresas integradas ao capital internacional. Temos uma fração da burguesia brasileira, a burguesia interna, que, embora não hostilize o capital estrangeiro, concorre com ele, disputando posições na economia nacional e, em menor grau, também na economia internacional. Os governos do PT representavam essa fração da burguesia apoiados em setores das classes populares e o golpe contra o governo Dilma foi dirigido, justamente, pelo capital internacional e pelo setor da burguesia brasileira a ele associado, contando com o apoio ativo da fração superior da classe média. O fato notório e muito importante de o governo Temer ter abandonado a política (moderadamente) nacionalista para a cadeia do petróleo e gás – regime de exploração, refino, fornecimento de navios, de equipamentos pesados etc. – serve para ilustrar essa tese. Pois, bem, por que é que a fração burguesa que vinha sendo beneficiada pelos
  • 46. 46 governos do PT não defendeu o governo Dilma? A burguesia e suas frações agem premidas por circunstâncias dadas. Elas não possuem a clareza de interesses, a unidade política, a capacidade de organização e a liberdade de ação que supõem muitos dos analistas de esquerda. No caso do Brasil, a burguesia interna era representada pelo governo organizado por um partido político que não fora construído pela própria burguesia, mas que, justamente por isso, teve maior liberdade para impor alguns sacrifícios à burguesia interna, angariando-lhe com isso uma base de apoio popular. Foi o que permitiu que os interesses maiores dessa fração prevalecessem frente ao capital internacional e à burguesia associada. Nascia a frente política neodesenvolvimentista que encerrou a hegemonia exercida pelo capital internacional e pela burguesia associada durante a década de 1990. A leitura da imprensa das associações empresarias permite ver que, durante os anos de crescimento econômico, e quando ainda estava fresca na memória da burguesia interna a estagnação e a abertura econômica radical dos governos FHC, essa fração burguesa aceitou tais sacrifícios – valorização do salário mínimo, transferência de renda, reconhecimento do direito dos trabalhadores à luta reivindicativa, expansão do serviço público etc. Os documentos das associações empresariais não concediam destaque à política social dos governos do PT quando arrolavam aqueles que seriam os problemas, gargalos e dificuldades da economia brasileira. A situação começou a mudar a partir de 2013. Os fatos relevantes foram o baixo crescimento econômico, a ofensiva ideológica do capital internacional contra a nova
  • 47. 47 matriz de política econômica ensaiada pelo Ministro Guido Mantega e, finalmente, o ajuste fiscal do segundo governo Dilma. Foi nessa nova conjuntura que os sacrifícios burgueses que garantiam o apoio popular ao neodesenvolvimentismo passaram a ser vistos como um preço muito alto. As associações de industriais e do setor agrícola pesquisadas têm algumas reivindicações que aparecem de modo recorrente ao longo de todo o segundo mandato Dilma Rousseff e durante o período de crise. Nesse elenco de reivindicações destacam-se dois grupos. O primeiro aponta contra os interesses do capital internacional e financeiro, enquanto o segundo aponta contra os trabalhadores; o primeiro prevaleceu durante o primeiro biênio do governo, enquanto o segundo foi ganhando destaque a partir do ano de 2013. No primeiro grupo de reivindicações recorrentes, temos: juro baixo, câmbio depreciado, financiamento público a juro subsidiado para os investimentos, investimento em infraestrutura, política de conteúdo local, política industrial e outras. No segundo grupo de reivindicações recorrentes, temos: reforma da previdência, reforma trabalhista, ajuste fiscal baseado na redução dos gastos sociais e no arrocho do funcionalismo e outras. Acompanhando a imprensa das associações empresariais, fica claro que o segundo grupo de reivindicações vai ganhando proeminência à medida que o período de crescimento baixo e de crise econômica prolongava-se e que a campanha pelo ajuste fiscal pesado ganhava força. A burguesia interna não fez esse movimento em bloco. Parte dela foi perseguida judicialmente, graças ao fato de as forças articuladas do imperialismo, da burguesia
  • 48. 48 associada e da alta classe média terem utilizado a corrupção como arma para isolar e mesmo destruir as empresas nacionais de construção e engenharia pesada; parte aderiu ativamente ao golpe – os casos mais importantes são a CNI, a Fiesp, pelo que se pode constatar lendo a imprensa dessas associações. A indústria de transformação encontrava-se, desde 2011, em trajetória declinante devido à penetração dos manufaturados chineses; parte da burguesia interna, ainda, ficou neutra na crise – foi o caso da indústria de construção naval que, tendo crescido a taxas de 19% ao ano, relutou em aderir ao golpe do impeachment e hoje está em campanha contra o desmonte da política de conteúdo local pelo governo Temer. A resultante, contudo, foi que se abriu uma crise de representação. O representado, a grande burguesia interna, não se reconhecia mais no representante, o governo Dilma – governo que, repito, fora apoiado e aplaudido por essa fração burguesa até pelo menos o ano de 2012. A ofensiva restauradora do grande capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele associada, apoiados na mobilização da alta classe média, encontrou, então, caminho livre para avançar. Janeiro de 2017
  • 49. 49 OS TRABALHADORES DA MASSA MARGINAL E O GOLPE DO IMPEACHMENT Este artigo é o segundo de uma série na qual analiso a debilidade da resistência ao golpe que depôs a presidente Dilma Rousseff em 31 agosto de 2016. No artigo anterior, também publicado no portal do Brasil de Fato, analisamos a atuação da burguesia interna na crise política de 2015-2016. Vimos que diferentes segmentos dessa fração da burguesia, cujos interesses foram priorizados pelos governos do PT, assumiram posições distintas na crise política. A construção pesada brasileira foi designada como alvo principal da campanha golpista promovida pelo capital internacional, pela fração da burguesia brasileira a ele associada e pela alta classe média, tornando as grandes construtoras vítima da Lava Jato e colocando-as fora de combate ainda nos capítulos iniciais da crise. Já a construção naval e outros segmentos mantiveram-se neutros, enquanto a indústria de transformação, com o crescimento bloqueado pela importação de manufaturados chineses, aderiu ativamente ao movimento golpista. Tentamos indicar, naquele primeiro artigo, as razões dessa divisão. No presente texto, iremos analisar a posição política dos trabalhadores da massa marginal. O capitalismo dependente brasileiro sempre manteve um grande contingente de trabalhadores apenas periférica e superficialmente integrado à produção estritamente capitalista. A maneira específica de o capitalismo integrar o  Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 20 de janeiro de 2017.
  • 50. 50 trabalhador é o assalariamento para a produção e a realização da mais-valia. Ora, os trabalhadores e trabalhadoras domésticas, os camponeses com pouca terra, os trabalhadores urbanos por conta própria, os camelôs, prestadores de serviços variados, os subempregados e outros não são assalariados em empresas capitalistas ou integram-se a essas empresas apenas como assalariados eventuais, como vendedores ocasionais e autônomos de mercadorias eventualmente produzidas pelas empresas capitalistas ou, no limite, apenas como consumidores. Estão na margem do sistema. O modelo capitalista neoliberal e dependente fez crescer o contingente de trabalhadores dessa massa marginal. Como é sabido, esses trabalhadores votavam, em sua grande maioria, nos candidatos à presidência do Partido dos Trabalhadores. Eles formaram a principal base eleitoral de massa dos governos do PT. Essa relação política nada tem a ver com aquilo que imaginam e apregoam os liberais, os seus partidos e a imprensa comercial. Não se trata de cidadãos cuja opção de voto resultaria da desinformação, do suposto carisma de Lula ou do clientelismo. Os governos do PT atenderam a interesses reais desses setores e o fizeram com uma política de massa e não com favores pontuais em troca de apoio político, como é próprio do clientelismo. Não custa lembrar, estamos nos referindo ao Bolsa Família, ao incentivo ao usufruto do Auxílio de Prestação Continuada, ao Luz para Todos, ao Pronatec, ao Minha Casa, Minha Vida, ao Programa de Cisternas para o Semi-árido e a outros programas de transferência de renda e de fornecimento de bens e serviços a setores populares que tiveram a massa marginal como
  • 51. 51 beneficiária principal ou importante. Os trabalhadores da massa marginal ao descarregarem o seu voto no PT procediam, portanto, do mesmo modo que procedem todas as demais classes e camadas sociais: votavam no candidato que, de algum modo e com maior ou menor amplitude, atendia aos seus interesses. Apesar desse elemento geral, a relação desses trabalhadores com os governos do PT apresentava uma particularidade. Era uma relação de tipo populista, ou, para ser mais preciso neopopulista. Sabemos bem que esse conceito é mal visto por grande parte dos intelectuais de esquerda. Mas, atenção, não convém se perder em discussões terminológicas. Já mostramos, no parágrafo anterior, que, embora usemos a palavra populismo, não utilizamos o mesmo conceito – ideia – de populismo que é mobilizado pelos liberais. Para esses, o político populista obtém apoio popular engabelando, tapeando ou até hipnotizando as “massas incultas”. Já indicamos que na relação populista o político deve atender, minimamente, os interesses de sua base social. No caso do Brasil, esse interesse é a distribuição de renda que, pelo seu caráter popular e progressista, diferencia o populismo do bonapartismo, já que nesse último a demanda da base social é conservadora. Getúlio Vargas, no populismo clássico brasileiro, apoiou-se no proletariado recém-chegado do campo e sem experiência organizativa – a nova geração proletária que substituía a geração de operários imigrantes europeus da República Velha – amealhando apoio popular para a política desenvolvimentista de industrialização. Sua arma e bandeira foi a Consolidação dos Direitos do Trabalho, a CLT, estatuto
  • 52. 52 legal que, até os dias de hoje, assombra os neoliberais. No período posterior ao regime militar, o novo sindicalismo evidenciou que a classe operária e demais assalariados urbanos tinham maior capacidade de organização e de luta que os trabalhadores do período pré-1964. Lula da Silva e Dilma Rousseff, para implantarem o neopopulismo, apoiaram-se nos trabalhadores da massa marginal, composta por segmentos das classes trabalhadoras com baixa capacidade de organização e de pressão, encontrando então nesses segmentos apoio popular para o neodesenvolvimentismo, a política que reformou o modelo capitalista neoliberal até hoje vigente no Brasil. A tradição populista brasileira encontrou um novo assento e falou mais alto que as intenções iniciais dos fundadores do Partido dos Trabalhadores que visavam, justamente, a superar a Era Vargas pela esquerda. Pois bem, a relação populista imobiliza politicamente o trabalhador. Um setor social com baixa capacidade de organização, interpelado do alto por políticos profissionais ou governos, torna-se prisioneiro daquilo que poderíamos denominar o culto ou fetiche do Estado protetor. Ele delega ao Estado capitalista, cujas instituições parecem situar-se acima das classes sociais, a função de proteger os “pobres”. É verdade que parte dos trabalhadores da massa marginal organiza-se e luta em movimentos pela terra e por moradia. Essa parte esteve, de resto, ativa na resistência ao golpe. Contudo, ela representa ainda uma pequena minoria. O grande contingente de trabalhadores da massa marginal ausentou-se da luta e deixou a caravana do golpe de Estado passar. Esse contingente vê o Estado como uma entidade livre e soberana, a qual deve tomar a iniciativa de proteger os
  • 53. 53 “pobres” e cuja ação independe da relação de forças entre as classes sociais – residindo aí o motivo de utilizarmos também a expressão fetiche do Estado. O trabalhador da massa marginal foi de fundamental importância para as vitórias eleitorais dos candidatos à presidência do PT, mas ele não tem consciência clara desse fato. Não percebe o impacto do seu voto na situação política nacional; não percebe que se os seus interesses dependiam dos governos petistas, esses, por sua vez, dependiam, e ainda mais, do apoio político e não apenas eleitoral da massa marginal. No momento da crise, quando a força e a soberania do governo petista desmancharam-se no ar, os trabalhadores da massa marginal não tinham condições ideológicas e nem organizativas para saírem na defesa do governo. Os governos Lula e Dilma e o próprio PT abriram mão de organizar essa massa, de levá-la a superar o populismo e fazê-la ver que ela deve depender de suas próprias forças. Não quiseram e não puderam recorrer a ela em sua defesa. No populismo clássico, em agosto de 1954, a passividade política dos segmentos populares mantidos sob o fascínio do populismo transformou-se no seu contrário e idêntico: irrompeu nas ruas em grandes e impotentes quebra- quebras, ataques à grande imprensa comercial e a consulados estadunidenses. Carlos Lacerda, apavorado, fugiu para a Bolívia. Em agosto de 2016, nem esse espetáculo de revolta e impotência o neopopulismo nos ofereceu. Aécio Neves e outros desfilam tranquilos pelas ruas do Rio de Janeiro e de Curitiba. Dilma Rousseff tampouco deixou algo que lembrasse o apelo trágico da Carta Testamento de Vargas. Janeiro de 2017
  • 54. 54 AS RECLAMAÇÕES TARDIAS DA FIESP Depois participarem do movimento golpista ou ficarem (favoravelmente) neutros diante desse movimento, lideranças empresariais importantes, como Paulo Skaf, presidente da Fiesp e candidato a político profissional, e Benjamin Steinbruch, do Grupo Vicunha, da CSN, do Banco Fibra e 1o vice-presidente da Fiesp, vieram a público, por intermédio de artigos seguidos, publicados no jornal Folha de S. Paulo, fazer críticas à política econômica do governo Temer. Paulo Skaf saiu em defesa da política de conteúdo local para a cadeia do petróleo e gás, enalteceu, e alguns poderão considerar que cinicamente, a política aplicada nos últimos 13 anos, e criticou a nova onda de importação de equipamentos pela Petrobrás. No dia seguinte, Benjamin Steinbruch elevou a crítica para um plano mais geral: o erro é o neoliberalismo exacerbado que abre o mercado interno até num momento em que vários países fazem o caminho no sentido oposto. A relação das grandes empresas brasileiras, em vários setores da economia, com o programa neoliberal de desregulamentação de direitos dos trabalhadores, abertura comercial e financeira e privatizações é complexa. Na década de 1990, após apoiarem ativamente FHC, foram, aos poucos, afastando-se do programa neoliberal e se aproximando da plataforma neodesenvolvimentista do PT e da candidatura Lula. Nunca apoiaram integralmente o neoliberalismo.  Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 17 de fevereiro de 2017.
  • 55. 55 Sempre reclamaram – a palavra é essa mesmo: reclamaram – da abertura comercial, ou melhor, da “abertura comercial exagerada”, enquanto apoiavam as privatizações, com as quais grandes empresas ampliaram seu patrimônio adquirindo estatais a preço vil, e, evidentemente, e apoiavam o corte dos direitos sociais e trabalhistas. Quando aderiram ao programa dos governos petistas de moderar o neoliberalismo para estimular o crescimento econômico, tampouco aderiram sem reservas. Sempre foram críticos ou reticentes diante do crescimento do gasto do Estado com assistência e direitos sociais, não pararam de criticar a carga tributária – excessiva, segundo a burguesia brasileira – e sempre temeram o intervencionismo excessivo na economia. Essa posição origina uma espécie de movimento pendular da grande burguesia interna, exatamente como já destacaram os pioneiros na análise crítica do capitalismo brasileiro – Florestan Fernandes, Jacob Gorender e outros. A trajetória política foi a seguinte: na década de 1990, a burguesia interna esteve com FHC; na década de 2000, com o PT; e, agora, na década de 2010, iniciou um movimento de retorno à posição política dos anos 90. Os grandes empresários brasileiros privilegiam um ou outro ponto da política econômica de acordo com a situação econômica do país, com a conjuntura política e ideológica. Recentemente, com a queda do crescimento econômico, foram convencidos, pela luta ideológica no próprio interior da burguesia, que o caminho seria apertar os cintos dos trabalhadores. Os documentos e publicações da CNI, da Fiesp, da CNA e de outras grandes associações empresariais passaram a enfatizar, não mais a crítica à abertura comercial,
  • 56. 56 ao juro extorsivo ou aos estrangulamentos da infraestrutura, mas, sim, o excesso do gasto público, principalmente da previdência, a dita “camisa de força” dos direitos trabalhistas e por aí embarcaram no movimento golpistas ou, como dissemos, assumiram uma postura de neutralidade que favoreceu o golpe. O movimento popular deve acompanhar e analisar esses movimentos. É motivo de revolta ver Paulo Skaf depois de fazer o que fez para depor a Presidenta Dilma Rousseff, vir a público reclamar do resultado de sua própria ação como se a abertura do pré-sal fosse algo inesperado e inexplicável. Mas, é preciso, também, notar que essas reclamações arranham a base de apoio do governo Temer na grande burguesia sem ter ilusões quanto ao protagonismo desses setores burgueses na reversão do estado de coisas atual. Fevereiro de 2017
  • 57. 57 O CONFLITO INSTITUCIONAL COMO CONFLITO DE CLASSE É público e notório que se instalou um conflito institucional no Estado brasileiro. Ele opõe tanto o Executivo quanto o Legislativo Federal a setores politicamente ativos do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal. O que não é do conhecimento de todos é que esse conflito institucional que atravessa o Estado brasileiro é, também e principalmente, um conflito de classes. Os setores politicamente ativos do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal representam de um modo muito peculiar, embora já verificado em outros momentos da história política do Brasil, a alta classe média, que foi a base de apoio do golpe de Estado que depôs Dilma Rousseff; o Executivo Federal e as forças majoritárias no Legislativo representam a fração da burguesia que foi a força dirigente desse golpe de Estado. A força política dirigente do golpe, a fração da burguesia brasileira associada ao capital internacional e interessada na restauração do neoliberalismo puro e duro, perdeu o controle da base de massa do golpe, cuja mobilização a burguesia incentivou, até agosto de 2016, para poder depor a presidente Dilma. Os conflitos políticos envolvem classes e frações de classe variadas e repercutem, de maneiras distintas, nas instituições políticas e nas lutas de ideias. Parte importante do  Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 07 de dezembro de 2016.
  • 58. 58 pensamento socialista e de esquerda no Brasil não logra analisar o conflito institucional atual como conflito de classe porque restringe a observação ao conflito capital/trabalho e descura a importância do fracionamento que divide a burguesia e também a importância da presença política da classe média. Até 2014, a burguesia brasileira encontrava-se dividida diante da política econômica, social e externa dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). A fração que denominamos burguesia interna apoiava ativamente, como se pode verificar pela consulta à imprensa das associações empresariais, a política neodesenvolvimentista desses governos, enquanto a fração integrada ao capital internacional e esse próprio capital, cujos interesses eram vocalizados pelo PSDB e por agências internacionais variadas, opunham-se a tais políticas. A partir de 2013, a burguesia associada, valendo-se principalmente da oportunidade oferecida pela queda do crescimento econômico e pela mobilização da alta classe média contra o governo, iniciou uma ofensiva política restauradora para derrotar o neodesenvolvimentismo e restaurar a política neoliberal. As peripécias da crise, seus variados componentes, fizeram com que parte importante da burguesia interna mantivesse uma posição de neutralidade favorável à ofensiva da fração adversária ou, inclusive, aderisse a ela – como foi o caso patente dos industriais paulistas representados pela Fiesp. Parte ainda da burguesia interna foi violentamente atacada pela Operação Lava Jato e capitulou. A correlação de forças mudou radicalmente e o golpe de Estado foi bem-sucedido. Muitos analistas e observadores socialistas imaginavam que, deposto o Governo
  • 59. 59 Dilma, o comando da Lava Jato desmobilizaria em pouco tempo a operação. Não foi o que aconteceu. O PT é sim o inimigo principal da Lava Jato e da alta classe média, mas não é o seu único inimigo. Juízes, procuradores e delegados são, ao mesmo tempo, burocratas do ramo repressivo do aparelho de Estado e integrantes da fração superior da alta classe média. A ação desses agentes está, por isso, duplamente determinada. Como agentes da ordem, insurgiram-se contra aquilo que consideram a condescendência dos governos do PT para com os movimentos populares. Preferem a repressão dura dos governos tucanos – FHC, Alckmin, Beto Richa e outros. Como segmento social e economicamente privilegiado do funcionalismo público, têm a mesma disposição da alta classe média contra as políticas distributivas dos governos do PT. Até aí, falavam a linguagem do campo burguês. Ocorre que foi a agitação contra a corrupção que uniu esses agentes do Estado à mobilização de rua da alta classe média. Por razões que não podemos analisar aqui, a centralidade da bandeira da luta contra a corrupção é tradição da classe média, não do movimento camponês ou do movimento operário. Esse tipo de agitação moralista desse setor social é uma constante nas crises políticas da história do Brasil republicano. A alta classe média, convocada pelo MBL e pelo Vem pra Rua, passou a se reconhecer politicamente na Operação Lava Jato e os responsáveis dessa operação assumiram o papel de representantes políticos desse setor social. Depor o governo do PT era o objetivo principal, mas o discurso contra a corrupção não era mera pretexto. Mesmo sem o respaldo da mídia burguesa e mesmo contra os aliados da véspera, a alta
  • 60. 60 classe média, ou parte dela, não se conforma com uma postura de acomodação e quer dar sequência àquilo que julgam ser a moralização do Brasil. O Governo Temer está cumprindo tudo o que prometeu ao capital internacional e à burguesia associada, mas há diferenças de interesses e de valores entre a alta classe média e a burguesia. A base de apoio do golpe quer prosseguir na luta e está criando turbulência política que não interessa em nada à força dirigente do golpe de Estado. Essa última pretende “estancar a sangria da Lava Jato” – para retomar a frase dita em ligação telefônica vazada para a imprensa pelo Senador Romero Jucá – e voltar à normalidade para impor tranquilamente o arrocho fiscal, as novas rodadas de privatização e de abertura da economia ao capital internacional. A grande burguesia, quando atiçou ao longo do ano de 2015 e de 2016 manifestações na Avenida Paulista, em Copacabana, no Farol da Barra e em outros logradouros de nossas capitais, liberou forças que não está conseguindo mais controlar. Domingo, dia 04 de dezembro, o MBL e o Vem pra Rua realizaram novas manifestações em dezenas de cidades do país e desta vez contra o presidente do Senado e da Câmara Federal e em defesa do “Partido da Lava Jato”. A destituição de Renan Calheiros da presidência do Senado na segunda- feira por um ministro do STF foi mais uma demonstração da sintonia fina existente entre o Judiciário e a alta classe média. A relação é forte: representantes e representados reconhecem-se mutuamente como tais. Até onde conseguirão ir? Dezembro de 2016
  • 61. 61 NOVIDADES SOBRE O PAPEL DA BURGUESIA NO GOLPE DO IMPEACHMENT Quem deu o golpe? Este dossiê está reaberto. A pesquisa científica não para e as fronteiras do conhecido avançam. Pesquisas recém encerradas ou ainda em curso têm trazido novidades sobre essa matéria. A questão que colocam é esta: onde estavam e o que fizeram as pequenas e médias empresas na conjuntura do impeachment? A resposta para a pergunta sobre quem deu o golpe não parte, e não pode partir, apenas e diretamente dos fatos, ao contrário do que supõe o empirismo radical. Tal pesquisa depende também do dispositivo conceitual que o analista mobiliza. Seguindo a tradição marxista, que concebe o processo político como a resultante de um conflito entre classes e frações de classe que, na cena política, organizam-se em partidos e associações diversas, a pergunta sobre o papel da burguesia no golpe de 2016 é fundamental. Em que pé estava o debate Não existe entre aqueles que trabalham com o enfoque das classes sociais uma resposta consensual para a questão sobre a autoria do golpe de 2016. Alguns entendem que o golpe do impeachment foi uma ação do conjunto da classe burguesa, concebida como um coletivo sem fissuras, contra a ascensão da luta e das conquistas, ainda que  Artigo publicado no site A terra é redonda em 18 de junho de 2020.
  • 62. 62 modestas, das classes trabalhadoras. Pensamos que isso é parte da verdade, mas não é a verdade toda. Outros detectam divisões no interior da burguesia, não se satisfazem com a ideia de uma burguesia homogênea. Uma primeira versão dessa linha de análise, e que é a versão predominante, sem negar que as diferentes frações da classe dominante acabaram em boa medida convergindo no final de 2015 e início de 2016 para uma posição favorável à deposição do Governo Dilma, afirmam que se tratou de uma ação dirigida principalmente pelo segmento rentista da classe dominante contra o setor produtivo dessa mesma classe social, setor produtivo que, paradoxalmente, já que também insatisfeito com o Governo Dilma, acabou abandonando-o. Uma segunda versão da análise que se preocupa com o conflito de classes e que valoriza analiticamente as divisões no interior da burguesia, versão que desenvolvo em livro que publiquei sobre o tema (Reforma e crise política no Brasil – os conflitos de classe nos governos do PT, Editoras Unicamp e Unesp, 2018), sustenta que a força dirigente do golpe foi a burguesia associada ao capital internacional. A grande burguesia interna, fração ao mesmo tempo dependente e concorrente do capital internacional, e cujos interesses os governos do PT priorizavam, acabou, também devido a insatisfações com o Governo Dilma e com a ascensão do movimento popular, se dividindo – uma parte defendeu Dilma até as vésperas do impeachment, outra permaneceu politicamente neutra e uma terceira parte aderiu ativamente ao golpe.
  • 63. 63 As novidades As análises acima citadas têm os olhos voltados para a grande burguesia. Não têm examinado de perto o comportamento político do segmento da pequena e média empresa que, como é sabido, é o contingente, de longe, majoritário no universo das empresas brasileiras. Esse olhar seletivo, voltado para as grandes empresas, em parte é justificado. O médio capital não tem agido como força social autônoma no processo político brasileiro. Isto é, embora exista como força social distinta, já que tem interesses próprios e tais interesses podem provocar efeitos pertinentes no processo político nacional, não possui programa político próprio, deixando, por causa disso, de contar entre as forças sociais que mais pesam na definição dos rumos da política brasileira. Porém, os tais efeitos pertinentes podem ser também muito importantes. É o que mostra a ótima dissertação de mestrado de Fernanda Perrin defendida este mês de junho na USP e intitulada O ovo do pato – uma análise do deslocamento político da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. É o que estão mostrando também as pesquisas de Felipe Queiroz Braga sobre a mesma Fiesp e de Octávio Fonseca Del Passo sobre a construção civil. Em todas elas, aparece a importância da presença da média burguesia do setor industrial na política brasileira contemporânea. De certo modo, o tema aparecera também no livro de Danilo Martuscelli intitulado Crises políticas e capitalismo neoliberal no Brasil (Editora CRV, 2015). Peço licença ao leitor para falar da análise que tenho feito da política brasileira de modo a poder esclarecê-lo sobre
  • 64. 64 esta minha intervenção neste debate. Nessa análise, a fração burguesa que Nicos Poulantzas denominou burguesia interna, eu sempre a denominei, para tratar da política brasileira contemporânea, grande burguesia interna e considerei essa fração burguesa como a fração hegemônica nos governos encabeçados pelo PT. Isso quer dizer que as políticas econômica, social e externa desses governos, sem excluir os interesses das demais frações burguesas e inclusive da burguesia associada e do próprio capital internacional, priorizaram os interesses daquela fração. Eu combino dois sistemas de fracionamento ao falar de grande burguesia interna. O fracionamento pelo porte do capital – trata-se do grande capital – e o fracionamento pela origem do capital – é o capital nacional, embora não seja uma burguesia nacional antiimperialista. Ocorre que, se faz sentido falar em grande burguesia interna, é porque, e somente porque, deve existir uma média burguesia interna. No primeiro capítulo do meu citado livro, eu formulei a seguinte ideia. A política econômica neoliberal estabelece uma hierarquia no interior do bloco no poder. Ela privilegia, no que respeita à função do capital, o capital financeiro; no que respeita ao porte das empresas, o grande capital; e no que respeita à nacionalidade, o capital estrangeiro e associado. Concluía que no topo da hierarquia desse bloco no poder encontrava-se o capital financeiro internacional, e na sua base, o médio capital produtivo nacional voltado para o mercado interno. Entre o topo e a base dessa hierarquia distribuíam-se outras combinações desse fracionamento (Reforma e crise política no Brasil – p. 51). Há um médio capital bancário na posição intermediária. O pesquisador Ary Minella, pioneiro no estudo
  • 65. 65 político dos bancos, mostrou que no Governo FHC cerca de 200 bancos de médio e pequeno porte foram à falência. É preciso, como mostra Francisco Farias em um ensaio teórico intitulado “Frações burguesas e bloco no poder”, publicado na revista Crítica Marxista n. 28, chamar a atenção para o fato que os sistemas de fracionamento – função do capital, seu porte, sua origem e outros – se cruzam o que indica a complexidade que é a análise do bloco no poder. Contudo, voltando ao que eu dizia sobre o meu próprio trabalho, eu não pesquisei o comportamento político desse segmento burguês, a média burguesia interna e ignorava, até pouco tempo, pesquisas mais sistemáticas que o tivessem feito. As pesquisas acima citadas trazem novidades importantes justamente sobre isso e podem exigir da parte nossa, todos os que pesquisamos a política brasileira como resultado de um conflito de classes e frações de classe, acréscimos ou retificações, maiores ou menores, na nossa análise. O médio capital no golpe de Estado de 2016 O que mostra a dissertação de Fernanda Perrin? Ela argumenta, e até que novas pesquisas demonstrem o contrário a argumentação é convincente, que a Fiesp sob a gestão de Paulo Skaf está apoiada, fundamentalmente, no médio capital, isto é, nas pequenas e médias empresas industriais que são empresas de capital nacional – explico logo abaixo porque prefiro dizer “está apoiada” e não que “representa” esse médio capital. O argumento de Felipe Queiroz Braga é o mesmo. Ambos pesquisadores realizaram numerosas entrevistas com diretores da Fiesp, de sindicatos que integram
  • 66. 66 essa federação e com dirigentes de pequenas e médias empresas. Mostraram, inclusive, a insatisfação dos pequenos e médios empresários com aspectos importantes da política econômica dos governos do PT. Em destaque, a insatisfação desses pequenos e médios empresários com a política de financiamento do BNDES focada nos chamados “Campeões Nacionais”, que, como a própria expressão indica, designa um seleto grupo de empresas brasileiras grandes e poderosas. As consequências dessa descoberta são importantes. O inefável Paulo Skaf quando mobilizou a Fiesp contra o Governo Dilma fazia-o, é o que argumenta Fernanda Perrin na sua dissertação, representando, afirma ela, as pequenas e médias empresas e não na grande burguesia. Os grandes empresários, diferentemente, teriam hesitado muito em aderir à campanha do impeachment, tanto grandes empresários do setor produtivo, quanto grandes empresários do setor bancário. Fernanda Perrin, cuja dissertação logo estará disponível no repositório de teses da USP, mostra isso utilizando reportagens da imprensa e entrevistas que realizou. André Flores, em dissertação de mestrado defendida na Unicamp (Divisão e reunificação do capital financeiro – do impeachment ao Governo Temer), tinha mostrado que o capital bancário nacional manteve o seu apoio ao Governo Dilma até fevereiro de 2016. Temos, então, dois comportamentos políticos distintos num momento crucial da história política do Brasil: o médio capital industrial e nacional, segmento do qual se poderia esperar um comportamento mais progressista, assumiu uma posição mais conservadora que o grande capital produtivo ou bancário nacional. Tal fato enseja muitas reflexões.
  • 67. 67 A primeira delas é a seguinte: isso significa, então, que o golpe do impeachment foi uma ação vitoriosa da média burguesia interna contra a grande? Uma vitória das pequenas empresas brasileiras contra o grande capital nacional ou estrangeiro? A dissertação de Fernanda Perrin sugere essa tese em inúmeras passagens. Na banca de defesa de sua dissertação, ela esclareceu que não era essa a sua intenção. Mas a questão permanece: qual foi o papel político do médio capital? Penso que nesse ponto, que é crucial para entender os interesses envolvidos naquele golpe, devemos fazer intervir os conceitos de força dirigente e de força motriz de um processo político qualquer. Mao Zedong elabora esses conceitos discorrendo sobre os processos revolucionários. A força dirigente é a classe social ou a fração de classe que logra impor os objetivos políticos da luta e a força motriz é a classe ou fração que fornece os quadros e os ativistas para tal luta – Mao distingue ainda a força motriz principal que é aquela que fornece a maioria dos quadros e dos ativistas. Pois bem, tenho para mim – e até segunda ordem porque a pesquisa e as descobertas não param... – que a força dirigente do movimento golpista foi sim o capital estrangeiro e a burguesia associada que procurou, depondo o governo da frente política neodesenvolvimentista capitaneada pela grande burguesia interna, restaurar a hegemonia política que usufruíra na década de 1990. Porém entre as força motrizes desse golpe contou, a julgar pelas pesquisas que estou comentando, o médio capital, além das frações abastada e remediada da classe média, organizadas em movimentos como o Vem pra Rua e o Movimento Brasil Livre (MBL). O golpe não representou uma vitória do médio contra o grande capital. Na verdade, o
  • 68. 68 grande capital internacional e a grande burguesia associada instrumentalizaram politicamente a insatisfação do médio capital nacional, jogando-o contra o grande capital também nacional. Uma questão, ainda relacionada com o problema da força dirigente do golpe, ficou em aberto. Refiro-me ao seguinte. Paulo Skaf apoiou-se no médio capital, mas não apresentou um programa positivo de defesa dos interesses dessa fração burguesa. Esse é também um ponto sobre o qual essas novas e excelentes pesquisas precisariam refletir. Paulo Skaf aliou-se ao vice-presidente Michel Temer e defendeu, junto ao empresariado, o programa do MDB Uma ponte para o futuro. Ele só poderia ser considerado um representante orgânico do médio capital, se tivesse organizado um programa político específico representando os interesses desse segmento. Mas não foi isso que aconteceu. Ele, segundo minha avaliação, apenas se apoiou na insatisfação do médio capital. É por isso que estou usando a palavra apoio e não representação. Esse é outro ponto para mais reflexão e pesquisa. É uma ironia da história: o segmento politicamente mais conservador do capitalismo brasileiro, o grande capital estrangeiro e a burguesia associada, atacou o governo do PT “pela esquerda”. Ou seja, exploraram os privilégios concedidos aos grandes capitalistas para atiçar o médio capital nacional contra o grande, fazendo, paradoxalmente, passar a sua proposta reacionária de mais abertura e mais internacionalização da economia brasileira. Cabe lembrar inclusive que mais de um integrante das equipes governamentais de Temer e de Bolsonaro, diretores do
  • 69. 69 BNDES e do Banco do Brasil, valeram-se do fato de os governos do PT terem privilegiado o grande capital nacional, para proferirem um discurso demagógico de defesa dos pequenos e médios empresários. Discursaram em defesa “dos pequenos que mais necessitam de crédito” – em defesa do “seu Manoel da padaria” disse um deles – contra os privilegiados “campeões nacionais”. Enquanto faziam esse discurso demagógico vendiam e entregavam o que resta de nacional na economia brasileira. Podemos verificar que essas novidades introduzem mais um ponto para o balanço dos governos do PT: a esquerda pode sim, penso eu, e de maneiras específicas que não cabe discutir aqui, defender empresas nacionais frente a empresas estrangeiras, mas não pode atrelar-se aos interesses do capital monopolista contra os interesses do médio capital. Esse procedimento inverteu tudo aquilo que o movimento comunista latino-americano e europeu tinham estabelecido sobre a questão das alianças de classe possíveis e desejáveis nas primeiras etapas da revolução. Junho de 2020