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JOSÉ JORGE DE CARVALHO




O confinamento
racial do
mundo acadêmico
brasileiro
                                            JOSÉ JORGE DE
                                            CARVALHO é professor
                                            do Departamento
                                            de Antropologia da
                                            Universidade de Brasília.




          A            implementação recente de um
                       sistema de cotas para estudantes
          negros no ensino superior é um fenômeno que
          rompe radicalmente com a lógica de funciona-
          mento do mundo acadêmico brasileiro desde a
          sua origem no início do século passado. Por um
          lado, as cotas estão provocando um reposicio-
          namento concreto das relações raciais no nosso
          meio acadêmico, começando pelo universo dis-
          cente da graduação, porém com potencial para
          estender-se à pós-graduação, ao corpo docente
          e aos pesquisadores. Por outro lado, a polêmi-
          ca gerada em torno das cotas coloca questões
          teóricas e epistemológicas sobre a legitimidade
          e o estatuto de verdade das interpretações das
relações raciais no Brasil formuladas no interior
desse universo acadêmico profundamente desi-
gual do ponto de vista racial. Proponho, então,
esboçar uma reflexão sobre as relações raciais
no Brasil pós-cotas que tome em consideração
a condição racial dos teóricos e as experiências
de interação racial que suscitaram (ou não) as
teorias que produziram.
  Começo então por afirmar que as teorias e
as interpretações das relações raciais no Brasil
sempre foram elas mesmas racializadas, como
conseqüência da distância e do isolamento mútuo
que tem caracterizado as relações entre os inte-
lectuais e acadêmicos brancos e os intelectuais
e acadêmicos negros. Conforme mostrarei mais
adiante, a pretensão de universalidade presente
nas formulações dos cientistas sociais brancos
é questionada quando tomamos em conta a si-
tuação de segregação racial extrema do nosso
meio acadêmico. Muitos discursos, antes lidos
como inclusivos ao falar de todos os brasileiros
na primeira pessoa do plural (uma frase típica
de cientistas sociais brancos tem sido: “entre
nós” as relações raciais são diferentes de como
são nos Estados Unidos ou na África do Sul), não
possuem mais o mesmo grau de legitimidade
neste momento de revisão epistemológica radi-
cal suscitado pelas propostas de cotas porque
silenciaram essa mesma condição de exclusão
e de segregação racial que marcou a nossa vida
universitária até hoje.
  Na qualidade de membro dessa academia
branca que nunca aceitou falar da sua brancura,
também passei uma década inteira como docente
falando do racismo brasileiro sem referir-me mais
diretamente ao racismo acadêmico. Contudo,
meu olhar sobre as relações raciais no Brasil
mudou dramaticamente nos últimos sete anos
USP/CCS/DVIDSON/ARGUS Documentação. Foto: Oswaldo José dos Santos




Charge da
exposição
“Ser Negro
Hoje”, Museu
Paulista,
out./88

90             REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006
como conseqüência de um incidente racial         em um regime de completo apartheid.
ocorrido justamente com um estudante de              Após o censo racial docente na UnB,
doutorado de Antropologia da UnB que             passei então a solicitar a ajuda dos meus
eu orientava. A crise (pessoal, política e       colegas negros para conhecer a porcentagem
intelectual) gerada por esse caso levou-me       de docentes negros em outras universidades
inclusive a formular uma proposta de cotas       públicas. Mesmo admitindo uma margem
para negros e índios para a UnB, em parceria     de erro nas amostragens por eles reunidas
com Rita Segato1. No momento em que o            (e na verdade colocamos um percentual de
estudante foi reprovado em circunstâncias        20% acima do número encontrado), depa-
inaceitáveis, pude dar-me conta de que se        ramo-nos com situações chocantes, como
tratava do primeiro doutorando negro da          as da USP, Unicamp, UFRJ e UFRGS, ins-
história do nosso programa de pós-gradua-        tituições em que a proporção de professores
ção. Ao deparar-me com essa desconcer-           negros não passa de 0,2%; a da UFSCAR, de
tante singularidade, o passo seguinte foi        0,5% e a da UFMG, de 0,7%. Dito de outro
averiguar e constatar que essa ausência de       modo, em nenhuma universidade conside-
estudantes negros é comum a todos os pro-        rada como referência nacional na pesquisa
gramas de pós-graduação de Antropologia          esse número parece não passar de 1%2. Na
do país e a todos os demais programas de         verdade, a porcentagem da UnB pode ser
pós-graduação da UnB. A grande revelação         avaliada como “muito alta” comparada
subseqüente, porém, surgiu quando fiz para        com as outras universidades de ponta que
mim mesmo a pergunta que me diz respeito         mencionei. Infelizmente, não existe ainda
mais diretamente: quantos colegas negros         um censo racial nacional da docência nas
tenho e quantos negros fazem parte do            universidades públicas e a sua própria ine-
quadro de docentes da UnB?                       xistência já é um forte indício da resistência
    Após constatar que convivia há mais          da classe acadêmica de enfrentar-se com sua
de uma década com 60 colegas brancos             condição racial privilegiada. Contudo, não
no Instituto de Ciências Sociais da UnB          é difícil fazê-lo, por uma razão muito sim-
decidi realizar, em 1999, um censo racial        ples: os poucos docentes negros conhecem
informal, com a ajuda de colegas e estu-         muito bem quem são todos os seus (poucos)
dantes negros. Chegamos a uma conclusão          colegas negros; e justamente porque têm
que ainda me estarrece: a UnB, que havia         plena consciência de que fazem parte de uma
sido inaugurada em 1961 com pouco mais           minoria racial, vários deles já realizaram o
de duzentos professores e que, ao longo          censo racial informal da classe docente das
de quatro décadas, havia ampliado esse           instituições onde trabalham.
número para 1.500, conta com apenas 15               Acredito que essa condição de exclusão
professores negros. Ou seja, após 45 anos        racial extrema na docência superior deve
de expansão constante do seu quadro do-          ser tomada em conta na hora de refletirmos
cente, a universidade, que foi concebida         sobre os modelos de interpretação das re-
como modelo de inovação e de integração          lações raciais no Brasil. Paradoxalmente,
do país consigo mesmo e com o continente         foi justamente desse ambiente segregado
latino-americano, ainda não absorveu mais        que saíram todas as teorias que negam a
que 1% de acadêmicos negros. Esse número         existência de segregação racial no Brasil.
tão baixo nos permite deduzir que mais da        E se estamos falando de relações raciais, é
metade dos 50 colegiados departamentais          perfeitamente aceitável que demandemos
                                                                                                           1 Esse episódio já foi discutido
da UnB é inteiramente branca, assim como         dos intérpretes não apenas a sua leitura da                 por vários autores. Ver Alves
                                                                                                             (2001), Torres (2001), Santos
inteiramente brancos são alguns institutos       desigualdade racial existente na sociedade                  (2003), Pereira (2004), Carva-
que contam cada um com mais de 100 pro-          brasileira “lá fora”, mas também que se                     lho (2002 e 2005a) e Segato
                                                                                                             (2005). Sobre a proposta de
fessores. Dito em termos mais dramáticos,        posicionem acerca dessa realidade de se-                    cotas da UnB, ver: Carvalho
existem áreas da instituição que funcionam       gregação de que eles mesmos participam.                     & Segato (2002).

na prática, sem que tenha havido até agora       Está claro que não sairemos “naturalmente”                2 Trabalho aqui com a tabela que
                                                                                                             preparei no meu livro (Carvalho,
nenhum questionamento político ou legal,         desse escândalo de segregação racial. Já                    2005b).




                                   REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006                             91
ampliamos os números de estudantes e                      um único docente negro; quando muito,
                                       de docentes dezenas de vezes nas últimas                  conviverá com alguns servidores negros,
                                       décadas, e os números relativos à presença                com os quais estabelece relações de pouca
                                       negra em nada melhoraram.                                 ou nenhuma identificação.
                                           Podemos falar aqui, para não esvaziar                     Um exemplo desse confinamento certa-
                                       a palavra “racismo”, de uma situação de                   mente ocorreu e ainda ocorre com profes-
                                       confinamento racial vivida por nós, docentes               sores que trabalham em faculdades como
                                       das universidades públicas brasileiras. Se                o Centro de Ciências da Saúde (CCS), da
                                       não somos diretamente responsáveis por                    UFRJ, que conta com cerca de 800 profes-
                                       essa exclusão, nem nos sentimos coniventes                sores, dos quais apenas três são negros; e
                                       com a sua reprodução, então admitamos,                    a proporção de estudantes de Medicina do
                                       pelo menos, para iniciar uma reflexão crí-                 CCS não é muito diferente da dos docen-
                                       tica, que temos sido forçados a desenvolver               tes. Isso significa que foi possível criar no
                                       nossas atividades dentro de um regime de                  Brasil, por mais de meio século, instituições
                                       confinamento racial que herdamos das ge-                   de ensino autocontidas e segregadas, e que
                                       rações passadas de acadêmicos.                            simultaneamente não estivessem desobede-
                                           Gostaria de ilustrar essa situação de                 cendo a nenhuma lei nacional que proibisse
                                       confinamento racial vivida por todos nós,                  a segregação racial. Ou seja, a segregação
                                       acadêmicos brasileiros. Se juntarmos todos                racial no meio universitário jamais foi im-
                                       os professores de algumas das principais                  posta no Brasil legalmente, mas sua prática
                                       universidades de pesquisa do país (por                    concreta tem sido a realidade do nosso
                                       exemplo, USP, UFRJ, Unicamp, UnB,                         mundo acadêmico, através de mecanismos
                                       UFRGS, UFSCAR e UFMG), teremos um                         que esse próprio mundo acadêmico tem feito
                                       contingente de aproximadamente 18.400                     muito pouco por analisar e nem tem mostra-
                                       acadêmicos, a maioria dos quais com dou-                  do interesse, até recentemente, em desativá-
                                       torado3. Esse universo está racialmente                   los. Fica ainda por compreender qual tem
                                       dividido entre 18.330 brancos e 70 negros;                sido a participação do mundo acadêmico
                                       ou seja, entre 99,6% de docentes brancos e                na formulação e na implementação prática
                                       0,4% de docentes negros (não temos ainda                  desses mecanismos institucionalizados de
                                       um único docente indígena). Se escolhermos                segregação. Dito em outros termos, esse tipo
                                       aleatoriamente um professor desse grupo,                  de segregação é apenas reproduzido ou é
                                       o perfil básico que encontraremos será o                   também produzido no nosso meio acadêmi-
                                       seguinte: esse professor (ou professora) foi              co? A julgar pelo seu caráter generalizado
                                       um(a) estudante branco(a) que teve poucos                 e crônico, provavelmente seja uma soma
                                       colegas negros no secundário, pouquíssimos                das duas coisas.
                                       na graduação e praticamente nenhum no                         A experiência inversa de confinamento
                                       mestrado e no doutorado; como aluno(a),                   dos poucos professores negros deve ser
                                       sempre estudou com professores brancos.                   igualmente ressaltada, pois ela os afeta de
                                       Desde que ingressou na carreira docente faz               um modo muito mais grave que aos docentes
                                       parte de um colegiado inteiramente branco,                brancos. Por exemplo, uma colega negra da
                                       dá aulas para uma maioria esmagadora de                   UnB trabalha há décadas em um instituto
                                       estudantes brancos na graduação e de 100%                 com mais de 100 professores no qual ela é a
                                       de pós-graduandos brancos. Além disso,                    única negra. A questão racial deveria entrar
                                       os assistentes e colegas do seu grupo de                  nos seus temas de trabalho, porém sofre
3 Esse número representa a             pesquisa são todos brancos. Como conse-                   a inibição constante da convivência com
  soma de todos os docentes
  dessas universidades, segundo        qüência desse confinamento, em algumas                     os colegas, que se mostram incomodados
  o levantamento que fiz entre
  1999 e 2003, a partir dos
                                       faculdades mais fechadas e elitizadas, é                  quando a questão racial aparece explicita-
  dados oficiais fornecidos pelas       perfeitamente possível que um docente e                   mente em alguma discussão sobre os temas
  reitorias e dos dados encontra-
  dos nos sites dessas instituições.   pesquisador desenvolva por décadas o seu                  de pesquisa de interesse do instituto. O que
  Obviamente, deve ser tomado          trabalho acadêmico sem conviver jamais                    nunca discutimos em nossos trabalhos é até
  como um valor aproximado (ver
  Carvalho, 2005b).                    com um único estudante negro ou com                       que ponto estamos dispostos a interpretar




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esses “incômodos” dos acadêmicos brancos          como mais “amplas” e menos “radicais”.
frente às necessidades de afirmação racial             Esse ambiente confinado apresenta sin-
dos seus colegas negros como manifestações        tomas que vão desses mecanismos altamente
específicas de violência racial. E também          sofisticados de inibição do discurso sobre o
nunca questionamos por que essas manifes-         conflito racial até manifestações mais de-
tações de incômodo gozam de impunidade            sinibidas dos estereótipos sobre a exclusão
no nosso meio.                                    negra do espaço acadêmico. Um professor
    Um doutorando da Sociologia contou-           negro contou-me recentemente um episó-
me o difícil dilema por ele vivido durante a      dio constrangedor: deu a primeira aula do
sua entrevista para ingresso no doutorado.        semestre de uma disciplina da carreira de
No fim da entrevista um dos examina-              Medicina de uma universidade particular
dores, ciente de que o candidato queria           carioca para uma turma de 68 alunos com
estudar relações raciais, perguntou-lhe se        apenas dois negros. Quando entrou na sala
ele era militante do Movimento Negro.             dois dias depois, ao começar a segunda aula,
Ele percebeu claramente que se desse uma          alguns dos alunos brancos se surpreenderam
resposta afirmativa seria inevitavelmente          e lhe disseram abertamente: “O que você
reprovado. Mentiu, então, afirmando que            faz aqui?”. “Vim dar aula, obviamente”,
havia sido militante no passado, mas que          respondeu. “Ah, mas nós pensamos que
agora havia decidido dedicar-se “de fato” à       aquela aula era um trote!”
carreira acadêmica. A resposta agradou ao             Um professor negro em um curso de
examinador, que finalmente concordou em            Medicina só pode ser um trote? Como
aprová-lo. Termina agora seu doutorado e          conseguimos construir no Brasil um espaço
obviamente evitará ser examinado por esse         acadêmico tão poderoso, numeroso e tão
professor, conhecido em seu departamento          excludente? E quais são os mecanismos que
por pregar agressivamente contra as cotas         acionamos para mantê-lo tão segregado ao
para negros em sala de aula. A lição que          longo de quase um século, apesar de tê-lo
aprendeu (e que agora pratica) é que o            ampliado constantemente década após déca-
mundo acadêmico brasileiro é um campo             da? Em suma, por que os negros não foram
minado para pesquisadores negros e não se         incluídos apesar da expansão vertiginosa
pode ser ingênuo, franco ou aberto acerca         experimentada pelas instituições superio-
da questão racial nesse nosso meio.               res de ensino e pesquisa nas últimas cinco
    Casos desse tipo se multiplicam nos           décadas? E mais grave ainda, por que nós,
depoimentos dos pós-graduandos de Hu-             cientistas sociais brancos, nunca falamos
manidades e Ciências Sociais, com quem            desse ambiente de confinamento racial em
converso constantemente: sentimento               que vivemos?
crônico de inadequação, tendência ao dis-             Há poucos meses um diretor do CNPq
farce para proteger suas convicções mais          me contava de sua recente viagem a Mo-
profundas, asfixia diante do ambiente in-          çambique, realizada com a finalidade de
teiramente branco, dificuldade em colocar          ajudar o governo moçambicano a montar
com franqueza suas posições teóricas sobre        um Ministério de Ciência e Tecnologia nos
as relações raciais no Brasil. E muitas vezes     moldes do nosso ministério e do CNPq. Di-
se vêem forçados a ajustar seus temas de          zia ter ficado estarrecido quando descobriu
pesquisa para não contrariar as posições          que havia apenas quatro doutores negros
ideológicas dos seus orientadores sobre esse      em todo o país. Indaguei-lhe por que esse
tema. O que me comentam, de 9 entre 10            número era tão baixo e me respondeu que os
pós-graduandos das áreas próximas, é que          portugueses não permitiam que os africanos
os professores tendem a censurar os estu-         cursassem as universidades. Esse diretor
dos sobre racismo e discriminação racial,         tocou aqui, ainda que inadvertidamente,
influenciando os seus orientandos para que         um tema caríssimo a muitos dos nossos
“abrandem” a discussão ou mesmo que a             teóricos da diferença racial brasileira frente
desloquem para outras correlações definidas        a países como Estados Unidos e África do




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Sul: supostamente, o colonialismo por-                    academia de representantes de um contin-
                                   tuguês havia sido mais assimilacionista                   gente de 45% da população nacional coloca
                                   que o britânico, o belga ou o francês. Per-               questionamentos graves para o Brasil, país
                                   guntei-lhe então se ele tinha uma idéia de                que abriga a segunda população negra mais
                                   quantos pesquisadores negros existem na                   numerosa do mundo. Em termos de recusa
                                   carreira de produtividade em pesquisa do                  à assimilação, de confinamento e de segre-
                                   CNPq. Admitiu que nunca havia pensado                     gação racial, nosso mundo acadêmico mais
                                   no assunto, mas que o número deve ser                     se aproxima à antiga Rodésia e à África do
                                   baixíssimo também – não mais que quatro,                  Sul dos anos 50. Afinal, como já o disseram
                                   possivelmente, por cada uma das grandes                   analistas notáveis como Max Gluckman, o
                                   áreas do CNPq. E acabava de fazer uma                     mundo acadêmico tende a ser autocontido
                                   viagem de apoio à assimilação de negros no                também em termos de relações sociais, de
                                   mundo acadêmico moçambicano, enquanto                     modo que o confinamento racial que vivemos
                                   “entre nós” ainda não conseguimos sequer                  extravasa o horário de trabalho na universi-
                                   iniciar uma discussão sobre a necessidade                 dade e se estende às demais esferas da vida4.
                                   imperiosa de abrir a carreira de docência e               Quantos dos 18.400 docentes e pesquisado-
                                   pesquisa para negros e índios!                            res brancos das universidades mencionadas
                                       O primeiro passo para qualificar essa                  interagem com alguma intensidade com
                                   discussão é produzir um censo étnico-racial               negros e negras, em relações minimamente
                                   geral de todas as nossas instituições supe-               igualitárias, fora da academia, já que convi-
                                   riores de ensino e pesquisa para produzir                 vem apenas com brancos em seus locais de
                                   em seguida um diagnóstico e uma análise                   trabalho? Praticamente nenhum deles, pois
                                   minuciosa da história de cada instituição em              a classe social a que pertencem os acadêmi-
                                   busca de indícios da existência de mecanis-               cos já vive também segregada racialmente
                                   mos que podem ter sido (e provavelmente                   em suas residências e em seus locais de
                                   foram) acionados até hoje para barrar os                  sociabilidade básica, tais como comércio,
                                   negros na entrada da docência e da pes-                   shoppings, restaurantes, livrarias, cinemas,
                                   quisa. Enquanto não enfrentarmos nossa                    clubes, todos eles ambientes segregados. A
                                   ignorância não poderemos ir além da mera                  rede de sociabilidade geral que nos envolve
                                   identificação dos sintomas do confinamento                  distancia-nos radicalmente da comunidade
                                   racial acadêmico brasileiro. Atualmente                   negra. Não funciona no nosso meio sequer o
                                   contamos com uma única reitora negra                      modelo freyriano de uma suposta facilidade
                                   entre os mais de 1.000 reitores do conjun-                de entrosamento entre brancos e negros na
                                   to de universidades públicas e privadas: a                África portuguesa (e que estaria presente
                                   reitora da Universidade Estadual da Bahia,                também no Brasil, segundo ele) em contraste
                                   que é também a primeira reitora negra da                  com o modelo de segregação zimbabuano
                                   história do estado. Ou seja, em que pese a                e sul-africano.
                                   população de 80% de negros em Salvador,                       Meditemos na famosa passagem de Ro-
                                   a UFBA nunca teve um reitor negro. Na                     ger Bastide em que fala da experiência de
                                   verdade, não sabemos sequer muito bem o                   democracia racial em um bonde noturno do
                                   número de professores negros da UFBA.                     subúrbio do Recife cheio de trabalhadores
4 Referimo-nos aqui ao que         Será muito mais que o 1% que constatamos                  cansados, onde um negro dormia apoiando
  Max Gluckman chamava de
  relações multiplex, típicas de   nas outras universidades acima menciona-                  sua cabeça no ombro de um empregado de
  organizações sociais tribais,    das? É fato sabido que a UFMG já teve um                  escritório5. O curioso aqui é que Bastide
  mas que sobrevivem em am-
  bientes altamente confinados      reitor negro. Quanto às outras universidades              não conseguiu estabelecer uma conexão
  no interior das sociedades
  modernas, como o ambiente
                                   mencionadas, mais de 70 anos de UFRGS,                    entre o que viu naquele bonde carregando
  acadêmico, por exemplo, em       UFPR, USP, UFRJ e de 45 anos de UnB                       gente humilde e o seu mundo cotidiano na
  que “suas relações em um con-
  junto de papéis influenciam seu   não foram ainda suficientes para que um                    USP, inteiramente segregado e excludente
  desempenho de outros papéis”     docente negro chegasse ao posto máximo                    racialmente. Se ainda é segregado hoje,
  (Gluckman, 1962, p. 43).
                                   dessas instituições de ensino superior.                   como não seria há 50 anos, quando Bastide
5 Citado em Guimarães
  (2002).                              Uma assimilação tão baixa por parte da                decidiu empregar a expressão “democra-




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cia racial” para falar do que vira entre as        conflito nem com as autoridades estatais
classes populares do Recife quando visitou         permissivas da continuidade da segregação
Gilberto Freyre. Um relance do que era a           nem com as comunidades negras e indígenas
realidade racial da USP na época desse tex-        excluídas do nosso meio.
to de Bastide pode ser capturado por uma               Apesar das especificidades do modo
olhada atenta às fotos do livro História da        como é representada, a realidade racial da
Universidade de São Paulo, de Ernesto de           academia não difere muito da realidade
Souza Campos, publicado em 1954.                   racial vigente em outras áreas da sociedade,
    Em uma centena de pessoas registradas          mormente no que tange às estratégias uti-
em mais de 30 fotografias sobre as mais di-         lizadas para a sua reprodução “informal”,
versas áreas de ensino e pesquisa conduzidas       que seria uma das características principais
na universidade, não encontramos nem um            do estilo de racismo brasileiro. No caso da
único rosto que pudéssemos identificar como         academia, os mecanismos mais comumente
de uma pessoa negra, ou mesmo mulata, nem          ativados que acabam por dar continuidade
sequer entre os funcionários. Bastide celebra-     à prática da segregação racial são: a pos-
va a “democracia racial” que encontrara nos        tergação da discussão, o silêncio sobre
bondes de subúrbio do Recife sem conectá-la        os conflitos raciais, a censura discursiva
com o apartheid acadêmico em que vivia             quando o tema irrompe e o disfarce para
no interior da Universidade de São Paulo.          evitar posicionamentos claros. Procura-se,
Também os textos e as imagens do livro de          assim, esvaziar ou desarmar os mecanismos
história da Universidade Federal do Paraná, a      de tensão racial do sistema. Para que isso
mais antiga de todas as nossas universidades       seja possível, é necessário construir uma
públicas, descrevem um mundo inteiramente          alta coesão entre os poderosos e lançar mão
branco. Mais do que um comentário ao que           constantemente de mecanismos repressivos
era o nosso mundo acadêmico antes, cha-            de baixa intensidade e facilmente dispo-
mo a atenção, através desses livros, sobre         níveis para uma ação intermitente. Desse
como ele se encontra hoje: fotos dessas duas       modo, evita-se definir o estado de conflito
universidades no ano 2000 revelariam duas          étnico e racial como aberto e a situação é
universidades que mudaram muito pouco na           apresentada sempre como transitória, em
sua composição racial em 70 ou mesmo em            processo de resolução. Assim, o Estatuto
90 anos, apesar de terem mudado em tudo o          do Índio pode circular por 20 anos pelo
mais, em termos de crescimento do número           Congresso Nacional sem jamais ser votado;
de alunos, professores, cursos, laboratórios,      enquanto isso, o genocídio, a fome, a inva-
instalações.                                       são das terras indígenas continuam fazendo
    Essa repetição, sem alarde nem conflito         parte da nossa “normalidade” institucional.
aberto, da brancura extrema das nossas             Igualmente, o Estatuto da Igualdade Racial
universidades aponta para um fenômeno              pode também passar uma década pelos
que ouso chamar de impunidade de segre-            mesmos corredores do Congresso, ser
gação: não existe força estatal no Brasil          retalhado e domesticado de vários modos
que obrigue as instituições superiores de          para que não sirva de instrumento efetivo de
ensino e pesquisa a implementarem ações            reparação contra nossos séculos de racismo
de inclusão étnica e racial entre seus alunos,     e mesmo assim ainda não ser votado apesar
professores e pesquisadores; e também              das promessas.
não existe nenhuma lei estatal que permita             Dando o exemplo de uma situação con-
punir uma instituição pública por insistir         creta do nosso meio acadêmico, também a
na prática da segregação racial. É preciso         Reitoria da USP instituiu em 1996 um Grupo
ponderar sobre a conexão entre esse mundo          de Trabalho Institucional para fazer um es-
segregado e os modelos de interpretação das        tudo detalhado da situação étnico-racial da
relações raciais no Brasil produzidos por          universidade e, a partir daí, formular uma                6 Sobre o Grupo de Trabalho
nós, acadêmicos brancos que participamos           proposta de inclusão racial através de ações                Institucional e seus objetivos,
                                                                                                               ver a descrição minuciosa em:
desse mundo, até agora sem gerar nenhum            afirmativas6. Segundo me comentaram várias                   Munanga, 1996.




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vezes dois membros desse grupo, nenhuma                   de um clima geral racista que desautorizava
                              proposta foi encaminhada à Reitoria até                   a presença negra na educação.
                              agora, apesar de a Comissão continuar exis-                   Sintetizando, podemos afirmar com
                              tindo no papel. Não deixa de impressionar                 segurança que quando se constituíram as
                              inclusive que já foram realizados dois censos             primeiras turmas de universitários no Brasil,
                              étnico-raciais, coordenados por eminentes                 nos anos 30, a comunidade negra acabava
                              cientistas sociais da instituição, que confir-             de ser praticamente expulsa dos cargos de
                              mam a baixa presença de negros em todos                   docentes das escolas públicas. O pouco
                              os cursos (de fato, a USP consegue ser ainda              capital escolar que os negros haviam acu-
                              mais excludente que a UFPR, universidade                  mulado após a Abolição da escravidão foi
                              que tem a fama de “branca”). Enquanto                     então severamente desfeito, de modo que
                              isso, dez anos já se passaram e a principal               ficaram com chances mínimas de competir
                              universidade brasileira deixou crescer ainda              pelo seletíssimo número de vagas abertas nas
                              mais o seu passivo de exclusão racial, sem                universidades do Paraná, Rio Grande do Sul,
                              nenhuma conseqüência negativa para sua                    São Paulo e Rio de Janeiro. É um fato his-
                              imagem ou prestígio.                                      tórico, portanto, que a universidade pública
                                  Uma conexão histórica que gostaria de                 no Brasil foi instalada explicitamente sob o
                              ressaltar sobre esse passivo de inclusão                  signo da brancura. Enquanto esse pressuposto
                              racial refere-se ao projeto explicitamente                não for criticado e revisado, continuaremos
                              racista que ocorreu no Brasil nas primeiras               partícipes desse ato racista inicial.
                              décadas do século XX, quando houve uma                        Essa semicausalidade, ou afinidade
                              política estatal de destituir as professoras e            eletiva entre uma eugenia na escola básica
                              os professores negros dos cargos de diretores             e uma acomodação a um ambiente segre-
                              das escolas primárias e técnicas. Conforme                gado no ensino superior, coloca ainda uma
                              o estudo pioneiro de Maria Lúcia Müller, a                questão de sociologia do conhecimento
                              partir de 1903 começou a diminuir, paulatina              que não posso resolver com os dados de
                              e inexoravelmente, a presença de docentes                 que disponho atualmente, mas que gostaria
                              negros no ensino primário e fundamental7.                 de pelo menos indicar. Se bem é certo que
                              Sua conclusão é de que já no início da dé-                o processo de branqueamento consciente
                              cada de 30 as netas de ex-escravas haviam                 analisado por Müller e Dávila começou
                              sido expulsas da profissão de normalistas. A               já na primeira década do século (anterior,
                              escola pública projetada para formar o espí-              portanto, à implantação das universidades),
                              rito da nação se havia tornado praticamente               ele foi formulado por políticos que tiveram
                              branca através de políticas adotadas pelo                 acesso ao ensino superior brasileiro na
                              Instituto de Educação do Distrito Federal                 virada do século XIX para o século XX.
                              na era Vargas.                                            Em outros termos, a cultura geral racista
                                  O estudo de Müller foi complementa-                   que expulsou as normalistas e os professo-
                              do recentemente por Jerry Dávila. Duas                    res negros das escolas públicas do Brasil
                              fotos em seu livro mostram o estarrecedor                 perpassava também o imaginário daqueles
                              trabalho de “limpeza” racial ocorrido nas                 que trinta anos depois institucionalizaram
                              escolas públicas do Rio de Janeiro; na pri-               o nosso ensino superior.
                              meira delas, em 1911, pelo menos a metade                     O nosso racismo acadêmico específico,
                              das normalistas eram negras; na segunda,                  vivo até hoje, não foi apenas conseqüência,
                              de 1946, todas são brancas. Dávila analisa                então, de um racismo gerado na estabiliza-
                              minuciosamente a política de eugenia do                   ção da escola básica, mas uma produção
                              governo brasileiro nos anos 30, que inter-                combinada de um mecanismo geral de
                              veio no processo de integração dos negros                 exclusão racial planejado e executado com
                              no sistema escolar de modo a branqueá-lo                  eficácia e apenas declarado no tempo em
                              como um caminho à modernidade. Ou                         relação à eugenia explícita do Instituto de
                              seja, quando as universidades cresceram                   Educação do Rio de Janeiro na década de
7 Ver Müller, 2003, p. 100.   naquela mesma época, já o fizeram dentro                   20. Acredito que uma reflexão profunda




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sobre esse momento inicial é absolutamente
              necessária para entendermos por que somos
              nós os últimos acadêmicos – provavelmente
              do mundo inteiro – que ainda resistem a
              qualquer medida política que force uma
              integração racial de uma vez por todas
              nas nossas universidades e instituições de
              pesquisa. Não há dúvida de que somos um
              anacronismo no mundo e nem sequer somos
              capazes ainda de entender exatamente por
              que demoramos tanto a discutir abertamente
              esse tema.
                  Uma vez estabelecida essa conexão,
              fica ainda uma área nebulosa de semicau-
              salidade entre a exclusão racial via política
              estatal e uma indiferença, conivência ou
              mesmo anuência dos acadêmicos face a
              essa exclusão que continuou mesmo após
              a morte de Vargas. Tudo se passa como
              se o mundo acadêmico brasileiro tivesse
              sido consolidado em cima de uma prática
              escolar abertamente racista, instalada no
              Brasil nas primeiras décadas do século e se
              acomodado a esse racismo sem jamais ter
              levantado a voz contra ele. Nem sequer a
              intensidade e o escopo teórico e etnográfico
              dos inúmeros cientistas sociais de renome
              que desenvolveram suas pesquisas sobre
              relações raciais nas universidades de São
              Paulo, Bahia e Rio de Janeiro desde o início
              da década de 50 conseguiram produzir um
              mínimo de reflexividade ou auto-exame:
              nosso meio continuou imune à presença
              negra, cativo do confinamento inicial e
              aparentemente sem manifestar incômodo
              pela sua brancura quase absoluta.
                  Uma vez esboçada essa realidade de
              segregação racial fundante, crônica e pac-
              tuada do mundo acadêmico brasileiro, a
              questão central que me interessa explorar é
              o significado dos discursos sobre as relações
              raciais produzidos nesse universo confinado
              – nossos cientistas sociais certamente ex-
              pressaram sua rejeição em face do racismo
              que estudaram na nossa “sociedade”, mas
              não rejeitaram ou questionaram o ambien-
              te racista no qual viveram, pesquisaram e
              legitimaram como espaço de excelência e
              mérito. Ou seja, exatamente como suce-
              deu nos Estados Unidos, foi possível no
              Brasil desenvolver instituições acadêmicas




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capazes de atender aos altos padrões de
     excelência científica da modernidade sem
     perder seu viés de racismo e segregação. A
     diferença está em que as universidades nor-
     te-americanas foram forçadas a se integrar
     racialmente por decisão do Estado, a partir
     da década de 60; enquanto isso, as univer-
     sidades brasileiras continuam segregadas
     até hoje e a maioria delas ainda resiste à
     inclusão sustentando-se na ideologia do
     mérito, mesmo contando com pesquisado-
     res perfeitamente capazes de fazer a crítica
     das bases econômicas, sociais, políticas e
     raciais dessa ideologia.
         Atualizo aqui o argumento que de-
     senvolvi no meu ensaio “Mestiçagem e
     Segregação”, escrito no ano do centenário
     da Abolição, em que eu perguntava se o
     racismo da segregação explícita não seria
     derrotado mais rápido que o nosso, da se-
     gregação prática e não discursiva (Carvalho,
     1988). Com efeito, logo no início dos anos
     90 o mundialmente abominável regime do
     apartheid colapsou e um processo amplo de
     integração racial e reconciliação nacional foi
     posto em marcha. É impressionante que o
     processo da África do Sul não tenha provo-
     cado nenhum movimento de autocrítica nos
     nossos cientistas sociais brancos defensores
     da diferença racial brasileira. Afinal, o país
     da mestiçagem continua segregado até hoje
     enquanto o país do apartheid já avançou nas
     suas políticas de igualdade racial, inclusive
     no meio acadêmico.
         É claro que esse paradoxo entre moder-
     nidade e racismo não está resolvido também
     nos países ditos “centrais”, como o coloca
     muito bem, por exemplo, Zygmunt Bauman
     em sua obra sobre o Holocausto (Bauman,
     1998). Um exemplo impressionante dessa
     resistência do racismo acadêmico a não
     desaparecer é a história da corporação IBM,
     contada com dramatismo e minúcia por
     Edwin Black no livro IBM e o Holocausto
     (Black, 2001). Durante os anos cruciais
     do genocídio nazista contra os judeus e
     outros povos, os campos de concentração
     eram administrados pelos cartões IBM,
     precursores do moderno computador. Para
     tanto, era necessário que funcionários da
     IBM viajassem todos os meses dos Estados




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Unidos para Auschwitz e outros campos            foi desenvolvida na Austrália contra os
com a finalidade de instalar os cartões          aborígines e seus descendentes através dos
previamente adaptados às demandas de             planos oficiais de confinamento e segrega-
adaptação e extermínio. O mais estarrece-        ção racial magistralmente narrados no filme
dor, porém, dessa cultura acadêmica racista      Geração Roubada (Rabbit-Proof Fence), de
é que a IBM continuou operando após o            2002, dirigido por Phillip Noyce, o qual foi
fim do III Reich sem jamais ter recebido          baseado na vida real de três jovens mestiças
qualquer repúdio ou censura… até hoje,           aborígines que, nos anos 30, fugiram de um
na verdade. Ou seja, grandes pesquisadores       campo de concentração para não-brancos
das grandes universidades norte-america-         no deserto australiano.
nas desenvolveram e ainda desenvolvem                 Dois pontos me interessa ressaltar aqui:
conhecimentos “científicos” para a IBM            por um lado, lembrar aos nossos colegas,
inteiramente indiferentes ao massacre que        cientistas sociais brancos contrários às co-
a companhia ajudou a viabilizar e a acelerar     tas, que o Brasil também fez parte do grande
quando ensinou os nazistas a utilizarem os       processo de racialização inferiorizante dos
seus cartões. Esse caso norte-americano          negros ou não-brancos durante pelo menos
é evidentemente muito mais condenável            meio século. O resultado dessa política
que o nosso racismo acadêmico, mas a             arianizante iniciada na década seguinte
lógica de funcionamento, de uma ciência          após a Abolição da escravatura e que durou
confinada, monorracial ou monoétnica             até os anos 40 foi a expulsão, da escola e
que não se questiona sobre a sua partici-        da carreira de educador, de milhares de
pação ou conivência com a segregação ou          negros. Uma desvantagem escolar con-
o extermínio, é basicamente a mesma. As          creta, portanto, foi promovida pela nossa
tradições acadêmicas britânica e francesa        elite branca racista na primeira metade do
viveram (e ainda vivem) esse mesmo duplo         século XX. Em segundo lugar, a ideologia
vínculo entre uma visão liberal do saber e       da democracia racial, que celebrou a nossa
uma prática de colaboração ou permissivi-        mestiçagem, não teve como plataforma po-
dade com o racismo colonialista na África,       lítica restaurar ou promover uma igualdade
na Ásia, no Oriente Médio, no Caribe, na         racial no sistema escolar – nem sequer no
Oceania, etc.                                    primário, o que dirá então no superior. E
    Considero importantíssima a retomada         os ideólogos da democracia racial, em vez
de Maria Lúcia Müller e Jerry Dávila desse       de solidarizar-se com os negros que denun-
período de branqueamento sistemático e           ciavam o racismo da época, foram hostis à
consciente porque ela nos permite rever uma      Frente Negra Brasileira.
ideologia muito difundida por muitos de               Foi nesse clima que as universidades se
nossos intelectuais de que fomos diferentes      constituíram como espaços institucionais
dos países anglo-saxões. Na verdade, não         brancos. Elas expandiram seus contingen-
fomos tão diferentes na primeira metade do       tes de alunos e professores inúmeras vezes
século XX; e se somos diferentes e isolados      ao longo do século XX, mas não tomaram
agora é por uma razão nada recomendável:         nenhuma iniciativa para corrigir a exclusão
porque nos negamos a enfrentar a nossa           racial que as caracteriza desde sua fundação.
herança racista. A Sociedade Brasileira          Ou seja, havia uma política abertamente
de Eugenia operava, na mesma época, de           racista na hora de iniciar a distribuição
um modo muito similar a como se operou           dos benefícios do ensino superior; todavia,
nos Estados Unidos com as campanhas de           não houve nenhum protesto ou ação anti-
eugenia que conduziram à esterilização de        racista posterior por parte dos acadêmicos
quase um milhão de pessoas, tal como foi         brancos contra os privilégios que receberam
narrado recentemente, com farta documen-         em virtude desse racismo estrutural. Pelo
tação, pelo mesmo Edwin Black, no seu            contrário, houve grande hostilidade e re-
livro A Guerra contra os Fracos (Black,          jeição à presença de vários quadros negros
2003). Essa mesma patologia branqueadora         importantes nos postos docentes. Conforme




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expliquei em outro trabalho, nem Guerreiro                anti-racista e qualquer denúncia contra o
                                      Ramos nem Édison Carneiro conseguiram                     racismo era entendida como infiltração
                                      entrar na Universidade Federal do Rio de                  comunista. Em uma palestra proferida no
                                      Janeiro; Clóvis Moura também ficou fora                    segundo semestre de 1995 na Universida-
                                      das universidades públicas do estado de São               de Federal Fluminense em Niterói, Carlos
                                      Paulo; Pompílio da Hora, erudito professor                Hasenbalg ofereceu a seguinte resposta a
                                      do Colégio Pedro II, foi recusado duas vezes              uma pergunta sobre os estudos das relações
                                      de entrar na carreira diplomática descara-                raciais na nossa academia:
                                      damente por sua condição racial; e Abdias
                                      do Nascimento somente foi professor nos                   “Há vinte anos eram muito poucas as pes-
                                      Estados Unidos e na Nigéria como conse-                   soas trabalhando esse tema. Eu tive medo
                                      qüência do seu exílio durante os anos da                  de publicar o meu livro em 1979. Dez anos
                                      ditadura; ao regressar ao Brasil, nunca foi               antes, Florestan Fernandes tinha sido expul-
                                      acolhido por nenhuma universidade pública,                so da USP, aposentado compulsoriamente.
                                      enquanto a maioria dos acadêmicos brancos                 Durante todo esse período não se falou
                                      exilados conseguiu retomar seus postos                    nada no país sobre relações raciais. Depois
                                      anteriores ou foram relocados em outros8.                 que Florestan publicou A Integração do
                                      O resultado dessa segregação racial que já                Negro na Sociedade de Classes, em 1965,
                                      atravessou quatro gerações de universitá-                 e em 72 publicou O Negro no Mundo dos
                                      rios é uma prática, quase nunca submetida                 Brancos, a produção na ótica sociológica
                                      à crítica, dos acadêmicos brancos falarem                 era ínfima, as condições políticas não eram
                                      sempre entre brancos pretendendo falar por                propícias. A Antropologia, sim, continuou
                                      todos e para todos.                                       estudando o candomblé, a umbanda, que
                                          A falta de reação por parte dos acadêmi-              não eram coisas tão ‘perigosas’” (Hasen-
                                      cos brancos contra o clima segregado das                  balg, 1998, p. 36).
                                      nossas universidades deve ser entendida no
                                      contexto da internacionalização das nossas                    É verdade que foi intensa a perseguição
                                      carreiras. A partir dos anos 70, uma boa                  contra os líderes do Movimento Negro Uni-
                                      parte dos professores passou períodos nos                 ficado no final da década de 70. Contudo,
                                      Estados Unidos e na Europa e acompanhou                   muitos cientistas sociais brancos enfrenta-
                                      os grandes processos de dessegregação                     ram o regime autoritário nos anos 80 até a
                                      norte-americana, da luta contra o apartheid               anistia e o processo de redemocratização
                                      na África do Sul e da descolonização dos                  com a Nova República. Em suma, houve
                                      países africanos discutida na Europa. Con-                luta dos brancos contra o autoritarismo,
                                      tudo, nossa classe acadêmica regressava                   mas não contra o racismo: segregados do
                                      sempre ao mesmo mundo racialmente                         mundo acadêmico, os negros não parecem
                                      segregado que habitamos sem esboçar a                     ter contado com muitos aliados brancos
                                      menor reação. Antropólogos com quem                       no interior da academia. Penso que essas
                                      conversei contaram sobre seus interessantes               distâncias devem ser tomadas em conta para
                                      encontros, nos anos 70 e 80, com negros                   entender por que avançamos tão pouco na
                                      e índios em Harvard, Colúmbia, Chicago,                   inclusão racial nas últimas décadas em que
8 Guerreiro Ramos narrou suas         que ensinavam e estudavam nesses centros                  a segregação racial foi tão questionada nos
  amarguras com a academia
  no Brasil em uma entrevista         de saber através dos programas de ações                   países supostamente “piores” que o nosso
  concedida a Lucia Lippi Oliveira
  (1995); a expectativa e o fra-
                                      afirmativas. Interrogados sobre por que não                (Estados Unidos e África do Sul).
  casso de Edison Carneiro são        propuseram ações semelhantes no Brasil,                       Esse confinamento é especialmente
  contados em vários números do
  jornal Quilombo (2003); Pompí-      me disseram duas coisas: ou que era “muito                problemático para as ciências sociais, que
  lio da Hora contou os episódios     complicado”, ou que não era aconselhável                  pretendem explicar o país para todos. A situa-
  de discriminação racial aberta
  que sofreu na entrevista que con-   fazê-lo porque o Brasil “é diferente”.                    ção mais comum, até agora, nos cursos de
  cedeu a Haroldo Costa (1982);
  e Abdias do Nascimento narrou           Isso de que era “muito complicado”                    Sociologia, Antropologia, Ciência Política,
  as perseguições que sofreu do       queria na verdade dizer que a ditadura                    História é que professores e alunos brancos
  governo brasileiro em suas
  obras (Nascimento, 2002).           militar não suportava nenhum discurso                     discutam os modelos de relações raciais




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formulados por autores brancos, partindo
do princípio de que esses modelos e inter-
pretações falem da “sociedade brasileira”.
Que esses discursos representem apenas
a “visão branca” da sociedade brasileira
até agora não tem sido colocado por quase
nenhum de nós. Estamos no limiar de uma
crise de representação nas ciências sociais e
o esforço que temos feito na Universidade de
Brasília desde 1988, a partir da crise racial
acima mencionada e da luta pela imple-
mentação das cotas para negros e índios, é
justamente no sentido de discutir essa crise
como conseqüência do confinamento racial
em que vivemos.
    Posso ilustrar essa crise de representação
com o censo racial informal que realizamos
na Associação Brasileira de Antropologia           ção de sentido ao discurso do outro seja a
(ABA) de 2000 em Gramado. De 1.500                 posição racial. O contexto que analisamos
participantes, contamos a presença de              está racializado pela própria constituição
apenas 15 negros (o mesmo 1% do número             excludente da instituição acadêmica; e
de professores negros). Isso significa que          onde há exclusão, a extraposição assume
seja o que se tenha discutido sobre relações       um contorno crítico que extravasa a idéia
raciais naquela reunião (e foi muito pouco)        de uma dialogia academicamente neutra.
foi discutido entre brancos. Os antropólogos       Podemos quase ler a dimensão racial na
brancos, porém, ali presentes, não aceitam         frase de Bakhtin, que fala do sujeito cor-
que tenham feito uma discussão “branca”            porificado: “Nem sequer o seu aspecto
da sociedade brasileira, mas simplesmente          exterior o homem pode ver e compreender
uma discussão antropológica – os acadêmi-          autenticamente, na sua totalidade, e nenhum
cos negros evidentemente não acreditam             espelho nem as fotografias podem ajudá-lo.
na pretensa neutralidade axiológica dessa          Sua verdadeira aparência só a podem ver
discussão e interpretam a ausência de negros       e compreender as outras pessoas, graças
na ABA como um sintoma dessa ausência              à sua localização extraposta no espaço e
de neutralidade.                                   graças ao fato de serem outros” (Bakhtin,
    Parafraseando o conceito de exotopia,          1982, p. 352).
ou extraposição de Mikhail Bakhtin, sugiro             O ideário das cotas, que apenas começam
que o teste de verdade desse discurso branco       na graduação, aponta para questionamen-
somente possa surgir se introduzirmos uma          tos teóricos e metodológicos muito mais
exotopia racial: o grupo racial enfrentado         densos e amplos do que possam parecer à
deve necessariamente reagir às formula-            primeira vista. A ideologia da mestiçagem,
ções do grupo racial hegemônico. Bakhtin           por exemplo, tão difundida nas ciências
inventou o termo “exotopia” para enfatizar         sociais brasileiras, é uma teoria cara aos
a posição de vantagem do intérprete, dentro        acadêmicos brancos; já os acadêmicos ne-
de uma perspectiva dialógica; nos casos em         gros não se identificam com ela e a maioria
que aplicou o termo, defendeu a lucidez da         deles vê o discurso da mestiçagem como
extraposição na perspectiva do observador,         parte de uma ideologia racista que visa a
ou do outro frente ao que enuncia o discurso.      desautorizar e a desarmar a afirmação de
Podemos agora inspirar-nos na sua teoria           uma negritude. E sem negritude não há
e sugerir que, para casos como o nosso, de         demanda por reparação dos danos causados
discursos ineludivelmente racializados, um         aos atuais descendentes negros após séculos
dos topoi (lugares) ou posições de atribui-        de escravidão.




                                     REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006   101
O mesmo argumento vale para a idéia                   a marca racial branca, o que não é nada de
      de democracia racial. Vários acadêmicos                   novo para nossos colegas negros, que sem-
      brancos admitem que a democracia racial                   pre conviveram com sua marca racial negra.
      não existe, mas ainda assim defendem a                    Os cientistas sociais brasileiros brancos
      importância de salvar o mito. Até onde sei,               nunca se viram como parte de um campo
      não há um só acadêmico negro atualmente                   de confronto racial, embora muitos tenham
      que queira salvar o mito da democracia ra-                se visto, com orgulho inclusive, como parte
      cial. A conseqüência dessa situação é óbvia:              de um campo de confronto de classe. Até
      democracia racial passa a ser, atualmente,                recentemente, eles jamais se construíram
      um discurso racializado, criado e mantido                 como passíveis de serem confrontados por
      pela elite branca brasileira – não é um mito              um intelectual negro. O único campo em
      nacional, portanto, e sim um mito do grupo                que se admitia o confronto de posições era
      racial dominante, questionado profunda-                   justamente um campo que foi definido como
      mente pelo grupo racial subalterno.                       desracializado ou neutro do ponto de vista da
          Essa crise de representação indica que                identidade racial, que é o campo da teoria.
      enfrentaremos a partir de agora configura-                 A primeira crise epistemológica provocada
      ções que apontam para uma incomensura-                    pelas cotas é questionar a neutralidade racial
      bilidade discursiva. Por exemplo, os acadê-               do campo teórico. Esse questionamento é
      micos brancos não aceitam racializar o seu                obviamente conhecido da geração presen-
      campo discursivo, mesmo quando transitam                  te de cientistas sociais brasileiros através
      sozinhos por esse espaço segregado. Essa                  dos escritos de Stuart Hall, Homi Bhabha,
      negação da racialização é inaceitável para                Edward Said – e já havia sido colocado
      os negros que argumentam que a segrega-                   há meio século por Guerreiro Ramos, que
      ção vivida pelos brancos é o resultado mais               foi silenciado e esquecido no nosso meio
      visível de uma sociedade profundamente                    acadêmico, havendo exercido a exotopia
      racializada. Os negros se vêem como negros                racial no seu ensaio “Patologia Social do
      e vêem os brancos como brancos; os brancos                ‘Branco’ Brasileiro”, que ainda hoje deve
      não se dizem brancos (muito menos se vêem                 ser celebrado como um dos primeiros exer-
      falando como brancos) e evitam classificar                 cícios de ciência social conscientemente
      os não-brancos de negros – a não ser que                  racializada no Brasil (Ramos, 1995).
      os não-brancos sejam índios.                                  Finalmente, acredito que a crise de re-
          A partir de agora, ninguém poderá pre-                presentação que vivemos oferece também
      tender falar por “nós”, brasileiros, sobre a              uma oportunidade para renovação teórica e
      situação racial do país sem se colocar como               formulação de propostas de inclusão étnica
      parte de um campo marcado racialmente.                    e racial. Mas isso só será possível se admi-
      Antes de pensar, portanto, na polarização de              tirmos que a academia contribuiu, no Brasil,
      valores e de políticas frente à desigualdade              para a produção e a reprodução do nosso
      racial, quero enfatizar que o que caracteriza a           quadro de desigualdade étnica e racial, o
      crise de representação provocada pelas cotas              qual não melhorou apesar dos investimentos
      é a inevitabilidade dos posicionamentos. A                maciços do Estado no ensino superior ao
      primeira crise que estamos vivendo, então,                longo de toda a segunda metade do século
      como intérpretes das relações raciais no                  passado. Dito de outro modo, a nossa classe
      Brasil, é a crise da desneutralização racial              de cientistas sociais que discutimos relações
      do campo acadêmico. Esse campo, antes                     raciais está totalmente imersa no problema
      decretado como desracializado, deverá ser                 da desigualdade racial; na verdade, nossas
      visto como racializado por um bom tempo                   universidades e nossa classe docente têm
      – quem sabe, enquanto durar o processo                    sido parte do problema racial brasileiro. E
      de dessegregação das nossas universidades                 acredito sinceramente que somente a partir
      (processo que se inicia agora, por enquanto,              do momento em que nos enxergarmos como
      somente através da política de cotas).                    parte do problema poderemos passar a fazer
          Teremos que aprender a conviver com                   parte da sua solução.




102   REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006
BIBLIOGRAFIA

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                                                REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006       103

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Confinamento racial no mundo academico

  • 1. JOSÉ JORGE DE CARVALHO O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro JOSÉ JORGE DE CARVALHO é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. A implementação recente de um sistema de cotas para estudantes negros no ensino superior é um fenômeno que rompe radicalmente com a lógica de funciona- mento do mundo acadêmico brasileiro desde a sua origem no início do século passado. Por um lado, as cotas estão provocando um reposicio- namento concreto das relações raciais no nosso meio acadêmico, começando pelo universo dis- cente da graduação, porém com potencial para estender-se à pós-graduação, ao corpo docente e aos pesquisadores. Por outro lado, a polêmi- ca gerada em torno das cotas coloca questões teóricas e epistemológicas sobre a legitimidade e o estatuto de verdade das interpretações das
  • 2. relações raciais no Brasil formuladas no interior desse universo acadêmico profundamente desi- gual do ponto de vista racial. Proponho, então, esboçar uma reflexão sobre as relações raciais no Brasil pós-cotas que tome em consideração a condição racial dos teóricos e as experiências de interação racial que suscitaram (ou não) as teorias que produziram. Começo então por afirmar que as teorias e as interpretações das relações raciais no Brasil sempre foram elas mesmas racializadas, como conseqüência da distância e do isolamento mútuo que tem caracterizado as relações entre os inte- lectuais e acadêmicos brancos e os intelectuais e acadêmicos negros. Conforme mostrarei mais adiante, a pretensão de universalidade presente nas formulações dos cientistas sociais brancos é questionada quando tomamos em conta a si- tuação de segregação racial extrema do nosso meio acadêmico. Muitos discursos, antes lidos como inclusivos ao falar de todos os brasileiros na primeira pessoa do plural (uma frase típica de cientistas sociais brancos tem sido: “entre nós” as relações raciais são diferentes de como são nos Estados Unidos ou na África do Sul), não possuem mais o mesmo grau de legitimidade neste momento de revisão epistemológica radi- cal suscitado pelas propostas de cotas porque silenciaram essa mesma condição de exclusão e de segregação racial que marcou a nossa vida universitária até hoje. Na qualidade de membro dessa academia branca que nunca aceitou falar da sua brancura, também passei uma década inteira como docente falando do racismo brasileiro sem referir-me mais diretamente ao racismo acadêmico. Contudo, meu olhar sobre as relações raciais no Brasil mudou dramaticamente nos últimos sete anos
  • 3. USP/CCS/DVIDSON/ARGUS Documentação. Foto: Oswaldo José dos Santos Charge da exposição “Ser Negro Hoje”, Museu Paulista, out./88 90 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006
  • 4. como conseqüência de um incidente racial em um regime de completo apartheid. ocorrido justamente com um estudante de Após o censo racial docente na UnB, doutorado de Antropologia da UnB que passei então a solicitar a ajuda dos meus eu orientava. A crise (pessoal, política e colegas negros para conhecer a porcentagem intelectual) gerada por esse caso levou-me de docentes negros em outras universidades inclusive a formular uma proposta de cotas públicas. Mesmo admitindo uma margem para negros e índios para a UnB, em parceria de erro nas amostragens por eles reunidas com Rita Segato1. No momento em que o (e na verdade colocamos um percentual de estudante foi reprovado em circunstâncias 20% acima do número encontrado), depa- inaceitáveis, pude dar-me conta de que se ramo-nos com situações chocantes, como tratava do primeiro doutorando negro da as da USP, Unicamp, UFRJ e UFRGS, ins- história do nosso programa de pós-gradua- tituições em que a proporção de professores ção. Ao deparar-me com essa desconcer- negros não passa de 0,2%; a da UFSCAR, de tante singularidade, o passo seguinte foi 0,5% e a da UFMG, de 0,7%. Dito de outro averiguar e constatar que essa ausência de modo, em nenhuma universidade conside- estudantes negros é comum a todos os pro- rada como referência nacional na pesquisa gramas de pós-graduação de Antropologia esse número parece não passar de 1%2. Na do país e a todos os demais programas de verdade, a porcentagem da UnB pode ser pós-graduação da UnB. A grande revelação avaliada como “muito alta” comparada subseqüente, porém, surgiu quando fiz para com as outras universidades de ponta que mim mesmo a pergunta que me diz respeito mencionei. Infelizmente, não existe ainda mais diretamente: quantos colegas negros um censo racial nacional da docência nas tenho e quantos negros fazem parte do universidades públicas e a sua própria ine- quadro de docentes da UnB? xistência já é um forte indício da resistência Após constatar que convivia há mais da classe acadêmica de enfrentar-se com sua de uma década com 60 colegas brancos condição racial privilegiada. Contudo, não no Instituto de Ciências Sociais da UnB é difícil fazê-lo, por uma razão muito sim- decidi realizar, em 1999, um censo racial ples: os poucos docentes negros conhecem informal, com a ajuda de colegas e estu- muito bem quem são todos os seus (poucos) dantes negros. Chegamos a uma conclusão colegas negros; e justamente porque têm que ainda me estarrece: a UnB, que havia plena consciência de que fazem parte de uma sido inaugurada em 1961 com pouco mais minoria racial, vários deles já realizaram o de duzentos professores e que, ao longo censo racial informal da classe docente das de quatro décadas, havia ampliado esse instituições onde trabalham. número para 1.500, conta com apenas 15 Acredito que essa condição de exclusão professores negros. Ou seja, após 45 anos racial extrema na docência superior deve de expansão constante do seu quadro do- ser tomada em conta na hora de refletirmos cente, a universidade, que foi concebida sobre os modelos de interpretação das re- como modelo de inovação e de integração lações raciais no Brasil. Paradoxalmente, do país consigo mesmo e com o continente foi justamente desse ambiente segregado latino-americano, ainda não absorveu mais que saíram todas as teorias que negam a que 1% de acadêmicos negros. Esse número existência de segregação racial no Brasil. tão baixo nos permite deduzir que mais da E se estamos falando de relações raciais, é metade dos 50 colegiados departamentais perfeitamente aceitável que demandemos 1 Esse episódio já foi discutido da UnB é inteiramente branca, assim como dos intérpretes não apenas a sua leitura da por vários autores. Ver Alves (2001), Torres (2001), Santos inteiramente brancos são alguns institutos desigualdade racial existente na sociedade (2003), Pereira (2004), Carva- que contam cada um com mais de 100 pro- brasileira “lá fora”, mas também que se lho (2002 e 2005a) e Segato (2005). Sobre a proposta de fessores. Dito em termos mais dramáticos, posicionem acerca dessa realidade de se- cotas da UnB, ver: Carvalho existem áreas da instituição que funcionam gregação de que eles mesmos participam. & Segato (2002). na prática, sem que tenha havido até agora Está claro que não sairemos “naturalmente” 2 Trabalho aqui com a tabela que preparei no meu livro (Carvalho, nenhum questionamento político ou legal, desse escândalo de segregação racial. Já 2005b). REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006 91
  • 5. ampliamos os números de estudantes e um único docente negro; quando muito, de docentes dezenas de vezes nas últimas conviverá com alguns servidores negros, décadas, e os números relativos à presença com os quais estabelece relações de pouca negra em nada melhoraram. ou nenhuma identificação. Podemos falar aqui, para não esvaziar Um exemplo desse confinamento certa- a palavra “racismo”, de uma situação de mente ocorreu e ainda ocorre com profes- confinamento racial vivida por nós, docentes sores que trabalham em faculdades como das universidades públicas brasileiras. Se o Centro de Ciências da Saúde (CCS), da não somos diretamente responsáveis por UFRJ, que conta com cerca de 800 profes- essa exclusão, nem nos sentimos coniventes sores, dos quais apenas três são negros; e com a sua reprodução, então admitamos, a proporção de estudantes de Medicina do pelo menos, para iniciar uma reflexão crí- CCS não é muito diferente da dos docen- tica, que temos sido forçados a desenvolver tes. Isso significa que foi possível criar no nossas atividades dentro de um regime de Brasil, por mais de meio século, instituições confinamento racial que herdamos das ge- de ensino autocontidas e segregadas, e que rações passadas de acadêmicos. simultaneamente não estivessem desobede- Gostaria de ilustrar essa situação de cendo a nenhuma lei nacional que proibisse confinamento racial vivida por todos nós, a segregação racial. Ou seja, a segregação acadêmicos brasileiros. Se juntarmos todos racial no meio universitário jamais foi im- os professores de algumas das principais posta no Brasil legalmente, mas sua prática universidades de pesquisa do país (por concreta tem sido a realidade do nosso exemplo, USP, UFRJ, Unicamp, UnB, mundo acadêmico, através de mecanismos UFRGS, UFSCAR e UFMG), teremos um que esse próprio mundo acadêmico tem feito contingente de aproximadamente 18.400 muito pouco por analisar e nem tem mostra- acadêmicos, a maioria dos quais com dou- do interesse, até recentemente, em desativá- torado3. Esse universo está racialmente los. Fica ainda por compreender qual tem dividido entre 18.330 brancos e 70 negros; sido a participação do mundo acadêmico ou seja, entre 99,6% de docentes brancos e na formulação e na implementação prática 0,4% de docentes negros (não temos ainda desses mecanismos institucionalizados de um único docente indígena). Se escolhermos segregação. Dito em outros termos, esse tipo aleatoriamente um professor desse grupo, de segregação é apenas reproduzido ou é o perfil básico que encontraremos será o também produzido no nosso meio acadêmi- seguinte: esse professor (ou professora) foi co? A julgar pelo seu caráter generalizado um(a) estudante branco(a) que teve poucos e crônico, provavelmente seja uma soma colegas negros no secundário, pouquíssimos das duas coisas. na graduação e praticamente nenhum no A experiência inversa de confinamento mestrado e no doutorado; como aluno(a), dos poucos professores negros deve ser sempre estudou com professores brancos. igualmente ressaltada, pois ela os afeta de Desde que ingressou na carreira docente faz um modo muito mais grave que aos docentes parte de um colegiado inteiramente branco, brancos. Por exemplo, uma colega negra da dá aulas para uma maioria esmagadora de UnB trabalha há décadas em um instituto estudantes brancos na graduação e de 100% com mais de 100 professores no qual ela é a de pós-graduandos brancos. Além disso, única negra. A questão racial deveria entrar os assistentes e colegas do seu grupo de nos seus temas de trabalho, porém sofre 3 Esse número representa a pesquisa são todos brancos. Como conse- a inibição constante da convivência com soma de todos os docentes dessas universidades, segundo qüência desse confinamento, em algumas os colegas, que se mostram incomodados o levantamento que fiz entre 1999 e 2003, a partir dos faculdades mais fechadas e elitizadas, é quando a questão racial aparece explicita- dados oficiais fornecidos pelas perfeitamente possível que um docente e mente em alguma discussão sobre os temas reitorias e dos dados encontra- dos nos sites dessas instituições. pesquisador desenvolva por décadas o seu de pesquisa de interesse do instituto. O que Obviamente, deve ser tomado trabalho acadêmico sem conviver jamais nunca discutimos em nossos trabalhos é até como um valor aproximado (ver Carvalho, 2005b). com um único estudante negro ou com que ponto estamos dispostos a interpretar 92 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006
  • 6. esses “incômodos” dos acadêmicos brancos como mais “amplas” e menos “radicais”. frente às necessidades de afirmação racial Esse ambiente confinado apresenta sin- dos seus colegas negros como manifestações tomas que vão desses mecanismos altamente específicas de violência racial. E também sofisticados de inibição do discurso sobre o nunca questionamos por que essas manifes- conflito racial até manifestações mais de- tações de incômodo gozam de impunidade sinibidas dos estereótipos sobre a exclusão no nosso meio. negra do espaço acadêmico. Um professor Um doutorando da Sociologia contou- negro contou-me recentemente um episó- me o difícil dilema por ele vivido durante a dio constrangedor: deu a primeira aula do sua entrevista para ingresso no doutorado. semestre de uma disciplina da carreira de No fim da entrevista um dos examina- Medicina de uma universidade particular dores, ciente de que o candidato queria carioca para uma turma de 68 alunos com estudar relações raciais, perguntou-lhe se apenas dois negros. Quando entrou na sala ele era militante do Movimento Negro. dois dias depois, ao começar a segunda aula, Ele percebeu claramente que se desse uma alguns dos alunos brancos se surpreenderam resposta afirmativa seria inevitavelmente e lhe disseram abertamente: “O que você reprovado. Mentiu, então, afirmando que faz aqui?”. “Vim dar aula, obviamente”, havia sido militante no passado, mas que respondeu. “Ah, mas nós pensamos que agora havia decidido dedicar-se “de fato” à aquela aula era um trote!” carreira acadêmica. A resposta agradou ao Um professor negro em um curso de examinador, que finalmente concordou em Medicina só pode ser um trote? Como aprová-lo. Termina agora seu doutorado e conseguimos construir no Brasil um espaço obviamente evitará ser examinado por esse acadêmico tão poderoso, numeroso e tão professor, conhecido em seu departamento excludente? E quais são os mecanismos que por pregar agressivamente contra as cotas acionamos para mantê-lo tão segregado ao para negros em sala de aula. A lição que longo de quase um século, apesar de tê-lo aprendeu (e que agora pratica) é que o ampliado constantemente década após déca- mundo acadêmico brasileiro é um campo da? Em suma, por que os negros não foram minado para pesquisadores negros e não se incluídos apesar da expansão vertiginosa pode ser ingênuo, franco ou aberto acerca experimentada pelas instituições superio- da questão racial nesse nosso meio. res de ensino e pesquisa nas últimas cinco Casos desse tipo se multiplicam nos décadas? E mais grave ainda, por que nós, depoimentos dos pós-graduandos de Hu- cientistas sociais brancos, nunca falamos manidades e Ciências Sociais, com quem desse ambiente de confinamento racial em converso constantemente: sentimento que vivemos? crônico de inadequação, tendência ao dis- Há poucos meses um diretor do CNPq farce para proteger suas convicções mais me contava de sua recente viagem a Mo- profundas, asfixia diante do ambiente in- çambique, realizada com a finalidade de teiramente branco, dificuldade em colocar ajudar o governo moçambicano a montar com franqueza suas posições teóricas sobre um Ministério de Ciência e Tecnologia nos as relações raciais no Brasil. E muitas vezes moldes do nosso ministério e do CNPq. Di- se vêem forçados a ajustar seus temas de zia ter ficado estarrecido quando descobriu pesquisa para não contrariar as posições que havia apenas quatro doutores negros ideológicas dos seus orientadores sobre esse em todo o país. Indaguei-lhe por que esse tema. O que me comentam, de 9 entre 10 número era tão baixo e me respondeu que os pós-graduandos das áreas próximas, é que portugueses não permitiam que os africanos os professores tendem a censurar os estu- cursassem as universidades. Esse diretor dos sobre racismo e discriminação racial, tocou aqui, ainda que inadvertidamente, influenciando os seus orientandos para que um tema caríssimo a muitos dos nossos “abrandem” a discussão ou mesmo que a teóricos da diferença racial brasileira frente desloquem para outras correlações definidas a países como Estados Unidos e África do REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006 93
  • 7. Sul: supostamente, o colonialismo por- academia de representantes de um contin- tuguês havia sido mais assimilacionista gente de 45% da população nacional coloca que o britânico, o belga ou o francês. Per- questionamentos graves para o Brasil, país guntei-lhe então se ele tinha uma idéia de que abriga a segunda população negra mais quantos pesquisadores negros existem na numerosa do mundo. Em termos de recusa carreira de produtividade em pesquisa do à assimilação, de confinamento e de segre- CNPq. Admitiu que nunca havia pensado gação racial, nosso mundo acadêmico mais no assunto, mas que o número deve ser se aproxima à antiga Rodésia e à África do baixíssimo também – não mais que quatro, Sul dos anos 50. Afinal, como já o disseram possivelmente, por cada uma das grandes analistas notáveis como Max Gluckman, o áreas do CNPq. E acabava de fazer uma mundo acadêmico tende a ser autocontido viagem de apoio à assimilação de negros no também em termos de relações sociais, de mundo acadêmico moçambicano, enquanto modo que o confinamento racial que vivemos “entre nós” ainda não conseguimos sequer extravasa o horário de trabalho na universi- iniciar uma discussão sobre a necessidade dade e se estende às demais esferas da vida4. imperiosa de abrir a carreira de docência e Quantos dos 18.400 docentes e pesquisado- pesquisa para negros e índios! res brancos das universidades mencionadas O primeiro passo para qualificar essa interagem com alguma intensidade com discussão é produzir um censo étnico-racial negros e negras, em relações minimamente geral de todas as nossas instituições supe- igualitárias, fora da academia, já que convi- riores de ensino e pesquisa para produzir vem apenas com brancos em seus locais de em seguida um diagnóstico e uma análise trabalho? Praticamente nenhum deles, pois minuciosa da história de cada instituição em a classe social a que pertencem os acadêmi- busca de indícios da existência de mecanis- cos já vive também segregada racialmente mos que podem ter sido (e provavelmente em suas residências e em seus locais de foram) acionados até hoje para barrar os sociabilidade básica, tais como comércio, negros na entrada da docência e da pes- shoppings, restaurantes, livrarias, cinemas, quisa. Enquanto não enfrentarmos nossa clubes, todos eles ambientes segregados. A ignorância não poderemos ir além da mera rede de sociabilidade geral que nos envolve identificação dos sintomas do confinamento distancia-nos radicalmente da comunidade racial acadêmico brasileiro. Atualmente negra. Não funciona no nosso meio sequer o contamos com uma única reitora negra modelo freyriano de uma suposta facilidade entre os mais de 1.000 reitores do conjun- de entrosamento entre brancos e negros na to de universidades públicas e privadas: a África portuguesa (e que estaria presente reitora da Universidade Estadual da Bahia, também no Brasil, segundo ele) em contraste que é também a primeira reitora negra da com o modelo de segregação zimbabuano história do estado. Ou seja, em que pese a e sul-africano. população de 80% de negros em Salvador, Meditemos na famosa passagem de Ro- a UFBA nunca teve um reitor negro. Na ger Bastide em que fala da experiência de verdade, não sabemos sequer muito bem o democracia racial em um bonde noturno do número de professores negros da UFBA. subúrbio do Recife cheio de trabalhadores 4 Referimo-nos aqui ao que Será muito mais que o 1% que constatamos cansados, onde um negro dormia apoiando Max Gluckman chamava de relações multiplex, típicas de nas outras universidades acima menciona- sua cabeça no ombro de um empregado de organizações sociais tribais, das? É fato sabido que a UFMG já teve um escritório5. O curioso aqui é que Bastide mas que sobrevivem em am- bientes altamente confinados reitor negro. Quanto às outras universidades não conseguiu estabelecer uma conexão no interior das sociedades modernas, como o ambiente mencionadas, mais de 70 anos de UFRGS, entre o que viu naquele bonde carregando acadêmico, por exemplo, em UFPR, USP, UFRJ e de 45 anos de UnB gente humilde e o seu mundo cotidiano na que “suas relações em um con- junto de papéis influenciam seu não foram ainda suficientes para que um USP, inteiramente segregado e excludente desempenho de outros papéis” docente negro chegasse ao posto máximo racialmente. Se ainda é segregado hoje, (Gluckman, 1962, p. 43). dessas instituições de ensino superior. como não seria há 50 anos, quando Bastide 5 Citado em Guimarães (2002). Uma assimilação tão baixa por parte da decidiu empregar a expressão “democra- 94 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006
  • 8. cia racial” para falar do que vira entre as conflito nem com as autoridades estatais classes populares do Recife quando visitou permissivas da continuidade da segregação Gilberto Freyre. Um relance do que era a nem com as comunidades negras e indígenas realidade racial da USP na época desse tex- excluídas do nosso meio. to de Bastide pode ser capturado por uma Apesar das especificidades do modo olhada atenta às fotos do livro História da como é representada, a realidade racial da Universidade de São Paulo, de Ernesto de academia não difere muito da realidade Souza Campos, publicado em 1954. racial vigente em outras áreas da sociedade, Em uma centena de pessoas registradas mormente no que tange às estratégias uti- em mais de 30 fotografias sobre as mais di- lizadas para a sua reprodução “informal”, versas áreas de ensino e pesquisa conduzidas que seria uma das características principais na universidade, não encontramos nem um do estilo de racismo brasileiro. No caso da único rosto que pudéssemos identificar como academia, os mecanismos mais comumente de uma pessoa negra, ou mesmo mulata, nem ativados que acabam por dar continuidade sequer entre os funcionários. Bastide celebra- à prática da segregação racial são: a pos- va a “democracia racial” que encontrara nos tergação da discussão, o silêncio sobre bondes de subúrbio do Recife sem conectá-la os conflitos raciais, a censura discursiva com o apartheid acadêmico em que vivia quando o tema irrompe e o disfarce para no interior da Universidade de São Paulo. evitar posicionamentos claros. Procura-se, Também os textos e as imagens do livro de assim, esvaziar ou desarmar os mecanismos história da Universidade Federal do Paraná, a de tensão racial do sistema. Para que isso mais antiga de todas as nossas universidades seja possível, é necessário construir uma públicas, descrevem um mundo inteiramente alta coesão entre os poderosos e lançar mão branco. Mais do que um comentário ao que constantemente de mecanismos repressivos era o nosso mundo acadêmico antes, cha- de baixa intensidade e facilmente dispo- mo a atenção, através desses livros, sobre níveis para uma ação intermitente. Desse como ele se encontra hoje: fotos dessas duas modo, evita-se definir o estado de conflito universidades no ano 2000 revelariam duas étnico e racial como aberto e a situação é universidades que mudaram muito pouco na apresentada sempre como transitória, em sua composição racial em 70 ou mesmo em processo de resolução. Assim, o Estatuto 90 anos, apesar de terem mudado em tudo o do Índio pode circular por 20 anos pelo mais, em termos de crescimento do número Congresso Nacional sem jamais ser votado; de alunos, professores, cursos, laboratórios, enquanto isso, o genocídio, a fome, a inva- instalações. são das terras indígenas continuam fazendo Essa repetição, sem alarde nem conflito parte da nossa “normalidade” institucional. aberto, da brancura extrema das nossas Igualmente, o Estatuto da Igualdade Racial universidades aponta para um fenômeno pode também passar uma década pelos que ouso chamar de impunidade de segre- mesmos corredores do Congresso, ser gação: não existe força estatal no Brasil retalhado e domesticado de vários modos que obrigue as instituições superiores de para que não sirva de instrumento efetivo de ensino e pesquisa a implementarem ações reparação contra nossos séculos de racismo de inclusão étnica e racial entre seus alunos, e mesmo assim ainda não ser votado apesar professores e pesquisadores; e também das promessas. não existe nenhuma lei estatal que permita Dando o exemplo de uma situação con- punir uma instituição pública por insistir creta do nosso meio acadêmico, também a na prática da segregação racial. É preciso Reitoria da USP instituiu em 1996 um Grupo ponderar sobre a conexão entre esse mundo de Trabalho Institucional para fazer um es- segregado e os modelos de interpretação das tudo detalhado da situação étnico-racial da relações raciais no Brasil produzidos por universidade e, a partir daí, formular uma 6 Sobre o Grupo de Trabalho nós, acadêmicos brancos que participamos proposta de inclusão racial através de ações Institucional e seus objetivos, ver a descrição minuciosa em: desse mundo, até agora sem gerar nenhum afirmativas6. Segundo me comentaram várias Munanga, 1996. REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006 95
  • 9. vezes dois membros desse grupo, nenhuma de um clima geral racista que desautorizava proposta foi encaminhada à Reitoria até a presença negra na educação. agora, apesar de a Comissão continuar exis- Sintetizando, podemos afirmar com tindo no papel. Não deixa de impressionar segurança que quando se constituíram as inclusive que já foram realizados dois censos primeiras turmas de universitários no Brasil, étnico-raciais, coordenados por eminentes nos anos 30, a comunidade negra acabava cientistas sociais da instituição, que confir- de ser praticamente expulsa dos cargos de mam a baixa presença de negros em todos docentes das escolas públicas. O pouco os cursos (de fato, a USP consegue ser ainda capital escolar que os negros haviam acu- mais excludente que a UFPR, universidade mulado após a Abolição da escravidão foi que tem a fama de “branca”). Enquanto então severamente desfeito, de modo que isso, dez anos já se passaram e a principal ficaram com chances mínimas de competir universidade brasileira deixou crescer ainda pelo seletíssimo número de vagas abertas nas mais o seu passivo de exclusão racial, sem universidades do Paraná, Rio Grande do Sul, nenhuma conseqüência negativa para sua São Paulo e Rio de Janeiro. É um fato his- imagem ou prestígio. tórico, portanto, que a universidade pública Uma conexão histórica que gostaria de no Brasil foi instalada explicitamente sob o ressaltar sobre esse passivo de inclusão signo da brancura. Enquanto esse pressuposto racial refere-se ao projeto explicitamente não for criticado e revisado, continuaremos racista que ocorreu no Brasil nas primeiras partícipes desse ato racista inicial. décadas do século XX, quando houve uma Essa semicausalidade, ou afinidade política estatal de destituir as professoras e eletiva entre uma eugenia na escola básica os professores negros dos cargos de diretores e uma acomodação a um ambiente segre- das escolas primárias e técnicas. Conforme gado no ensino superior, coloca ainda uma o estudo pioneiro de Maria Lúcia Müller, a questão de sociologia do conhecimento partir de 1903 começou a diminuir, paulatina que não posso resolver com os dados de e inexoravelmente, a presença de docentes que disponho atualmente, mas que gostaria negros no ensino primário e fundamental7. de pelo menos indicar. Se bem é certo que Sua conclusão é de que já no início da dé- o processo de branqueamento consciente cada de 30 as netas de ex-escravas haviam analisado por Müller e Dávila começou sido expulsas da profissão de normalistas. A já na primeira década do século (anterior, escola pública projetada para formar o espí- portanto, à implantação das universidades), rito da nação se havia tornado praticamente ele foi formulado por políticos que tiveram branca através de políticas adotadas pelo acesso ao ensino superior brasileiro na Instituto de Educação do Distrito Federal virada do século XIX para o século XX. na era Vargas. Em outros termos, a cultura geral racista O estudo de Müller foi complementa- que expulsou as normalistas e os professo- do recentemente por Jerry Dávila. Duas res negros das escolas públicas do Brasil fotos em seu livro mostram o estarrecedor perpassava também o imaginário daqueles trabalho de “limpeza” racial ocorrido nas que trinta anos depois institucionalizaram escolas públicas do Rio de Janeiro; na pri- o nosso ensino superior. meira delas, em 1911, pelo menos a metade O nosso racismo acadêmico específico, das normalistas eram negras; na segunda, vivo até hoje, não foi apenas conseqüência, de 1946, todas são brancas. Dávila analisa então, de um racismo gerado na estabiliza- minuciosamente a política de eugenia do ção da escola básica, mas uma produção governo brasileiro nos anos 30, que inter- combinada de um mecanismo geral de veio no processo de integração dos negros exclusão racial planejado e executado com no sistema escolar de modo a branqueá-lo eficácia e apenas declarado no tempo em como um caminho à modernidade. Ou relação à eugenia explícita do Instituto de seja, quando as universidades cresceram Educação do Rio de Janeiro na década de 7 Ver Müller, 2003, p. 100. naquela mesma época, já o fizeram dentro 20. Acredito que uma reflexão profunda 96 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006
  • 10. sobre esse momento inicial é absolutamente necessária para entendermos por que somos nós os últimos acadêmicos – provavelmente do mundo inteiro – que ainda resistem a qualquer medida política que force uma integração racial de uma vez por todas nas nossas universidades e instituições de pesquisa. Não há dúvida de que somos um anacronismo no mundo e nem sequer somos capazes ainda de entender exatamente por que demoramos tanto a discutir abertamente esse tema. Uma vez estabelecida essa conexão, fica ainda uma área nebulosa de semicau- salidade entre a exclusão racial via política estatal e uma indiferença, conivência ou mesmo anuência dos acadêmicos face a essa exclusão que continuou mesmo após a morte de Vargas. Tudo se passa como se o mundo acadêmico brasileiro tivesse sido consolidado em cima de uma prática escolar abertamente racista, instalada no Brasil nas primeiras décadas do século e se acomodado a esse racismo sem jamais ter levantado a voz contra ele. Nem sequer a intensidade e o escopo teórico e etnográfico dos inúmeros cientistas sociais de renome que desenvolveram suas pesquisas sobre relações raciais nas universidades de São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro desde o início da década de 50 conseguiram produzir um mínimo de reflexividade ou auto-exame: nosso meio continuou imune à presença negra, cativo do confinamento inicial e aparentemente sem manifestar incômodo pela sua brancura quase absoluta. Uma vez esboçada essa realidade de segregação racial fundante, crônica e pac- tuada do mundo acadêmico brasileiro, a questão central que me interessa explorar é o significado dos discursos sobre as relações raciais produzidos nesse universo confinado – nossos cientistas sociais certamente ex- pressaram sua rejeição em face do racismo que estudaram na nossa “sociedade”, mas não rejeitaram ou questionaram o ambien- te racista no qual viveram, pesquisaram e legitimaram como espaço de excelência e mérito. Ou seja, exatamente como suce- deu nos Estados Unidos, foi possível no Brasil desenvolver instituições acadêmicas REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006 97
  • 11. capazes de atender aos altos padrões de excelência científica da modernidade sem perder seu viés de racismo e segregação. A diferença está em que as universidades nor- te-americanas foram forçadas a se integrar racialmente por decisão do Estado, a partir da década de 60; enquanto isso, as univer- sidades brasileiras continuam segregadas até hoje e a maioria delas ainda resiste à inclusão sustentando-se na ideologia do mérito, mesmo contando com pesquisado- res perfeitamente capazes de fazer a crítica das bases econômicas, sociais, políticas e raciais dessa ideologia. Atualizo aqui o argumento que de- senvolvi no meu ensaio “Mestiçagem e Segregação”, escrito no ano do centenário da Abolição, em que eu perguntava se o racismo da segregação explícita não seria derrotado mais rápido que o nosso, da se- gregação prática e não discursiva (Carvalho, 1988). Com efeito, logo no início dos anos 90 o mundialmente abominável regime do apartheid colapsou e um processo amplo de integração racial e reconciliação nacional foi posto em marcha. É impressionante que o processo da África do Sul não tenha provo- cado nenhum movimento de autocrítica nos nossos cientistas sociais brancos defensores da diferença racial brasileira. Afinal, o país da mestiçagem continua segregado até hoje enquanto o país do apartheid já avançou nas suas políticas de igualdade racial, inclusive no meio acadêmico. É claro que esse paradoxo entre moder- nidade e racismo não está resolvido também nos países ditos “centrais”, como o coloca muito bem, por exemplo, Zygmunt Bauman em sua obra sobre o Holocausto (Bauman, 1998). Um exemplo impressionante dessa resistência do racismo acadêmico a não desaparecer é a história da corporação IBM, contada com dramatismo e minúcia por Edwin Black no livro IBM e o Holocausto (Black, 2001). Durante os anos cruciais do genocídio nazista contra os judeus e outros povos, os campos de concentração eram administrados pelos cartões IBM, precursores do moderno computador. Para tanto, era necessário que funcionários da IBM viajassem todos os meses dos Estados 98 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006
  • 12. Unidos para Auschwitz e outros campos foi desenvolvida na Austrália contra os com a finalidade de instalar os cartões aborígines e seus descendentes através dos previamente adaptados às demandas de planos oficiais de confinamento e segrega- adaptação e extermínio. O mais estarrece- ção racial magistralmente narrados no filme dor, porém, dessa cultura acadêmica racista Geração Roubada (Rabbit-Proof Fence), de é que a IBM continuou operando após o 2002, dirigido por Phillip Noyce, o qual foi fim do III Reich sem jamais ter recebido baseado na vida real de três jovens mestiças qualquer repúdio ou censura… até hoje, aborígines que, nos anos 30, fugiram de um na verdade. Ou seja, grandes pesquisadores campo de concentração para não-brancos das grandes universidades norte-america- no deserto australiano. nas desenvolveram e ainda desenvolvem Dois pontos me interessa ressaltar aqui: conhecimentos “científicos” para a IBM por um lado, lembrar aos nossos colegas, inteiramente indiferentes ao massacre que cientistas sociais brancos contrários às co- a companhia ajudou a viabilizar e a acelerar tas, que o Brasil também fez parte do grande quando ensinou os nazistas a utilizarem os processo de racialização inferiorizante dos seus cartões. Esse caso norte-americano negros ou não-brancos durante pelo menos é evidentemente muito mais condenável meio século. O resultado dessa política que o nosso racismo acadêmico, mas a arianizante iniciada na década seguinte lógica de funcionamento, de uma ciência após a Abolição da escravatura e que durou confinada, monorracial ou monoétnica até os anos 40 foi a expulsão, da escola e que não se questiona sobre a sua partici- da carreira de educador, de milhares de pação ou conivência com a segregação ou negros. Uma desvantagem escolar con- o extermínio, é basicamente a mesma. As creta, portanto, foi promovida pela nossa tradições acadêmicas britânica e francesa elite branca racista na primeira metade do viveram (e ainda vivem) esse mesmo duplo século XX. Em segundo lugar, a ideologia vínculo entre uma visão liberal do saber e da democracia racial, que celebrou a nossa uma prática de colaboração ou permissivi- mestiçagem, não teve como plataforma po- dade com o racismo colonialista na África, lítica restaurar ou promover uma igualdade na Ásia, no Oriente Médio, no Caribe, na racial no sistema escolar – nem sequer no Oceania, etc. primário, o que dirá então no superior. E Considero importantíssima a retomada os ideólogos da democracia racial, em vez de Maria Lúcia Müller e Jerry Dávila desse de solidarizar-se com os negros que denun- período de branqueamento sistemático e ciavam o racismo da época, foram hostis à consciente porque ela nos permite rever uma Frente Negra Brasileira. ideologia muito difundida por muitos de Foi nesse clima que as universidades se nossos intelectuais de que fomos diferentes constituíram como espaços institucionais dos países anglo-saxões. Na verdade, não brancos. Elas expandiram seus contingen- fomos tão diferentes na primeira metade do tes de alunos e professores inúmeras vezes século XX; e se somos diferentes e isolados ao longo do século XX, mas não tomaram agora é por uma razão nada recomendável: nenhuma iniciativa para corrigir a exclusão porque nos negamos a enfrentar a nossa racial que as caracteriza desde sua fundação. herança racista. A Sociedade Brasileira Ou seja, havia uma política abertamente de Eugenia operava, na mesma época, de racista na hora de iniciar a distribuição um modo muito similar a como se operou dos benefícios do ensino superior; todavia, nos Estados Unidos com as campanhas de não houve nenhum protesto ou ação anti- eugenia que conduziram à esterilização de racista posterior por parte dos acadêmicos quase um milhão de pessoas, tal como foi brancos contra os privilégios que receberam narrado recentemente, com farta documen- em virtude desse racismo estrutural. Pelo tação, pelo mesmo Edwin Black, no seu contrário, houve grande hostilidade e re- livro A Guerra contra os Fracos (Black, jeição à presença de vários quadros negros 2003). Essa mesma patologia branqueadora importantes nos postos docentes. Conforme REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006 99
  • 13. expliquei em outro trabalho, nem Guerreiro anti-racista e qualquer denúncia contra o Ramos nem Édison Carneiro conseguiram racismo era entendida como infiltração entrar na Universidade Federal do Rio de comunista. Em uma palestra proferida no Janeiro; Clóvis Moura também ficou fora segundo semestre de 1995 na Universida- das universidades públicas do estado de São de Federal Fluminense em Niterói, Carlos Paulo; Pompílio da Hora, erudito professor Hasenbalg ofereceu a seguinte resposta a do Colégio Pedro II, foi recusado duas vezes uma pergunta sobre os estudos das relações de entrar na carreira diplomática descara- raciais na nossa academia: damente por sua condição racial; e Abdias do Nascimento somente foi professor nos “Há vinte anos eram muito poucas as pes- Estados Unidos e na Nigéria como conse- soas trabalhando esse tema. Eu tive medo qüência do seu exílio durante os anos da de publicar o meu livro em 1979. Dez anos ditadura; ao regressar ao Brasil, nunca foi antes, Florestan Fernandes tinha sido expul- acolhido por nenhuma universidade pública, so da USP, aposentado compulsoriamente. enquanto a maioria dos acadêmicos brancos Durante todo esse período não se falou exilados conseguiu retomar seus postos nada no país sobre relações raciais. Depois anteriores ou foram relocados em outros8. que Florestan publicou A Integração do O resultado dessa segregação racial que já Negro na Sociedade de Classes, em 1965, atravessou quatro gerações de universitá- e em 72 publicou O Negro no Mundo dos rios é uma prática, quase nunca submetida Brancos, a produção na ótica sociológica à crítica, dos acadêmicos brancos falarem era ínfima, as condições políticas não eram sempre entre brancos pretendendo falar por propícias. A Antropologia, sim, continuou todos e para todos. estudando o candomblé, a umbanda, que A falta de reação por parte dos acadêmi- não eram coisas tão ‘perigosas’” (Hasen- cos brancos contra o clima segregado das balg, 1998, p. 36). nossas universidades deve ser entendida no contexto da internacionalização das nossas É verdade que foi intensa a perseguição carreiras. A partir dos anos 70, uma boa contra os líderes do Movimento Negro Uni- parte dos professores passou períodos nos ficado no final da década de 70. Contudo, Estados Unidos e na Europa e acompanhou muitos cientistas sociais brancos enfrenta- os grandes processos de dessegregação ram o regime autoritário nos anos 80 até a norte-americana, da luta contra o apartheid anistia e o processo de redemocratização na África do Sul e da descolonização dos com a Nova República. Em suma, houve países africanos discutida na Europa. Con- luta dos brancos contra o autoritarismo, tudo, nossa classe acadêmica regressava mas não contra o racismo: segregados do sempre ao mesmo mundo racialmente mundo acadêmico, os negros não parecem segregado que habitamos sem esboçar a ter contado com muitos aliados brancos menor reação. Antropólogos com quem no interior da academia. Penso que essas conversei contaram sobre seus interessantes distâncias devem ser tomadas em conta para encontros, nos anos 70 e 80, com negros entender por que avançamos tão pouco na e índios em Harvard, Colúmbia, Chicago, inclusão racial nas últimas décadas em que 8 Guerreiro Ramos narrou suas que ensinavam e estudavam nesses centros a segregação racial foi tão questionada nos amarguras com a academia no Brasil em uma entrevista de saber através dos programas de ações países supostamente “piores” que o nosso concedida a Lucia Lippi Oliveira (1995); a expectativa e o fra- afirmativas. Interrogados sobre por que não (Estados Unidos e África do Sul). casso de Edison Carneiro são propuseram ações semelhantes no Brasil, Esse confinamento é especialmente contados em vários números do jornal Quilombo (2003); Pompí- me disseram duas coisas: ou que era “muito problemático para as ciências sociais, que lio da Hora contou os episódios complicado”, ou que não era aconselhável pretendem explicar o país para todos. A situa- de discriminação racial aberta que sofreu na entrevista que con- fazê-lo porque o Brasil “é diferente”. ção mais comum, até agora, nos cursos de cedeu a Haroldo Costa (1982); e Abdias do Nascimento narrou Isso de que era “muito complicado” Sociologia, Antropologia, Ciência Política, as perseguições que sofreu do queria na verdade dizer que a ditadura História é que professores e alunos brancos governo brasileiro em suas obras (Nascimento, 2002). militar não suportava nenhum discurso discutam os modelos de relações raciais 100 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006
  • 14. formulados por autores brancos, partindo do princípio de que esses modelos e inter- pretações falem da “sociedade brasileira”. Que esses discursos representem apenas a “visão branca” da sociedade brasileira até agora não tem sido colocado por quase nenhum de nós. Estamos no limiar de uma crise de representação nas ciências sociais e o esforço que temos feito na Universidade de Brasília desde 1988, a partir da crise racial acima mencionada e da luta pela imple- mentação das cotas para negros e índios, é justamente no sentido de discutir essa crise como conseqüência do confinamento racial em que vivemos. Posso ilustrar essa crise de representação com o censo racial informal que realizamos na Associação Brasileira de Antropologia ção de sentido ao discurso do outro seja a (ABA) de 2000 em Gramado. De 1.500 posição racial. O contexto que analisamos participantes, contamos a presença de está racializado pela própria constituição apenas 15 negros (o mesmo 1% do número excludente da instituição acadêmica; e de professores negros). Isso significa que onde há exclusão, a extraposição assume seja o que se tenha discutido sobre relações um contorno crítico que extravasa a idéia raciais naquela reunião (e foi muito pouco) de uma dialogia academicamente neutra. foi discutido entre brancos. Os antropólogos Podemos quase ler a dimensão racial na brancos, porém, ali presentes, não aceitam frase de Bakhtin, que fala do sujeito cor- que tenham feito uma discussão “branca” porificado: “Nem sequer o seu aspecto da sociedade brasileira, mas simplesmente exterior o homem pode ver e compreender uma discussão antropológica – os acadêmi- autenticamente, na sua totalidade, e nenhum cos negros evidentemente não acreditam espelho nem as fotografias podem ajudá-lo. na pretensa neutralidade axiológica dessa Sua verdadeira aparência só a podem ver discussão e interpretam a ausência de negros e compreender as outras pessoas, graças na ABA como um sintoma dessa ausência à sua localização extraposta no espaço e de neutralidade. graças ao fato de serem outros” (Bakhtin, Parafraseando o conceito de exotopia, 1982, p. 352). ou extraposição de Mikhail Bakhtin, sugiro O ideário das cotas, que apenas começam que o teste de verdade desse discurso branco na graduação, aponta para questionamen- somente possa surgir se introduzirmos uma tos teóricos e metodológicos muito mais exotopia racial: o grupo racial enfrentado densos e amplos do que possam parecer à deve necessariamente reagir às formula- primeira vista. A ideologia da mestiçagem, ções do grupo racial hegemônico. Bakhtin por exemplo, tão difundida nas ciências inventou o termo “exotopia” para enfatizar sociais brasileiras, é uma teoria cara aos a posição de vantagem do intérprete, dentro acadêmicos brancos; já os acadêmicos ne- de uma perspectiva dialógica; nos casos em gros não se identificam com ela e a maioria que aplicou o termo, defendeu a lucidez da deles vê o discurso da mestiçagem como extraposição na perspectiva do observador, parte de uma ideologia racista que visa a ou do outro frente ao que enuncia o discurso. desautorizar e a desarmar a afirmação de Podemos agora inspirar-nos na sua teoria uma negritude. E sem negritude não há e sugerir que, para casos como o nosso, de demanda por reparação dos danos causados discursos ineludivelmente racializados, um aos atuais descendentes negros após séculos dos topoi (lugares) ou posições de atribui- de escravidão. REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006 101
  • 15. O mesmo argumento vale para a idéia a marca racial branca, o que não é nada de de democracia racial. Vários acadêmicos novo para nossos colegas negros, que sem- brancos admitem que a democracia racial pre conviveram com sua marca racial negra. não existe, mas ainda assim defendem a Os cientistas sociais brasileiros brancos importância de salvar o mito. Até onde sei, nunca se viram como parte de um campo não há um só acadêmico negro atualmente de confronto racial, embora muitos tenham que queira salvar o mito da democracia ra- se visto, com orgulho inclusive, como parte cial. A conseqüência dessa situação é óbvia: de um campo de confronto de classe. Até democracia racial passa a ser, atualmente, recentemente, eles jamais se construíram um discurso racializado, criado e mantido como passíveis de serem confrontados por pela elite branca brasileira – não é um mito um intelectual negro. O único campo em nacional, portanto, e sim um mito do grupo que se admitia o confronto de posições era racial dominante, questionado profunda- justamente um campo que foi definido como mente pelo grupo racial subalterno. desracializado ou neutro do ponto de vista da Essa crise de representação indica que identidade racial, que é o campo da teoria. enfrentaremos a partir de agora configura- A primeira crise epistemológica provocada ções que apontam para uma incomensura- pelas cotas é questionar a neutralidade racial bilidade discursiva. Por exemplo, os acadê- do campo teórico. Esse questionamento é micos brancos não aceitam racializar o seu obviamente conhecido da geração presen- campo discursivo, mesmo quando transitam te de cientistas sociais brasileiros através sozinhos por esse espaço segregado. Essa dos escritos de Stuart Hall, Homi Bhabha, negação da racialização é inaceitável para Edward Said – e já havia sido colocado os negros que argumentam que a segrega- há meio século por Guerreiro Ramos, que ção vivida pelos brancos é o resultado mais foi silenciado e esquecido no nosso meio visível de uma sociedade profundamente acadêmico, havendo exercido a exotopia racializada. Os negros se vêem como negros racial no seu ensaio “Patologia Social do e vêem os brancos como brancos; os brancos ‘Branco’ Brasileiro”, que ainda hoje deve não se dizem brancos (muito menos se vêem ser celebrado como um dos primeiros exer- falando como brancos) e evitam classificar cícios de ciência social conscientemente os não-brancos de negros – a não ser que racializada no Brasil (Ramos, 1995). os não-brancos sejam índios. Finalmente, acredito que a crise de re- A partir de agora, ninguém poderá pre- presentação que vivemos oferece também tender falar por “nós”, brasileiros, sobre a uma oportunidade para renovação teórica e situação racial do país sem se colocar como formulação de propostas de inclusão étnica parte de um campo marcado racialmente. e racial. Mas isso só será possível se admi- Antes de pensar, portanto, na polarização de tirmos que a academia contribuiu, no Brasil, valores e de políticas frente à desigualdade para a produção e a reprodução do nosso racial, quero enfatizar que o que caracteriza a quadro de desigualdade étnica e racial, o crise de representação provocada pelas cotas qual não melhorou apesar dos investimentos é a inevitabilidade dos posicionamentos. A maciços do Estado no ensino superior ao primeira crise que estamos vivendo, então, longo de toda a segunda metade do século como intérpretes das relações raciais no passado. Dito de outro modo, a nossa classe Brasil, é a crise da desneutralização racial de cientistas sociais que discutimos relações do campo acadêmico. Esse campo, antes raciais está totalmente imersa no problema decretado como desracializado, deverá ser da desigualdade racial; na verdade, nossas visto como racializado por um bom tempo universidades e nossa classe docente têm – quem sabe, enquanto durar o processo sido parte do problema racial brasileiro. E de dessegregação das nossas universidades acredito sinceramente que somente a partir (processo que se inicia agora, por enquanto, do momento em que nos enxergarmos como somente através da política de cotas). parte do problema poderemos passar a fazer Teremos que aprender a conviver com parte da sua solução. 102 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006
  • 16. BIBLIOGRAFIA ALVES, Arivaldo Lima. “A Legitimação do Intelectual Negro no Meio Acadêmico Brasileiro: Negação de Inferioridade, Confronto ou Assimilação Intelectual?”, in Afro-Ásia, no 25-26, 2001, pp. 281-312. BAKHTIN, Mikhail. Estética de la Creación Verbal. Madri, Siglo Veintiuno, 1982. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998. BLACK, Edwin. IBM e o Holocausto. Rio de Janeiro, Campus, 2001. ________. A Guerra Contra os Fracos. São Paulo, A Girafa, 2003. CAMPOS, Ernesto de Souza (org.). História da Universidade de São Paulo. 2a ed. São Paulo, Edusp, 2004 (1954). CARVALHO, José Jorge. “Mestiçagem e Segregação”, in Revista Humanidades, ano V, no 17, 1988, pp. 35-9. ________. “Exclusão Racial na Universidade Brasileira: um Caso de Ação Negativa”, in Delcele Queiroz (org.). O Negro na Universidade. Salvador, Novos Toques, 2002, pp. 79-99. ________. “Usos e Abusos da Antropologia em um Contexto de Tensão Racial: o Caso das Cotas para Negros na UnB”, in Horizontes Antropológicos, no 23, Porto Alegre, 2005a, pp. 237-46. ________. Inclusão Étnica e Racial no Brasil. São Paulo, Attar Editorial, 2005b. COSTA, Haroldo. Fala, Crioulo. Rio de Janeiro, Record, 1982. DÁVILA, Jerry. Diploma of Whiteness. Race and Social Policy in Brazil, 1917-1945. Durham, Duke University Press, 2003. GLUCKMAN, Max. “Les Rites de Passage”, in Essays on the Ritual of Social Relations. Manchester, Manchester Univer- sity Press, 1962. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, Raça e Democracia. São Paulo, Editora 34, 2002. HASENBALG, Carlos. “Relações Raciais no Contexto Nacional e Internacional”, in Estudos e Pesquisas, vol. 4: Racismo. Niterói, Eduff, 1998, pp. 9-41. MAIO, Marcos Chor & SANTOS, Ricardo Ventura. “Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os Usos da Antropologia: o Caso do Vestibular da Universidade de Brasília (UnB)”, in Horizontes Antropológicos. ano 11, no 23, jan.-jun./2005, pp. 181-214. MÜLLER, Maria Lúcia. “Professoras Negras no Rio de Janeiro: História de um Branqueamento”, in Iolanda de Oliveira (org.). Relações Raciais e Educação. Rio de Janeiro, DP&A, 2003, pp. 73-106. NASCIMENTO, Abdias. O Brasil na Mira do Pan-Africanismo. Salvador, EDUFBA/Ceao, 2002. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A Sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1995. PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. “Ruídos na Antropologia: o Caso Ari como Sintoma”. Comunicação apresentada no GT Antropologia e o Controle do Imaginário, na XXIV Reunião de Antropologia, em Recife, junho de 2004. QUILOMBO – Jornal dirigido por Abdias do Nascimento. Edição fac-similar. Rio de Janeiro, Editora 34, 2003. RAMOS, Guerreiro. “Patologia Social do ‘Branco’ Brasileiro”, in Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janei- ro, Editora da UFRJ, 1995, pp. 140-215. SANTOS, Sales Augusto. “Ação Afirmativa e Mérito Individual”, in Iolanda Oliveira & Petronilha Gonçalves (orgs.). Identidade Negra. Pesquisas sobre o Negro e a Educação no Brasil. Rio de Janeiro, Anped, 2003, pp. 17-36. SEGATO, Rita. “Em Memória de Tempos Melhores”, in Horizontes Antropológicos, no 23, 2005, pp. 273-82. SIQUEIRA, Carlos Henrique Romão. “O Processo de Implementação das Ações Afirmativas na Universidade de Brasília (1999-2004)”, in O Público e o Privado, Revista Acadêmica do Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade, vol. 2, vo 2, Fortaleza, UECE, 2004 (no prelo). TORRES, João Batista de Miranda. “A Televisão a Cabo no Brasil: Pretexto ou Desafio à Ação e ao Pensamento Crítico da Antropologia”. Comunicação apresentada ao Seminário Temático: Antropologia e Comunicação, na XXV Reunião Anual da Anpocs. Paper incluído no CD-Rom da XXV Anpocs, outubro de 2001. REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006 103