O Gato vive com uma velha solitária numa casa abandonada no meio de um jardim selvagem. O Gato passa os dias observando a velha adormecida e as noites passeando pelos telhados observando a vizinhança. Embora tenha estranhado inicialmente a presença da velha, o Gato adaptou-se a ela, visto que ela é tranquila e desaparece por longos períodos.
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Alínea a) o gato
1. I – O GATO
O Gato saltou o parapeito carcomido da janela e cravou as unhas no
tapete empoado, de cores esbatidas pelo sol, aguçando-as num ruído
estranhamente feroz em contraste com a placidez da tarde morna.
A velha mexeu-se no cadeirão atafulhado de mantas e xailes que
cheiravam a lã húmida. Resmungou entredentes, mas não chegou a
abrir os olhos de pregas pesadas por pele amolecida. As mãos
curtidas pelo tempo, permaneceram inertes no colo gasto, manchadas
de sarcomas, encarquilhadas e vazias. O Gato fitou-a, os olhos
faiscantes, quase duas frinchas de luz azulada, fixos no queixo
descaído que estremecia ao compasso da respiração. Nada mais se
ouvia. A casa estava vazia de vida, para lá de duas almas solitárias e
cúmplices. O Gato espreguiçou-se
longamente, retesando os músculos
perfeitos sob o manto de pêlo negro
e luzidio, e foi-se aninhar aos pés da
velha que não o pressentiu. Moveu as
orelhas nervosas quando a velha
resmungou no sonho, mas voltou a
enroscar-se e deixou-se apanhar
pela modorra da tarde de Outono. Cá
fora, no jardim que já fora, mas que
agora não passa de um labirinto de
mato e natureza descontrolada, os
ramos das árvores entrelaçavam-se e
competiam por um espaço de céu e
luz. As roseiras, todas elas bravias, trepavam por toda a parte. A fonte
de pedra, as estátuas delicadas, a mesa rendilhada, desapareceram,
engolidas pelo verde das silvas e os montes de folhas mortas. No
carreiro que dava acesso ao anexo acumulavam-se sacos rotos de
serapilheira, plásticos, restos de panos, cacos de vasos, recipientes
de plástico e vidro. Tudo velho, tudo gasto. A estrutura que outrora
fora uma estufa de plantas delicadas, sustentava-se a custo,
2. maltratada pela chuva, corroída pela ferrugem e pelo abandono. A
maior parte dos vidros desaparecera e os poucos que ainda se viam
estavam cobertos de pó, musgo e lodo ressequido. Pareciam dentes
negros, presas assustadoras, apodrecidas. Os expositores dos vasos
de orquídeas, das tenras avencas, das doces e coloridas begónias há
muito que jaziam, desconjuntados, pelo chão, coberto de lixo. Pedaços
de porcelana pintada salpicavam o solo, como se uma escavação
arqueológica tivesse subitamente irrompido numa oficina de olaria de
uma antiquíssima civilização. O ar que envolvia o anexo, o jardim, a
casa, era também ele velho, perdido, esquecido da frescura, da vida.
Não subia para lá do muro de pedra, coberto de uma hera de folhas
escuras, grossas, carnudas, que formava uma malha densa,
impenetrável que nem deixar respirar a pedra. Há muito que os blocos
de granito apodreciam debaixo da sua mortalha verde escura. O que
os sustentava eram os ramos intrincados e duros como o aço da
trepadeira, protectora da casa e dos seus ocupantes. O mais antigo
era o Gato. Grande, majestoso, figura inquietante de olhos oblíquos de
brilho gelado, viva com um rei, no seu inexpugnável castelo. Ninguém
se atrevia a saltar o muro, muralha intransponível que intimidava o
mais curioso ou afoito. Durante o dia espreguiçava-se pelo alpendre,
brincava com os raios de sol que batiam nas telhas sujas, deixava-se
embalar nos ramos frondosos, ou deixava-se zanzar pela casa,
brincava como os ratos e espreitava o espelho mágico. Não que lhe
interessasse particularmente o que acontecia como os homens. O Gato
não alimentava qualquer afeição por aqueles seres confusos que se
reproduziam como coelhos. Encantava-lhe sim o movimento, as
formas e cores e, sobretudo, a loucura, a irracionalidade dos
comportamentos. À noite entretinha-se a passear pela vizinhança.
Percorria os telhados, os quintais, e observava com atenção.
Espreitava as janelas, escondia-se nas sombras dos caminhos,
saboreando as imagens como pequenos aperitivos para o seu espírito
trocista. Vivia feliz na solidão, até, subitamente esta ter sido quebrada
pela presença da Velha. Estranhara um pouco, mas rapidamente se
adaptara. Afinal ela era um bicho estranho, como ele. E não o
incomodava, pois, ciclicamente, como a chuva ou o cair das folhas,
desaparecia por longos períodos de tempo.
Filomena Pereira