Slides Lição 6, Betel, Ordenança para uma vida de obediência e submissão.pptx
Artigo da novela viver a vida (enecult)
1. “NÓS SOMOS VANGUARDA MEU AMOR...!”: REPRESENTAÇÃO DE
UM PERSONAGEM NÃO-HETEROSSEXUAL NA TELENOVELA VIVER A
VIDA
Danilo Nascimento dos Santos1
Resumo: Este artigo analisa o personagem Osmar, interpretado por Marcelo Valle, na
telenovela Viver a vida, exibida pela Rede Globo. Osmar é bissexual, mas a sua
bissexualidade só é revelada na última semana da novela: descobre-se que o
personagem mantinha um relacionamento homossexual. O tratamento dado a sua
bissexualidade foi banal. Contudo, o personagem apresenta um elemento que questiona
a heteronormatividade: a formação de um relacionamento não-monogâmico, o trio
Osmar, Alice e Narciso.
Palavras-chave: bissexualidade, teoria queer, heteronormatividade
Os corpos representam o campo da construção de saberes, do cruzamento de
desejos e da constituição das subjetividades. Sabemos bem que essas construções não se
dão de maneira pacífica, pois os jogos de poder estão fortemente envolvidos na
composição dos saberes sobre os corpos e na composição das identidades sexuais e de
gêneros. A mídia tem um importante papel na constituição dessas identidades, pois “[...]
a representação produzida por uma telenovela não é simplesmente uma reprodução da
realidade, mas também uma ação que deseja e provoca reações pelo fato de ter sido
realizada de determinada maneira.” (COLLING e BARBOSA, 2008, p.3). Dessa forma,
torna-se essencial a análise de personagens que compõem as telenovelas da Rede Globo,
programas líderes em audiência entre as emissoras nacionais.
É exatamente pelo alcance nacional e pela influência da Rede Globo na
realidade social é que analiso neste artigo a representação do personagem Osmar, vivido
por Marcelo Valle, na telenovela Viver a vida, de Manoel Carlos, exibida na Rede
Globo entre 2009 e 2010, no horário das 21 horas. Como apoio teórico para análise,
1
Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Faz parte do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS), vinculado ao Centro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura (CULT), orientado pelo professor Dr. Leandro Colling. Email:
ndossantos.danilo@gmail.com
2. faço uso da teoria queer, explicitando alguns conceitos, entre eles, a
heteronormatividade.
A metodologia utilizada na produção do artigo foi criada a partir da revisão e
atualização de outras metodologias de pesquisa. Colling (2008)2 criou a metodologia
aplicada nesta análise, que objetiva estudar os personagens não-heterossexuais presentes
nas telenovelas da Rede Globo. Este artigo faz parte de uma pesquisa maior, financiada
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, realizada coletivamente pelo
grupo de pesquisadores do CUS (Cultura e Sexualidade), vinculado ao CULT (Centro
de Estudos Multidisciplinares em Cultura), órgão complementar da UFBA
(Universidade Federal da Bahia). Os itens em negrito compõem os aspectos que estão
sendo analisados em todas as telenovelas pesquisadas pelo grupo.
Análise
Dados gerais do produto
Título: Viver a vida
Direção Geral: Jayme Monjardim e Fabrício Mamberti
Direção: Teresa Lampreia, Frederico Mayrink, Luciano Sabino, Leonardo Nogueira,
Adriano Melo e Maria Rodrigues.
Autor: Manoel Carlos
Elenco principal: Taís Araújo (Helena), José Mayer (Marcos), Lília Cabral (Teresa),
Thiago Lacerda (Bruno), Alinne Moraes (Luciana), Mateus Solano (Miguel/Jorge) e
Giovanna Antonelli (Dora).
Elenco mais diretamente ligado com a temática não-heterossexual: Marcelo Valle
(Osmar), Lorenzo Martin (Narciso) e Maria Luisa Mendonça (Alice)
Tempo de exibição: de 14 de setembro de 2009 a 14 de maio de 2010. A novela teve
209 capítulos e foi exibida no horário das 21 horas.
Resumo do enredo:
A novela Viver a vida tem como tema central a superação dos problemas que,
por diversos motivos, acabam atingindo um indivíduo ao longo de sua vida. O enredo
gira em torno da supermodelo Helena (Taís Araújo). Boa parte da produção versa sobre
o mundo da moda, no qual o personagem analisado neste artigo está inserido.
A supermodelo parece ser um obstáculo para o sucesso tão almejado por
Luciana (aspirante à modelo que sonha chegar ao mesmo status de Helena). Com isso,
2
A metodologia desta pesquisa, criada por Leandro Colling, nasce a partir dos estudos de Moreno (2001)
e Peret (2005).
3. Luciana só vive implicando com Helena, e sobra para Osmar (produtor que organiza os
desfiles) apartar as brigas das modelos e dar conselhos sobre a vida profissional de cada
uma.
Depois de algum tempo, de desenvolvida a trama da novela, Osmar conhece
Alice, uma das melhores amigas de Helena, com que mantém uma relação
heterossexual. Alice, então, no final da novela, mais precisamente na última semana,
descobre que Osmar mantém uma relação homossexual com Narciso (a quem o
produtor chama de seu “sobrinho”). Osmar, Alice e Narciso formam, então, um trio.
Aspectos estáveis dos personagens não heterossexuais
“Posição do personagem no enredo: se é principal, coadjuvante, se faz ponta,
figuração, citada ou recorrida.” (Moreno, 2001, p.167)
Osmar é um personagem secundário (coadjuvante) dentro da trama. Ele tece
pequenas ações em torno das personagens principais (Helena e Luciana) e não tem
grande importância na novela.
Além disso, Osmar permanece pouco tempo em cena. Sua vida social se resume
em seu trabalho e nas pessoas que, de alguma forma, trabalham e convivem com ele.
“Contexto social do personagem: a que classe ele pertence” (Moreno, 2001, p.167)
Osmar aparenta ser de classe alta. Seu desenvolvimento profissional, a maneira
de se vestir, os lugares que frequenta, inclusive as pessoas com que se relaciona, estão
ligados aos padrões de classe alta.
Cor: Osmar é branco, assim como a maioria dos que compõem o elenco principal da
novela. A exceção fica por conta de Taís Araújo, apontada como primeira negra a
ocupar o posto de protagonista em uma telenovela da Globo no horário das oito. Além
de ser a primeira Helena3 negra.
Profissão: Osmar é produtor de moda e organiza os desfiles que acontecem na novela.
Aspectos da linguagem utilizada e da composição geral do personagem
3
“Helena” é um personagem recursivo nas tramas de Manoel Carlos. As “Helenas de Manoel Carlos”,
que antecederam a Helena (vivida por Taís Araújo) eram sempre brancas.
4. Gestualidade
Tipos de gestualidade:
1) Estereotipada, com gestual explícito que caracteriza de forma debochada e
desrespeitosa à personagem não-heterossexual;
2) Gestualidade típica de alguns sujeitos queer, especialmente os adeptos de
um comportamento/estética camp;
3) Não estereotipada (gestual considerado “normal” e “natural”, sem
indicação de que a personagem é homossexual, lésbica, travesti
transformista, transexual, transgênero, intersexo ou bissexual, e inscrito
dentro de um comportamento considerado heterossexual).
Osmar apresenta uma gestualidade não estereotipada (resultado 3), considerada
normal dentro da trama.
O tratamento dado a bissexualidade de Osmar é dúbio: a transgressão do
personagem não é total, e o afeto entre ele e outro personagem do mesmo sexo não vai
além de um abraço ou da insinuação de uma homoafetividade. Sobre a bissexualidade,
Seffner (apud CAVALCANTI, 2010, p.81) aponta para o que poderia ser um dos
motivos dessa representação dúbia:
[...] indivíduos bissexuais passam muitas vezes despercebidos,
invisíveis numa representação e significação onde se faz proibido discordar
de uma lógica binária e polarizada. Em nossa cultura a representação
majoritária da sexualidade se organiza a partir de dois pólos bem marcados, a
heterossexualidade e a homossexualidade, e a cada pólo correspondem
identidades bem definidas, quais sejam, os heterossexuais e os homossexuais.
Outro motivo é que a narrativa homo e ou bissexual foi “acoplada perto do fim
da telenovela, não se constituindo como ameaça para o núcleo heterocêntrico.”
(OLIVEIRA, Antônio Eduardo de, 2002, p.166). Esse também pode ser um motivo para
o não tratamento da bissexualidade de Osmar, exatamente para que o relacionamento
entre Osmar e Narciso não desestabilizasse o desenvolver da narrativa heterocêntrica.
Osmar em algumas cenas absorve para si um comportamento feminilizado,
apesar de ser considerado “normal” dentro da trama, ele chegou a se referir aos homens
como “bofe”, suas melhores (se não todas) amigas são mulheres. Quando participa das
conversas com as mulheres não se apresenta como um diferencial para elas. Embora sua
5. gestualidade não seja queer, ou totalmente transgressiva, Osmar apresenta um elemento
bastante importante para questionarmos a heteronormatividade: a formação de um trio.
A heteronormatividade é um conceito que vem sendo trabalhado em diversos
estudos sobre sexualidade, nos estudos gays e lésbicos, e mais recentemente nos estudos
de gênero, especialmente os vinculados com a teoria queer. Numa interpretação mais
redutiva podemos considerar a heteronormatividade como sendo a heterossexualidade
como norma. Pino (apud BARBOSA, 2010, p. 03) define a heteronormatividade como
o “enquadramento de todas as relações – mesmo as supostamente inaceitáveis entre
pessoas do mesmo sexo – em binarismos de gênero que organiza as suas práticas, atos e
desejos a partir do modelo do casal heterossexual reprodutivo [..]”.
O trio formado em Viver a vida rompe com a matriz binária heteronormativa
porque não se encaixa nesse sistema. Nesse sentido, o trio se mostra bastante
transgressor. Contudo, deixa a desejar em diversas outras possibilidades.
A heteronormatividade, de certo, é um mal-estar na sociedade. Isso porque a
norma heterossexual termina por segregar as sexualidades que não são hegemônicas. As
normas que norteiam a heterossexualidade servem para reiterar a própria
heterossexualidade, tanto para dizer que ela “existe” como para dizer que as outras
identidades sexuais “não podem existir”. Um desafio que devemos colocar em ação é a
desconstrução dos discursos que tradicionalmente “envolveram” a heterossexualidade
colocando-a numa “zona de conforto” do inquestionável e do indiscutível, do normal e
do natural.
“Subgestualidade: compreende o vestuário, maquiagem e adereços
utilizados/usados pela personagem” (Moreno, 2001, p. 167)
Um aspecto que de algum modo subverte as normas de gênero é o vestuário do
personagem. Osmar, na maior parte da novela, usa camisas cor de rosa. O rosa é uma
cor tradicionalmente ligada ao feminino, uma cor que transmite sensibilidade. A cor é
um dos artifícios usados na delimitação dos gêneros masculino e feminino. Tal que,
desde criança, em nossa cultura ocidental, é transmitida a idéia de que o “azul é para
meninos” e o “rosa para meninas”. Osmar provoca um deslocamento ao usar a cor rosa
como um fator dominante em seu vestuário.
O estilo de vestir do personagem não muda ao longo da novela. Em geral, usa
camisas sociais em modelo 3/4, cintos simples e calças jeans. Apresenta, através de seu
vestuário, um aspecto de jovialidade.
6. Características gerais da personalidade da personagem
Análise de sequências: “É um recurso para detalhar mais as ações de um filme (em
nosso caso a telenovela) e explicitar o seu conteúdo de forma minuciosa, como
diante de uma lente de aumento” (Moreno, 2001, p. 168)
Analiso aqui duas sequências que se mostram essenciais no que tange ao
tratamento dado à bissexualidade do personagem. O tratamento banaliza, acima de tudo,
a bissexualidade de Osmar, pois a mesma só é revelada na última semana da novela, não
dando margens para tratar a sua bissexualidade. Contudo, ao abordar o relacionamento a
três, a novela se mostra mais distante do ideal de monogamia compulsória.
Primeira sequência
No capítulo 207, Alice e Osmar estão deitados na cama (na casa do produtor)
depois de terem passado a noite juntos (há a insinuação de que os dois fariam sexo). As
carícias, incluindo aí o beijo, entre Alice e Osmar são veiculadas, porém, a relação entre
Osmar e Narciso (o Narcisinho) passa totalmente despercebida aos olhos dos
espectadores. O contato físico não passa do toque (o abraço) e ou troca de olhares.
A formação do casal heterossexual Osmar e Alice acontecera há cerca de dois
meses do fim da novela, enquanto que o relacionamento entre Osmar e Narciso só vem
ao ar na última semana. Vale salientar que já houve a especulação sobre a possível
homossexualidade de Osmar na novela por parte da personagem Alice: Numa “roda de
amigas”, estão Alice, Luciana e Helena. Alice pergunta para Luciana se ela acha que
Osmar é gay, Luciana demonstra dúvidas. Helena fala que já viu “Osmar com mulher”.
Já Luciana coloca e provoca dúvida ao falar que já ouviu falar “sobre um garoto” (essa
alusão é clara ao personagem Narciso).
Nessa cena, Alice se surpreende com a chegada de Narcisinho à casa de Osmar.
O produtor apresenta Narciso à Alice como sendo o seu sobrinho. O relacionamento
entre Osmar e Narciso é simplesmente invisibilizado.
(Osmar e Alice estão deitados na cama; A campainha toca).
Alice: Anjinho, tão... Tão tocando a campainha. (Osmar se mexe)
Alice: Amor vai lá, acorda Osmar. (Osmar se revira na cama e põe o travesseiro
na cabeça... Ele resmunga para Alice).
7. Alice: Eu não tô acreditando que é eu que vou abrir a porta. (Levanta-se e vai
atender a campainha).
(A campainha continua tocando)
Alice: Já vaííí... Calma! (Abre a porta)
Narciso: É..., dá licença minha querida... Eu esqueci as chaves. (Invade a sala
de estar)
(Neste momento Alice fica sem entender a situação e olha para Narciso com ar
de desconfiança).
Narciso: Ó lá, pode cair a casa que ele nem se mexe. (Aponta para Osmar que
está na cama, deitado)
Alice: Você nem se apresentou, eu abri a porta pra você... Eu não sei nem quem
você é. (Osmar se levanta da cama)
Osmar: Oi amor! (Refere-se a Narciso)
Narciso: Oi amor!
Osmar: Chegou?
(Alice olha para os dois sem entender a situação)
Narciso: Eu esqueci as chaves... Cansei de tocar a campainha!
Osmar: Ahhh... Desculpe! Vocês não se conhecem ainda né?
Alice: Não. (Movimentando a cabeça)
Osmar: Alice esse é o... é o Narcisinho... meu sobrinho. (Mostra um sorriso)
Alice: Seu sobrinho?
Osmar: É
Osmar: Narcisinho essa é a Alice... né linda ela? (Fala no ouvido de
Narcisinho)
(Alice olha para os dois e ri. Narcisinho acena com os dedos).
Narciso: Um charme. (Comenta com Osmar, referindo-se à Alice).
Alice: Obrigada! (Diz envergonhada e sorri)
(Osmar anda na direção de Alice e a beija na boca)
Osmar: Vamos tomar café?
Alice: Humhum... Deixa comigo que eu faço. (Alegre, vai em direção à cozinha)
A cena se encerra com os três indo para a cozinha. Vale ressaltar que o beijo tão
esperado entre Osmar e Narciso não acontece na cena descrita acima, e muito menos em
toda a novela (ou no fim desta). A partir desse momento, a bissexualidade de Osmar é
compartilhada entre Osmar, Alice e Narciso.
8. Já no capítulo 208, a bissexualidade de Osmar é exposta para outras pessoas. Em
uma cena, na produtora de moda, estão Osmar, Alice, Renata (Bárbara Paz) e o seu
namorado Felipe (Rodrigo Hilbert), conversando sobre o futuro de Renata como
modelo.
Osmar: Muito melhor Renata... Ô que susto que você me deu hoje, hein!
Renata: Desculpa!
Alice: Recaída é falta de imaginação, lembra sempre disso... Você é uma
modelo, é uma artista também... e uma artista não pode se repetir. Concorda?
Felipe: É, isso não vai mais acontecer Alice.
Osmar: Eu acho ótimo que não aconteça..., aliás, presta atenção vocês dois
numa coisa: Eu continuo batalhando pra vocês contratos internacionais. (Todos riem)
Osmar: Só que não pintou nada até agora.
Osmar: Agora Renatinha, pelo amor de Deus, não ache que isso é uma crise,
entendeu?... Que ninguém mais gosta de você... Você não precisa mais ser insegura, as
pausas fazem parte do jogo.
Alice: Tá ouvindo isso Renata?
Renata: Ouvi
Renata: E Petra, hein? Vai rolar? Ou não vai rolar? (Bate palmas e grita, os
outros riem)
Renata: Vai rolar? Quero saber se vai rolar...
Osmar: Olha, pode ser que role, a gente tem esse projeto aqui na produtora...
Será que vocês ficam afim de encarar essa viagem para o deserto? (E aponta para
Renata e Felipe)
Felipe: Ah, Eu adoro essa viagem, seria ótimo voltar pra lá..., aliás, tem umas
escaladas inacreditáveis.
Renata: Hum... Só de pensar da água na boca... Ah, chefinho vai, descola essa
viagem...
Felipe: Por favor!
Osmar: Ah, não depende só de mim, agora eu posso garantir: se rolar vocês dois
tão dentro, tá?
(Felipe e Renata festejam)
Renata: Vem cá... A Helena não vai aparecer aqui hoje não? Hein, Osmar? Tô
querendo pegar umas dicas com ela.
(Alice e Osmar trocam carícias)
9. Renata: Tô um pouco insegura com umas fotos que vou fazer, tô querendo uns
conselhos.
Osmar: Renatinha, a Helena tá com um problema sério de família: o Benê, o
marido da Sandrinha, foi assassinado na favela.
Felipe: Que é isso cara!
Renata: Gente, não acredito!
Felipe: Que barra pesada!
Renata: Helena falou tanto que o cara tava tentando ficar longe do crime.
Alice: E tava mesmo, tinha até arrumado um emprego..., mas... Os bandidos não
perdoaram né? Quando ele voltou pra favela foi morto numa emboscada.
Renata: Tadinha da Sandrinha meu Deus... Ficar com aquele menino pequeno.
Osmar: Ainda bem que ela não tá sozinha, que ela tem a família inteira pra
apoiar... A Helena é uma irmã maravilhosa... Tá todo mundo lá já em Búzios.
Renata: Tô com pena dessa criança criada sem pai... Eu sei o que é isso, eu não
tive pai.
Felipe: É, mas você teve sorte, né? A tua mãe vale como um pai.
Renata: Minha mãe e você, que me salvou, que salva todos os dias.
(Renata beija Felipe e sorri)
Felipe: Nossa! Que declaração, depois dessa eu acho melhor agente ir pra casa
que Dona Silvia tá esperando.
Renata: Hum...?
Felipe: É, e tem uma surpresinha pra você.
Renata: Pra mim?
(Felipe confirma)
Felipe: Pra você. E vocês também tão convidados. (Aponta para Alice e Osmar)
(Neste momento Narciso entra no escritório da produtora).
Narciso: Oi gente!
Osmar: Ah, deixa eu apresentar pra vocês o meu sobrinho... Esse é o Narciso.
Alice: Ah, eu acho “Narcisinho” mais bonito.
Osmar: Amor tudo bem... Então, Narcisinho... Você tá sempre certa.
Osmar: Narcisinho, esse é o Felipe, essa é a Renata. Eles são os novos modelos
daqui da produtora... São todos estrelas.
Narciso: E aí Renata? Tá melhor?
Renata: Humhum (Responde a Narciso)
10. Narciso: Que bom!
Felipe: Bom! Então vamos todos lá pra casa, né?... A gente faz uma comida
portuguesa em homenagem a nossa viagem.
Osmar: Olha Felipe não vai dar... A gente... A gente tem um compromisso... Né
amor?
(Osmar dá as mãos a Alice)
Alice: Humhum... Com certeza... Imperdível!
Renata: Vocês dois agora são uma dupla? (Aponta para Alice e Osmar)
Alice: Uma dupla não... Um trio, porque o Narcisinho aderiu.
(Todos trocam olhares e riem)
Segunda sequência
No capítulo 209 (último da novela) Osmar, Alice e Narciso vão à uma festa de
casamento juntos, como um trio.
Helena: Gente eu não acredito que eu vou ser madrinha dessas meninas.
Bruno: Por que com essa história toda vocês não seguem?... Não Alice?...
Vamos lá Alice.
Alice: Eu?...Se ainda permitissem casamento a três (sentada na cadeira, de
costas para Narciso e Osmar, puxa a gravata dos dois mostrando que está referindo-se
a eles).
Osmar: Nós somos vanguarda meu amor...! Mas quem viver verá... Um monte
de trio casado oficialmente por aí.
(Todos riem)
Tanto na primeira quanto na segunda sequência o casamento formado “por três
pessoas” é bem aceito na novela. Osmar, Alice e Narciso não sofrem nenhum tipo de
preconceito pela forma com que vivem o relacionamento não-monogâmico.
Interessante que a telenovela tratou de um assunto que vem sendo, aos poucos,
uma das bandeiras centrais de determinados movimento sociais. Enquanto o movimento
LGBT deseja o casamento monogâmico, surgem propostas de grupos como o Poliamor
e a Rede Relações Livres (RLI), de Porto Alegre. Sobre essas propostas Barbosa (2010)
afirma:
Abrangente e difuso, o Poliamor tem diferentes modos de ativismo,
o que não permite qualquer generalização sobre sua atuação, mas está
presente em seu discurso a defesa do casamento entre mais de duas pessoas e
a prática da polifidelidade [grifos da autora]. A RLI se opõe a conjugalidade,
a exclusividade (sexual e afetiva), e defende a autonomia das pessoas para
11. terem quantas relações quiserem, sem necessidade de autorização de seus
parceiros e sem o estabelecimento de hierarquias entre as relações [...].
(BARBOSA, 2010, p.03)
Esse não é o primeiro trio em telenovelas da Rede Globo. A novela Duas caras
(ver Colling e Barbosa, 2008) também apresentou um trio formado por dois homens e
uma mulher (Bernardinho, Heraldo e Dália). As diferenças (e ou similaridades) entre os
dois trios são perceptíveis: o personagem analisado da novela Duas caras (Bernardinho)
era gay assumido. Já Osmar ocultou por muito tempo sua relação com Narciso, que só
foi ao ar de maneira banal.
Bernardinho, assim como foi insinuado a Osmar, transava com a mulher do trio,
contudo, o sexo entre os homens não acontecia (não havia nem a sugestão de relação
sexual entre Osmar e Narciso). O trio Bernardinho, Dália e Heraldo, em um momento
da trama, sofre discriminação (violência física e simbólica) por causa da relação a três.
Com Osmar, Narciso e Alice a reação das pessoas é diferente, as pessoas com quem o
trio convive parecem aceitar a união a três. Apesar de que, numa passagem de Viver a
vida, a personagem Helena especula sobre a formação do trio e, ao falar de Narciso, ela
“desmunheca”.
Em Duas caras, a união a três é demonizada por alguns personagens. Além
disso, não foi permitido nenhum afeto em público e a relação não-monogâmica de
Bernardinho, Dália e Heraldo foi qualificada como uma falta de respeito aos outros
moradores da comunidade.
Aspectos sobre a sexualidade e gênero do personagem
A personagem se apresenta (assumisse verbalmente) como: gay, lésbica, travesti,
transformista, transexual, transgênero, intersexo, bissexual.
Osmar assume primeiramente um relacionamento heterossexual: entre ele e
Alice (uma das amigas de Helena). Apenas no final da novela é que a bissexualidade do
personagem é revelada. Ele assume um relacionamento bissexual formando um trio:
Osmar, Alice e Narciso (apresentado como sendo o seu sobrinho) e algumas poucas
pessoas tomam conhecimento desse relacionamento. Vale enfatizar que Osmar não diz
verbalmente que é bissexual, mas pode se inferir isso através do relacionamento que ele
forma: com um homem e uma mulher.
12. Esse relacionamento nos abre um leque de possibilidades: “A possibilidade de se
relacionar com ambos os sexos não faz da bissexualidade uma prática4 [grifos meus]
menos legítima. Ao contrário, demonstra o quanto nossas vivências e experiências são
diversas e plurais”. (CAVALCANTI, Camila Dias, 2010, p.82)
Em que ponto da narrativa fica claro que o personagem é bissexual?
A bissexualidade de Osmar só foi levada ao ar na última semana da novela e não
foi problematizada.
Como se dá a performatividade de gênero? Que normas ou conjunto de normas o
personagem reitera e/ou reforça?
Cabe a nós pesquisadores, antes de qualquer coisa, promovermos o
questionamento e debates sobre saberes universais que, mediados, controlados e
retificados por determinadas instâncias regulatórias, tentam nos definir/categorizar.
A performatividade de gênero trata, antes de tudo, sobre o conjunto de normas
que norteiam a construção dos corpos e sujeitos dentro de um determinado padrão.
Questionado no programa Pop Tevê sobre a orientação sexual do personagem
que iria interpretar, Marcelo Valle disse que teceria o personagem Osmar sem
“trejeitos” (aspas minhas), independente da orientação sexual. Sabemos, pois, que,
mesmo sendo a intenção do ator tentar mover o personagem sem influência de
estereótipos, as influências desses últimos na construção das identidades sexuais e de
gênero são imperantes.
Resumo conclusivo e redutor sobre a representação dos não-heterossexuais nas
telenovelas
Resultado 1: forte carga de estereótipos e outras características que contribuem
para a reduplicação dos preconceitos e da homofobia;
Resultado 2: caracteriza os personagens com alguns elementos da comunidade
queer, constrói um tratamento humanístico e contribui para o combate aos
preconceitos e a homofobia;
4
Em algum momento esse termo prática me fez refletir sobre o sentido da palavra nesse contexto. A
bissexualidade não se resume a prática, é também uma identidade sexual possível e legítima, com grande
poder de subversão. É o que acontece com relação ao trio Osmar, Alice e Narciso.
13. Resultado 3: caracteriza os personagens não-heterossexuais dentro de um modelo
heteronormativo que contribui para a reduplicação dos preconceitos e da
homofobia;
Resultado 4: caracteriza os personagens não-heterossexuais dentro de um modelo
heteronormativo, mas constrói um tratamento humanístico e contribui para o
combate aos preconceitos e a homofobia;
Resultado 5: indica uma representação dúbia e produz dúvida sobre o tratamento
dado.
As categorias homem, mulher, criança, etc., são marcadas de noções, de
significados compartilhados e escolhidos como padrões, em que qualquer
manifestação/representação social que se afaste da norma previamente estabelecida
termina por ser reconhecida como desviante, sofrendo posteriormente as “devidas”
conseqüências: estigmatização, violência física e simbólica, dentre outros. Um grande
problema que ainda precisamos vencer é a questão do binarismo: homem-mulher;
heterossexual-homossexual, uma lógica que, por muitas vezes, difere da realidade social
de cada sujeito. Os binarismos seguem uma lógica cartesiana em que se cria um lado
positivo e negativo para as coisas: um promovendo a exclusão e ou estigmatização do
outro.
Em se tratando da heterossexualidade e da homossexualidade, por exemplo,
podemos perceber que os dois comportam-se como um esquema binário: ao
heterossexual (características consideradas legitimas, normais e positivas), ao
homossexual (características consideradas opostas, anormais, ilegítimas e negativas).
A bissexualidade contribui para se pensar uma realidade que difere do esquema
binário: heterossexual/homossexual. E mesmo sendo uma identificação que se reproduz
dentro do esquema binário sexual: homossexual ou heterossexual (a depender do
momento/situação), abre caminho para se pensar uma realidade social múltipla, para
além da norma heterossexual. A bissexualidade representa uma das múltiplas realidades
que possuímos.
Um relacionamento em trio também foge a noção de casal da família nuclear
(que termina por reiterar normas heterossexuais). Para Osmar, não há um momento
heterossexual ou um momento homossexual: há os dois ao mesmo tempo. O
personagem apresenta também outra maneira de viver a sua bissexualidade, que rompe
com a idéia do casal tradicional “logicamente legitimo”: homem - mulher, ambos
heterossexuais. Ao invés de viver um casal tradicional na novela, Osmar, Alice, e
14. Narciso formam um trio e desestabilizam os padrões de gênero tão latentes em nossa
sociedade.
Apesar de tratar o personagem mais distante de alguns padrões heteronormativos
e, portanto, mais próximo de uma “linguagem do corpo” e performatividade queer, a
novela peca por não tratar devidamente a bissexualidade do personagem, mostrando-a
apenas no final da novela, o que gera dubiedade e dúvidas no tratamento dado ao
personagem (ver resultado 5). Ainda assim, é dado a Osmar um tratamento humanístico,
pois ele não é tratado como um ser abjeto na trama. Vale enfatizar que o tratamento
distanciado da bissexualidade do personagem não contribui para o combate a
homofobia.
A forma com que Osmar vive o relacionamento não-monogâmico demonstra o
quanto a teoria queer é ampla e inclusiva, e não se reduz apenas a identidades sexuais.
Contudo, esse elemento transgressor de normas, a formação do trio, poderia ser mais
explorado e desenvolvido na trama.
É por isso que queer não se “pretende” apenas como uma sexualidade
alternativa, mas sim como todo um conjunto de práticas subversivas (como é o caso do
relacionamento entre Osmar, Alice e Narciso) que se propõe a questionar a
heterossexualidade como norma. @s(as/os) queer questionam também a noção de
identidades essenciais e fixas, pois “as identidades estão sempre se construindo, elas são
instáveis e, portanto, passíveis de transformação” (LOURO, 1997. p.27), para se
organizar em torno de identidades plurais, que estão em fluxo e que se constroem
diariamente.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Mônica. Questões para o debate sobre a heteronormatividade nas relações
afetivas: Um estudo de caso sobre a Rede Relações Livres. In: Fazendo Gênero 9, 2010,
Florianópolis. Anais Eletrônicos... Florianópolis: UFSC, 2010. Disponível em
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278265380_ARQUIVO_monica_
barbosa_FG9.pdf. Acesso em: 10 de março de 2011.
CAVALCANTI, Camila Dias. Práticas bissexuais: Uma nova identidade ou uma nova
diferença? Polêmica, v.9, n. 1, p. 79-83, janeiro/março 2010. Revista Eletrônica...
Disponível em:
<http://www.polemica.uerj.br/ojs/index.php/polemica/article/viewFile/10/12>. Acesso
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