1. Capítulo IV
Um Ícone Milenar
De Cizur Menor a Puente la Reina
Navarra, 06 de Setembro de
1999
Fotos:
Fotos:
Da esquerda para a direita: Interior da Igreja de Sán Miguel Arcanjo em
Cizur Menor; O caminho rumo ao Alto del Perdón; Residência medieval em
Puente la Reina.
2. Era segunda-feira e o ar do outono começara a
se fazer presente. Naquele dia nossa jornada seria um
pouco mais curta, em relação ao dia anterior, mas
teríamos, já de saída, a tarefa de vencer as colinas do Alto
del Perdón. No alto das colinas, um vasto parque eólico,
composto por sofisticados geradores de energia elétrica,
parecendo-se imensos ventiladores com suas pás girando
ao sabor dos ventos, serviam como marcos a serem
atingidos por nós até aquelas alturas. A manhã estava
nublada e a subida das montanhas se tornava um pouco
mais fácil sem a incidência impiedosa do sol. Pelo caminho,
encontramos diversos amigos: os mineiros do Brasil, o
pessoal de São Paulo, alguns espanhóis que
acompanhavam o trajeto e Martina, uma peregrina
francesa que fazia o caminho conosco desde a chegada a
Pamplona. A caminho do Alto del Perdón, paramos para
um breve descanso no povoado de Zariquiegui, onde
carimbamos nossas credenciais com um senhor que regava
os jardins da igreja local, uma construção românica, a
Iglesia de San Andrés. A partir daquele lugar o tempo
começou a se fechar e iniciou-se uma pancada de chuva;
retiramos as capas de chuva das mochilas e as vestimos na
tentativa de nos proteger. O mau tempo foi passageiro e
nem chegamos a nos molhar, porém tivemos uma amostra
de que a caminhada sob as condições de chuva seria algo
bastante cansativo e desgastante.
Chegando ao Alto del Perdón, após 8,5 quilômetros
da mais pura caminhada ascendente, deparamos com a
bela vista do caminho até aquele ponto: tínhamos uma
3. linda visão de Navarra, olhando para o oriente e, ao longe,
podíamos avistar os campos de La Rioja, em direção ao
ocidente, vales completamente distintos, parecendo que se
olhava para dois mundos... Navarra, inteiramente coberta
de grandes lavouras e, até La Rioja, lavouras muito
pequenas encravadas nas ondulações do outro vale,
parecendo uma colcha de delicados retalhos. Entre essas
duas magníficas paisagens, havia um mural construído em
chapa de aço plano, homenageando os peregrinos; tiramos
algumas fotos ali, conversamos com alguns companheiros
de trajeto e seguimos a descida das colinas rumo a Puente
la Reina. A descida era bastante íngreme e, ao contrário do
que se possa pensar, muito mais difícil de ser vencida do
que a subida anterior. Passamos por diversos povoados,
muitos deles pequenos e de vida exclusivamente rural, até
pararmos em Aquiturrain, em cuja placa se lia “Despoblado
e Ermita de Aquiturrain”. Fizemos uma curva e
inesperadamente deparamos com a civilização em seu
estado mais natural: umas mesas na rua em frente a um
casarão, com plantas em volta, cadeiras e um bar atendido
pelo proprietário, Don Fernando. Almoçamos alguns
bocadillos feitos com uma espécie de lingüiça típica
chamada “chichorra”, bastante forte e apimentada; eram
sanduíches “gigantes”, difíceis de serem mordidos,
tratados como verdadeiras iguarias, já que nossa fome era
“animal”, às 11 horas da manhã.
Mais alguns quilômetros e, depois de passar por
Uterga e Muruzábal, nos aproximamos do vale do Rio Arga,
onde se unem as rotas de peregrinação aragonesa e
francesa, portais da cidade de Puente la Reina,
denominada “a cidade de todos os caminhos”. E nesse
4. momento vieram à memória perguntas que muitos fizeram
antes de sairmos de casa, acerca da finalidade dessa
peregrinação, se o motivo era espiritual, ou religioso e
concluímos que, no fundo, poderiam ser todos, pois
tivemos alguma formação religiosa, desde crianças,
embora um pouco adormecida nos últimos anos, mas devia
ser tudo isso... a primeira e efetiva resposta às perguntas
formulada chegou nesse momento: a finalidade, agora, era
exclusivamente a de louvar Àquele que criara esse mundo.
Essa penitência do peregrino não é aquela ideia terrível
que se imagina como penitência, mas é sim um ato de
louvor ao Criador, ali, “ao vivo”. Termos a possibilidade de
estar nesses lugares, vermos e vivenciarmos tudo aquilo...
Podemos e devemos louvar ao Senhor em qualquer lugar,
mas, às vezes, precisamos fazer uma manobra radical,
participar de algo assim para que acordemos. Pensamos
estar despertos, mas, na verdade, notamos que
passávamos a vida adormecidos, participando
inconscientemente de dias triviais, como autômatos ou
simples ferramentas dos processos produtivos de alto
desempenho exigidos pela vida urbana.
Passamos por Óbanos, o último pueblo antes de
Puente la Reina e o cansaço era terrível, pois havíamos
cruzado um morro muito alcantilado e o calor era
escaldante. Sonhávamos com um banho.
Puente la Reina: cidade onde “todos los caminos a
Santiago se hacen un solo”, segundo a tradição, é um típico
exemplo de localidade nascida para o Caminho. As seis
arcadas de sua famosa ponte foram construidas no século
XI, por ordem da rainha Munia, esposa de Sancho III de
5. Navarra, visando amenizar a travessia do rio Arga. Na
metade da Calle Mayor, ergue-se a igreja de Santiago, com
dois pórticos românicos, sendo gótica a nave central de
1543. A igreja de San Pedro conserva a escultura da Virgen
del Txori, sendo que a cada certo tempo, segundo a lenda,
um txori (passarinho, em euskera) lhe limpava o rosto com
o bico.
Chegando em Puente la Reina, procuramos o
refúgio de peregrinos mais próximo. Era cedo, por volta
das 15 horas, e nosso pai resolveu se hospedar em um
hotel, por aquela noite. Eu e minha irmã preferimos o
albergue de peregrinos, pois, além do preço ser mais
acessível, nos havíamos adaptado perfeitamente às
condições simples de hospedagem. Após os longos trajetos
percorridos, o cansaço não nos fazia observar ou até
valorizar certos luxos, aos quais estamos acostumados a
conviver em nossa vida comum; os albergues e refúgios de
peregrinos foram estâncias perfeitas de hospedagem
durante todo o trajeto. À tarde, fomos visitar a ponte
medieval que empresta o nome ao lugar, Puente la Reina.
Visitamos a Iglesia de Santiago, construção em estilo
românico e gótico, com peculiaridades construtivas
ímpares, acumuladas pelos séculos de sua construção. O
assoalho da grande igreja, executado totalmente em
seculares pranchões de madeira maciça, abriga sob si uma
vasta cripta onde foram sepultadas inúmeras celebridades
do clero; suas colunas, em estilo românico, sustentam
arcos góticos executados em tempos posteriores à
complementação da grande obra, transformando sua
arquitetura em pura história, retratando tempos e povos
que por ali passaram.
6. Até esse ponto do caminho o calor e o sol eram
muito intensos e achei por bem cortar meu cabelo com
máquina zero, evitando assim maior desconforto. Comprei,
também, um cajado de madeira clara e leve, com ponteira
metálica, já que não me havia suprido de um no início da
caminhada. Ao anoitecer, fomos ao hotel onde nosso pai
estava hospedado e jantamos com ele, lá mesmo, no
restaurante.
Após o jantar, eu e minha irmã retornamos ao
albergue de peregrinos e lá dormimos, refazendo nossas
forças para o próximo dia de caminhada até Estella.