1. Folha de S.Paulo - União com máquinas vai libertar o cérebro do corpo - 10/06/2009 Page 1 of 5
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São Paulo, quarta-feira, 10 de junho de 2009
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SABATINA FOLHA
MIGUEL NICOLELIS
União com máquinas vai libertar o
cérebro do corpo
Neurocientista brasileiro radicado nos EUA vê sistema
nervoso como uma "democracia"
Eduardo Anizelli/Folha Imagem
O neurocientista Miguel Nicolelis, da Universidade Duke, nos Estados
Unidos
O DESENVOLVIMENTO da neurociência deverá libertar o
cérebro do corpo e permitir, por exemplo, que seres humanos
explorem o espaço usando máquinas capazes de transmitir
movimentos e sensações. A previsão foi feita pelo do
neurocientista paulistano Miguel Nicolelis, 48, em sabatina
promovida pela Folha anteontem. "Em muito menos de 30
anos, você vai conseguir ter a sua presença à distância".
Diretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke
(EUA) e do Instituto Internacional de Neurociência de Natal
Edmond e Lily Safra, Nicolelis disse também que está "à
beira de demonstrar que é balela" a ideia de que o córtex
cerebral se divide em áreas.
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DA REPORTAGEM LOCAL
O pesquisador é pioneiro no estudo de interações entre
cérebro e máquina, e já realizou proezas tecnológicas como
fazer um robô no Japão andar impulsionado por ondas
cerebrais de uma macaca nos EUA.
O objetivo do trabalho é desenvolver próteses neurais que
permita a pessoas paralisadas andarem novamente.
Nicolelis foi entrevistado pelos jornalistas Gilberto
Dimenstein, membro do Conselho Editorial da Folha e Hélio
Schwartzman, articulista do jornal, e pela neurocientista
Suzana Herculano-Houzel, da UFRJ. A mediação foi de
Claudio Angelo, editor de Ciência.
IMAGEM DO BRASIL
Em 1991, cheguei um dia para dar uma palestra na Califórnia
e falei que era da Universidade de São Paulo. Quando
terminei de falar, um americano olhou para mim e disse:
"Isso é perto de Santa Monica?"
O que vejo [agora] é o Brasil com algumas coisas no centro
da agenda científica mundial. O Brasil, nas projeções que vi,
vai se transformar no grande celeiro do mundo, tem a
biodiversidade, a possibilidade de ser o primeiro país a se
livrar do petróleo, a energia alternativa.
MILIONÁRIOS
Nos Estados Unidos, as pessoas que têm muito dinheiro
pensam que é a chance de comprar a imortalidade.
A [Universidade] Duke teve várias doações de pessoas que
queriam associar o nome delas a uma descoberta. E
evidentemente que o governo americano foi muito esperto de
criar uma legislação fiscal que ajuda.
Aqui no Brasil a relação com dinheiro é outra. As pessoas
ainda têm a ilusão de que levam com elas o dinheiro. A elite
americana valoriza mais uma educação de alto nível.
BUROCRACIA
É muito mais fácil eu doar dinheiro para a Duke do que para
a USP. Se eu quiser hoje pôr o nome da minha avó no
anfiteatro da Faculdade de Medicina, provavelmente morro
antes de conseguir - e o nome dela nem é tão longo. Quando
cheguei aqui no Brasil para criar nosso projeto [o Instituto
Internacional de Neurociência de Natal], eu contei: foram 65
assinaturas para provar que eu existia.
Quando era aluno da USP, era impossível importar um
anticorpo, um insumo. Melhorou muito, mas ainda não é o
que um cientista num laboratório de ponta desejaria ter.
OURO DO PENTÁGONO
[Ao ser questionado sobre receber dinheiro do Departamento
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de Defesa americano.] O que eles me pediram foi para
criarmos uma forma de, em 30 anos, fazer os veteranos de
guerra paralisados voltarem a andar. E estamos chegando lá.
O Sidney Simon, que é meu grande amigo americano, falou:
"Dinheiro é dinheiro". Não me meto. Dou uma palestra,
mostro o que sei fazer, aí entram dez advogados e eles sentam
com quem quer doar.
DEUS
Deus, na minha opinião de palmeirense -você acredita se
quiser-, é uma necessidade que todos nós temos de explicar
de onde viemos. Aparentemente existe uma necessidade do
nosso cérebro de contar uma história. Acho que o cérebro é
um grande simulador, ele simula a realidade completa, toda a
história da nossa vida. E essa história tem que ter um começo,
ela tem que ter uma explicação lógica de onde nós viemos.
Nesse domínio vem a noção de Deus, a religião.
O CÉREBRO UNIFICADO
Nós vamos publicar daqui a poucas semanas registros do
córtex visual em que 12% das células respondem à
informação tátil e vice-versa.
Faz cem anos que essa ideia [de que o cérebro se divide em
"casinhas", cada uma com uma função] se cristalizou. Nós
estamos à beira de demonstrar que isso é balela. A função, no
cérebro, não é determinada geograficamente. Ela é
determinada de acordo com as demandas da tarefa que se
impõe ao cérebro.
Então, se uma pessoa perde a visão e ela tem que navegar
pelo mundo sem o sistema visual, ela remapeia o atributo
táctil por todo o córtex, inclusive o visual. Nós estamos
abandonando essa ideia de que o cérebro é um grande
mosaico e partindo para noção de que o cérebro é uma grande
democracia.
PARKINSON
[Sobre o tratamento contra Parkinson com estimulação
elétrica desenvolvido por sua equipe na Duke.] Quando
começamos a olhar para animais [camundongos] que
desenvolviam um Parkinson muito violento e muito rápido,
tudo levava a crer que a atividade do cérebro parecia uma
crise epiléptica. Então falamos "isso é uma crise epiléptica,
vamos tratá-la como se fosse uma". As vantagens de
estimular atrás da medula espinhal são várias: é mais seguro,
muito mais fácil, muito mais barato. Mas a grande vantagem,
do ponto de vista teórico, é que muda a forma de olhar para o
cérebro. Ao invés de tentar tratar um lugarzinho, que era o
que a teoria anterior achava, você está tratando o circuito
inteiro. Do ponto de vista filosófico, isso é uma mudança
radical. Já temos os modelos para primatas prontos e nós
vamos fazer boa parte desses estudos lá em Natal. Espero
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que, se os resultados em macacos forem tão bons quanto eles
foram nos roedores, no ano que vem a gente começa a fazer
esses estudos em humanos.
CORPO MECÂNICO
O pensamento nada mais é do que uma onda elétrica
pequenininha, se espalhando pelo cérebro, numa escala de
tempo de milissegundos. O que fizemos [com primatas] foi
descobrir que é possível ler esses sinais e extrair deles
comandos motores capazes de reproduzir num braço
mecânico ou numa perna robótica a intenção motora daquele
cérebro.
TELECINESIA
E nós fechamos o circuito: o macaco usou sinais do córtex
motor para controlar a prótese e a prótese [usando sensores,
quando o pé atinge o chão] mandou informação de volta sem
usar o corpo para nada. O cérebro se libertou do corpo de vez.
Isso quer dizer que, a longo prazo, nosso alcance como
humanos vai mudar completamente. Você vai ter a chance de
atuar voluntariamente em um ambiente a milhares de
quilômetros da sua presença física.
No futuro, em muito menos de 30 anos, você vai conseguir
ter a sua presença à distância. A Agência Espacial Europeia
analisou nossos trabalhos e concluiu que não tem sentido
mandar humanos para Marte. Nós vamos de qualquer jeito,
manda algo que nos represente pelos nossos pensamentos.
UNIVERSIDADES
Se estivesse na situação de um jovem hoje, pensaria muito
antes de ir para a universidade. Ela precisa mudar demais, se
reestruturar tremendamente.
As divisões são do século 19, elas têm muito pouco a ver com
a realidade. Precisamos criar mecanismos para acelerar e
desburocratizar o processo de formação de cientistas. No
mundo inteiro.
LULA E PT
Eu não me rotularia um petista, me rotularia um humanista
[ao ser perguntado se seu petismo arrefeceu]. E eu e mais
80% da sociedade brasileira acreditamos que o atual governo
teve avanços fundamentais.
CIÊNCIA "DO MAL"
A ciência transformou-se em uma coisa misteriosa. Sempre
que fazia uma palestra, a primeira pergunta era: "E se isso for
usado para o mal?". Vejo na imprensa no mundo inteiro esse
afã de "e se fizer um gene desses errado, vai surgir um
Frankenstein que vai destruir a raça humana". Pode? Pode.
Mas tudo pode. O Palmeiras pode ganhar o título neste ano.
Mas as chances são remotas.
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