1. Ser leitor
- Não sei ler nem escrever, a vida não me propiciou essas regalias.
A ausência desses saberes, entretanto, não impediu a construção de
alguma felicidade. Tenho família, tenho emprego e embora o que eu
ganhe permita que minha família não passe fome, bem sei que o que
posso oferecer aos meus filhos não os impede de cobiçar vitrines, com
olhos gulosos. Agora estou frequentando um curso de alfabetização de
adultos e, segundo minha professora, em pouco tempo saberei
conhecer as letras, decifrar marcas, saber o que os letreiros dos ônibus
falam e, até mesmo, olhar os remédios na prateleira da casa de meu
sogro, identificando o nome de um ou de outro. Sabendo ler, creio que
ganharei um pouco mais, mas mesmo assim, ainda olharei com inveja o
mundo das pessoas que sabem mais, muito mais que eu.
- Eu sou um leitor. Tenho família, tenho emprego e embora o que
eu ganhe não permita que minha família passe fome, bem sei que o que
posso oferecer os meus filhos não os impede de cobiçar vitrines, com
olhos gulosos. Mas, se a riqueza material fica distante de meus sonhos,
os livros sempre me fizeram cavaleiro das cruzadas, gladiador de Roma,
pescador de almas. Com eles, percorri vielas medievais, viajei em
fantásticas naves rumo ao amanhã e como saltimbanco, andei por terras
que nunca vi, conversei com pessoas que minha admiração se
transformou em amor. Sou amigo íntimo de Bradbary, converso sempre
com Conam Doyle, jogo palavras de afeto para Clarice e Machado e,
com Castro Alves, até em Navios Negreiros andei. Estou esperando
uma promoção, sei que não vou ganhar muito, mas as bibliotecas irei
usufruir, pelo doce fascínio de passear pelo ontem e pelo amanhã. Sou
feliz em meus sonhos e essa felicidade, divido com todos quantos nesta
vida fizeram-se leitor.
Eu tenho um cão, chama-se Negus. Meu cachorro não sabe ler, mas é
capaz de pensar. Pode com seus ganidos avisar-me que a hora da
comida chegou e pode com seus olhos doces transmitir a afeição que
sente por mim. Posso dar um osso e dar afagos a Negus, jamais
poderei, entretanto ampliar os limites de seus pensamentos. Escravo de
um limite biológico inerente a sua espécie, aprenderá um pouco mais,
mas nunca fará desse saber um instrumento para aprender outros
aprenderes. Não creio que seja muito difícil adestrá-lo, mostrando-lhe
como ficar sentado ou dar-me sua pata dianteira, mas, jamais poderei
fazer de Negus um sonhador, jamais minha ação de professor poderá
ajudá-lo a ser arquiteto de seus próprios sonhos.