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   TEMPO DE LAZER: CINEMA E CULTURA POPULAR NO COTIDIANO

             PRATENSE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX


                                                    Ivanilda Aparecida Andrade Junqueira 1




       Entender as concepções e significados do lazer tem sido um desafio no debate
acadêmico devido à falta de consenso que existe sobre o assunto. Inicialmente, é
importante ressaltar a relação existente entre lazer e cultura, pois, segundo Dumazedier 2,
muitas das atividades designadas como lazer passam por minifestações de cultura e se
encontram ligadas às tradições, modos de vida e saberes partilhados por determinada
sociedade. Neste sentido, a concepção de cultura a se considerar deve ser percebida
numa realidade concreta enquanto cultura de massas, que também pode ser
compreendida como Industria Cultural, constituída após o fim da Guerra Fria,
principalmente pelo desenvolvimento da tecnologia e a transformação dos meios de
produção na segunda revolução industrial, e Cultura Popular cujo termo se remete às
manifestações coletivas, tais como o carnaval e as festas religiosas. Outro aspecto a ser
considerado é o modo como se dedica o tempo ao lazer.
       Em “O Prazer Justificado – História e Lazer”, Denize Bernuzzi de Sant‟Anna,
discorre sobre a disciplinarização que ocorreu no modo de organização do tempo livre
do trabalhador. Segundo Sant‟Anna, a questão da utilização do tempo livre para o lazer
é uma reivindicação antiga da classe trabalhadora, que, na maioria das vezes, é atingida
pela redução desse tempo, ocasionada pelas fraudes às leis que lhes assegurava esse
direito. Ela salienta que, além da redução do tempo livre, o arrocho salarial também é
uma das causas responsáveis pelo acesso de poucos às férias, ao lazer, transformando-os
em artigos de luxo,


               essa redução tende a inserir o tempo livre no terreno do sonho, da utopia e
               envolvê-lo numa aura atraente e redentora; transforma-se num tempo
               ansiosamente esperado na medida em que é massacrado pelo tempo de trabalho.
               Por conseguinte, a redenção de todos os sacrifícios pelo tempo livre e pelo
               usofruto do lazer tem como contraponto a identificação do trabalho a tudo
               aquilo que é rotineiro, penoso, obrigatório, já que neste se torna cada vez mais
               difícil Ter prazer e, por isso, muito mais comum adiá-lo e depositá-lo no tempo
               livre.3
2

       Sant‟Anna argumenta que, à medida que o prazer é banido do tempo de trabalho,
a expectativa em torno dos finais de semana e férias aumenta devido à busca por um
“lugar de direito” para se expressar, associando o prazer à idéia de liberdade, sendo o
mesmo considerado como uma recompensa pelo esforço desempenhado no dia-a-dia.
Contudo, é importante ressaltar que, esse direito ao lazer só alcança aquele trabalhador
remunerado, pois, a dona de casa que trabalha sete dias por semana não é reconhecida
como trabalhadora e, portanto, o lazer não é considerado um direito seu.

       No entanto, segundo essa autora, o resultado de pesquisas realizadas em torno do
tempo livre do trabalhador vêm demonstrar que um outro fator interfere quanto à
ausência do mesmo em clubes de campo, colônias de férias; pois, além da falta de
tempo, é preciso lidar ainda com a falta de dinheiro e as péssimas condições econômicas
da maioria assalariada na década de 1960. Nessa época, ocorre uma tentativa da classe
patronal em disciplinarizar o lazer, procurando corrigir e formar o trabalhador
organizando a maneira com o mesmo usa o seu tempo livre. Sant‟Anna destaca duas
tecnologias de poder diferenciadas; aquela que se recusa a investir no campo do lazer e,
conseqüentemente, é considerada como inimiga dos interesses e direitos do trabalhador;
a outra, a que promove o lazer tornando o trabalhador um aliado do sistema produtivo.
Em ambas é perceptível a lógica da produtividade.
       No capítulo II, “Os perigos e a salvação do lazer”, a autora cita a reflexão do
sociólogo Renato Requixa, discordando do mesmo e, salienta que o salário dos
trabalhadores não combina com a situação apontada por Requixa. Argumenta quanto à
questão do tempo livre, quando existe, ser utilizado na realização de um outro tipo de
serviço ou com um transporte difícil, muito comum nas grandes cidades. Isso se
comprova pela “febre de consumismo” proveniente da alta produtividade decorrente do
desenvolvimento tecnológico. Quando nos reportamos a algumas décadas atrás,
notamos que o homem possuía hábitos diferentes.
       Tomando como referência a cidade de Prata, interior de Minas Gerais, e fazer
uma retrospectiva das últimas décadas, é possível acompanhar as transformações no
cotidiano dos seus habitantes levando em consideração a influência que os avanços
tecnológicos exerceram no seu desenrolar. Desses adventos, o mais marcante em minha
memória foi a televisão. Antes que a primeira fosse instalada na cidade, o lazer era
diversificado. O cinema que se localizava na Praça XV de Novembro encontrava-se
sempre lotado nas sessões de final de semana; os passeios pelas calçadas da praça
3

adquiriam um sabor especial para rapazes e moças que aproveitavam esses momentos
para entabularem uma conversa, ou mesmo um romance. Durante uma determinada
época, o passeio ideal se definia com o ir e voltar de uma esquina a outra na calçada do
cinema e, por isso, ao definir o local de encontro com amigos, alguém logo respondia:
“na porta do cinema!”
       Quanto às festas religiosas que se realizavam na Igreja Matriz, localizada na
praça citada anteriormente, lembro-me da população da zona rural, chegando à cidade
com o intuito de participarem das procissões e barraquinhas. Esperávamos ansiosos pela
chegada dos tios e primos, os quais traziam sempre na “capanga” um queijo saboroso ou
um pote de doce com o qual nos regalávamos em poucos minutos. Então, a cidade, de
pacata que era, transformava-se num grande alvoroço.
        No meu bairro, o lazer resumia-se aos programas de rádio, às conversas na porta
de casa, às brincadeira das crianças na rua iluminada parcamente pela energia gerada
por um grande e barulhento motor. Além disso, todas as noites, participávamos de uma
diversão muito especial; nos reuníamos sempre no alpendre do “Seu João Júlio”, um
velho inventor de cabelos grisalhos, para ouvi-lo tocar sua “sanfona” espalhando sons
alegres pelos arredores. Foi, na casa desse senhor “iluminado”, instalado o primeiro
aparelho de TV do bairro. O evento transformou-se numa grande festa. Quase toda a
vizinhança acorria todas as tardes para a sala não muito grande desta casa, e, silenciosa,
assistia aos filmes e novelas preferidos tomando o partido dos personagens
protagonistas e defendendo-os como se fossem reais.
       Com o passar do tempo, “Seu João Júlio”, fez uma coisa inusitada. Construiu um
salão enorme e o encheu com bancos que ele mesmo reciclava em sua oficina de
inventor, somente para que os “espectadores” que freqüentavam sua casa, assistissem
aos programas mais comodamente.
       Pouco a pouco, o acesso à TV se estendeu à maioria das pessoas e, hoje, é
praticamente impossível que exista na cidade, uma única casa que não a possua. Em
relação a esse fato, pode-se dizer que os hábitos das pessoas de meu bairro, começaram
a mudar no momento em que a TV foi ligada na casa de “Seu João Júlio”, pois, o
tempo livre da maioria das pessoas começou a ser utilizado com os programas
televisivos que, diferentemente daquela época, hoje são exibidos vinte e quatro horas
por dia. As festas religiosas, não possuem mais o “glamour” de antes, a praça,
anteriormente palco dos passeios domingueiros, eventos políticos, se transformou no
decorrer dos anos. Já não sentam-se mais em seus bancos, os engraxates à espera de
4

clientes; as pessoas se utilizam de suas calçadas apenas para cortar caminho e chegarem
mais rapidamente ao seu destino. Seu espaço foi reapropriado com barracas comerciais,
característica predominante do trabalho informal autônomo.
       No entanto, as lembranças dos moradores da cidade, nos contam um pouco da
história de suas práticas de lazer na Praça XV.



 1 – CINE PRATA: FANTASIA, ILUSÃO E SOCIABILIDADES

        Nas décadas de 1940 e 1950, as salas de cinema passam a ocupar um lugar de
destaque no cotidiano dos brasileiros e, em Prata, tais salas foram eleitas como núcleos
de encontro e sociabilidade. Além dos filmes, da variedade de enredos, dos astros e
estrelas; havia ainda a possibilidade do encontro com os amigos, o footing antes do
início da seção e isso acabava por atrair um grupo considerável de pessoas. Segundo
Luziano Macedo Pinto:

               Geralmente as cidades, das maiores às menores, elegem os seus núcleos de
               encontro e sociabilidade. Nestes locais reúnem-se elementos das mais variadas
               classes sociais. Estes pontos variam de acordo com determinada época, mas
               ficam na memória das pessoas, pois retratam uma fase de sua história. No
               entanto, estes locais mudam com o desenvolvimento destas cidades. 4

       Em seu artigo, Pinto trata da influência que as salas de cinema exerceram no
cotidiano da sociedade uberlandense nas décadas de 30, 40 e 50, salientando que os
cinemas contribuíram, de maneira significativa, para a divulgação de novas formas de
comportamento, novas maneiras de se vestir, colocando o espectador em contato com
um “mundo novo”. Na cidade do Prata, o advento do cinema apresentou características
semelhantes às enunciadas pelo autor e para entender um pouco a sua importância no
cotidiano da sociedade pratense, apoiei-me nas palavras de Walter Benjamin que diz:

                Uma das funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio
               entre o homem e o aparelho. O cinema não realiza essa tarefa apenas pelo modo
               com que o homem se representa diante do aparelho, mas pelo modo com que ele
               representa o mundo, graças a esse aparelho. Através dos seus grandes planos, de
               sua ênfase sobre os pormenores ocultos dos objetos que nos são familiares, e de
               sua investigação dos ambientes mais vulgares sob a direção genial da objetiva, o
               cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que
               determinam nossa existência, e por outro assegura-no0s um grande e
               insuspeitado espaço de liberdade.5

       Segundo Benjamin, após a invenção do cinema, o espaço em que o homem agia
conscientemente foi substituído por outro em que sua ação é inconsciente. Ao assistir os
5

filmes, o espectador cria uma relação de interação em que o seu cotidiano se mistura ao
que acontece na tela. Ele, algumas vezes, assume o papel desempenhado pelo intérprete:

              É diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa
              alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas durante o dia de
              trabalho. À noite, as mesmas massas enchem os cinemas para assistirem a
              vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não
              somente afirma diante do aparelho sua humanidade (ou que aparece com tal aos
              olhos do espectador, como coloca esse aparelho a serviço de seu próprio
              triúnfo.6

       O cinema, ao ser instalado na cidade do Prata, proporcionou à sociedade da
época, entrar em contato com os hábitos de outras culturas, como por exemplo, o modo
do vestuário, os grandes bailes de gala, as músicas que eram ouvidas, e procurava
assimilá-los adaptando-os à sua realidade. O primeiro cinema da cidade foi instalado à
Rua Presidente Antônio Carlos acerca de um quarteirão da Praça XV de Novembro, por
volta da década de 1930:

              Era o Cine Santa Helena. Ele não tinha aquela inclinação porque o prédio não
              havia sido construído com esse propósito. Mas foi lá que o povo começou a
              gostar de cinema. Os filmes eram mudos. Começou com o cinema mudo, depois
              veio o cinema falado. O movimento todinho era ali na Presidente Antônio
              Carlos. Lá fora tinha um barzinho... era muito amplo! Muitos filmes bons a
              gente assistiu ali. O povo do Prata era assim: eles iam para a primeira seção no
              Cine Santa Helena... corriam depois para a seção do Cine Prata e vice-versa. O
              povo, então ficava pra lá e pra cá. Tudo por causa do cinema... pra você ver
              como o povo do Prata adorava cinema!7

       Até a década de 1940, o Cine Santa Helena era o único cinema da cidade:

              Quando o cinema era lá embaixo, nois ia lá para a porta e ficava lá. Se quisesse
              namorar era só escorar lá na porta e ficar lá, esperando as moças passar pra lá,
              pra cá... pra lá, pra cá... Daí um pouco elas interessavam nocê e vinham
              chegando... chegando... e logo a gente convidava para fazer vai e vem. Eh! Mas
              era bão! Só que ninguém podia pegar na mão, não! Mesmo as moças daquela
              época, não podia sair de casa dia de semana, não. Os velhos não deixavam. E
              para sair tinha que ser só no sábado e no domingo e só se fosse acompanhada.
              Era uma beleza, viu, naquele tempo! Agora acabou tudo. Tinha também os
              seriados que passavam de noite e na matinê. Era cada aventura gostosa...8

       Essas palavras, para mim, são especiais, pois partiram de um contador de casos
inveterado. Desde criança ouço suas histórias e nunca me canso. Trata-se de meu pai. A
beleza com que as conta atrai, além de mim, várias pessoas que ao vê-lo sentado no
“tronco” colocado na esquina de sua casa, param apenas para ouvi-lo. O seu relato nos
leva a perceber que as pessoas que freqüentavam o cinema, não pertenciam apenas às
6

classes mais altas, pois ele era um trabalhador de origem simples, mas também se
interessava pela cultura..

       Segundo os depoimentos, percebendo o interesse da população, a qual dedicava
boa parte de seus finais de semana assistindo aos filmes exibidos pelo Cine Santa
Helena, um grupo de irmãos resolve, na década de 1940, iniciar a construção de um
prédio com todos os requisitos exigidos para a instalação de um cinema digno de
receber aquela clientela. Os irmãos, Alor, Frausto, João Edson e Zoraide Melo, com
espírito empreendedor, dão início à construção do Cine Prata, na face oeste da Praça XV
de Novembro.




Ilustração23: Fotografia do Cine Prata produzida na década de 1950. Fotógrafo desconhecido.
Acervo: DEC.

       A imponência dessa construção, ressaltada por alguns dos depoentes, pode ser
observada na ilustração 23. O design do prédio apresenta um telhado de quatro águas e
uma fachada suntuosa ornamentada por relevos e marquizes que se justapõem em
horizontalidades e verticalidades. Constatamos que o referido prédio se destaca dos
demais revelando uma nítida separação entre ele e aqueles que se localizam ao seu
redor, principalmente por contar com dois pavimentos. No piso térreo funcionava a
bilheteria, o bar e uma sala de espera que dava para o grande salão onde ficava a tela e a
platéia. No piso superior ficava a sala de projeção. Em frente percebe-se a rua com
7

calçamento de paralelepípedos denotando a ausência do asfalto, técnica já utilizada em
outras cidades da região.

       Partindo para a observação daquilo que se encontra presente e ausente na
fotografia, notamos que no momento do registro fotográfico nenhuma pessoa compunha
a paisagem retratada, o que nos levou a pensar nas reais intenções do fotógrafo no
momento da produção. Nesse sentido, Benjamin salienta que ao excluir o homem da
fotografia, o valor de culto, decorrente da saudade consagrada aos amores ausentes ou
defuntos, tende a diminuir ocorrendo a sua superação pelo valor de exposição. 9 Então, o
objetivo buscado pelo fotógrafo com tal exclusão seria evidenciar a suntuosidade do
edifício do Cine Prata? Existiria algum propósito político norteando a sua prática? Para
Benjamin, esse processo de exclusão foi radicalizado quando Atget fotografou:

              as ruas de Paris, desertas de homens, por volta de 1900. Com justiça, escreveu-
              se dele que fotografou as ruas como quem fotografa o local de um crime.
              Também esse local é deserto. É fotografado por causa dos indícios que ele
              contém. Com Atget, as fotos se transformam em autos no processo da história.
              Nisso está a significação política latente. Essas fotos orientam a recepção num
              sentido predeterminado. A contemplação livre não lhes é adequada. Elas
              inquietam o observador, que pressente que deve seguir um caminho definido
              para se aproximar delas.10

       Por meio desse processo, o receptor recebe instruções que lhe indica caminhos
sem importar se são verdadeiros ou falsos. Já a teoria exposta por José Mattoso ao falar
dos monumentos históricos que pretendam exaltar o passado nos leva a perceber que ele
considera a paisagem como documento, referindo-se às marcas que o homem tem
deixado nela e enfatiza a importância de se examinar essas marcas. Para ele, na
paisagem urbana, os vestígios temporais são mais facilmente perceptíveis; então,
poderemos utilizar a fotografia como fonte documental quando ela retrata edifícios,
praças, ruas e casas da cidade que formam a paisagem urbana.

       Nesta paisagem, a figura humana está presente, mesmo que apenas por
abstração, ou seja, mesmo que apenas na imaginação, pois, essa presença pode ser
sentida por meio das ações do homem na construção do meio em que vive e que surge
documentada sob a ótica do fotógrafo. Através da fotografia dessa paisagem, será
possível fazer uma análise do cotidiano das pessoas na época em que determinadas
fotografias foram produzidas.
8

       O Cine Prata não atraiu a clientela apenas por causa dos filmes exibidos, mas
também por essa sofisticação que o fotógrafo tornou visível na ilustração 23, o que pode
ser comprovado pelas palavras de Ana Augusta:

              Nossa, como era bonito, viu? O Cine Prata era “chic”. Havia uma cortina que
              abria lentamente, porque naquela época valia a pena ir ao cinema. Na sua
              inauguração foi exibido aquele filme... O Corcunda de Notre Dame. Não sei se
              vocês se lembram ou já ouviram falar. Foi o primeiro lançamento dessa história.
              O cinema era muito bonito pra época e ficava ali na Praça que ainda se chamava
              Fernando Terra. Depois, todo domingo, a gente passeava na praça após a retreta.
              Por volta das sete horas mais ou menos, começava a música no Cine Prata. Eles
              faziam uma programação de auto falantes... parecia rádio. Ofereciam músicas
              em data de aniversário, recados amorosos... essas coisas. Então, a gente ouvia
              essa música..., era um tempo muito gostoso... Eram boleros, eram peças muito
              bonitas que a gente escutava. Depois, quando batia um gongo, ia começar a
              seção de cinema, né? Logo eles punham uma outra música, eu me lembro bem...
              uma era o Barbeiro de Sevilha, outra era a Rapsódia Húngara número dois...
              depois começava a seção de cinema. Era muito gostoso... Fazíamos o “footing
              na porta do cinema... Isso era no nosso tempo de quinze anos. A gente passeava
              pra lá e pra cá... os rapazes ficavam na calçada ou na rua, porque ali era
              impedido o trânsito naquele trecho. Então a gente passeava... era um quarteirão
              só... pra lá e pra cá... ouvindo as músicas que tocavam no Cine Prata e as moças
              flertando com os rapazes... era muito interessante!11

       Analisando a narrativa de Ana Augusta e do Sr. Osvaldo quando falam do
“footing”, podemos perceber que houve uma transferência de local para a prática de tal
hábito. À medida que a clientela do Cine Santa Helena era atraída para o Cine Prata,
esse passeio de vai e vem também se deslocou, passando a acontecer na Praça XV de
Novembro.

       Além de exibir, em sua maioria, filmes americanos e europeus, o salão do Cine
Prata também se prestava a outra função, a de palco para vários shows contratados pela
prefeitura ou por particulares. Um dos mais comentados foi a apresentação de um grupo
haitiano com uma orquestra de tambores. Mas não eram os instrumentos tradicionais,
eram tambores parecidos com aqueles que servem para armazenar gasolina. Segundo
Ana Augusta era uma orquestra maravilhosa. O tambor era adaptado de forma que cada
um, dependendo da saliência que possuía; um amassado maior outro menor; produzia
uma nota musical e emitia um som diferente. “Era um amassadinho que davam na
tampa do tambor... eles penduravam aquela tampa no pescoço e tocavam. E como
tocavam tão bem!”12
9

       Na década de 1970, sob a influência dos festivais de música popular que
acontecia no Rio de Janeiro e em São Paulo, por vários anos o palco do Cine Prata
abrigou inúmeros candidatos que lá iam mostrar os seus dons musicais.

               Nós tivemos também o prazer de fazer o festival de música inédita, o FECAP,
               Festival da canção Pratense. Estes festivais eram influenciados por aqueles que
               aconteciam no Rio e em São Paulo. Aqueles festivais em que se apresentaram
               Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, dentre outros. Essa influência se
               estendeu pelo Brasil inteiro. Eu me lembro também que nós conseguimos
               formar um grupo de músicos... eu não participei, mas tive o prazer de vê-los se
               apresentarem no festival do Chapadão em Uberaba no ano de 1967. Nós
               tivemos um grupo musical pratense se apresentando num festival da canção de
               Uberaba! Pra nós foi motivo de muito orgulho! Esse grupo era liderado pelo
               Carminho do Ismar e foi organizado apenas para participar deste festival.
               Valeram a pena estes festivais. Hoje o Carminho é um músico respeitado dentro
               de Goiânia onde reside. 13

       O relato de Cleanto ressalta que não apenas a influência externa era importante,
mas quando alguém da cidade se sobressaía fora de seu âmbito, havia um certo orgulho
por parte de seus conterrâneos. Era importante levar, segundo eles, o nome do Prata
para fora de sua fronteiras, principalmente na área cultural.

       O Cine Prata foi desativado na década de 1980. Novos usos foram atribuídos ao
seu espaço. Onde outrora se realizavam eventos culturais, hoje funciona a instituição
financeira Bradesco. Sua fachada foi descaracterizada e em momento algum se falou na
sua restauração ou preservação, mesmo que, como disse Françoise Choay14 ao se
reportar às palavras de Ruskin, a arquitetura seja o único meio que dispomos para
conservar vivo um laço com o passado ao qual devemos nossa identidade, “e que é
parte de nosso ser”. Ao interrogar os monumentos, Ruskin prefere uma abordagem
afetiva considerando que o passado é definido pelas gerações humanas que nos
precederam. Ora, podemos dizer então, que ao tomarmos contato com o que viram e
tocaram as gerações desaparecidas existe a possibilidade de nos comunicarmos com
elas. Mas, esse pressuposto citado pela autora não deve ser considerado como verdade
absoluta, pois nem sempre as lembranças necessitam de objetos palpáveis para vir à
tona. Um cheiro ou um som, também são responsáveis por despertar nosso
subconsciente. Contudo, se considerarmos as políticas preservacionistas adotadas no
país, nos deparamos com uma série de dificuldades. Quando se trata de dar uma nova
destinação aos edifícios antigos mantendo sua originalidade:
10

              os trabalhos de infra-estrutura exigem uma competência técnica especial e têm
              um custo às vezes proibitivo. É por isso que é difícil garantir que a
              reutilização seja rentável, o que em geral só se consegue em prejuízo da
              funcionalidade. Neste caso, resta apenas uma casca vazia de seu conteúdo por
              “curetagem”: procedimento discutido quando se trata de preservar a morfologia
              de uma malha urbana; procedimento inadmissível quando se resume ao
              sacrifício das estruturas e o ambiente interno de um edifício. 15

       Outro fator agravante quando se trata da preservação de edifícios particulares é
que, se tombado pelos órgãos públicos, a sua conservação fica a cargo do proprietário.
Sendo assim, não há interesse de sua parte quanto ao fato de sua propriedade ser
considerada de valor histórico, portanto passível de ser tombada e, desse modo, ela não
lhe renderia os dividendos que obtém ao alugá-la a terceiros ou destinar-lhe novos usos.

       A especulação imobiliária passa a orientar os modos de utilização dos edifícios
que se localizam nas áreas mais movimentadas das cidades. Mesmo que eles possuam
um valor histórico expressivo constatamos que não existe, por parte do poder público,
nenhum interesse em destinar verbas para a preservação de tais edifícios; a não ser
quando a valorização do patrimônio histórico representa um empreendimento lucrativo.
As cidades históricas de Minas Gerais são um exemplo disso e sua fonte de renda
firma-se nas atividades relacionadas ao turismo. O que não devemos esquecer, de
acordo com Lia Mota , é a maneira como o IPHAN desde a sua fundação até a década
de 1960 selecionou:

              o que e como preservar nas cidades brasileiras, influencia até hoje as políticas
              públicas, no que se refere ao urbanismo, e o entendimento que as comunidades
              urbanas e os cidadãos têm sobre o valor das cidades como patrimônio. Essa
              atuação leva à valorização das cidades pela uniformidade de seus aspectos
              estilísticos e fortalece o discurso das que vêem seus interesses comprometidos
              pela preservação urbana, aqueles a quem interessa a transformação de áreas
              históricas em produtos de consumo. Tais enfoques prevalecem em detrimento
              de outras propostas que têm como alvo trabalhar áreas do ponto de vista da
              história urbana, com fontes de conhecimento e identidades, independente de
              julgamento sobre a estética dos imóveis. 16

       Devemos nos lembrar que a escolhas das cidades mineiras como parâmetro para
as práticas preservacionistas buscava construir uma imagem que representasse o Brasil
como uma nação moderna durante o governo de Getúlio Vargas a partir da década de
1930. Segundo a autora, ao distinguir com uniformidade o tratamento que é dado às
cidades:

              contrapõe-se a outras possibilidades de preservação ao desconsiderar as cidades
              como processo social e historicamente construído, como espaços que acumulam
11

              vestígios culturais no seu processo permanente de reapropriação social e como
              lugares que adquirem valor simbólico, referências culturais das comunidades
              que as habitam, independente das características estéticas.17

       Assim, mesmo que a preservação do Cine Prata tenha sido um desejo daqueles
que o freqüentaram como demonstra o depoimento de Maria Augusta: “eu acho que o
Cine Prata era um prédio que deveria ter sido preservado... que fosse utilizado para
outra função... ele lembra um tempo muito bom na vida de todos nós!”.18 a sua
preservação, segundo as políticas de preservação praticadas no país, só seria uma
realidade se ela representasse retorno financeiro aos investidores. Neste caso, optou-se
pelo aluguel do imóvel.

2 - SONHOS E “GLAMOUR” NAS NOITES DO PRATA CLUB.

       Em dez de fevereiro de 1933, realizou-se uma reunião nos salões do Grupo
Escolar onde foi discutido e aprovado o projeto de estatutos sociais apresentado pela
comissão encarregada da fundação e instalação do Prata Club.

              O prédio em que provisoriamente se instalará a nova sociedade já passou pelas
              reformas e adaptações necessárias de modo que, antes mesmo da cerimônia de
              inauguração, que se pretende levar a effeito no dia vinte e seis do corrente, elle
              já poderá ser freqüentado pelos sócios. O número de sócios fundadores, cujas
              vantagens, aliás, não são de se desprezar, é bem animador, havendo muitos
              deles, adiantado várias mensalidades, para que o Prata Club possa fazer frente
              às despezas iniciais. 19 (sic.)

       Começa assim a história de mais um dos prédios que compõem o entorno da
atual Praça XV de Novembro. Inicialmente as reuniões sociais se realizavam nos salões
do Grupo Escolar Noraldino Lima por falta de um prédio que abrigasse a sede da
entidade. Para satisfazer a sociedade da época. Em um outro editorial publicado em
26/11/1936, e que descreve a festa ocorrida em 18/11/1933, nos é proporcionada uma
idéia de como se comportava tal sociedade:

              ...Foi inteiramente correspondida a expectativa com que a aguardava a
              sociedade pratense, pois a elegante reunião constituiu, por todos os títulos, a
              nota de arte e de distinção deste fim de anno. Numerosa e distincta, a assistência
              que a ella acorreu. Felizes e encantadores os números de declamação e canto, a
              cargo de senhoritas da nossa sociedade. Brilhante a palestra literária de que se
              encarregara o sr. Dr. Garibaldi de Mello Carvalho. Animado e encantador o
              sarau dançante. [...] A seguir, a senhorita Helena Novaes Costa declama com
              expressão “Carinhos” versos de Menotti Del Picchia. A senhorita Meiga
              Mazzaro canta “Rubis”, acompanhada pela orquestra. A senhorita Aracy Franco
              declama “Descrença”, os lindos versos de Ana Amélia e a senhorita Zilá Vilela
              Junqueira “Confissões de Amor”de Aristeu de Andrade.20 (sic.)
12

       Em 1934, a sede do Prata Club que se localizava à Av. Major Carvalho, desloca-
se para um prédio totalmente remodelado situado na Praça Fernando Terra. Conforme a
pesquisa se desenvolvia, fui descobrindo fontes e documentos referentes a esse mesmo
assunto em diferentes locais. Inicialmente foram-me doadas algumas fotografias e uma
delas me chamou a atenção (ilustração 24). Conforme os depoimentos, é uma fotografia
que retrata várias pessoas à porta do prédio da prefeitura aguardando o desfecho de uma
corrida de carros ocorrida em 1938.

       Era, então, o período do Estado Novo de Getúlio Vargas. Por meio da análise de
determinados elementos da fotografia 21 foi possível reconhecer sua relação com uma
outra fonte encontrada posteriormente: um artigo no jornal “Cidade do Prata” publicado
em 13/11/1938.




Ilustração24: Comemorações de um ano do Estado Novo – 1938. Fotógrafo desconhecido.
Acervo: DEC

       A imponência dessa construção, ressaltada por alguns dos depoentes, pode ser
observada na ilustração 23. O design do prédio apresenta um telhado de quatro águas e
uma fachada suntuosa ornamentada por relevos e marquizes que se justapõem em
horizontalidades e verticalidades. Constatamos que o referido prédio se destaca dos
demais revelando uma nítida separação entre ele e aqueles que se localizam ao seu
redor, principalmente por contar com dois pavimentos. No piso térreo funcionava a
13

bilheteria, o bar e uma sala de espera que dava para o grande salão onde ficava a tela e a
platéia. No piso superior ficava a sala de projeção. Em frente percebe-se a rua com
calçamento de paralelepípedos denotando a ausência do asfalto, técnica já utilizada em
outras cidades da região.

       Tal artigo trata das festividades organizadas pela diretoria do Prata Club para
comemoração do primeiro ano do Estado Novo e relata passo a passo o programa de
atividades elaborado para a ocasião. É inaugurada nos salões do Prata Club um retrato
do Presidente Getúlio Vargas.

       Ao observarmos a referida imagem, podemos ver exposto em evidência, no
ponto de chegada, à porta da antiga prefeitura, outro retrato do Presidente. As pessoas
que se encontram em cima do palanque improvisado, denotam pertencer ao corpo
administrativo da cidade. Outros se posicionam mais distanciados. A ausência da
mulher no grupo fotografado demonstra a sua exclusão da cena política e do ambiente
dominado por homens. Elas permanecem à distância e aparecem em segundo plano na
cena registrada. Segundo Carrijo, “sua presença quase sempre imperceptível, introduz
a simbolização da inserção marginal da mulher da época no espaço público da
cidade”.22 Ao longe, em terceiro plano, avista-se um dos Morrinhos. Já o discurso que
compõe o texto do editorial é laudatório e enaltece profusamente o “mito” Getúlio
Vargas o que pode ser constatado pelo fragmento transcrito abaixo:

              [...]o Prata Club julgava praticar um ato de justiça e de patriotismo,
              inaugurando no seu salão de honra, o retrato do grande e benemérito brasileiro.

              [...] O Sr. Aymoré Dutra, digno inspetor de ensino nesta circunscrição, foi o
              segundo orador. O seu discurso rico de imagens e conceitos, foi a exaltação do
              Estado Novo, que apesar de ter apenas um ano de existência, já se impusera,
              pelas suas normas de honestidade e civismo, não só pelo aplauso como ao apoio
              decidido e entusiástico de todos os bons brasileiros. 23

       O empenho dos políticos pratenses em evidenciar a figura do Presidente se deve,
em parte, à postura adotada pelo governo getulista após a revolução de 1930 em que:

              o Estado reorienta seu eixo de atuação frente às camadas populares. Definiu-se
              uma nova trajetória rumo à complexa articulação política que buscava conciliar
              a hipertrofia do aparato de dominação – e a concomitante veiculação de
              ideologias marcadamente autoritárias – com a constituição de um discurso
              dirigido às classes trabalhadoras, fundamentado nos argumentos da ordem e
              disciplina. Além do forte tom acéptico do discurso político do período em
              questão, estava em curso um projeto populista, que se expressava no esforço de
              Getúlio Vargas em estabelecer uma estreita vinculação de caráter paternalista e
14

              afetivo com as massas. A partir do Estado Novo essa estratégia tornou-se o
              ponto de convergência de todas as ações do Estado junto às classes
              trabalhadoras.24

       Esse discurso era assimilado por grande parte da elite política cujo interesse se
pautava na necessidade de alinhamento ao poder vigente procurando garantir que suas
reivindicações fossem atendidas e caracterizando, desse modo, uma relação de
dependência    que objetivava a      legitimação da autoridade do Estado na tutela da
sociedade. A imagem de um poder estatal forte era introjetada na população por meio da
imprensa que era alvo de um intenso controle por parte da censura que procurava
disciplinarizar a população salientando o valor da conservação das tradições. Além
disso, havia a proposta modernizante que visava a criação de uma nova identidade
coletiva calcada na recuperação do passado, associada aos progressos técnicos e
políticos da época.

       O editorial informa ainda que essas festividades iniciaram-se às cinco horas da
manhã e foram fechadas por um “suntuoso baile, que constituía a última parte do
programa”. Os depoentes falaram de vários bailes como o descrito acima e que se
realizaram por toda a trajetória social do Prata Club. Grandes orquestras animaram as
noites da sociedade pratense. Quando se referiram a esses eventos, a importância do
“vestir-se bem” para aquelas ocasiões foi ressaltada por grande parte dos depoentes. A
entrada dos cidadãos no recinto do Prata Club só era permitida se eles seguissem a regra
imposta no quesito vestuário:

               Era um clube muito grande, as moças e rapazes que participavam dos bailes
               trajavam-se muito bem. Traje a rigor... jamais se admitia a entrada em baile a
               rigor sem “smoking”, seja branco ou preto. Mesmo os mais pobres também se
               trajavam bem. A sociedade era muito selecionada e pra você conseguir um
               convite tinha que ter um currículo respeitável. Não era o dinheiro que valia, era
               a moral. A moral da pessoa valia muito mais que dinheiro. Podia ser alguém de
               família humilde, porém era preciso que um conselheiro analisasse a situação da
               pessoa pra decidir se teria permissão para entrar. 25

       A opinião feminina também não se diferenciava do que nos diz professor
Virgilio. Para Ana Augusta:

               o baile de inauguração do Prata Club foi uma maravilha! Duas orquestras...
               engraçado, como é que coube lá dentro? Era uma orquestra de Frutal que ficou
               em cima daquele palco que eles construíram, né? E a outra ficava no outro
               canto. A sociedade do Prata era uma sociedade pequena. Mas as roupas eram
               lindas... lindas! Cada vestido mais bonito que o outro... era um guarda roupa de
               classe mesmo! E um pessoal muito chique... os sócios eram bem selecionados.
15

               Talvez por isso coube duas orquestras no salão. Porque a sociedade era muito
               pequena.26

       Em outro depoimento, Maria Augusta Camargos salienta que desde o tempo em
que o Prata Club se localizava na avenida Major Carvalho:

               lá não entravam negros, não. Só Brancos. E tinha outra coisa também. Os
               homens não podiam entrar lá sem paletó e gravata. Quem trabalhava lá era o Sr.
               Cetim. Ali também se realizavam festas maravilhosas e eles eram muito
               enérgicos. Por exemplo: se seu pai não pagasse a contribuição mensal em dia
               eles não deixavam entrar e ainda humilhavam. O “Tio Luiz”, o que ele podia
               “picar” as pessoas ele picava. Mas isso era muito bom porque as pessoas
               evitavam atrasar as mensalidades. [...] Eu me lembro também da inauguração do
               prédio novo, na esquina da praça. Foi um baile a rigor, muito chique! Nessa
               ocasião eu não tinha idade para freqüentar bailes ainda, mas eu fui ali pra
               esquina só pra apreciar aquelas belezas que estavam entrando... porque as
               mulheres estavam muito bem trajadas... umas roupas lindíssimas!27

       Por meio dos depoimentos, torna-se evidente que conflitos como separação de
classes e segregação racial também faziam parte do cotidiano da comunidade pratense e
que ali também os territórios de sociabilidade eram “projetados e construídos de forma
a segregar uns e incorporar outros, subjuga e absorve aqueles que procuram por ele.
Espaço fantasmagórico que invade a alma pois oferece, promete e, ao mesmo tempo,
nega, retira, ilude”.28

       Características de segregação racial são identificadas em vários outros
depoimentos que afirmaram não ser permitida a presença de negros nem mesmo como
sócios do Prata Clube. “Os brancos podiam ir no clube dos pretos, mas os pretos não
podiam ir no clube dos brancos, o Prata Club. Só era permitida a entrada de pessoas
de cor, no carnaval quando eles iam fazer a visita... eles desciam com a Escola de
Samba, aí então, era permitida a sua entrada.” 29 Mas, ao serem questionados sobre e
existência de tais conflitos, em nenhum momento os depoentes os confirmaram, o que
sugere a necessidade de camuflá-los na tentativa de consolidar a imagem de sociedade
harmônica criada no imaginário da sociedade em questão.

       Quanto falam das tardes dos finais de semana, salientam que o lazer dos mais
jovens consistia em participar das matinês que se realizavam nos recintos do Prata
Club. Na sala ao lado da escada, ficava uma mesa de pingue-pongue onde as duplas se
empenhavam em disputas acirradas. Pessoas de todas as idades aproveitavam esse lazer:

               Da história do Prata Club eu tenho a dizer que foi a melhor época. Eu posso
               dizer que vivi a época de outro, não só do cinema, do teatro e da música. Várias
16

               peças extraordinárias foram encenadas no Cine Prata e às vezes, até mesmo no
               Prata Club, por companhias de alto nível. Nós ouvimos orquestras de nível
               internacional que passaram pelo Prata realizando bailes maravilhosos em que a
               sociedade comparecia toda. Eram bailes finos, não se aceitando homens
               trajando camisas pura e simples, mas era necessário o uso de terno e gravata ou
               “dinner jacket”... afinal de contas, se o que acontece hoje é modernidade, então
               eu digo que o Prata perdeu muito com essa modernidade. Os bailes eram muito
               bonitos, e a sociedade que comparecia era mais escolhida. Eu digo mais
               escolhida porque as famílias pratenses que compareciam eram as mais
               tradicionais. Sempre havia muito respeito, não havendo muita bagunça... mas,
               quando alguém passava um pouco da medida, o Juiz Moreira, que era o zelador,
               chamava a atenção e o presidente convidava o inoportuno a sair. A época de
               ouro da sociabilidade pratense aconteceu com os eventos patrocinados pelo
               Prata Club.30

       Ao     comentarem     que    quem    não    possuísse      condições   financeiras    e,
conseqüentemente, não se vestisse bem, não poderia participar dos eventos promovidos
no Prata Club, os depoentes deixam transparecer um certo preconceito. Vale ressaltar
que essa é uma característica que perdura na atualidade, não apenas em Prata, mas em
grande parte do país. Os estatutos que estabelecem normas na maioria dos clubes mais
luxuosos prevêem taxas altas para o ingresso de novos sócios e esse fator, por si só, já é
excludente, pois é uma minoria da população brasileira que conta com uma renda
mensal adequada para suportar tal despesa.

       Até a década de 1950, a sede do Prata Club funcionava em um prédio alugado.
Em 1951 foi concluída a construção da sede própria localizada na esquina noroeste da
Praça XV de Novembro. Ao observarmos a fotografia que retrata a largada de corrida
de bicicletas, inserida neste trabalho na página 134, notamos o prédio do Prata Clube
compondo o pano de fundo ainda apresentando sua arquitetura original típica da época,
seguindo o estilo “art déco”. Contudo, ao observarmos a ilustração 25, fotografia
produzida no ano de 2004, notamos as intervenções que descaracterizaram totalmente
sua fachada. Segundo o atual dono do Bar Caiçara, Sérgio Luiz Felisbino, o telhado
apresentava    sérios   problemas     ocasionando      goteiras    que   prejudicavam       seu
estabelecimento, instalado no piso térreo do prédio. A marquise sob a qual se apoiava
uma parede de canto do salão de baile corria o risco de desabar e, desse modo, ele não
encontrou outra alternativa a não ser optar pela reforma.

       Perguntei, então, se algum especialista havia visitado o prédio e elaborado um
diagnóstico. A resposta foi negativa. O motivo é que, na cidade, não existem
especialistas capacitados para realizar a tarefa. Neste sentido, o que acontece em Prata
17

quanto à conservação dos prédios mais antigos vai ao encontro do que nos fala
Françoise Choay:

              Querer e saber tombar monumentos é uma coisa. Saber conservá-los
              fisicamente e restaurá-los é algo que se baseia em outros tipos de conhecimento.
              Isso requer uma prática específica e pessoas especializadas, os arquitetos dos
              monumentos históricos”, que o século XIX precisou inventar31




Ilustração25: Reforma do Prata Club. Fotografia produzida no ano 2004 pela autora. Acervo
próprio.

       Ora, quando pensamos a questão da preservação de patrimônio em Prata, e a
relacionamos ao pressuposto acima, percebemos que talvez seja este seja um dos
entraves para que a implantação de políticas de preservação ocorra de maneira
satisfatória. A ausência de mão de obra especializada é perceptível nas reformas que são
realizadas nos prédios públicos, como por exemplo, as igrejas. Nenhum estudo relativo
ao estilo da arquitetura adotada na construção do projeto original é feito. A obra de
reforma é normalmente realizada por leigos e, na maioria das vezes, não se pensa em
manter a originalidade do projeto.

       A presença de uma pá carregadeira, a qual passa em frente ao prédio do Prata
Club na hora em que o dispositivo da câmera fotográfica foi disparado nos remete à
demolição da antiga Igreja Matriz e percebemos que a situação não é nova. Do mesmo
18

modo que o Prata Club foi reformado devido ao risco de desabamento, a demolição da
igreja foi calcada na justificativa de que estava prestes a desabar. Mas, já no inicio do
processo de demolição, várias dificuldades surgiram devido à solidez da construção:

              Quando eu vi derrubar a Igreja, eu fiquei tão chateada... porque eu vi o tanto de
              trabalho que deu pra desmanchar. Cada coluna daquela que tinha no interior da
              Igreja... eram umas colunas no estilo romano que dava até para o povo sentar
              nos cantinhos delas, porque sua base era quadrada. O tijolo cresceu até certa
              altura que dava pra você sentar. Depois dessa base, ela começava circular, em
              estilo romano mesmo. Os gomos que ela tinha... a coluna saia daquele pilar
              quadrado e subia formando uns gomos como se fosse uma coisa dentada... e
              depois ela saía mais fina no centro e ia até ao teto. Eu vi desmanchar aquelas
              colunas e pensei comigo: Mas é um absurdo desmanchar essas colunas! E o
              trabalho que deu! Foi preciso da ajuda de pás carregadeiras e trator de esteira
              para fazer isso. Eles amarravam pedras enormes em correntes e elas eram
              jogadas de encontro às paredes, mas isso não surtia efeito algum. 32

       Então, nem sempre, a possibilidade de desabamento para justificar qualquer
demolição, é avaliada da maneira correta. Percebe-se, desde essa época, uma
preocupação com a remodelação estética reforçada pelo espírito da modernidade
difundido desde a década de 1920. Segundo o depoimento de Cícero Junqueira,
infelizmente no Brasil, não só na cidade do Prata, as pessoas não têm noção da
importância da preservação dos patrimônios e isso tem prejudicado culturalmente as
cidades. A conservam de edifícios e valorização das raízes culturais faz parte de uma
quantidade muito pequena de cidades brasileiras:

              O Prata por exemplo, apesar de ser bastante antiga, quem a visita hoje pensa que
              ela tem trinta anos, porque a maior parte dos prédios que estão ali são bem
              recentes. Os prédios antigos foram todos demolidos e vários deles tinham um
              estilo arquitetônico que não poderia ser destruído, porque realmente mostrava o
              estilo adotado em cada época durante o seu processo de desenvolvimento. Em
              1830 já começou a surgir o arraial do Prata.. Nós estamos então, com mais de
              cento e cinqüenta anos de história que foi perdida. A maior parte dos países
              estrangeiros conservam os seus edifícios e valorizam sua história. Isso atrai
                                                                         33
              pessoas para conhece-los gerando divisas para as cidades.

       Como já foi dito, existe no país uma mentalidade de que a preservação deve se
restringir apenas aos monumentos históricos pertencentes ao período colonial e em
Prata também não é diferente. Nesse sentido, Lúcia Lippi de Oliveira salienta que:

              em cada época a sociedade e suas autoridades têm uma idéia sobre o que deve
              ser preservado. A partir doa anos 30 constituiu-se no Brasil um discurso que
              organizou as ações do patrimônio e passou a orientar nossa compreensão e
              nossa leitura estética sobre o urbano. Durante muito tempo achava-se que não
              tínhamos nada a ser preservado. Depois, passou-se a defender a preservação do
              período colonial – daí a atuação no espaço das cidades mineira, a proteção das
19

              igrejas barrocas. Nos dias de hoje, o patrimônio arquitetônico está conectado
              não só com o passado e a memória nacionais, mas também com a vida das
              pessoas que moram no espaço da cidade. O conjunto urbanístico, assim como a
              paisagem, está fazendo parte do patrimônio cultural que se inter-relaciona com a
              noção de espaço turístico.34

       Em relação à descaracterização que se encontra em andamento no prédio do
Prata Club, a opinião de Cícero se assemelha ao proposto pela autora. Para ele:

              apesar de não ser um prédio que segue o estilo barroco deveria ser preservado
              pois, por ser uma construção da década de 1950, tem uma característica mais ao
              estilo “art déco”. É uma construção mais nova. Só que também é uma escola
              que existiu e deve ser preservada. Neste ano, o Prata Club está sendo reformado
              por causa do telhado. A reforma o descaracterizou bastante. Perde-se assim,
              mais um patrimônio da cidade, porque a administração municipal não tomou
              providências neste sentido. Pensam que não vale a pena. Mas, se nós não
              preservarmos hoje, uma construção que tem uns quarenta anos, daqui a cem,
              cento e cinqüenta anos não haverá nenhum registro da história (passado) da
              cidade. 35

       Por isso a iniciativa de criação de um conselho voltado para orientar o processo
de preservação de patrimônio histórico na cidade traz a esperança de mudanças
sistemáticas. O Conselho Municipal do Patrimônio Cultural do Município do Prata foi
criado pelo decreto nº 2064/2003 em 04/04/2003. Sua criação segue a política
instaurada pelo Estado de Minas Gerais:

              Para a difusão de políticas de preservação para o nível local, pode ser
              considerado um marco na história da preservação em Minas Gerais a decisão
              de se incluir o patrimônio cultural como um dos critérios para o repasse do
              ICMS aos municípios, através da Lei Estadual 12040/95, que ficou conhecida
              como Lei Robin Hood. Para se beneficiarem de maiores repasses do ICMS, os
              municípios tiveram que atender a uma norma estrategicamente concebida pelo
              IEPHA que, a princípio, foi de fácil cumprimento, para, nos anos subseqüentes,
              ir sendo gradualmente aprofundada, possibilitando um amadurecimento
              gradativo e monitorado. Vale dizer que os municípios que cumprissem um
              conjunto gradual de tarefas passavam a receber uma pontuação, traduzida em
              seguida em índice, que iria se refletir na cota de ICMS a receber do repasse do
              Estado.[...]O resultado é que conceitos aparentemente sofisticados como o
              próprio conceito de patrimônio, os conceitos de tombamento, de inventário e de
              política municipal de proteção estão difundidos de forma consistente em mais
              de 200 municípios de Minas. Uma linguagem comum, que orienta a
              identificação de valores locais e que instala a discussão dos critérios de atuação
              encontra-se largamente implantada. Em termos quantitativos, os dados são
              muito significativos – 160 Conselhos de Proteção do Patrimônio foram criados
              por Leis municipais e cerca de 600 bens foram tombados com base em dossiês
              de tombamento fundamentados. Outros resultados interessantes vieram da Lei:
              o enriquecimento do banco de dados do IEPHA; a ampliação da preocupação
              com os acervos documentais, levando à criação de arquivos e museus
              municipais; a valorização das equipes locais responsáveis por cumprir as metas
              que garantem a pontuação, muitas delas reforçadas com a contratação de
20

              arquitetos restauradores e historiadores, abrindo mercado de trabalho para esses
              profissionais. 36

       Depois de criado esse conselho, algumas conquistas já foram alcançadas.
Segundo Cleanto37, as atividades do grupo envolvido nesse projeto têm acontecido da
melhor forma possível. Já aconteceram doze reuniões sob a orientação de um agente do
IEPHA (INSTITUTO Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico) de Belo Horizonte.
Vários imóveis antigos estão sendo inventariados por jovens da comunidade que
passaram por um treinamento específico. Espera-se que no próximo ano, sejam
aprovados os tombamentos da Igreja Nossa Senhora do Rosário localizada na Praça
Getúlio Vargas, um bem imóvel, e a imagem do Nosso Senhor dos Passos existente na
Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, um bem móvel. O grupo que compõe o
conselho, na maioria, é constituído por pessoas da comunidade que ali estão
voluntariamente e conta com a liderança de Maria Helena Cruz de Melo. 38

       Outros eventos fizeram parte da trajetória do Prata Clube e, dentre eles, um dos
mais relembrados é a realização dos bailes de carnaval:

              Os carnavais eram uma maravilha... todo mundo brincava no salão, porque, hoje
              em dia o pessoal só pensa em cheirar lança-perfume escondido, coisa que não
              pode.. Na minha época, o lança-perfume era liberado, então o laça-perfume
              servia para os moços jogarem nas moças enquanto estavam dançando... era uma
              brincadeira saudável! Tinha as coisas que em toda época tem, mas era uma
              época mais feliz. Os jovens tinham onde aproveitar e hoje, na nossa cidade, não
              há um local para os jovens irem e não pensarem em bebida. Nós só tínhamos
              aquele clube mas, ali fazíamos a nossa vida, dançávamos muito... 39

       Tais bailes, apesar de serem lembrados com uma certa saudade por parte de
vários depoentes, também se apresentavam como excludentes, pois deles só
participavam as pessoas com condições financeiras para se tornar sócio de um dos dois
clubes da cidade. Neste sentido, à grande maioria da população restava o consolo de
participar, como expectador, dos desfiles que se realizavam nas noites de domingo e de
terça-feira, ao redor da Praça XV de Novembro. Esses desfiles tinham como objetivo
acirrar a disputa entre as duas escolas de samba que existiam na cidade: Escola de
Samba do Clube Recreativo José do Patrocínio, “escola de samba dos pretos”, e Escola
de Samba Unidos do Prata Club, dos brancos.
21




Ilustração26: Carnaval realizado no ano 1920. Turma do Zé Pereira. Fotógrafo desconhecido.
Acervo: DEC

       Após 1950, havia um caminhão que conduzia um bloco de pessoas fantasiadas
denominado “Turma do Zé Pereira” (ilustração 26) pelas ruas da cidade durante os
festejos do carnaval. Eles despertavam a atenção dos moradores e todos aqueles que
estivessem no interior de suas casas, acorriam para a rua somente para vê-los passar. A
alegria com que desfilavam era contagiante! As crianças exultavam com a chuva de
confetes e serpentinas que caía pelos caminhos que percorriam.

       O outro grupo, “A Furiosa”, também marcou época nos carnavais pratenses.
Esse grupo sempre se fantasiava de mulher. Era uma espécie de banda musical que saía
para as ruas, com os instrumentos e iam tocando uma melodia descompassada.
Entravam em todos os bares que encontrassem abertos pelo caminho. Enquanto o dono
do bar não lhes servia bebida gratuitamente, eles continuavam tocando uma melodia que
não possuía um ritmo definido, porém, quando eram atendidos, em agradecimento
tocavam algumas marchinhas de carnaval. No início, todas as pessoas que participavam
da furiosa conheciam música e tocavam algum instrumento, mas nos últimos anos em
que saiu nas ruas, nem instrumentos havia. Seus componentes batiam em latas ou
panelas, o que chama a atenção para o fato de que a decadência ronda até mesmo os
22

hábitos mais simples. Mas, a Furiosa ainda é relembrada com saudosismo por aqueles
que dela participaram:

              Um fato interessante de uma “Furiosa” da qual participei, o Hermane 40 se vestiu
              com o maiô tipo aquêles engana papai, de duas peças, uma ligada na outra, que
              pertencia a Dona Glória. Imagine só, o Hermane com o maiô da Dona Glória! 41

       Hoje, devido às mudanças dos tempos, o carnaval não acontece mais nos salões
fechados dos clubes, mas sim na Praça XV de Novembro. Um grande palco, onde as
bandas contratadas animam os cinco dias de folia, é montado na Avenida Major
Carvalho, bem em frente à Igreja Matriz. O direito de sambar foi estendido a todas as
pessoas de acordo com sua vontade. Nas laterais da avenida Major Carvalho, são
montados os camarotes para serem comercializados e o centro da avenida em frente ao
palco é tomado pela multidão que se aglomera para festejar os cinco dias de folia. Desse
modo, não existem mais excluídos nesta festa que é:

              uma festa folclórica mesmo, do povo. Quem vai lá... Eu vou no carnaval e não
              bebo. Não estou desrespeitando ninguém, né? Vou lá, sinto bem, vou embora
              pra casa. Eu já fui até folião do carnaval quando era no clube. No clube não era
              uma festa tão popular. Hoje o pessoal ta querendo fazer uma festa para todo
              mundo porque antes era uma festa pra quem tinha dinheiro pra gastar no clube,
              né? Hoje, não. Hoje dança João, dança Pedro, dança Mane, todo mundo dança
              junto. Cada grupo faz seu bloquinho e eu acho que está certo. Todos convivem
              bem em sociedade. Aquele que mora lá na periferia, se ele se comportar bem,
              ele pode viver em qualquer lugar. Nós, seres humanos, temos que nos
              comportar bem em qualquer lugar. Não adianta ser rico ou pobre se a pessoa
              não sabe se comportar. Hoje, a festa do carnaval de rua dá essa abertura pra
              todo mundo se confraternizar, entrosar, se cumprimentar, se abraçar... chega um
              te abraça... um bebe e vem te abraçar... a gente que não bebe até sofre, né?
              (risos) 42

       Contudo existem contradições quanto a essa maneira de enxergar a realização do
carnaval na praça. Para Elite Nascimento houve uma mudança muito grande em relação
ao passado e, segundo seu ponto de vista, foi uma mudança negativa pois antes era:

              um carnaval de rua muito bonito, do qual todo mundo participava. Aquela
              beleza de desfile! Eu tenho saudade... Saudade dos carnavais no clubes também.
              Era o Clube Recreativo José do Patrocínio e o Prata Clube. Tinha aquela rixa
              entre as escolas de samba dos dois clubes. Vinham as disputas e nós (os negros)
              sempre saia na frente, entendeu? Mas era aquela união. Sempre na segunda
              feira, nós fizemos um acordo: a turma dos brancos visitava o clube dos pretos e
              os pretos depois visitava o clube dos brancos. Pra quebrar aquele preconceito...
              aquilo foi muito bonito... e os desfiles maravilhosos! Foi quando o Sérgio
              “Manivela” entrou pra ser presidente do Prata Clube. A idéia das visitas foi
              deles. 43
23

       Observando o depoimento de Elite, percebemos que ela sente falta dos desfiles
das escolas de samba que hoje não acontecem mais, e não do carnaval que acontecia no
salão do clube. Nestes desfiles, a depoente sempre se destacava como madrinha da
bateria da Escola de Samba do Clube Recreativo José do Patrocínio. Quando ela
afirmou que todo mundo participava do carnaval de outrora, lembrei-lhe que
anteriormente a participação por parte da população era apenas passiva, pois quem não
fazia parte das escolas apenas assistia ao desfile, portanto, a maioria da população
ficava excluída dos folguedos. Ao que ela me respondeu: “Mas o povo todo saía de
casa para ver os desfiles!” 44 Para Elite, essa também era uma maneira da população
participar da festa carnavalesca.

       Um outro aspecto pôde ser captado nas entrelinhas de alguns depoimentos. Elite
nos fala das rixas entre negros e brancos durante o carnaval, mas a seguir ressalta que
todos partilhavam “aquela união”. Quando conta sobre as visitas entre os clubes diz que
era para quebrar o preconceito. Mas será que uma visita de apenas alguns minutos
significava que o preconceito racial, já salientado em outros depoimentos, seria abolido?
Nem todos os negros tinha permissão para ingressar no recinto do Prata Club por
ocasião da visita, mas apenas os integrantes da escola de samba. Partindo dessa análise
concluímos que os membros dessa sociedade, ensaiava um discurso, segundo o qual, se
pregava que deveria haver uma maior interação entre negros e brancos, mas suas ações
nesse sentido eram mínimas.

       Quanto a se afirmar que essa interação ocorre hoje no carnaval da praça, é um
fato a se questionar. A separação de classes já não é tão visível, mas ainda existe. Isso é
constatado pela divisão do público participante entre os camarotes pagos e o centro da
avenida, gratuito. Os ingressantes dos camarotes, devido ao seu poder aquisitivo, estão
em posição superior à maioria da população de baixa renda que se aglomera em frente
ao palco.

       Um outro conflito permeia as relações entre os organizadores do evento
carnavalesco e a administração da Igreja. Alguns católicos consideram uma falta de
respeito festejar o carnaval em frente ao templo sagrado da Igreja. A ilustração 27,
fotografia produzida por mim durante a realização do carnaval de 2004 denota, em
primeiro plano, a presença do “profano” representado pelo palco onde as bandas tocam,
e; em segundo plano, a presença do “sagrado” representado pela Igreja Matriz.
24




Ilustração27: Fotografia do palco erguido durante o carnaval de 2004 em frente à Igreja Matriz.
Acervo próprio.

        Insatisfeitos com a realização do carnaval naquele local, algumas medidas foram
tomadas pela administração da Igreja. Afixaram uma faixa com os seguintes dizeres:
“Tudo me é permitido mas nem tudo me convém” na sua entrada (ilustração 28). Foi
uma tentativa de chamar a atenção das pessoas para o fato de que o carnaval nunca foi
considerado pelos membros da igreja como criação de Deus.

No entanto, segundo Gilberto Freyre, a Igreja católica nada tinha contra os festejos de
carnaval, já que eles surgiram com a propagação do cristianismo e por força do seu
calendário litúrgico. Inicialmente o carnaval era designado de “terça-feira gorda” por se
tratar do dia em que a Igreja suprime o uso da carne durante a quaresma. O carnaval
chegou ao Brasil por intermédio do português colonizador por volta de 1595 com o
nome de “entrudo”. Os festejos do entrudo foram proibidos no Rio de Janeiro em 1854
em virtude do entusiasmo e abuso dos foliões 45. Em relação ao pensamento religioso
dos católicos pratenses contrários ao carnaval, a maneira como Elite enxergava esses
25

festejos antes de se tornar sambista e madrinha de bateria, sugere que essa é uma
mentalidade que norteia as discussões relativas ao assunto já há algum tempo:

                A minha mãe puxou o primeiro cordão de carnaval. O nome dela era Maria
                Dolores Nascimento Dias. Aí ela entrou no clube dos brancos, que era ali onde
                tem aqueles barzinhos. Foi lá que ela entrou puxando o primeiro cordão de
                carnaval. Ela que fez a música. Depois, eu cresci e não vim com esse
                pensamento, não. A minha irmã – ela se chamava Maria Gilce – ela que era a
                porta-bandeira da escola de samba. Eu ficava de lado. Não queria sair nisso,
                não. Eu era muito da Igraja... eu achava que eu não ia mexer com carnaval
                porque carnaval não era coisa de Deus. Aí, quando saiu aquela música “História
                de Iansã”... eu fiquei observando aquilo ali... de repente, eu saí dançando
                também! Pedi pra minha mãe colocar umas bolas de... um desenho numas
                roupas minhas... pregar... foi aí que eu comecei. Com catorze anos. Fui
                destaque, rainha da bateria esses anos todos, até quando tirou o carnaval de rua.
                Agora é o carnaval do “povão” como se fala lá na praça. E não tem desfile... eu
                não participo. Só vou lá pra dançar mesmo. A idade não faz diferença, estou
                com sessenta e quatro anos... mas se sair uma escola de samba, eu caio no
                samba mesmo porque isso tá no sangue!46




Ilustração 28: Faixa afixada na porta da Igreja Matriz durante o carnaval de 2004. Destaque para
a grade que impede a presença dos jovens na escada. Fotografia produzida pela autora. Acervo
próprio.

                Outro aspecto que foi observado na fotografia é a presença de uma grade
removível instalada aos pés da escada, com o objetivo de impedir a presença dos jovens
que se sentam ali durante esses festejos. Penso que essa seja uma atitude contraditória,
pois, sendo lá a “casa de Deus”, então deveria estar sempre pronta a receber “seus
filhos”. Essa grade imprime um caráter privado num local público que tem como
principal função receber a todos sem discriminação. A posição da Igreja perante a
26

realização do carnaval em frente à Matriz, é um tanto dúbia, pois, se consideramos que
esta é uma festa popular, então se assemelha aos festejos religiosos que também se
realizam no mesmo local, como as barraquinhas em homenagens aos santos católicos,
das quais trataremos nas próximas linhas.

3 – FESTEJOS RELIGIOSOS

       Durante todo o ano várias homenagens são prestadas aos santos católicos. São
realizadas novenas na Matriz Nossa Senhora do Carmo que culmina com procissão e,
algumas vezes, queima de fogos. Dois festejos ocupam lugar de destaque no calendário
religioso da paróquia: em janeiro homenageia-se o mártir São Sebastião, e em julho, a
padroeira da cidade Nossa Senhora do Carmo. Durante esses dois festejos, a quadra sul
da praça cede lugar para a instalação de uma tenda de circo que abriga as barraquinhas.
Várias atividades são programadas para a ocasião, tais como, leilões, bingos, desfiles de
moda, shows musicais, dentre outros. O objetivo principal da realização das
barraquinhas é a arrecadação de fundos para a manutenção da Igreja católica, sendo que
uma parte é destinada à paróquia local e outra à Diocese em Uberaba.

       Segundo Cícero Junqueira47, as festas religiosas têm uma importância muito
grande pra cidade. Antigamente elas atraíam pessoas principalmente da zona rural e,
nessas ocasiões, as ruas ficavam repletas de pessoas. Após a missa e as procissões,
realizavam-se as barraquinhas que contavam com um bom público participante.
Algumas características dessas barraquinhas eram os leilões na porta da Igreja, o jogo
da maçã, o qual era bem divulgado na época, principalmente entre as crianças. Os
correios elegantes eram uma troca de correspondência entre casais e funcionavam como
uma tentativa de facilitar o namoro. Eram festas bastante populares, durante as quais
vinham vários camelôs de outras cidades pra vender seus produtos e montavam suas
barracas ali na praça. “Quando eu era criança gostava muito de comprar ioiô dos
camelôs”.48

       Apesar de serem ainda muito freqüentadas, ocorreram várias transformações no
decorrer do tempo, mas, isso não significou que houve uma perda da tradição. Segundo
Maria Clara T. Machado:

              a cultura é um processo dinâmico e não pode pensar suas transformações como
              deterioração. A idéia de preservar e valorizar não pode desconhecer as
              mudanças ocorridas na coreografia e no significado das práticas culturais frente
27

              às alterações históricas em que ela se insere. Antes de serem representações
              discursivas de uma época, foram ou são parte de um mundo real no qual ao se
              produzirem relações econômicas e sociais está se produzindo também cultura.
              Esse entrelaçamento da cultura às condições concretas de vida induz a pensar
              em transformações culturais engendradas no bojo da história concebida
              enquanto processo.49

       O que nos fala prof. Francisco sobre a festa do mártir São Sebastião que ocorreu
em janeiro de 2003 vai ao encontro da afirmação de Machado:

              Teve inclusive a festa de São Sebastião que se realizou neste final de semana na
              cidade. Apresentou muitas mudanças, inclusive por parte da Igreja. Ficou
              diferente! O padre agora está mais voltado para o povo, isso quer dizer que a
              Igreja deu um passo enorme. A liturgia está muito bonita. Ontem mesmo, o São
              Sebastião é o protetor do homem do campo, e o homem do campo, em sua
              maioria, é muito simples. Então, a missa foi sertaneja., toda baseada em música
              sertaneja com a letra religiosa. Foi muito bonito. O padre que está aí há pouco
              tempo disse que nunca tinha assistido uma festa tão bonita quanto essa! O carro
              de boi que você viu acompanhando a procissão era o símbolo do homem do
              campo. Valeu a pena! E as barraquinhas... aquele congraçamento do povo, né?
              Bonito!50

       No entanto, algumas pessoas não encaram as transformações como totalmente
positivas. Segundo o sr. Osvaldo Sérgio, no passado as festas eram mais simples porém,
muito mais significativas:

              Quando tinha festa na Igreja, o povo vinha das roças a cavalo, a pé e até mesmo
              de carro de boi. Tinha o moçambique com o tio Leopodino véi... o sô
              Honorato... todos eles trabalhavam no moçambique. Eles iam subindo ali na
              porta da Prefeitura indo na direção da Igreja, e então, aqueles negão véi caía no
              chão assim, e corria o pé... vinha doido na corôa da juíza. Quem tirasse ganhava
              um prêmio. Mas os capitães protegiam a juíza com os facão. Ah! Mas aqueles
              facão voava longe! (risos), o nego chegava o pé nos facão, que o facão voava
              longe... mas num chegava na juíza, não! Eh! Mas aqueles negos sabia mexer!
              Hoje num tem mais moçambique como antigamente. As procissões eram boas,
              com muita gente. Uma vez saí pra ir numa procissão. E lá vai na procissão... lá
              vai... e veio uma chuva sô! E o povo correu tudo. Eu falei: ah! Eu vim pra ir na
              procissão, eu vou na procissão. Cheguei na porta da Igreja, eu tava moiadim. E
              quando terminou os fuguetórios eu já tava enxuto... um terno de casimira
              ensopado... e foi só entrar pra dentro da Igreja, rezar... o terno seco! 51

       Uma das principais mudanças que podem ser percebidas na realização das
barraquinhas é que a cada ano o interesse em comercializar as várias prendas doadas
pela comunidade é maior. Como conseqüência disso, o serviço de som é utilizado com
muita freqüência para execução de leilões e bingos e o som que é emitido das caixas
encontra-se sempre em um volume muito alto, tornando qualquer tentativa de conversa
praticamente impossível. Isso tem afastado de lá algumas pessoas.
28

              Naquela época as barraquinhas eram realizadas ao lado da Igreja e não tinha
              tanta exploração comercial. Eu lembro que naquela época, as barraquinhas eram
              feitas em função de joquinhos... da maçã... aquela coisinha, sabe? Hoje você vê
              o comércio que é praticado nas barraquinhas... cerveja... naquela época era mais
              simples mesmo. Não se fazia tantos leilões nem se vendia tantas tômbolas como
              a gente vê hoje. Hoje virou comércio, e comércio violento, né?

       Comparando o comércio realizado nas barraquinhas, o movimento das pessoas
na praça, o consumo de bebidas alcoólicas, com o movimento que acontece durante o
carnaval, não notamos muita diferença entre um festejo e outro. Como se explica, então,
essa dubiedade da Igreja perante a realização dos dois festejos? A diferença estaria no
fato de que em um, o lucro obtido é revertido em prol da Igreja e no carnaval ele é
destinado a outros fins?

       Um outro fator que tem deixado as pessoas insatisfeitas é que, tanto para as
barraquinhas quanto para o carnaval, é preciso desfazer parte do calçamento da praça,
furar o piso em vários lugares e, na hora de refazer, nenhum cuidado é tomado na
execução da tarefa.

               Quem viu e quem vê hoje, a praça, se decepciona. É lastimável o estado de
              conservação em que ela se encontra. Aquelas calçadas que foram feitas com
              tanto cuidado, formando desenhos... hoje você vê lá o branco no preto ou o
              preto no branco... o cara que vai refazer ali, depois que tiram os camarotes, as
              barracas... o cara não tem nem o capricho de – quem tá fiscalizando o serviço –
              não tem nem o capricho de ir lá e falar: „o branco é no branco, viu?‟ Há um
              descaso geral.52

       Fábio Camargos chama a atenção quanto aos culpados por esse descaso:

              Não sei quem é o culpado. Acho até que nós mesmos somos os culpados,
              porque você se senta dentro de casa, põe o bundão no sofá e... eu tava
              perguntando estes dias pra uma pessoa: „quantas reuniões da Câmara de
              vereadores você foi nestas últimas quatro gestões?‟ A gente senta dentro de
              casa, não vai atrás... então é preciso realmente mudar essa consciência. Eu nasci
              aqui, cresci aqui e provavelmente, com a máxima certeza, devo morrer aqui
              também. Vem filhos, vem netos, vem bisnetos... e se você quer alguma coisa
              melhor pra você e pros seus, você tem que tentar correr atrás pra reverter isso
              aí. A gente coloca os prefeitos lá, coloca os vereadores... tem uma certa
              comodidade em não cobrar nada... a cidade é pequena... a interferência do poder
              público é grande, pois quando você começa a pressionar, os caras começam a te
              perseguir... Então, mesmo assim, você tem que procurar melhorar e reverter
              essa situação porque ficar à mercê da situação não dá mais.53

       Esse comodismo referenciado por Fábio Camargos tem sido uma característica
estendida à maior parte da população brasileira. Cada vez mais percebemos haver uma
indiferença por parte da população quanto aos atos tomados pelos administradores
públicos. Hanna Arendt ressalta que a perda do mundo comum, faz com que surja a
29

figura do indivíduo desinteressado e desprovido de responsabilidade perante o mundo.
A preocupação com o próximo deixa de existir e o homem se vê reduzido à dimensão
privada da vida social. Desse modo, se privam de ser vistos e ouvidos:

               A privação da privatividade reside na ausência dos outros; para estes, o homem
               não se dá a conhecer e, portanto, é como se ele não existisse. O que quer que ele
               faça permanece sem importância para os outros e o que tem importância para
               ele é desprovido de interesse para os outros.54

               Para mudar essa situação como foi sugerido pelo depoente, penso que
seria necessário o desenvolvimento de um projeto de conscientização nos moldes
definidos pela Recomendação de Avignon55, que propõe:

               a educação permanente do público em todos os níveis e, em particular, no
               estágio de formação escolar elementar, a fim, de lhes despertar a consciência de
               sua responsabilidade e os fazer participar ativamente de seu próprio futuro. 56

        Não se deve esperar, no entanto, que as possíveis medidas a serem tomadas neste
sentido, apresentem resultados a curto prazo, pois esse é um trabalho que exige
planejamento e tempo para que seja implantado satisfatoriamente. Mas, se desde criança
já se começa a aprender noções de espírito participativo, cidadania e valores culturais,
haverá a possibilidade de se formar cidadãos conscientes, capazes de discernir se
determinadas intervenções no espaço público em que convivem são necessárias e até
que ponto interferem nas práticas de sociabilidade que ali ocorrem.


Notas
1
  Doutoranda em História pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU/MG
2
  DUMAZEDIER, P. Poder simb´lico. Rio de Janeiro: Brasil, 1989, p.35.
3
  SANT‟ANNA, Denise Bernuzzi. O Prazer Justificado – História e Lazer: 1969-1979.
São Paulo: Marco Zero, 1994, p. 37.
4
  PINTO, Luziano Macedo. Sociabilidade de “Matinée”: O Cotidiano Em Uberlândia
nos Anos 40. In: História e Perspectivas, (14/15): 113-132, Jan/Dez. 1996, p. 118.
5
  BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. In:
Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.
189.
6
  Idem. p. 179.
7
  Ana Augusta Novais Miguel, 69. – Grau de escolaridade: magistério. É empresária,
presidente da casa de assistência “Casa do Samaritano”, presidente da AME – Aliança
Municipal Espírita, dirige o grupo de canto “Caminhos da Luz” do Centro Espírita
Corações Unidos. É viúva, três filhos. Depoimento prestado em 20/07/2004.
8
  Osvaldo Luiz de Andrade, 82 anos, natural de Uberaba/MG. Mora na cidade desde
1940. Carpinteiro aposentado. Casado. Entrevista realizada em 12/01/2003.
30


9
  BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 174.
10
   Idem. P. 174.
11
   Ana Augusta Novais Miguel. Depoimento citado.
12
   Idem.
13
   José Cleanto Vilela Reis José Cleanto Vilela Reis, 54. Natural de Prata. Formado em
química industrial. Trabalhou por 24 anos na Cooperativa dos Produtores Rurais do
Prata. É professor de química, músico. Casado com Cleonice Gomes Vilela. Uma filha.
Depoimento prestado em 23/07/2004.
14
   CHOAY, Françoise. Op. Cit., p.221.
15
   Idem, p.139.
16
     MOTA, Lia. As Cidades Mineiras e o SPHAN. In: Cidade, História e
Desafios/organizadora Lúcia Lippi Oliveira. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p.. 125.
17
   Idem. p. 127.
18
   Maria Augusta Camargos Vilela, natural de Prata/MG. Costureira aposentada. Três
filhos. Depoimento prestado em 18/01/2003.
19
   Editorial.Cidade do Prata. Publicado em 12/02/1933.
20
   Editorial.Cidade do Prata. Publicado em 26/11/1933 .
21
   KOSSOY,Boris. op. cit., p. 09. Kossoy elabora um questionamento sobre “qual o
valor , o alcance e os limites das fotografias enquanto meios de conhecimento da cena
passada? Como podemos identifica-las enquanto instrumento de pesquisa e
interpretação da vida histórica? Onde se encontram as fotografias do Passado? Como
identifica-las no tempo? Quem foram seus autores? Em que medida os conteúdos
fotográficos são verdadeiros?
22
   CARRIJO, Gilson Goular. op. cit. p. 68.
23
   Editorial. Cidade do Prata. Publicado em 13/11/1938.
24
   VIEIRA, Luiz Renato. A Capoeiragem Disciplinada: Estado e Cultura Popular no
Tempo de Vargas. História e Perspectiva, (7) : 111-132, Jul./Dez. 1992, p. 113.
25
   Virgilio Mamede Minucci, natural de Prata, viúvo, pai de 9 filhos. Dentista, professor
aposentado, ex-empresário. Depoimento prestado em 06/06/2004
26
   Ana Augusta Novais Miguel. Depoimento citado.
27
   Maria Augusta Camargos Vilela. Depoimento citado.
28
   CARRIJO, Gilson Goulart. op. cit. p. 108
29
   Essas visitas foram uma forma de interação entre os dois clubes colocada em prática
por Sérgio Henrique Novais durante o mandado em que presidiu o clube na década de
1960.
30
   Geraldo de Castro Novais, 78 anos, natural de Prata/MG. Juiz de Direito aposentado.
Depoimento prestado em 12/01/2003
31
   CHOAY, Françoise. op. cit. p. 149.
32
   Ana Augusta Novais Miguel. Depoimento citado.
33
    Cícero Alves Junqueira, 47. – natural de Prata, atualmente reside em Uberlândia.
Formado pela Universidade Federal de Uberlândia nos cursos de Engenharia Mecânia e
Física. È professor de Física da rede estadual e corretor de seguros. Casado com
Ivanilda A. A. Junqueira com quem tem dois filhos. Depoimento prestado em
24/06/2004
34
   OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cidade: História e Desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002,
p.11.
35
   Cícero Alves Junqueira. Depoimento citado.
36
   MACHADO, Jurema. Espaço Público, Patrimônio e Cultura no Planejamento
Urbano. GUM – Brasíliua, julho/2000.
31


37
   José Cleanto Vilela Reis. Depoimento citado.
38
    Maria Helena Cruz de Melo, natural de Prata. Atual secretária do Conselho do
Patrimônio Histórico e Artístico da cidade do Prata. Depoimento prestado em
20/01/2003.
39
   Maria Augusta Camargos Vilela. Depoimento citado.
40
   Hermane Vilela Minucci é filho de Virgílio Mamede Minucci, já citado, e Dona
Glória Vilela Minucci.
41
   Wagner Donizeth Vilela, 48. – natural de Prata, residente em Uberlândia. Corretor de
seguros, casado com Vânia Beatriz Armada Vilela com quem tem dois filhos.
Depoimento prestado em 24/06/2004
42
   Amador Antonio Vieira Arantes, 51. – Natural de Prata. Ex-engraxate da Praça XV
de Novembro. Ex-dono do Bar Caiçara localizado no entorno da praça. Produtor rural.
Casado com Liodê Aparecida Lopes Arantes, dois filhos. Depoimento prestado em
21/07/2004.
43
   Idem.
44
   Idem.
45
    FREYRE, Gilberto; MAIOR, Mário Souto. Carnaval: de onde veio? Como era?
Como evoluiu? Grandes Acontecimentos da História. São Paulo (9): 81-91, fev. 1974.
46
   Elite Nascimento Dias, 55. – Natural de Prata. Escolaridade: 3ª série do ensino básico.
Bibliotecária. Presidente do Grupo Consciência Negra. Solteira. Foi por vários anos
madrinha da Bateria da Escola de Samba do Clube Recreativo José do Patrocínio.
Depoimento prestado em 23/07/2004.
47
   Cícero Alves Junqueira. Depoimento citado.
48
   Idem.
49
   MACHADO, Maria Clara Tomaz. Cultura Popular e Desenvolvimento em Minas
Gerais: Caminhos Cruzados de um Mesmo Tempo. Tese (Doutorado em História)
FFLCH, USP. São Paulo, 1998.
50
    Francisco de Assis, natural de Prata/MG. Professor, poeta, trovador, advogado.
Depoimento prestado em 21/01/2003.
51
   Osvaldo Luiz de Andrade. Depoimento citado.
52
   Fábio Camargos Vilela, 44. – Natural de Prata. Serventuário da Justiça. Residiu até o
ano 2002 no entorno da Praça XV de Novembro. Casado com Maria Angélica Vilela
Camargos, três filhos. Depoimento prestado em 21/07/2004.
53
   Idem.
54
   ARENDT, Hanna. op.cit. p. 167-168
55
   Ver ROCHA FILHO, Gustavo Neves da. Patrimônio Cultural: Uma Visão Histórica.
In: Sinopses. São Paulo: 16 p.48-55, dez. 1991.
56
   Idem. p. 05.

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Tempo de lazer cinema e cultura popular no cotidiano pratense

  • 1. 1 TEMPO DE LAZER: CINEMA E CULTURA POPULAR NO COTIDIANO PRATENSE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX Ivanilda Aparecida Andrade Junqueira 1 Entender as concepções e significados do lazer tem sido um desafio no debate acadêmico devido à falta de consenso que existe sobre o assunto. Inicialmente, é importante ressaltar a relação existente entre lazer e cultura, pois, segundo Dumazedier 2, muitas das atividades designadas como lazer passam por minifestações de cultura e se encontram ligadas às tradições, modos de vida e saberes partilhados por determinada sociedade. Neste sentido, a concepção de cultura a se considerar deve ser percebida numa realidade concreta enquanto cultura de massas, que também pode ser compreendida como Industria Cultural, constituída após o fim da Guerra Fria, principalmente pelo desenvolvimento da tecnologia e a transformação dos meios de produção na segunda revolução industrial, e Cultura Popular cujo termo se remete às manifestações coletivas, tais como o carnaval e as festas religiosas. Outro aspecto a ser considerado é o modo como se dedica o tempo ao lazer. Em “O Prazer Justificado – História e Lazer”, Denize Bernuzzi de Sant‟Anna, discorre sobre a disciplinarização que ocorreu no modo de organização do tempo livre do trabalhador. Segundo Sant‟Anna, a questão da utilização do tempo livre para o lazer é uma reivindicação antiga da classe trabalhadora, que, na maioria das vezes, é atingida pela redução desse tempo, ocasionada pelas fraudes às leis que lhes assegurava esse direito. Ela salienta que, além da redução do tempo livre, o arrocho salarial também é uma das causas responsáveis pelo acesso de poucos às férias, ao lazer, transformando-os em artigos de luxo, essa redução tende a inserir o tempo livre no terreno do sonho, da utopia e envolvê-lo numa aura atraente e redentora; transforma-se num tempo ansiosamente esperado na medida em que é massacrado pelo tempo de trabalho. Por conseguinte, a redenção de todos os sacrifícios pelo tempo livre e pelo usofruto do lazer tem como contraponto a identificação do trabalho a tudo aquilo que é rotineiro, penoso, obrigatório, já que neste se torna cada vez mais difícil Ter prazer e, por isso, muito mais comum adiá-lo e depositá-lo no tempo livre.3
  • 2. 2 Sant‟Anna argumenta que, à medida que o prazer é banido do tempo de trabalho, a expectativa em torno dos finais de semana e férias aumenta devido à busca por um “lugar de direito” para se expressar, associando o prazer à idéia de liberdade, sendo o mesmo considerado como uma recompensa pelo esforço desempenhado no dia-a-dia. Contudo, é importante ressaltar que, esse direito ao lazer só alcança aquele trabalhador remunerado, pois, a dona de casa que trabalha sete dias por semana não é reconhecida como trabalhadora e, portanto, o lazer não é considerado um direito seu. No entanto, segundo essa autora, o resultado de pesquisas realizadas em torno do tempo livre do trabalhador vêm demonstrar que um outro fator interfere quanto à ausência do mesmo em clubes de campo, colônias de férias; pois, além da falta de tempo, é preciso lidar ainda com a falta de dinheiro e as péssimas condições econômicas da maioria assalariada na década de 1960. Nessa época, ocorre uma tentativa da classe patronal em disciplinarizar o lazer, procurando corrigir e formar o trabalhador organizando a maneira com o mesmo usa o seu tempo livre. Sant‟Anna destaca duas tecnologias de poder diferenciadas; aquela que se recusa a investir no campo do lazer e, conseqüentemente, é considerada como inimiga dos interesses e direitos do trabalhador; a outra, a que promove o lazer tornando o trabalhador um aliado do sistema produtivo. Em ambas é perceptível a lógica da produtividade. No capítulo II, “Os perigos e a salvação do lazer”, a autora cita a reflexão do sociólogo Renato Requixa, discordando do mesmo e, salienta que o salário dos trabalhadores não combina com a situação apontada por Requixa. Argumenta quanto à questão do tempo livre, quando existe, ser utilizado na realização de um outro tipo de serviço ou com um transporte difícil, muito comum nas grandes cidades. Isso se comprova pela “febre de consumismo” proveniente da alta produtividade decorrente do desenvolvimento tecnológico. Quando nos reportamos a algumas décadas atrás, notamos que o homem possuía hábitos diferentes. Tomando como referência a cidade de Prata, interior de Minas Gerais, e fazer uma retrospectiva das últimas décadas, é possível acompanhar as transformações no cotidiano dos seus habitantes levando em consideração a influência que os avanços tecnológicos exerceram no seu desenrolar. Desses adventos, o mais marcante em minha memória foi a televisão. Antes que a primeira fosse instalada na cidade, o lazer era diversificado. O cinema que se localizava na Praça XV de Novembro encontrava-se sempre lotado nas sessões de final de semana; os passeios pelas calçadas da praça
  • 3. 3 adquiriam um sabor especial para rapazes e moças que aproveitavam esses momentos para entabularem uma conversa, ou mesmo um romance. Durante uma determinada época, o passeio ideal se definia com o ir e voltar de uma esquina a outra na calçada do cinema e, por isso, ao definir o local de encontro com amigos, alguém logo respondia: “na porta do cinema!” Quanto às festas religiosas que se realizavam na Igreja Matriz, localizada na praça citada anteriormente, lembro-me da população da zona rural, chegando à cidade com o intuito de participarem das procissões e barraquinhas. Esperávamos ansiosos pela chegada dos tios e primos, os quais traziam sempre na “capanga” um queijo saboroso ou um pote de doce com o qual nos regalávamos em poucos minutos. Então, a cidade, de pacata que era, transformava-se num grande alvoroço. No meu bairro, o lazer resumia-se aos programas de rádio, às conversas na porta de casa, às brincadeira das crianças na rua iluminada parcamente pela energia gerada por um grande e barulhento motor. Além disso, todas as noites, participávamos de uma diversão muito especial; nos reuníamos sempre no alpendre do “Seu João Júlio”, um velho inventor de cabelos grisalhos, para ouvi-lo tocar sua “sanfona” espalhando sons alegres pelos arredores. Foi, na casa desse senhor “iluminado”, instalado o primeiro aparelho de TV do bairro. O evento transformou-se numa grande festa. Quase toda a vizinhança acorria todas as tardes para a sala não muito grande desta casa, e, silenciosa, assistia aos filmes e novelas preferidos tomando o partido dos personagens protagonistas e defendendo-os como se fossem reais. Com o passar do tempo, “Seu João Júlio”, fez uma coisa inusitada. Construiu um salão enorme e o encheu com bancos que ele mesmo reciclava em sua oficina de inventor, somente para que os “espectadores” que freqüentavam sua casa, assistissem aos programas mais comodamente. Pouco a pouco, o acesso à TV se estendeu à maioria das pessoas e, hoje, é praticamente impossível que exista na cidade, uma única casa que não a possua. Em relação a esse fato, pode-se dizer que os hábitos das pessoas de meu bairro, começaram a mudar no momento em que a TV foi ligada na casa de “Seu João Júlio”, pois, o tempo livre da maioria das pessoas começou a ser utilizado com os programas televisivos que, diferentemente daquela época, hoje são exibidos vinte e quatro horas por dia. As festas religiosas, não possuem mais o “glamour” de antes, a praça, anteriormente palco dos passeios domingueiros, eventos políticos, se transformou no decorrer dos anos. Já não sentam-se mais em seus bancos, os engraxates à espera de
  • 4. 4 clientes; as pessoas se utilizam de suas calçadas apenas para cortar caminho e chegarem mais rapidamente ao seu destino. Seu espaço foi reapropriado com barracas comerciais, característica predominante do trabalho informal autônomo. No entanto, as lembranças dos moradores da cidade, nos contam um pouco da história de suas práticas de lazer na Praça XV. 1 – CINE PRATA: FANTASIA, ILUSÃO E SOCIABILIDADES Nas décadas de 1940 e 1950, as salas de cinema passam a ocupar um lugar de destaque no cotidiano dos brasileiros e, em Prata, tais salas foram eleitas como núcleos de encontro e sociabilidade. Além dos filmes, da variedade de enredos, dos astros e estrelas; havia ainda a possibilidade do encontro com os amigos, o footing antes do início da seção e isso acabava por atrair um grupo considerável de pessoas. Segundo Luziano Macedo Pinto: Geralmente as cidades, das maiores às menores, elegem os seus núcleos de encontro e sociabilidade. Nestes locais reúnem-se elementos das mais variadas classes sociais. Estes pontos variam de acordo com determinada época, mas ficam na memória das pessoas, pois retratam uma fase de sua história. No entanto, estes locais mudam com o desenvolvimento destas cidades. 4 Em seu artigo, Pinto trata da influência que as salas de cinema exerceram no cotidiano da sociedade uberlandense nas décadas de 30, 40 e 50, salientando que os cinemas contribuíram, de maneira significativa, para a divulgação de novas formas de comportamento, novas maneiras de se vestir, colocando o espectador em contato com um “mundo novo”. Na cidade do Prata, o advento do cinema apresentou características semelhantes às enunciadas pelo autor e para entender um pouco a sua importância no cotidiano da sociedade pratense, apoiei-me nas palavras de Walter Benjamin que diz: Uma das funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho. O cinema não realiza essa tarefa apenas pelo modo com que o homem se representa diante do aparelho, mas pelo modo com que ele representa o mundo, graças a esse aparelho. Através dos seus grandes planos, de sua ênfase sobre os pormenores ocultos dos objetos que nos são familiares, e de sua investigação dos ambientes mais vulgares sob a direção genial da objetiva, o cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que determinam nossa existência, e por outro assegura-no0s um grande e insuspeitado espaço de liberdade.5 Segundo Benjamin, após a invenção do cinema, o espaço em que o homem agia conscientemente foi substituído por outro em que sua ação é inconsciente. Ao assistir os
  • 5. 5 filmes, o espectador cria uma relação de interação em que o seu cotidiano se mistura ao que acontece na tela. Ele, algumas vezes, assume o papel desempenhado pelo intérprete: É diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas durante o dia de trabalho. À noite, as mesmas massas enchem os cinemas para assistirem a vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do aparelho sua humanidade (ou que aparece com tal aos olhos do espectador, como coloca esse aparelho a serviço de seu próprio triúnfo.6 O cinema, ao ser instalado na cidade do Prata, proporcionou à sociedade da época, entrar em contato com os hábitos de outras culturas, como por exemplo, o modo do vestuário, os grandes bailes de gala, as músicas que eram ouvidas, e procurava assimilá-los adaptando-os à sua realidade. O primeiro cinema da cidade foi instalado à Rua Presidente Antônio Carlos acerca de um quarteirão da Praça XV de Novembro, por volta da década de 1930: Era o Cine Santa Helena. Ele não tinha aquela inclinação porque o prédio não havia sido construído com esse propósito. Mas foi lá que o povo começou a gostar de cinema. Os filmes eram mudos. Começou com o cinema mudo, depois veio o cinema falado. O movimento todinho era ali na Presidente Antônio Carlos. Lá fora tinha um barzinho... era muito amplo! Muitos filmes bons a gente assistiu ali. O povo do Prata era assim: eles iam para a primeira seção no Cine Santa Helena... corriam depois para a seção do Cine Prata e vice-versa. O povo, então ficava pra lá e pra cá. Tudo por causa do cinema... pra você ver como o povo do Prata adorava cinema!7 Até a década de 1940, o Cine Santa Helena era o único cinema da cidade: Quando o cinema era lá embaixo, nois ia lá para a porta e ficava lá. Se quisesse namorar era só escorar lá na porta e ficar lá, esperando as moças passar pra lá, pra cá... pra lá, pra cá... Daí um pouco elas interessavam nocê e vinham chegando... chegando... e logo a gente convidava para fazer vai e vem. Eh! Mas era bão! Só que ninguém podia pegar na mão, não! Mesmo as moças daquela época, não podia sair de casa dia de semana, não. Os velhos não deixavam. E para sair tinha que ser só no sábado e no domingo e só se fosse acompanhada. Era uma beleza, viu, naquele tempo! Agora acabou tudo. Tinha também os seriados que passavam de noite e na matinê. Era cada aventura gostosa...8 Essas palavras, para mim, são especiais, pois partiram de um contador de casos inveterado. Desde criança ouço suas histórias e nunca me canso. Trata-se de meu pai. A beleza com que as conta atrai, além de mim, várias pessoas que ao vê-lo sentado no “tronco” colocado na esquina de sua casa, param apenas para ouvi-lo. O seu relato nos leva a perceber que as pessoas que freqüentavam o cinema, não pertenciam apenas às
  • 6. 6 classes mais altas, pois ele era um trabalhador de origem simples, mas também se interessava pela cultura.. Segundo os depoimentos, percebendo o interesse da população, a qual dedicava boa parte de seus finais de semana assistindo aos filmes exibidos pelo Cine Santa Helena, um grupo de irmãos resolve, na década de 1940, iniciar a construção de um prédio com todos os requisitos exigidos para a instalação de um cinema digno de receber aquela clientela. Os irmãos, Alor, Frausto, João Edson e Zoraide Melo, com espírito empreendedor, dão início à construção do Cine Prata, na face oeste da Praça XV de Novembro. Ilustração23: Fotografia do Cine Prata produzida na década de 1950. Fotógrafo desconhecido. Acervo: DEC. A imponência dessa construção, ressaltada por alguns dos depoentes, pode ser observada na ilustração 23. O design do prédio apresenta um telhado de quatro águas e uma fachada suntuosa ornamentada por relevos e marquizes que se justapõem em horizontalidades e verticalidades. Constatamos que o referido prédio se destaca dos demais revelando uma nítida separação entre ele e aqueles que se localizam ao seu redor, principalmente por contar com dois pavimentos. No piso térreo funcionava a bilheteria, o bar e uma sala de espera que dava para o grande salão onde ficava a tela e a platéia. No piso superior ficava a sala de projeção. Em frente percebe-se a rua com
  • 7. 7 calçamento de paralelepípedos denotando a ausência do asfalto, técnica já utilizada em outras cidades da região. Partindo para a observação daquilo que se encontra presente e ausente na fotografia, notamos que no momento do registro fotográfico nenhuma pessoa compunha a paisagem retratada, o que nos levou a pensar nas reais intenções do fotógrafo no momento da produção. Nesse sentido, Benjamin salienta que ao excluir o homem da fotografia, o valor de culto, decorrente da saudade consagrada aos amores ausentes ou defuntos, tende a diminuir ocorrendo a sua superação pelo valor de exposição. 9 Então, o objetivo buscado pelo fotógrafo com tal exclusão seria evidenciar a suntuosidade do edifício do Cine Prata? Existiria algum propósito político norteando a sua prática? Para Benjamin, esse processo de exclusão foi radicalizado quando Atget fotografou: as ruas de Paris, desertas de homens, por volta de 1900. Com justiça, escreveu- se dele que fotografou as ruas como quem fotografa o local de um crime. Também esse local é deserto. É fotografado por causa dos indícios que ele contém. Com Atget, as fotos se transformam em autos no processo da história. Nisso está a significação política latente. Essas fotos orientam a recepção num sentido predeterminado. A contemplação livre não lhes é adequada. Elas inquietam o observador, que pressente que deve seguir um caminho definido para se aproximar delas.10 Por meio desse processo, o receptor recebe instruções que lhe indica caminhos sem importar se são verdadeiros ou falsos. Já a teoria exposta por José Mattoso ao falar dos monumentos históricos que pretendam exaltar o passado nos leva a perceber que ele considera a paisagem como documento, referindo-se às marcas que o homem tem deixado nela e enfatiza a importância de se examinar essas marcas. Para ele, na paisagem urbana, os vestígios temporais são mais facilmente perceptíveis; então, poderemos utilizar a fotografia como fonte documental quando ela retrata edifícios, praças, ruas e casas da cidade que formam a paisagem urbana. Nesta paisagem, a figura humana está presente, mesmo que apenas por abstração, ou seja, mesmo que apenas na imaginação, pois, essa presença pode ser sentida por meio das ações do homem na construção do meio em que vive e que surge documentada sob a ótica do fotógrafo. Através da fotografia dessa paisagem, será possível fazer uma análise do cotidiano das pessoas na época em que determinadas fotografias foram produzidas.
  • 8. 8 O Cine Prata não atraiu a clientela apenas por causa dos filmes exibidos, mas também por essa sofisticação que o fotógrafo tornou visível na ilustração 23, o que pode ser comprovado pelas palavras de Ana Augusta: Nossa, como era bonito, viu? O Cine Prata era “chic”. Havia uma cortina que abria lentamente, porque naquela época valia a pena ir ao cinema. Na sua inauguração foi exibido aquele filme... O Corcunda de Notre Dame. Não sei se vocês se lembram ou já ouviram falar. Foi o primeiro lançamento dessa história. O cinema era muito bonito pra época e ficava ali na Praça que ainda se chamava Fernando Terra. Depois, todo domingo, a gente passeava na praça após a retreta. Por volta das sete horas mais ou menos, começava a música no Cine Prata. Eles faziam uma programação de auto falantes... parecia rádio. Ofereciam músicas em data de aniversário, recados amorosos... essas coisas. Então, a gente ouvia essa música..., era um tempo muito gostoso... Eram boleros, eram peças muito bonitas que a gente escutava. Depois, quando batia um gongo, ia começar a seção de cinema, né? Logo eles punham uma outra música, eu me lembro bem... uma era o Barbeiro de Sevilha, outra era a Rapsódia Húngara número dois... depois começava a seção de cinema. Era muito gostoso... Fazíamos o “footing na porta do cinema... Isso era no nosso tempo de quinze anos. A gente passeava pra lá e pra cá... os rapazes ficavam na calçada ou na rua, porque ali era impedido o trânsito naquele trecho. Então a gente passeava... era um quarteirão só... pra lá e pra cá... ouvindo as músicas que tocavam no Cine Prata e as moças flertando com os rapazes... era muito interessante!11 Analisando a narrativa de Ana Augusta e do Sr. Osvaldo quando falam do “footing”, podemos perceber que houve uma transferência de local para a prática de tal hábito. À medida que a clientela do Cine Santa Helena era atraída para o Cine Prata, esse passeio de vai e vem também se deslocou, passando a acontecer na Praça XV de Novembro. Além de exibir, em sua maioria, filmes americanos e europeus, o salão do Cine Prata também se prestava a outra função, a de palco para vários shows contratados pela prefeitura ou por particulares. Um dos mais comentados foi a apresentação de um grupo haitiano com uma orquestra de tambores. Mas não eram os instrumentos tradicionais, eram tambores parecidos com aqueles que servem para armazenar gasolina. Segundo Ana Augusta era uma orquestra maravilhosa. O tambor era adaptado de forma que cada um, dependendo da saliência que possuía; um amassado maior outro menor; produzia uma nota musical e emitia um som diferente. “Era um amassadinho que davam na tampa do tambor... eles penduravam aquela tampa no pescoço e tocavam. E como tocavam tão bem!”12
  • 9. 9 Na década de 1970, sob a influência dos festivais de música popular que acontecia no Rio de Janeiro e em São Paulo, por vários anos o palco do Cine Prata abrigou inúmeros candidatos que lá iam mostrar os seus dons musicais. Nós tivemos também o prazer de fazer o festival de música inédita, o FECAP, Festival da canção Pratense. Estes festivais eram influenciados por aqueles que aconteciam no Rio e em São Paulo. Aqueles festivais em que se apresentaram Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, dentre outros. Essa influência se estendeu pelo Brasil inteiro. Eu me lembro também que nós conseguimos formar um grupo de músicos... eu não participei, mas tive o prazer de vê-los se apresentarem no festival do Chapadão em Uberaba no ano de 1967. Nós tivemos um grupo musical pratense se apresentando num festival da canção de Uberaba! Pra nós foi motivo de muito orgulho! Esse grupo era liderado pelo Carminho do Ismar e foi organizado apenas para participar deste festival. Valeram a pena estes festivais. Hoje o Carminho é um músico respeitado dentro de Goiânia onde reside. 13 O relato de Cleanto ressalta que não apenas a influência externa era importante, mas quando alguém da cidade se sobressaía fora de seu âmbito, havia um certo orgulho por parte de seus conterrâneos. Era importante levar, segundo eles, o nome do Prata para fora de sua fronteiras, principalmente na área cultural. O Cine Prata foi desativado na década de 1980. Novos usos foram atribuídos ao seu espaço. Onde outrora se realizavam eventos culturais, hoje funciona a instituição financeira Bradesco. Sua fachada foi descaracterizada e em momento algum se falou na sua restauração ou preservação, mesmo que, como disse Françoise Choay14 ao se reportar às palavras de Ruskin, a arquitetura seja o único meio que dispomos para conservar vivo um laço com o passado ao qual devemos nossa identidade, “e que é parte de nosso ser”. Ao interrogar os monumentos, Ruskin prefere uma abordagem afetiva considerando que o passado é definido pelas gerações humanas que nos precederam. Ora, podemos dizer então, que ao tomarmos contato com o que viram e tocaram as gerações desaparecidas existe a possibilidade de nos comunicarmos com elas. Mas, esse pressuposto citado pela autora não deve ser considerado como verdade absoluta, pois nem sempre as lembranças necessitam de objetos palpáveis para vir à tona. Um cheiro ou um som, também são responsáveis por despertar nosso subconsciente. Contudo, se considerarmos as políticas preservacionistas adotadas no país, nos deparamos com uma série de dificuldades. Quando se trata de dar uma nova destinação aos edifícios antigos mantendo sua originalidade:
  • 10. 10 os trabalhos de infra-estrutura exigem uma competência técnica especial e têm um custo às vezes proibitivo. É por isso que é difícil garantir que a reutilização seja rentável, o que em geral só se consegue em prejuízo da funcionalidade. Neste caso, resta apenas uma casca vazia de seu conteúdo por “curetagem”: procedimento discutido quando se trata de preservar a morfologia de uma malha urbana; procedimento inadmissível quando se resume ao sacrifício das estruturas e o ambiente interno de um edifício. 15 Outro fator agravante quando se trata da preservação de edifícios particulares é que, se tombado pelos órgãos públicos, a sua conservação fica a cargo do proprietário. Sendo assim, não há interesse de sua parte quanto ao fato de sua propriedade ser considerada de valor histórico, portanto passível de ser tombada e, desse modo, ela não lhe renderia os dividendos que obtém ao alugá-la a terceiros ou destinar-lhe novos usos. A especulação imobiliária passa a orientar os modos de utilização dos edifícios que se localizam nas áreas mais movimentadas das cidades. Mesmo que eles possuam um valor histórico expressivo constatamos que não existe, por parte do poder público, nenhum interesse em destinar verbas para a preservação de tais edifícios; a não ser quando a valorização do patrimônio histórico representa um empreendimento lucrativo. As cidades históricas de Minas Gerais são um exemplo disso e sua fonte de renda firma-se nas atividades relacionadas ao turismo. O que não devemos esquecer, de acordo com Lia Mota , é a maneira como o IPHAN desde a sua fundação até a década de 1960 selecionou: o que e como preservar nas cidades brasileiras, influencia até hoje as políticas públicas, no que se refere ao urbanismo, e o entendimento que as comunidades urbanas e os cidadãos têm sobre o valor das cidades como patrimônio. Essa atuação leva à valorização das cidades pela uniformidade de seus aspectos estilísticos e fortalece o discurso das que vêem seus interesses comprometidos pela preservação urbana, aqueles a quem interessa a transformação de áreas históricas em produtos de consumo. Tais enfoques prevalecem em detrimento de outras propostas que têm como alvo trabalhar áreas do ponto de vista da história urbana, com fontes de conhecimento e identidades, independente de julgamento sobre a estética dos imóveis. 16 Devemos nos lembrar que a escolhas das cidades mineiras como parâmetro para as práticas preservacionistas buscava construir uma imagem que representasse o Brasil como uma nação moderna durante o governo de Getúlio Vargas a partir da década de 1930. Segundo a autora, ao distinguir com uniformidade o tratamento que é dado às cidades: contrapõe-se a outras possibilidades de preservação ao desconsiderar as cidades como processo social e historicamente construído, como espaços que acumulam
  • 11. 11 vestígios culturais no seu processo permanente de reapropriação social e como lugares que adquirem valor simbólico, referências culturais das comunidades que as habitam, independente das características estéticas.17 Assim, mesmo que a preservação do Cine Prata tenha sido um desejo daqueles que o freqüentaram como demonstra o depoimento de Maria Augusta: “eu acho que o Cine Prata era um prédio que deveria ter sido preservado... que fosse utilizado para outra função... ele lembra um tempo muito bom na vida de todos nós!”.18 a sua preservação, segundo as políticas de preservação praticadas no país, só seria uma realidade se ela representasse retorno financeiro aos investidores. Neste caso, optou-se pelo aluguel do imóvel. 2 - SONHOS E “GLAMOUR” NAS NOITES DO PRATA CLUB. Em dez de fevereiro de 1933, realizou-se uma reunião nos salões do Grupo Escolar onde foi discutido e aprovado o projeto de estatutos sociais apresentado pela comissão encarregada da fundação e instalação do Prata Club. O prédio em que provisoriamente se instalará a nova sociedade já passou pelas reformas e adaptações necessárias de modo que, antes mesmo da cerimônia de inauguração, que se pretende levar a effeito no dia vinte e seis do corrente, elle já poderá ser freqüentado pelos sócios. O número de sócios fundadores, cujas vantagens, aliás, não são de se desprezar, é bem animador, havendo muitos deles, adiantado várias mensalidades, para que o Prata Club possa fazer frente às despezas iniciais. 19 (sic.) Começa assim a história de mais um dos prédios que compõem o entorno da atual Praça XV de Novembro. Inicialmente as reuniões sociais se realizavam nos salões do Grupo Escolar Noraldino Lima por falta de um prédio que abrigasse a sede da entidade. Para satisfazer a sociedade da época. Em um outro editorial publicado em 26/11/1936, e que descreve a festa ocorrida em 18/11/1933, nos é proporcionada uma idéia de como se comportava tal sociedade: ...Foi inteiramente correspondida a expectativa com que a aguardava a sociedade pratense, pois a elegante reunião constituiu, por todos os títulos, a nota de arte e de distinção deste fim de anno. Numerosa e distincta, a assistência que a ella acorreu. Felizes e encantadores os números de declamação e canto, a cargo de senhoritas da nossa sociedade. Brilhante a palestra literária de que se encarregara o sr. Dr. Garibaldi de Mello Carvalho. Animado e encantador o sarau dançante. [...] A seguir, a senhorita Helena Novaes Costa declama com expressão “Carinhos” versos de Menotti Del Picchia. A senhorita Meiga Mazzaro canta “Rubis”, acompanhada pela orquestra. A senhorita Aracy Franco declama “Descrença”, os lindos versos de Ana Amélia e a senhorita Zilá Vilela Junqueira “Confissões de Amor”de Aristeu de Andrade.20 (sic.)
  • 12. 12 Em 1934, a sede do Prata Club que se localizava à Av. Major Carvalho, desloca- se para um prédio totalmente remodelado situado na Praça Fernando Terra. Conforme a pesquisa se desenvolvia, fui descobrindo fontes e documentos referentes a esse mesmo assunto em diferentes locais. Inicialmente foram-me doadas algumas fotografias e uma delas me chamou a atenção (ilustração 24). Conforme os depoimentos, é uma fotografia que retrata várias pessoas à porta do prédio da prefeitura aguardando o desfecho de uma corrida de carros ocorrida em 1938. Era, então, o período do Estado Novo de Getúlio Vargas. Por meio da análise de determinados elementos da fotografia 21 foi possível reconhecer sua relação com uma outra fonte encontrada posteriormente: um artigo no jornal “Cidade do Prata” publicado em 13/11/1938. Ilustração24: Comemorações de um ano do Estado Novo – 1938. Fotógrafo desconhecido. Acervo: DEC A imponência dessa construção, ressaltada por alguns dos depoentes, pode ser observada na ilustração 23. O design do prédio apresenta um telhado de quatro águas e uma fachada suntuosa ornamentada por relevos e marquizes que se justapõem em horizontalidades e verticalidades. Constatamos que o referido prédio se destaca dos demais revelando uma nítida separação entre ele e aqueles que se localizam ao seu redor, principalmente por contar com dois pavimentos. No piso térreo funcionava a
  • 13. 13 bilheteria, o bar e uma sala de espera que dava para o grande salão onde ficava a tela e a platéia. No piso superior ficava a sala de projeção. Em frente percebe-se a rua com calçamento de paralelepípedos denotando a ausência do asfalto, técnica já utilizada em outras cidades da região. Tal artigo trata das festividades organizadas pela diretoria do Prata Club para comemoração do primeiro ano do Estado Novo e relata passo a passo o programa de atividades elaborado para a ocasião. É inaugurada nos salões do Prata Club um retrato do Presidente Getúlio Vargas. Ao observarmos a referida imagem, podemos ver exposto em evidência, no ponto de chegada, à porta da antiga prefeitura, outro retrato do Presidente. As pessoas que se encontram em cima do palanque improvisado, denotam pertencer ao corpo administrativo da cidade. Outros se posicionam mais distanciados. A ausência da mulher no grupo fotografado demonstra a sua exclusão da cena política e do ambiente dominado por homens. Elas permanecem à distância e aparecem em segundo plano na cena registrada. Segundo Carrijo, “sua presença quase sempre imperceptível, introduz a simbolização da inserção marginal da mulher da época no espaço público da cidade”.22 Ao longe, em terceiro plano, avista-se um dos Morrinhos. Já o discurso que compõe o texto do editorial é laudatório e enaltece profusamente o “mito” Getúlio Vargas o que pode ser constatado pelo fragmento transcrito abaixo: [...]o Prata Club julgava praticar um ato de justiça e de patriotismo, inaugurando no seu salão de honra, o retrato do grande e benemérito brasileiro. [...] O Sr. Aymoré Dutra, digno inspetor de ensino nesta circunscrição, foi o segundo orador. O seu discurso rico de imagens e conceitos, foi a exaltação do Estado Novo, que apesar de ter apenas um ano de existência, já se impusera, pelas suas normas de honestidade e civismo, não só pelo aplauso como ao apoio decidido e entusiástico de todos os bons brasileiros. 23 O empenho dos políticos pratenses em evidenciar a figura do Presidente se deve, em parte, à postura adotada pelo governo getulista após a revolução de 1930 em que: o Estado reorienta seu eixo de atuação frente às camadas populares. Definiu-se uma nova trajetória rumo à complexa articulação política que buscava conciliar a hipertrofia do aparato de dominação – e a concomitante veiculação de ideologias marcadamente autoritárias – com a constituição de um discurso dirigido às classes trabalhadoras, fundamentado nos argumentos da ordem e disciplina. Além do forte tom acéptico do discurso político do período em questão, estava em curso um projeto populista, que se expressava no esforço de Getúlio Vargas em estabelecer uma estreita vinculação de caráter paternalista e
  • 14. 14 afetivo com as massas. A partir do Estado Novo essa estratégia tornou-se o ponto de convergência de todas as ações do Estado junto às classes trabalhadoras.24 Esse discurso era assimilado por grande parte da elite política cujo interesse se pautava na necessidade de alinhamento ao poder vigente procurando garantir que suas reivindicações fossem atendidas e caracterizando, desse modo, uma relação de dependência que objetivava a legitimação da autoridade do Estado na tutela da sociedade. A imagem de um poder estatal forte era introjetada na população por meio da imprensa que era alvo de um intenso controle por parte da censura que procurava disciplinarizar a população salientando o valor da conservação das tradições. Além disso, havia a proposta modernizante que visava a criação de uma nova identidade coletiva calcada na recuperação do passado, associada aos progressos técnicos e políticos da época. O editorial informa ainda que essas festividades iniciaram-se às cinco horas da manhã e foram fechadas por um “suntuoso baile, que constituía a última parte do programa”. Os depoentes falaram de vários bailes como o descrito acima e que se realizaram por toda a trajetória social do Prata Club. Grandes orquestras animaram as noites da sociedade pratense. Quando se referiram a esses eventos, a importância do “vestir-se bem” para aquelas ocasiões foi ressaltada por grande parte dos depoentes. A entrada dos cidadãos no recinto do Prata Club só era permitida se eles seguissem a regra imposta no quesito vestuário: Era um clube muito grande, as moças e rapazes que participavam dos bailes trajavam-se muito bem. Traje a rigor... jamais se admitia a entrada em baile a rigor sem “smoking”, seja branco ou preto. Mesmo os mais pobres também se trajavam bem. A sociedade era muito selecionada e pra você conseguir um convite tinha que ter um currículo respeitável. Não era o dinheiro que valia, era a moral. A moral da pessoa valia muito mais que dinheiro. Podia ser alguém de família humilde, porém era preciso que um conselheiro analisasse a situação da pessoa pra decidir se teria permissão para entrar. 25 A opinião feminina também não se diferenciava do que nos diz professor Virgilio. Para Ana Augusta: o baile de inauguração do Prata Club foi uma maravilha! Duas orquestras... engraçado, como é que coube lá dentro? Era uma orquestra de Frutal que ficou em cima daquele palco que eles construíram, né? E a outra ficava no outro canto. A sociedade do Prata era uma sociedade pequena. Mas as roupas eram lindas... lindas! Cada vestido mais bonito que o outro... era um guarda roupa de classe mesmo! E um pessoal muito chique... os sócios eram bem selecionados.
  • 15. 15 Talvez por isso coube duas orquestras no salão. Porque a sociedade era muito pequena.26 Em outro depoimento, Maria Augusta Camargos salienta que desde o tempo em que o Prata Club se localizava na avenida Major Carvalho: lá não entravam negros, não. Só Brancos. E tinha outra coisa também. Os homens não podiam entrar lá sem paletó e gravata. Quem trabalhava lá era o Sr. Cetim. Ali também se realizavam festas maravilhosas e eles eram muito enérgicos. Por exemplo: se seu pai não pagasse a contribuição mensal em dia eles não deixavam entrar e ainda humilhavam. O “Tio Luiz”, o que ele podia “picar” as pessoas ele picava. Mas isso era muito bom porque as pessoas evitavam atrasar as mensalidades. [...] Eu me lembro também da inauguração do prédio novo, na esquina da praça. Foi um baile a rigor, muito chique! Nessa ocasião eu não tinha idade para freqüentar bailes ainda, mas eu fui ali pra esquina só pra apreciar aquelas belezas que estavam entrando... porque as mulheres estavam muito bem trajadas... umas roupas lindíssimas!27 Por meio dos depoimentos, torna-se evidente que conflitos como separação de classes e segregação racial também faziam parte do cotidiano da comunidade pratense e que ali também os territórios de sociabilidade eram “projetados e construídos de forma a segregar uns e incorporar outros, subjuga e absorve aqueles que procuram por ele. Espaço fantasmagórico que invade a alma pois oferece, promete e, ao mesmo tempo, nega, retira, ilude”.28 Características de segregação racial são identificadas em vários outros depoimentos que afirmaram não ser permitida a presença de negros nem mesmo como sócios do Prata Clube. “Os brancos podiam ir no clube dos pretos, mas os pretos não podiam ir no clube dos brancos, o Prata Club. Só era permitida a entrada de pessoas de cor, no carnaval quando eles iam fazer a visita... eles desciam com a Escola de Samba, aí então, era permitida a sua entrada.” 29 Mas, ao serem questionados sobre e existência de tais conflitos, em nenhum momento os depoentes os confirmaram, o que sugere a necessidade de camuflá-los na tentativa de consolidar a imagem de sociedade harmônica criada no imaginário da sociedade em questão. Quanto falam das tardes dos finais de semana, salientam que o lazer dos mais jovens consistia em participar das matinês que se realizavam nos recintos do Prata Club. Na sala ao lado da escada, ficava uma mesa de pingue-pongue onde as duplas se empenhavam em disputas acirradas. Pessoas de todas as idades aproveitavam esse lazer: Da história do Prata Club eu tenho a dizer que foi a melhor época. Eu posso dizer que vivi a época de outro, não só do cinema, do teatro e da música. Várias
  • 16. 16 peças extraordinárias foram encenadas no Cine Prata e às vezes, até mesmo no Prata Club, por companhias de alto nível. Nós ouvimos orquestras de nível internacional que passaram pelo Prata realizando bailes maravilhosos em que a sociedade comparecia toda. Eram bailes finos, não se aceitando homens trajando camisas pura e simples, mas era necessário o uso de terno e gravata ou “dinner jacket”... afinal de contas, se o que acontece hoje é modernidade, então eu digo que o Prata perdeu muito com essa modernidade. Os bailes eram muito bonitos, e a sociedade que comparecia era mais escolhida. Eu digo mais escolhida porque as famílias pratenses que compareciam eram as mais tradicionais. Sempre havia muito respeito, não havendo muita bagunça... mas, quando alguém passava um pouco da medida, o Juiz Moreira, que era o zelador, chamava a atenção e o presidente convidava o inoportuno a sair. A época de ouro da sociabilidade pratense aconteceu com os eventos patrocinados pelo Prata Club.30 Ao comentarem que quem não possuísse condições financeiras e, conseqüentemente, não se vestisse bem, não poderia participar dos eventos promovidos no Prata Club, os depoentes deixam transparecer um certo preconceito. Vale ressaltar que essa é uma característica que perdura na atualidade, não apenas em Prata, mas em grande parte do país. Os estatutos que estabelecem normas na maioria dos clubes mais luxuosos prevêem taxas altas para o ingresso de novos sócios e esse fator, por si só, já é excludente, pois é uma minoria da população brasileira que conta com uma renda mensal adequada para suportar tal despesa. Até a década de 1950, a sede do Prata Club funcionava em um prédio alugado. Em 1951 foi concluída a construção da sede própria localizada na esquina noroeste da Praça XV de Novembro. Ao observarmos a fotografia que retrata a largada de corrida de bicicletas, inserida neste trabalho na página 134, notamos o prédio do Prata Clube compondo o pano de fundo ainda apresentando sua arquitetura original típica da época, seguindo o estilo “art déco”. Contudo, ao observarmos a ilustração 25, fotografia produzida no ano de 2004, notamos as intervenções que descaracterizaram totalmente sua fachada. Segundo o atual dono do Bar Caiçara, Sérgio Luiz Felisbino, o telhado apresentava sérios problemas ocasionando goteiras que prejudicavam seu estabelecimento, instalado no piso térreo do prédio. A marquise sob a qual se apoiava uma parede de canto do salão de baile corria o risco de desabar e, desse modo, ele não encontrou outra alternativa a não ser optar pela reforma. Perguntei, então, se algum especialista havia visitado o prédio e elaborado um diagnóstico. A resposta foi negativa. O motivo é que, na cidade, não existem especialistas capacitados para realizar a tarefa. Neste sentido, o que acontece em Prata
  • 17. 17 quanto à conservação dos prédios mais antigos vai ao encontro do que nos fala Françoise Choay: Querer e saber tombar monumentos é uma coisa. Saber conservá-los fisicamente e restaurá-los é algo que se baseia em outros tipos de conhecimento. Isso requer uma prática específica e pessoas especializadas, os arquitetos dos monumentos históricos”, que o século XIX precisou inventar31 Ilustração25: Reforma do Prata Club. Fotografia produzida no ano 2004 pela autora. Acervo próprio. Ora, quando pensamos a questão da preservação de patrimônio em Prata, e a relacionamos ao pressuposto acima, percebemos que talvez seja este seja um dos entraves para que a implantação de políticas de preservação ocorra de maneira satisfatória. A ausência de mão de obra especializada é perceptível nas reformas que são realizadas nos prédios públicos, como por exemplo, as igrejas. Nenhum estudo relativo ao estilo da arquitetura adotada na construção do projeto original é feito. A obra de reforma é normalmente realizada por leigos e, na maioria das vezes, não se pensa em manter a originalidade do projeto. A presença de uma pá carregadeira, a qual passa em frente ao prédio do Prata Club na hora em que o dispositivo da câmera fotográfica foi disparado nos remete à demolição da antiga Igreja Matriz e percebemos que a situação não é nova. Do mesmo
  • 18. 18 modo que o Prata Club foi reformado devido ao risco de desabamento, a demolição da igreja foi calcada na justificativa de que estava prestes a desabar. Mas, já no inicio do processo de demolição, várias dificuldades surgiram devido à solidez da construção: Quando eu vi derrubar a Igreja, eu fiquei tão chateada... porque eu vi o tanto de trabalho que deu pra desmanchar. Cada coluna daquela que tinha no interior da Igreja... eram umas colunas no estilo romano que dava até para o povo sentar nos cantinhos delas, porque sua base era quadrada. O tijolo cresceu até certa altura que dava pra você sentar. Depois dessa base, ela começava circular, em estilo romano mesmo. Os gomos que ela tinha... a coluna saia daquele pilar quadrado e subia formando uns gomos como se fosse uma coisa dentada... e depois ela saía mais fina no centro e ia até ao teto. Eu vi desmanchar aquelas colunas e pensei comigo: Mas é um absurdo desmanchar essas colunas! E o trabalho que deu! Foi preciso da ajuda de pás carregadeiras e trator de esteira para fazer isso. Eles amarravam pedras enormes em correntes e elas eram jogadas de encontro às paredes, mas isso não surtia efeito algum. 32 Então, nem sempre, a possibilidade de desabamento para justificar qualquer demolição, é avaliada da maneira correta. Percebe-se, desde essa época, uma preocupação com a remodelação estética reforçada pelo espírito da modernidade difundido desde a década de 1920. Segundo o depoimento de Cícero Junqueira, infelizmente no Brasil, não só na cidade do Prata, as pessoas não têm noção da importância da preservação dos patrimônios e isso tem prejudicado culturalmente as cidades. A conservam de edifícios e valorização das raízes culturais faz parte de uma quantidade muito pequena de cidades brasileiras: O Prata por exemplo, apesar de ser bastante antiga, quem a visita hoje pensa que ela tem trinta anos, porque a maior parte dos prédios que estão ali são bem recentes. Os prédios antigos foram todos demolidos e vários deles tinham um estilo arquitetônico que não poderia ser destruído, porque realmente mostrava o estilo adotado em cada época durante o seu processo de desenvolvimento. Em 1830 já começou a surgir o arraial do Prata.. Nós estamos então, com mais de cento e cinqüenta anos de história que foi perdida. A maior parte dos países estrangeiros conservam os seus edifícios e valorizam sua história. Isso atrai 33 pessoas para conhece-los gerando divisas para as cidades. Como já foi dito, existe no país uma mentalidade de que a preservação deve se restringir apenas aos monumentos históricos pertencentes ao período colonial e em Prata também não é diferente. Nesse sentido, Lúcia Lippi de Oliveira salienta que: em cada época a sociedade e suas autoridades têm uma idéia sobre o que deve ser preservado. A partir doa anos 30 constituiu-se no Brasil um discurso que organizou as ações do patrimônio e passou a orientar nossa compreensão e nossa leitura estética sobre o urbano. Durante muito tempo achava-se que não tínhamos nada a ser preservado. Depois, passou-se a defender a preservação do período colonial – daí a atuação no espaço das cidades mineira, a proteção das
  • 19. 19 igrejas barrocas. Nos dias de hoje, o patrimônio arquitetônico está conectado não só com o passado e a memória nacionais, mas também com a vida das pessoas que moram no espaço da cidade. O conjunto urbanístico, assim como a paisagem, está fazendo parte do patrimônio cultural que se inter-relaciona com a noção de espaço turístico.34 Em relação à descaracterização que se encontra em andamento no prédio do Prata Club, a opinião de Cícero se assemelha ao proposto pela autora. Para ele: apesar de não ser um prédio que segue o estilo barroco deveria ser preservado pois, por ser uma construção da década de 1950, tem uma característica mais ao estilo “art déco”. É uma construção mais nova. Só que também é uma escola que existiu e deve ser preservada. Neste ano, o Prata Club está sendo reformado por causa do telhado. A reforma o descaracterizou bastante. Perde-se assim, mais um patrimônio da cidade, porque a administração municipal não tomou providências neste sentido. Pensam que não vale a pena. Mas, se nós não preservarmos hoje, uma construção que tem uns quarenta anos, daqui a cem, cento e cinqüenta anos não haverá nenhum registro da história (passado) da cidade. 35 Por isso a iniciativa de criação de um conselho voltado para orientar o processo de preservação de patrimônio histórico na cidade traz a esperança de mudanças sistemáticas. O Conselho Municipal do Patrimônio Cultural do Município do Prata foi criado pelo decreto nº 2064/2003 em 04/04/2003. Sua criação segue a política instaurada pelo Estado de Minas Gerais: Para a difusão de políticas de preservação para o nível local, pode ser considerado um marco na história da preservação em Minas Gerais a decisão de se incluir o patrimônio cultural como um dos critérios para o repasse do ICMS aos municípios, através da Lei Estadual 12040/95, que ficou conhecida como Lei Robin Hood. Para se beneficiarem de maiores repasses do ICMS, os municípios tiveram que atender a uma norma estrategicamente concebida pelo IEPHA que, a princípio, foi de fácil cumprimento, para, nos anos subseqüentes, ir sendo gradualmente aprofundada, possibilitando um amadurecimento gradativo e monitorado. Vale dizer que os municípios que cumprissem um conjunto gradual de tarefas passavam a receber uma pontuação, traduzida em seguida em índice, que iria se refletir na cota de ICMS a receber do repasse do Estado.[...]O resultado é que conceitos aparentemente sofisticados como o próprio conceito de patrimônio, os conceitos de tombamento, de inventário e de política municipal de proteção estão difundidos de forma consistente em mais de 200 municípios de Minas. Uma linguagem comum, que orienta a identificação de valores locais e que instala a discussão dos critérios de atuação encontra-se largamente implantada. Em termos quantitativos, os dados são muito significativos – 160 Conselhos de Proteção do Patrimônio foram criados por Leis municipais e cerca de 600 bens foram tombados com base em dossiês de tombamento fundamentados. Outros resultados interessantes vieram da Lei: o enriquecimento do banco de dados do IEPHA; a ampliação da preocupação com os acervos documentais, levando à criação de arquivos e museus municipais; a valorização das equipes locais responsáveis por cumprir as metas que garantem a pontuação, muitas delas reforçadas com a contratação de
  • 20. 20 arquitetos restauradores e historiadores, abrindo mercado de trabalho para esses profissionais. 36 Depois de criado esse conselho, algumas conquistas já foram alcançadas. Segundo Cleanto37, as atividades do grupo envolvido nesse projeto têm acontecido da melhor forma possível. Já aconteceram doze reuniões sob a orientação de um agente do IEPHA (INSTITUTO Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico) de Belo Horizonte. Vários imóveis antigos estão sendo inventariados por jovens da comunidade que passaram por um treinamento específico. Espera-se que no próximo ano, sejam aprovados os tombamentos da Igreja Nossa Senhora do Rosário localizada na Praça Getúlio Vargas, um bem imóvel, e a imagem do Nosso Senhor dos Passos existente na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, um bem móvel. O grupo que compõe o conselho, na maioria, é constituído por pessoas da comunidade que ali estão voluntariamente e conta com a liderança de Maria Helena Cruz de Melo. 38 Outros eventos fizeram parte da trajetória do Prata Clube e, dentre eles, um dos mais relembrados é a realização dos bailes de carnaval: Os carnavais eram uma maravilha... todo mundo brincava no salão, porque, hoje em dia o pessoal só pensa em cheirar lança-perfume escondido, coisa que não pode.. Na minha época, o lança-perfume era liberado, então o laça-perfume servia para os moços jogarem nas moças enquanto estavam dançando... era uma brincadeira saudável! Tinha as coisas que em toda época tem, mas era uma época mais feliz. Os jovens tinham onde aproveitar e hoje, na nossa cidade, não há um local para os jovens irem e não pensarem em bebida. Nós só tínhamos aquele clube mas, ali fazíamos a nossa vida, dançávamos muito... 39 Tais bailes, apesar de serem lembrados com uma certa saudade por parte de vários depoentes, também se apresentavam como excludentes, pois deles só participavam as pessoas com condições financeiras para se tornar sócio de um dos dois clubes da cidade. Neste sentido, à grande maioria da população restava o consolo de participar, como expectador, dos desfiles que se realizavam nas noites de domingo e de terça-feira, ao redor da Praça XV de Novembro. Esses desfiles tinham como objetivo acirrar a disputa entre as duas escolas de samba que existiam na cidade: Escola de Samba do Clube Recreativo José do Patrocínio, “escola de samba dos pretos”, e Escola de Samba Unidos do Prata Club, dos brancos.
  • 21. 21 Ilustração26: Carnaval realizado no ano 1920. Turma do Zé Pereira. Fotógrafo desconhecido. Acervo: DEC Após 1950, havia um caminhão que conduzia um bloco de pessoas fantasiadas denominado “Turma do Zé Pereira” (ilustração 26) pelas ruas da cidade durante os festejos do carnaval. Eles despertavam a atenção dos moradores e todos aqueles que estivessem no interior de suas casas, acorriam para a rua somente para vê-los passar. A alegria com que desfilavam era contagiante! As crianças exultavam com a chuva de confetes e serpentinas que caía pelos caminhos que percorriam. O outro grupo, “A Furiosa”, também marcou época nos carnavais pratenses. Esse grupo sempre se fantasiava de mulher. Era uma espécie de banda musical que saía para as ruas, com os instrumentos e iam tocando uma melodia descompassada. Entravam em todos os bares que encontrassem abertos pelo caminho. Enquanto o dono do bar não lhes servia bebida gratuitamente, eles continuavam tocando uma melodia que não possuía um ritmo definido, porém, quando eram atendidos, em agradecimento tocavam algumas marchinhas de carnaval. No início, todas as pessoas que participavam da furiosa conheciam música e tocavam algum instrumento, mas nos últimos anos em que saiu nas ruas, nem instrumentos havia. Seus componentes batiam em latas ou panelas, o que chama a atenção para o fato de que a decadência ronda até mesmo os
  • 22. 22 hábitos mais simples. Mas, a Furiosa ainda é relembrada com saudosismo por aqueles que dela participaram: Um fato interessante de uma “Furiosa” da qual participei, o Hermane 40 se vestiu com o maiô tipo aquêles engana papai, de duas peças, uma ligada na outra, que pertencia a Dona Glória. Imagine só, o Hermane com o maiô da Dona Glória! 41 Hoje, devido às mudanças dos tempos, o carnaval não acontece mais nos salões fechados dos clubes, mas sim na Praça XV de Novembro. Um grande palco, onde as bandas contratadas animam os cinco dias de folia, é montado na Avenida Major Carvalho, bem em frente à Igreja Matriz. O direito de sambar foi estendido a todas as pessoas de acordo com sua vontade. Nas laterais da avenida Major Carvalho, são montados os camarotes para serem comercializados e o centro da avenida em frente ao palco é tomado pela multidão que se aglomera para festejar os cinco dias de folia. Desse modo, não existem mais excluídos nesta festa que é: uma festa folclórica mesmo, do povo. Quem vai lá... Eu vou no carnaval e não bebo. Não estou desrespeitando ninguém, né? Vou lá, sinto bem, vou embora pra casa. Eu já fui até folião do carnaval quando era no clube. No clube não era uma festa tão popular. Hoje o pessoal ta querendo fazer uma festa para todo mundo porque antes era uma festa pra quem tinha dinheiro pra gastar no clube, né? Hoje, não. Hoje dança João, dança Pedro, dança Mane, todo mundo dança junto. Cada grupo faz seu bloquinho e eu acho que está certo. Todos convivem bem em sociedade. Aquele que mora lá na periferia, se ele se comportar bem, ele pode viver em qualquer lugar. Nós, seres humanos, temos que nos comportar bem em qualquer lugar. Não adianta ser rico ou pobre se a pessoa não sabe se comportar. Hoje, a festa do carnaval de rua dá essa abertura pra todo mundo se confraternizar, entrosar, se cumprimentar, se abraçar... chega um te abraça... um bebe e vem te abraçar... a gente que não bebe até sofre, né? (risos) 42 Contudo existem contradições quanto a essa maneira de enxergar a realização do carnaval na praça. Para Elite Nascimento houve uma mudança muito grande em relação ao passado e, segundo seu ponto de vista, foi uma mudança negativa pois antes era: um carnaval de rua muito bonito, do qual todo mundo participava. Aquela beleza de desfile! Eu tenho saudade... Saudade dos carnavais no clubes também. Era o Clube Recreativo José do Patrocínio e o Prata Clube. Tinha aquela rixa entre as escolas de samba dos dois clubes. Vinham as disputas e nós (os negros) sempre saia na frente, entendeu? Mas era aquela união. Sempre na segunda feira, nós fizemos um acordo: a turma dos brancos visitava o clube dos pretos e os pretos depois visitava o clube dos brancos. Pra quebrar aquele preconceito... aquilo foi muito bonito... e os desfiles maravilhosos! Foi quando o Sérgio “Manivela” entrou pra ser presidente do Prata Clube. A idéia das visitas foi deles. 43
  • 23. 23 Observando o depoimento de Elite, percebemos que ela sente falta dos desfiles das escolas de samba que hoje não acontecem mais, e não do carnaval que acontecia no salão do clube. Nestes desfiles, a depoente sempre se destacava como madrinha da bateria da Escola de Samba do Clube Recreativo José do Patrocínio. Quando ela afirmou que todo mundo participava do carnaval de outrora, lembrei-lhe que anteriormente a participação por parte da população era apenas passiva, pois quem não fazia parte das escolas apenas assistia ao desfile, portanto, a maioria da população ficava excluída dos folguedos. Ao que ela me respondeu: “Mas o povo todo saía de casa para ver os desfiles!” 44 Para Elite, essa também era uma maneira da população participar da festa carnavalesca. Um outro aspecto pôde ser captado nas entrelinhas de alguns depoimentos. Elite nos fala das rixas entre negros e brancos durante o carnaval, mas a seguir ressalta que todos partilhavam “aquela união”. Quando conta sobre as visitas entre os clubes diz que era para quebrar o preconceito. Mas será que uma visita de apenas alguns minutos significava que o preconceito racial, já salientado em outros depoimentos, seria abolido? Nem todos os negros tinha permissão para ingressar no recinto do Prata Club por ocasião da visita, mas apenas os integrantes da escola de samba. Partindo dessa análise concluímos que os membros dessa sociedade, ensaiava um discurso, segundo o qual, se pregava que deveria haver uma maior interação entre negros e brancos, mas suas ações nesse sentido eram mínimas. Quanto a se afirmar que essa interação ocorre hoje no carnaval da praça, é um fato a se questionar. A separação de classes já não é tão visível, mas ainda existe. Isso é constatado pela divisão do público participante entre os camarotes pagos e o centro da avenida, gratuito. Os ingressantes dos camarotes, devido ao seu poder aquisitivo, estão em posição superior à maioria da população de baixa renda que se aglomera em frente ao palco. Um outro conflito permeia as relações entre os organizadores do evento carnavalesco e a administração da Igreja. Alguns católicos consideram uma falta de respeito festejar o carnaval em frente ao templo sagrado da Igreja. A ilustração 27, fotografia produzida por mim durante a realização do carnaval de 2004 denota, em primeiro plano, a presença do “profano” representado pelo palco onde as bandas tocam, e; em segundo plano, a presença do “sagrado” representado pela Igreja Matriz.
  • 24. 24 Ilustração27: Fotografia do palco erguido durante o carnaval de 2004 em frente à Igreja Matriz. Acervo próprio. Insatisfeitos com a realização do carnaval naquele local, algumas medidas foram tomadas pela administração da Igreja. Afixaram uma faixa com os seguintes dizeres: “Tudo me é permitido mas nem tudo me convém” na sua entrada (ilustração 28). Foi uma tentativa de chamar a atenção das pessoas para o fato de que o carnaval nunca foi considerado pelos membros da igreja como criação de Deus. No entanto, segundo Gilberto Freyre, a Igreja católica nada tinha contra os festejos de carnaval, já que eles surgiram com a propagação do cristianismo e por força do seu calendário litúrgico. Inicialmente o carnaval era designado de “terça-feira gorda” por se tratar do dia em que a Igreja suprime o uso da carne durante a quaresma. O carnaval chegou ao Brasil por intermédio do português colonizador por volta de 1595 com o nome de “entrudo”. Os festejos do entrudo foram proibidos no Rio de Janeiro em 1854 em virtude do entusiasmo e abuso dos foliões 45. Em relação ao pensamento religioso dos católicos pratenses contrários ao carnaval, a maneira como Elite enxergava esses
  • 25. 25 festejos antes de se tornar sambista e madrinha de bateria, sugere que essa é uma mentalidade que norteia as discussões relativas ao assunto já há algum tempo: A minha mãe puxou o primeiro cordão de carnaval. O nome dela era Maria Dolores Nascimento Dias. Aí ela entrou no clube dos brancos, que era ali onde tem aqueles barzinhos. Foi lá que ela entrou puxando o primeiro cordão de carnaval. Ela que fez a música. Depois, eu cresci e não vim com esse pensamento, não. A minha irmã – ela se chamava Maria Gilce – ela que era a porta-bandeira da escola de samba. Eu ficava de lado. Não queria sair nisso, não. Eu era muito da Igraja... eu achava que eu não ia mexer com carnaval porque carnaval não era coisa de Deus. Aí, quando saiu aquela música “História de Iansã”... eu fiquei observando aquilo ali... de repente, eu saí dançando também! Pedi pra minha mãe colocar umas bolas de... um desenho numas roupas minhas... pregar... foi aí que eu comecei. Com catorze anos. Fui destaque, rainha da bateria esses anos todos, até quando tirou o carnaval de rua. Agora é o carnaval do “povão” como se fala lá na praça. E não tem desfile... eu não participo. Só vou lá pra dançar mesmo. A idade não faz diferença, estou com sessenta e quatro anos... mas se sair uma escola de samba, eu caio no samba mesmo porque isso tá no sangue!46 Ilustração 28: Faixa afixada na porta da Igreja Matriz durante o carnaval de 2004. Destaque para a grade que impede a presença dos jovens na escada. Fotografia produzida pela autora. Acervo próprio. Outro aspecto que foi observado na fotografia é a presença de uma grade removível instalada aos pés da escada, com o objetivo de impedir a presença dos jovens que se sentam ali durante esses festejos. Penso que essa seja uma atitude contraditória, pois, sendo lá a “casa de Deus”, então deveria estar sempre pronta a receber “seus filhos”. Essa grade imprime um caráter privado num local público que tem como principal função receber a todos sem discriminação. A posição da Igreja perante a
  • 26. 26 realização do carnaval em frente à Matriz, é um tanto dúbia, pois, se consideramos que esta é uma festa popular, então se assemelha aos festejos religiosos que também se realizam no mesmo local, como as barraquinhas em homenagens aos santos católicos, das quais trataremos nas próximas linhas. 3 – FESTEJOS RELIGIOSOS Durante todo o ano várias homenagens são prestadas aos santos católicos. São realizadas novenas na Matriz Nossa Senhora do Carmo que culmina com procissão e, algumas vezes, queima de fogos. Dois festejos ocupam lugar de destaque no calendário religioso da paróquia: em janeiro homenageia-se o mártir São Sebastião, e em julho, a padroeira da cidade Nossa Senhora do Carmo. Durante esses dois festejos, a quadra sul da praça cede lugar para a instalação de uma tenda de circo que abriga as barraquinhas. Várias atividades são programadas para a ocasião, tais como, leilões, bingos, desfiles de moda, shows musicais, dentre outros. O objetivo principal da realização das barraquinhas é a arrecadação de fundos para a manutenção da Igreja católica, sendo que uma parte é destinada à paróquia local e outra à Diocese em Uberaba. Segundo Cícero Junqueira47, as festas religiosas têm uma importância muito grande pra cidade. Antigamente elas atraíam pessoas principalmente da zona rural e, nessas ocasiões, as ruas ficavam repletas de pessoas. Após a missa e as procissões, realizavam-se as barraquinhas que contavam com um bom público participante. Algumas características dessas barraquinhas eram os leilões na porta da Igreja, o jogo da maçã, o qual era bem divulgado na época, principalmente entre as crianças. Os correios elegantes eram uma troca de correspondência entre casais e funcionavam como uma tentativa de facilitar o namoro. Eram festas bastante populares, durante as quais vinham vários camelôs de outras cidades pra vender seus produtos e montavam suas barracas ali na praça. “Quando eu era criança gostava muito de comprar ioiô dos camelôs”.48 Apesar de serem ainda muito freqüentadas, ocorreram várias transformações no decorrer do tempo, mas, isso não significou que houve uma perda da tradição. Segundo Maria Clara T. Machado: a cultura é um processo dinâmico e não pode pensar suas transformações como deterioração. A idéia de preservar e valorizar não pode desconhecer as mudanças ocorridas na coreografia e no significado das práticas culturais frente
  • 27. 27 às alterações históricas em que ela se insere. Antes de serem representações discursivas de uma época, foram ou são parte de um mundo real no qual ao se produzirem relações econômicas e sociais está se produzindo também cultura. Esse entrelaçamento da cultura às condições concretas de vida induz a pensar em transformações culturais engendradas no bojo da história concebida enquanto processo.49 O que nos fala prof. Francisco sobre a festa do mártir São Sebastião que ocorreu em janeiro de 2003 vai ao encontro da afirmação de Machado: Teve inclusive a festa de São Sebastião que se realizou neste final de semana na cidade. Apresentou muitas mudanças, inclusive por parte da Igreja. Ficou diferente! O padre agora está mais voltado para o povo, isso quer dizer que a Igreja deu um passo enorme. A liturgia está muito bonita. Ontem mesmo, o São Sebastião é o protetor do homem do campo, e o homem do campo, em sua maioria, é muito simples. Então, a missa foi sertaneja., toda baseada em música sertaneja com a letra religiosa. Foi muito bonito. O padre que está aí há pouco tempo disse que nunca tinha assistido uma festa tão bonita quanto essa! O carro de boi que você viu acompanhando a procissão era o símbolo do homem do campo. Valeu a pena! E as barraquinhas... aquele congraçamento do povo, né? Bonito!50 No entanto, algumas pessoas não encaram as transformações como totalmente positivas. Segundo o sr. Osvaldo Sérgio, no passado as festas eram mais simples porém, muito mais significativas: Quando tinha festa na Igreja, o povo vinha das roças a cavalo, a pé e até mesmo de carro de boi. Tinha o moçambique com o tio Leopodino véi... o sô Honorato... todos eles trabalhavam no moçambique. Eles iam subindo ali na porta da Prefeitura indo na direção da Igreja, e então, aqueles negão véi caía no chão assim, e corria o pé... vinha doido na corôa da juíza. Quem tirasse ganhava um prêmio. Mas os capitães protegiam a juíza com os facão. Ah! Mas aqueles facão voava longe! (risos), o nego chegava o pé nos facão, que o facão voava longe... mas num chegava na juíza, não! Eh! Mas aqueles negos sabia mexer! Hoje num tem mais moçambique como antigamente. As procissões eram boas, com muita gente. Uma vez saí pra ir numa procissão. E lá vai na procissão... lá vai... e veio uma chuva sô! E o povo correu tudo. Eu falei: ah! Eu vim pra ir na procissão, eu vou na procissão. Cheguei na porta da Igreja, eu tava moiadim. E quando terminou os fuguetórios eu já tava enxuto... um terno de casimira ensopado... e foi só entrar pra dentro da Igreja, rezar... o terno seco! 51 Uma das principais mudanças que podem ser percebidas na realização das barraquinhas é que a cada ano o interesse em comercializar as várias prendas doadas pela comunidade é maior. Como conseqüência disso, o serviço de som é utilizado com muita freqüência para execução de leilões e bingos e o som que é emitido das caixas encontra-se sempre em um volume muito alto, tornando qualquer tentativa de conversa praticamente impossível. Isso tem afastado de lá algumas pessoas.
  • 28. 28 Naquela época as barraquinhas eram realizadas ao lado da Igreja e não tinha tanta exploração comercial. Eu lembro que naquela época, as barraquinhas eram feitas em função de joquinhos... da maçã... aquela coisinha, sabe? Hoje você vê o comércio que é praticado nas barraquinhas... cerveja... naquela época era mais simples mesmo. Não se fazia tantos leilões nem se vendia tantas tômbolas como a gente vê hoje. Hoje virou comércio, e comércio violento, né? Comparando o comércio realizado nas barraquinhas, o movimento das pessoas na praça, o consumo de bebidas alcoólicas, com o movimento que acontece durante o carnaval, não notamos muita diferença entre um festejo e outro. Como se explica, então, essa dubiedade da Igreja perante a realização dos dois festejos? A diferença estaria no fato de que em um, o lucro obtido é revertido em prol da Igreja e no carnaval ele é destinado a outros fins? Um outro fator que tem deixado as pessoas insatisfeitas é que, tanto para as barraquinhas quanto para o carnaval, é preciso desfazer parte do calçamento da praça, furar o piso em vários lugares e, na hora de refazer, nenhum cuidado é tomado na execução da tarefa. Quem viu e quem vê hoje, a praça, se decepciona. É lastimável o estado de conservação em que ela se encontra. Aquelas calçadas que foram feitas com tanto cuidado, formando desenhos... hoje você vê lá o branco no preto ou o preto no branco... o cara que vai refazer ali, depois que tiram os camarotes, as barracas... o cara não tem nem o capricho de – quem tá fiscalizando o serviço – não tem nem o capricho de ir lá e falar: „o branco é no branco, viu?‟ Há um descaso geral.52 Fábio Camargos chama a atenção quanto aos culpados por esse descaso: Não sei quem é o culpado. Acho até que nós mesmos somos os culpados, porque você se senta dentro de casa, põe o bundão no sofá e... eu tava perguntando estes dias pra uma pessoa: „quantas reuniões da Câmara de vereadores você foi nestas últimas quatro gestões?‟ A gente senta dentro de casa, não vai atrás... então é preciso realmente mudar essa consciência. Eu nasci aqui, cresci aqui e provavelmente, com a máxima certeza, devo morrer aqui também. Vem filhos, vem netos, vem bisnetos... e se você quer alguma coisa melhor pra você e pros seus, você tem que tentar correr atrás pra reverter isso aí. A gente coloca os prefeitos lá, coloca os vereadores... tem uma certa comodidade em não cobrar nada... a cidade é pequena... a interferência do poder público é grande, pois quando você começa a pressionar, os caras começam a te perseguir... Então, mesmo assim, você tem que procurar melhorar e reverter essa situação porque ficar à mercê da situação não dá mais.53 Esse comodismo referenciado por Fábio Camargos tem sido uma característica estendida à maior parte da população brasileira. Cada vez mais percebemos haver uma indiferença por parte da população quanto aos atos tomados pelos administradores públicos. Hanna Arendt ressalta que a perda do mundo comum, faz com que surja a
  • 29. 29 figura do indivíduo desinteressado e desprovido de responsabilidade perante o mundo. A preocupação com o próximo deixa de existir e o homem se vê reduzido à dimensão privada da vida social. Desse modo, se privam de ser vistos e ouvidos: A privação da privatividade reside na ausência dos outros; para estes, o homem não se dá a conhecer e, portanto, é como se ele não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância para os outros e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros.54 Para mudar essa situação como foi sugerido pelo depoente, penso que seria necessário o desenvolvimento de um projeto de conscientização nos moldes definidos pela Recomendação de Avignon55, que propõe: a educação permanente do público em todos os níveis e, em particular, no estágio de formação escolar elementar, a fim, de lhes despertar a consciência de sua responsabilidade e os fazer participar ativamente de seu próprio futuro. 56 Não se deve esperar, no entanto, que as possíveis medidas a serem tomadas neste sentido, apresentem resultados a curto prazo, pois esse é um trabalho que exige planejamento e tempo para que seja implantado satisfatoriamente. Mas, se desde criança já se começa a aprender noções de espírito participativo, cidadania e valores culturais, haverá a possibilidade de se formar cidadãos conscientes, capazes de discernir se determinadas intervenções no espaço público em que convivem são necessárias e até que ponto interferem nas práticas de sociabilidade que ali ocorrem. Notas 1 Doutoranda em História pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU/MG 2 DUMAZEDIER, P. Poder simb´lico. Rio de Janeiro: Brasil, 1989, p.35. 3 SANT‟ANNA, Denise Bernuzzi. O Prazer Justificado – História e Lazer: 1969-1979. São Paulo: Marco Zero, 1994, p. 37. 4 PINTO, Luziano Macedo. Sociabilidade de “Matinée”: O Cotidiano Em Uberlândia nos Anos 40. In: História e Perspectivas, (14/15): 113-132, Jan/Dez. 1996, p. 118. 5 BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. In: Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 189. 6 Idem. p. 179. 7 Ana Augusta Novais Miguel, 69. – Grau de escolaridade: magistério. É empresária, presidente da casa de assistência “Casa do Samaritano”, presidente da AME – Aliança Municipal Espírita, dirige o grupo de canto “Caminhos da Luz” do Centro Espírita Corações Unidos. É viúva, três filhos. Depoimento prestado em 20/07/2004. 8 Osvaldo Luiz de Andrade, 82 anos, natural de Uberaba/MG. Mora na cidade desde 1940. Carpinteiro aposentado. Casado. Entrevista realizada em 12/01/2003.
  • 30. 30 9 BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 174. 10 Idem. P. 174. 11 Ana Augusta Novais Miguel. Depoimento citado. 12 Idem. 13 José Cleanto Vilela Reis José Cleanto Vilela Reis, 54. Natural de Prata. Formado em química industrial. Trabalhou por 24 anos na Cooperativa dos Produtores Rurais do Prata. É professor de química, músico. Casado com Cleonice Gomes Vilela. Uma filha. Depoimento prestado em 23/07/2004. 14 CHOAY, Françoise. Op. Cit., p.221. 15 Idem, p.139. 16 MOTA, Lia. As Cidades Mineiras e o SPHAN. In: Cidade, História e Desafios/organizadora Lúcia Lippi Oliveira. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p.. 125. 17 Idem. p. 127. 18 Maria Augusta Camargos Vilela, natural de Prata/MG. Costureira aposentada. Três filhos. Depoimento prestado em 18/01/2003. 19 Editorial.Cidade do Prata. Publicado em 12/02/1933. 20 Editorial.Cidade do Prata. Publicado em 26/11/1933 . 21 KOSSOY,Boris. op. cit., p. 09. Kossoy elabora um questionamento sobre “qual o valor , o alcance e os limites das fotografias enquanto meios de conhecimento da cena passada? Como podemos identifica-las enquanto instrumento de pesquisa e interpretação da vida histórica? Onde se encontram as fotografias do Passado? Como identifica-las no tempo? Quem foram seus autores? Em que medida os conteúdos fotográficos são verdadeiros? 22 CARRIJO, Gilson Goular. op. cit. p. 68. 23 Editorial. Cidade do Prata. Publicado em 13/11/1938. 24 VIEIRA, Luiz Renato. A Capoeiragem Disciplinada: Estado e Cultura Popular no Tempo de Vargas. História e Perspectiva, (7) : 111-132, Jul./Dez. 1992, p. 113. 25 Virgilio Mamede Minucci, natural de Prata, viúvo, pai de 9 filhos. Dentista, professor aposentado, ex-empresário. Depoimento prestado em 06/06/2004 26 Ana Augusta Novais Miguel. Depoimento citado. 27 Maria Augusta Camargos Vilela. Depoimento citado. 28 CARRIJO, Gilson Goulart. op. cit. p. 108 29 Essas visitas foram uma forma de interação entre os dois clubes colocada em prática por Sérgio Henrique Novais durante o mandado em que presidiu o clube na década de 1960. 30 Geraldo de Castro Novais, 78 anos, natural de Prata/MG. Juiz de Direito aposentado. Depoimento prestado em 12/01/2003 31 CHOAY, Françoise. op. cit. p. 149. 32 Ana Augusta Novais Miguel. Depoimento citado. 33 Cícero Alves Junqueira, 47. – natural de Prata, atualmente reside em Uberlândia. Formado pela Universidade Federal de Uberlândia nos cursos de Engenharia Mecânia e Física. È professor de Física da rede estadual e corretor de seguros. Casado com Ivanilda A. A. Junqueira com quem tem dois filhos. Depoimento prestado em 24/06/2004 34 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cidade: História e Desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002, p.11. 35 Cícero Alves Junqueira. Depoimento citado. 36 MACHADO, Jurema. Espaço Público, Patrimônio e Cultura no Planejamento Urbano. GUM – Brasíliua, julho/2000.
  • 31. 31 37 José Cleanto Vilela Reis. Depoimento citado. 38 Maria Helena Cruz de Melo, natural de Prata. Atual secretária do Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico da cidade do Prata. Depoimento prestado em 20/01/2003. 39 Maria Augusta Camargos Vilela. Depoimento citado. 40 Hermane Vilela Minucci é filho de Virgílio Mamede Minucci, já citado, e Dona Glória Vilela Minucci. 41 Wagner Donizeth Vilela, 48. – natural de Prata, residente em Uberlândia. Corretor de seguros, casado com Vânia Beatriz Armada Vilela com quem tem dois filhos. Depoimento prestado em 24/06/2004 42 Amador Antonio Vieira Arantes, 51. – Natural de Prata. Ex-engraxate da Praça XV de Novembro. Ex-dono do Bar Caiçara localizado no entorno da praça. Produtor rural. Casado com Liodê Aparecida Lopes Arantes, dois filhos. Depoimento prestado em 21/07/2004. 43 Idem. 44 Idem. 45 FREYRE, Gilberto; MAIOR, Mário Souto. Carnaval: de onde veio? Como era? Como evoluiu? Grandes Acontecimentos da História. São Paulo (9): 81-91, fev. 1974. 46 Elite Nascimento Dias, 55. – Natural de Prata. Escolaridade: 3ª série do ensino básico. Bibliotecária. Presidente do Grupo Consciência Negra. Solteira. Foi por vários anos madrinha da Bateria da Escola de Samba do Clube Recreativo José do Patrocínio. Depoimento prestado em 23/07/2004. 47 Cícero Alves Junqueira. Depoimento citado. 48 Idem. 49 MACHADO, Maria Clara Tomaz. Cultura Popular e Desenvolvimento em Minas Gerais: Caminhos Cruzados de um Mesmo Tempo. Tese (Doutorado em História) FFLCH, USP. São Paulo, 1998. 50 Francisco de Assis, natural de Prata/MG. Professor, poeta, trovador, advogado. Depoimento prestado em 21/01/2003. 51 Osvaldo Luiz de Andrade. Depoimento citado. 52 Fábio Camargos Vilela, 44. – Natural de Prata. Serventuário da Justiça. Residiu até o ano 2002 no entorno da Praça XV de Novembro. Casado com Maria Angélica Vilela Camargos, três filhos. Depoimento prestado em 21/07/2004. 53 Idem. 54 ARENDT, Hanna. op.cit. p. 167-168 55 Ver ROCHA FILHO, Gustavo Neves da. Patrimônio Cultural: Uma Visão Histórica. In: Sinopses. São Paulo: 16 p.48-55, dez. 1991. 56 Idem. p. 05.