1. & HISTÓRIAS
GENTE
Em foto atual, em seu
apartamento, no bairro de
Santa Cecília, em São Paulo
A alegria dos excluídos
Rita Cadillac se apresentou para uma legião de fãs em Serra Pelada
e em presídios para se tornar símbolo sexual de uma nação de solitários
Po r A driana Negreiros
Ao lado do Velho
Guerreiro, quando
ainda era chacrete
no Cassino do
Chacrinha, programa
vespertino da Rede
Globo, em 1983
Tomás Arthuzzi
reprodução
Rita Cadillac, 59 anos, nunca mais se
esqueceria da imagem que surgiu
diante de seus olhos quando chegou
à Serra Pelada pela primeira vez, em
1984: milhares de homens, cobertos de lama dos
pés à cabeça, espalhados por onde sua vista po-dia
alcançar. Vistos de longe, os garimpeiros que
ocupavam o morro pareciam compor um imenso
formigueiro. “Lembravam bonecos de barro”, ela
diz. E então sentiu um pequeno calafrio. A maio-ria
dos trabalhadores da mina não via uma mulher
havia cerca de quatro anos. Rita Cadillac não era
uma mulher qualquer. Ela era simplesmente um
dos maiores sex symbol do país naquela época.
“Se um desses gritar ‘come’, já era”, ela pensou.
Serra Pelada é uma região localizada no esta-do
do Pará. Nos anos 1980, protagonizou uma das
maiores corridas do ouro da história – milhares de
migrantes ocuparam a região para explorar as minas.
Para evitar conflitos entre os garimpeiros, o Exército
proibiu a presença de mulheres e bebidas na serra
– Rita foi a primeira mulher a pisar no local. Esse mo-mento
da história do Brasil acaba de ser resgatado
pelo cineasta Heitor Dhalia, diretor do filme Serra
Pelada, atualmente em cartaz.
Em outras circunstâncias, Rita talvez tivesse
ficado chocada ao perceber que o “hotel” onde fi-caria
hospedada em Serra Pelada resumia-se a um
quadrilátero coberto por lona preta, com uma rede
e um buraco no chão que fazia as vezes de vaso
sanitário. No lugar do chuveiro, um balde com uma
caneca. Mas, considerando o cansaço que ela sentia
naquele momento, aquele era um oásis. Ela havia
deixado o Rio de Janeiro, onde morava, rumo a São
Luiz, capital do Maranhão, em um voo comercial.
De lá, pegou outro avião até Imperatriz, no interior
do estado. O trecho entre Imperatriz e Serra Pelada
começou em um avião teco-teco. “Não tinha radar,
rádio, nada”, conta. Também não tinha bancos para
os passageiros sentarem-se, porque todo o espaço
era usualmente utilizado para o carregamento de
ouro extraído nas escavações da Serra. “Seja o que
Deus quiser”, ela rezou antes de embarcar.
Quando estavam próximos à cidade de Reden-ção,
uma tempestade desestabilizou o voo. “Vamos
fazer uma aterrissagem de emergência”, anunciou
o piloto. O teco-teco pousou com tudo no meio de
uma mata. Machucados, Rita e o piloto andaram por
uma trilha por algumas horas. Quando chegaram a
uma estradinha de terra, avistaram uma caminho-nete
que vinha em sentido contrário. O motorista
reconheceu a artista e a levou até Serra. O único
lugar disponível no carro, porém, era na carroceria,
apinhada de porcos.
Rita participava daquela aventura a trabalho. Ela
fora contratada pela Associação de Garimpeiros para
fazer shows nas escavações durante uma semana.
122 123
2. & HISTÓRIAS
GENTE
Dias antes, os trabalhadores haviam visto a atuação da
moça na pornochanchada Aluga-se Moças, de 1982,
em que contracenava ao lado da cantora Gretchen.
Como era de se esperar, ficaram loucos com sua per-formance.
O presidente da associação, então, procu-rou
o empresário da artista e fez o convite para que a
moça fosse até lá. “Fui levar alegria para eles”, diz ela.
Fazia menos de um ano que Rita Cadillac
deixara de ser chacrete, como eram conhecidas
as assistentes de palco do apresentador Chacrinha,
cujo programa passava na Rede Globo nas tardes
de sábado. Bonita e carismática, ela era a dançarina
mais popular da atração. Certa vez, uma notícia no
jornal informou que, além de trabalhar na televisão,
algumas chacretes faziam programas. “Eles me acu-saram
de ter dito aquilo e me deram uma suspensão.
Como eu não aceitei, a Globo me demitiu”, narra.
Carandiru
A partir dali, lançou-se em carreira solo. Fazia
shows pelo Brasil em que cantava apenas duas
músicas. Para preencher o tempo que sobrava de-pois
que as canções eram executadas, interagia
com a plateia, especialmente a masculina. Um de
seus números preferidos era aquele em que pedia
aos rapazes para fingir que eram cachorrinhos. De
quatro, com mãos e joelhos apoiados no chão, eles
eram ordenados a beijar o bumbum da artista. Nes-sa
mesma época, recebeu o primeiro convite para
se apresentar em um presídio. Foi a grande estrela
de uma festa para os detentos do Complexo Peni-tenciário
Frei Caneca, no Rio de Janeiro (implodi-do
em 2010). Antes de chegar ao local onde seria
o espetáculo, Rita percorreu corredores escuros e
ficou impressionada com o baixo-astral do lugar.
“Jurei que nunca mais pisaria numa cadeia”, conta.
Promessa em vão. No ano seguinte, ela aceitou
a proposta da administração da Casa de Detenção
de São Paulo, mais conhecida como Carandiru,
para animar uma festa de formatura dos presos.
Daquela vez, a sensação foi outra. A cantora foi
levada diretamente para um espaço aberto, on-de
aconteciam os shows e as confraternizações.
“Tinha clima de show mesmo, não passei por
corredor frio, cela, nada disso”, afirma. O sucesso
foi tamanho que os administradores do presídio
convidaram Rita para ser madrinha dos presos. Se
aceitasse o trabalho – voluntário, sem cachê – ela
teria de comparecer ao local a cada 15 dias, para
participar das festinhas, almoços especiais e visitar
as oficinas. Convite aceito, ela passou a frequentar
a cadeia e virou uma das figuras mais icônicas
da instituição – é, inclusive, um dos personagens
centrais do livro Estação Carandiru (Companhia
das Letras), escrito pelo médico Drauzio Varella.
Em um de seus primeiros shows para os pre-sos,
Rita pediu a um deles, baixinho, que subisse ao
palco e tirasse a sua calcinha com a boca. O rapaz,
De alguma
maneira,
com
minha
alegria,
eu tornei
aquelas
pessoas
melhores
Rita entre os
garimpeiros em Serrra
Pelada, em 1984
evidentemente, atendeu ao pedido. Quando o espe-táculo
acabou, uma movimentação estranha cha-mou
a atenção da segurança presidiária. O “sortu-do”
havia sido cercado por outros presos, decididos
a matá-lo. Não por inveja, mas porque não tinham
escutado o pedido de Rita. Acharam que ele havia
subido ao palco e mordido a calcinha da artista
por iniciativa própria, o que configuraria, segundo
o código de ética carcerária, uma tremenda falta
de respeito. “Fui até lá para salvar o rapaz. Contei
que ele tinha feito aquilo porque eu mandei”, ela
lembra. O incidente fez com que Rita incorporasse
o número, definitivamente, em seus shows. A partir
dali, sem desentendidos.
“É ouro”
No show de estreia em Serra Pelada, Rita tam-bém
passou por uma saia justa. Os shows aconte-ciam
embaixo de uma lona improvisada, e o som
tocava com o auxílio de um gerador. Havia alguns
minutos que ela dançava quando sentiu que al-guns
pequenos objetos estavam sendo arremessa-dos
contra ela. Gelou. Achou, no primeiro momento,
que os garimpeiros estivessem detestando o show.
Foi a um canto e cochichou com o empresário:
“Não estou agradando, estão jogando pedras em
mim”, queixou-se. Ele riu alto. “Não são pedras, sua
burra. São pepitas de ouro.” Durante a semana em
que se apresentou no garimpo, Rita acumulou uma
quantidade considerável de ouro. Teve de vendê-los
no escritório da Vale do Rio Doce na Serra, porque
era proibido sair com o material de lá.
Logo nos primeiros momentos de convívio
com os garimpeiros de Serra Pelada, Rita Cadillac
percebeu que seu medo inicial – o de ser ataca-da
sexualmente por eles – era sem sentido. Quan-do
não estava se preparando para o show – como
não havia energia elétrica, precisava se maquiar
antes do anoitecer – circulava por entre os garim-peiros
ouvindo suas histórias de solidão, tristeza
e cansaço. Muitos deles não viam a família desde
que chegaram ali, quatro anos atrás, e era comum
que desabafassem com a artista sobre suas dores
na alma. “Eu sempre me interessei pelo outro la-do
da situação. Conversar com aqueles homens
era uma maneira de entender por que eles esta-vam
naquele lugar”, afirma. Era o mesmo senti-mento
que tomava conta de Rita Cadillac quan-do
ela se aproximava dos criminosos do Caran-diru.
“De alguma maneira, com a minha alegria,
eu tornei aquelas pessoas melhores”, acredita.
A dançarina
contabiliza seus
ganhos em ouro,
ao lado de sacas
cheias do
mineral nobre
Na penitenciária Franco
da Rocha com os seus
maiores fãs, em 2003
fotos: reprodução
124 125