SlideShare uma empresa Scribd logo
Regresso em Noite Mágica
A noite é de um silêncio puro e irreal
como o prenúncio de uma tormenta.
Não sopra a mais leve brisa
e uma cálida mansidão invade os espectros
dos navios fundeados na baía do porto.
Até as ondas calaram o seu murmúrio
quando subitamente o vulto místico da Eurídice
liberta das grades do seu submundo
desce às ruas desertas de vida
e bate ansiosamente às portas
à procura do seu amado Orfeu.
Surpreso ensaio o verbo do meu espanto
e a minha voz soa como o vagido
da flor que se abre à luz da vida.
Nisto um som de violino surge do nada
e invade a noite morna derramando
a convulsão das suas cordas
ora em suave gemido de uma alma sofrida
ora em súplica de coração ardente.
Submissa a noite explode de emoção
e o violino ignora o meu grito:
– Ó alma virtuosa espera um instante
deixa-me subir ao terraço da infância
para regressar ao velho lençol de linho
onde me enrolei a ouvir o vento
e a namorar o rosto terno da lua!
– Quero aliviar a mágoa
pelos silêncios a que não dei voz
e pelas vozes que não me responderam!
Mas a serenata prossegue ininterrupta
inundando-me com o seu feitiço
e o meu ser voa silenciosamente
e entra na espessura da noite
como um pirilampo vogando ao acaso
à descoberta do infinito.
Até que o violino suspende o meu devaneio
e imploro com veemência:
– Ó mágico violino, bálsamo da vida,
poupa as tuas lágrimas e as tuas penas
que a saudade é já só um eco remoto
a morrer nas tuas finas cordas!
Penitencio-me do pecado da longa ausência
e rendo-me à plangência da tua melodia!
Contudo o violino não me ouve
porque o seu mundo é incorpóreo
e o seu destino é apenas conquistar corações.
Entretanto raia a aurora e tudo se extingue
em misteriosa alternação de sombra e luz
com a música já em dolentes acordes de despedida.
Acabei de viajar à origem das coisas
encantado por uma música sublime
que me levou aos confins da memória.
Vou partir. Irei aos primeiros alvores do dia
com mágoa de não ter decifrado
o mistério da noite enfeitiçada.
Nota explicativa:
Foi em 2003 que ouvi pela primeira vez e ao vivo a composição “Regresso”, quando o
seu autor, o músico Rufino Almeida, mais conhecido por Bau, actuava na esplanada de
um hotel na cidade portuária do Mindelo. Tanto apreciei a melodia que ela me
inspirou uma reacção poética, tocado pela graça do tema musical, de extraordinária
beleza e soberba interpretação. Ela fez-me viajar aos confins da minha memória mais
longínqua, onde reside uma saudade em que se amalgamam porções de mistério,
remorso e encantamento. Reduzi o tempo a uma única dimensão, prendendo-o ao
momento presente e acrescentando-lhe o que permanecia incólume no meu
imaginário, refúgio de sonhos e ideais. Os anacronismos sentimentais que alimentam a
nossa saudade podem assumir as formas mais variadas, mas o seu fundo motivacional
é o mesmo. O problema é que a própria idealização desconstrói os nossos mitos
quando nos confrontamos com a realidade nua e crua. E é por isso que raramente
encontramos o que idealizamos.
Regresso em Noite Mágica
Poema de Adriano Miranda Lima
Música: “Regresso”, de Rufino Almeida (Bau)

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Poema e Música Regresso (1).ppsx

Poetas
PoetasPoetas
Poetas
iracemap
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas An
Poetas AnPoetas An
Poetas An
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
guest2ffb44
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas
PoetasPoetas
Poetas
Omnes Angeli
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
guest2ffb44
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
Juvenal Lucas
 

Semelhante a Poema e Música Regresso (1).ppsx (20)

Poetas
PoetasPoetas
Poetas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas An
Poetas AnPoetas An
Poetas An
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas
PoetasPoetas
Poetas
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 
Poetas A N
Poetas  A NPoetas  A N
Poetas A N
 

Poema e Música Regresso (1).ppsx

  • 1.
  • 3. A noite é de um silêncio puro e irreal como o prenúncio de uma tormenta. Não sopra a mais leve brisa e uma cálida mansidão invade os espectros dos navios fundeados na baía do porto.
  • 4. Até as ondas calaram o seu murmúrio quando subitamente o vulto místico da Eurídice liberta das grades do seu submundo desce às ruas desertas de vida e bate ansiosamente às portas à procura do seu amado Orfeu.
  • 5. Surpreso ensaio o verbo do meu espanto e a minha voz soa como o vagido da flor que se abre à luz da vida. Nisto um som de violino surge do nada e invade a noite morna derramando a convulsão das suas cordas ora em suave gemido de uma alma sofrida ora em súplica de coração ardente.
  • 6. Submissa a noite explode de emoção e o violino ignora o meu grito: – Ó alma virtuosa espera um instante deixa-me subir ao terraço da infância para regressar ao velho lençol de linho onde me enrolei a ouvir o vento e a namorar o rosto terno da lua! – Quero aliviar a mágoa pelos silêncios a que não dei voz e pelas vozes que não me responderam!
  • 7. Mas a serenata prossegue ininterrupta inundando-me com o seu feitiço e o meu ser voa silenciosamente e entra na espessura da noite como um pirilampo vogando ao acaso à descoberta do infinito.
  • 8. Até que o violino suspende o meu devaneio e imploro com veemência: – Ó mágico violino, bálsamo da vida, poupa as tuas lágrimas e as tuas penas que a saudade é já só um eco remoto a morrer nas tuas finas cordas! Penitencio-me do pecado da longa ausência e rendo-me à plangência da tua melodia!
  • 9. Contudo o violino não me ouve porque o seu mundo é incorpóreo e o seu destino é apenas conquistar corações. Entretanto raia a aurora e tudo se extingue em misteriosa alternação de sombra e luz com a música já em dolentes acordes de despedida.
  • 10. Acabei de viajar à origem das coisas encantado por uma música sublime que me levou aos confins da memória. Vou partir. Irei aos primeiros alvores do dia com mágoa de não ter decifrado o mistério da noite enfeitiçada.
  • 11. Nota explicativa: Foi em 2003 que ouvi pela primeira vez e ao vivo a composição “Regresso”, quando o seu autor, o músico Rufino Almeida, mais conhecido por Bau, actuava na esplanada de um hotel na cidade portuária do Mindelo. Tanto apreciei a melodia que ela me inspirou uma reacção poética, tocado pela graça do tema musical, de extraordinária beleza e soberba interpretação. Ela fez-me viajar aos confins da minha memória mais longínqua, onde reside uma saudade em que se amalgamam porções de mistério, remorso e encantamento. Reduzi o tempo a uma única dimensão, prendendo-o ao momento presente e acrescentando-lhe o que permanecia incólume no meu imaginário, refúgio de sonhos e ideais. Os anacronismos sentimentais que alimentam a nossa saudade podem assumir as formas mais variadas, mas o seu fundo motivacional é o mesmo. O problema é que a própria idealização desconstrói os nossos mitos quando nos confrontamos com a realidade nua e crua. E é por isso que raramente encontramos o que idealizamos.
  • 12. Regresso em Noite Mágica Poema de Adriano Miranda Lima Música: “Regresso”, de Rufino Almeida (Bau)