No livro "O Campeão de Audiência", sua autobiografia, o ex-diretor geral da TV Globo, Walter Clark, narra como a emissora iniciou a conquista da audiência no Rio de Janeiro, em 1966, para depois se converter na maior rede de TV do Brasil. (Summus Editorial, 2015)
1. Com todo esse pacote nas mãos, embrulhado às pressas ao longo de dezem‑
bro, eu só precisava de um bom slogan para amarrar e puxar a publicidade. En‑
tão, com o Zé Otávio, criei um que soava muito bem: “Ano novo, ano Globo”.
Pusemos o slogan em todos os intervalos, bombardeando o telespectador, e nos
preparamos para entrar em 1966 com o pé direito, bem quente.
O ano começou trágico, infelizmente. Por um lance de ousadia e também um
pouco de sorte, conseguimos transformar a dramática enchente que flagelou o
Rio naquele verão no nosso pulo do gato. A nova programação entrou em janeiro
com todo o gás, obtendo para a Globo um aumento geral nos índices de audiên‑
cia, especialmente nas faixas menos disputadas, fora do horário nobre. Mas ainda
faltava um grande lance, algum evento que cristalizasse a imagem da emissora no
conceito do público e criasse uma aura de simpatia. Foi quando chegou fevereiro,
com chuvas tão fortes como a cidade nunca tinha visto, e as desgraças começa‑
ram: barracos deslizando nos morros, gente arrastada pela enxurrada, um caos.
Do prédio da Globo, no jardim Botânico, nós víamos a chuva aumentar, au‑
mentar, e a enxurrada se transformar num rio. Os muros de arrimo das casas pró‑
ximas caíam, as pessoas ficavam ilhadas ou corriam para se abrigar na Globo,
à época o maior prédio da redondeza. Então, chamei Hilton Gomes, locutor, e
Reynaldo Jardim, meu querido Barrabás, diretor de jornalismo, um dos criado‑
res do “Caderno B” do Jornal do Brasil, jornalista de alto gabarito, e mandei
que eles pusessem câmeras na marquise para transmitir aquela tragédia. Quase
sem perceber, de um momento para o outro, estávamos liderando uma campanha
de recolhimento de cobertores, alimentos e remédios para os flagelados: o SOS
Globo. Interrompemos a programação normal e ficamos três dias no ar, direto,
transmitindo o drama e recolhendo a solidariedade dos cariocas. O maior estúdio
da Globo, que tinha 2.250 metros cúbicos, ficou abarrotado até o teto de coisas
que as pessoas traziam.
Aquilo foi emocionante. Para o público e principalmente para nós, que abra‑
çamos a missão de fazer alguma coisa pelos milhares de pessoas que estavam
sendo castigadas pela chuva. Numa daquelas manhãs, Rubens Amaral, que já ha‑
via deixado a televisão, chegou à emissora e ficou observando toda aquela mo‑
vimentação, muito emocionado com a campanha. Quis chegar até ele para lhe
dar um abraço, mas as águas impediram. Seja como for, nunca mais esqueci essa
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2. cena. Vivemos todos um clima fantástico de fraternidade, de solidariedade. Nosso
empenho na coisa foi tão grande que a campanha contagiou toda a cidade. As ou‑
tras emissoras também derrubaram a programação normal, aderiram, e o episódio
virou um fato histórico para o Rio.
Daí em diante, a TV Globo passou a ser amada pelos cariocas. A campanha
foi o toque de humanização que faltava para que ganhássemos o coração do públi‑
co. Desde janeiro, a nova programação já nos garantia a liderança de audiência, na
média do dia. Tínhamos cerca de 14% de média, considerando a audiência de to‑
dos os programas, do meio‑dia à meia‑noite. Só perdíamos das 20h às 22h, quando
os concorrentes atingiam 40% ou 50%, enquanto nós ficávamos ali pela faixa dos
15%. A partir da enchente, essa liderança da audiência média se cristalizou, mes‑
mo porque logo depois, no início de março, veio o Carnaval e nós investimos tudo
o que tínhamos para fazer uma boa transmissão.
O Carnaval sempre foi evento fundamental para a televisão, ao menos para as
emissoras do Rio de Janeiro. Ganhar a transmissão da festa, isto é, fazer a melhor
cobertura e obter o reconhecimento do público, é um desafio tão importante quan‑
to a própria competição entre as escolas de samba. Naquele ano, embalados pelo
sucesso do SOS Globo e em plena reformulação da estação, fomos para a avenida
com garra redobrada. Mas havia um problema sério. Não tínhamos equipamento
suficiente e em boas condições para fazer uma transmissão ao vivo decente. A
Globo Rio não tinha sequer um caminhão de externas; já o da Globo São Paulo era
um monstrengo medieval herdado da TV Paulista, tão paquidérmico e ineficiente
que o batizamos de “Globossauro”.
Mas foi com esse antiquado réptil mecanizado que nos preparamos para fazer
a transmissão. Tínhamos certeza de que, no mano a mano com as outras esta‑
ções, ofereceríamos uma cobertura humilde do desfile. Foi então que decidimos
aproveitar um equipamento portátil de videoteipe Sony, que o Joe tinha trazido
recentemente dos Estados Unidos. Tratava‑se de uma câmera e de um VT que só
trabalhavam acoplados, não podendo ser usados com outros equipamentos. Mas
bolamos o esquema das “Globetes” e o equipamento solitário acabou aparecendo
ao telespectador como se fossem vários.
O esquema era simples. Pusemos repórteres em peruas de externa, trabalhan‑
do em revezamento com a câmera portátil. E batizamos as equipes: Globete 1,
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3. Globete 2 etc. – sempre com a mesma câmera. Mandávamos cada uma delas para
um ponto da cidade, para cumprir uma pauta, e o equipamento circulava entre
elas. Ao chegar, o repórter fazia sua matéria, que terminava sempre chamando
outro profissional: “Aqui é Fulano, diretamente do Maracanã, onde se encontra a
escola xis. Vamos agora a Copacabana, onde Beltrano acompanha o movimento.
Como é, Beltrano, muita agitação por aí?” E o Beltrano começava sua gravação
com essa deixa, terminando com outra deixa para o repórter seguinte.
Aquilo tudo colocado no ar, em sequência, levava o espectador a achar que
a TV Globo estava em todos os cantos da cidade. Estar, ela estava, mas não ao
vivo, como parecia. O público ficou encantado. Com as Globetes, superamos a
precariedade do Globossauro, que só foi usado para a transmissão dos bailes nos
clubes. Na sexta, ele foi mandado para um baile no Grajaú, mas ninguém lembrou
de explicar ao motorista, um paulista, onde ficava o Grajaú, e o cara jamais che‑
gou lá. No sábado, pifou durante a transmissão do baile do Copacabana Palace.
Por sorte, resistiu no domingo e pudemos fazer a transmissão, com comentários de
João Saldanha, Sérgio Cabral, Haroldo Costa e meus, cada um torcendo por uma
grande escola (a minha era a Império Serrano). Intercalando o desfile com as re‑
portagens das Globetes, uma das quais era comandada por Leila Diniz, ganhamos
fácil aquele Carnaval.
Com tudo isso – nova programação, a simpatia pelo SOS Globo e a vitória
no Carnaval –, a Globo atravessou o verão de 1966 com um pique muito diferente
daquela emissora que chegou ao final de 1965 carregada de problemas. Chegou
a março confiante, já preparada para retirar a preferência do público das mãos
da Excelsior e da Rio. Em menos de 90 dias, eu tinha conquistado o objetivo de
montar uma programação viável e competitiva. Agora, era só uma questão de
tempo para atingir a liderança absoluta e colocar as finanças da Globo no azul.
Meu problema naquele início de TV Globo era igual ao que eu tinha na TV Rio.
Eu organizava perfeitamente o cardápio, mas não era um expert na cozinha. E
meu mestre‑cuca predileto continuava a ser o Boni: eu não desistia de trabalhar
com ele. Logo em fevereiro, assim que fiz os primeiros arranjos na casa e tive a
primeira folga de orçamento para contratar, eu o convidei a chefiar a produção.
Tinha tanta vontade de trazê‑lo que oferecia um salário igual ao meu, o que não
era nem uma maravilha para ele e nem um gesto de altruísmo meu, porque eu sa‑
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4. bia que meu salário só aumentaria se eu pudesse transformar a cozinha da Globo
numa fábrica de alimentos finos e reputados.
Chegamos a fechar o acordo e a acertar os detalhes, mas a TV Tupi acabou
melando o negócio. É que ela contratou o Moacir Franco para fazer o mesmo
show que ele produzia na Excelsior. Como o diretor do programa era o Boni, Ed‑
mundo Monteiro, diretor da Tupi São Paulo, propôs a ele não só que continuasse
na direção, mas também assumisse o comando do Telecentro, central de produção
unificada que as Emissoras Associadas estavam organizando para baratear os cus‑
tos. E o salário que ofereceram era exatamente o dobro do que eu pretendia pagar:
12 mil cruzeiros. Eu não iria pegá‑lo pela palavra empenhada comigo e obrigá‑lo
a ficar. Assim, mesmo a contragosto, fui o primeiro a sugerir que ele aceitasse o
convite.
– Se vão te pagar tudo isso, você vai, passa um ano lá e daqui a um ano vem
para a TV Globo – propus. E ele assim fez.
Sem o Boni e sem dinheiro, eu sabia que não poderia competir tão cedo na li‑
nha de shows, que predominavam no horário nobre. Mas, enquanto lutava para ter
os dois, eu investia em novelas. Havia boas razões para isso. Em primeiro lugar,
novela era o produto mais eficaz para fisgar os telespectadores e mantê‑los fiéis à
emissora – a Excelsior já provara isso. Era inconcebível uma grade de programa‑
ção eficaz sem uma novela. Depois, com o sucesso de O direito de nascer em São
Paulo, muitos atores do Rio ficaram disponíveis. Eu podia investir no gênero com
uma razoável segurança de retorno, sem gastar com cachês milionários, inviáveis.
A única coisa que eu precisava era de uma boa história, bem popular, de alguém
com talento para escrevê‑la.
Foi então que me lembrei da Glória Magadan, cubana exilada aqui, depois de
muitos anos de janela na produção dos mais lacrimogêneos melodramas que aAméri‑
ca Latina já viu. Baixinha, de dentes feios, óculos enormes, deselegante e malcriada,
ela não era exatamente uma fadinha de histórias infantis. Mas tinha o dom de enlou‑
quecer o público com folhetins delirantes, só comparáveis aos de Pedro Camacho,
o radionovelista que Vargas Llosa descreve em Tia Julia e o escrevinhador. Aliás,
como a Glória morou também no Peru, não é impossível que Vargas Llosa tenha se
inspirado nela para compor a sua personagem.Ao menos os dedos permanentemente
roxos, manchados de tinta de estêncil, os dois tinham em comum.
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