1. Caderno2 D3
%HermesFileInfo:D-3:20120102:
O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 2 DE JANEIRO DE 2012
Quadrinista
Entrevista ✽ HABIBI
Autor: Craig Thompson
Editora: Pantheon
✽ Nascido em 1975, Thomp-
son foi criado no Wisconsin,
quadrinhos norte-americana
por Retalhos. Mantem fãs e
leitores em dia com seu
Craig Thompson (Importado,
672 págs., US$ 35)
EUA. Em 2004 venceu os prin-
cipais prêmios da indústria de
trabalho no blog www.blog.
dootdootgarden.com
escrever sobre o mundo islâmico em
“HABIBI É UMA REAÇÃO Habibi tendo a formação cristã con-
servadora que teve?
Esse foi o elemento que tornou
mais acessível a escrita sobre o Is-
lã. Interagindo com amigos muçul-
À ISLAMOFOBIA” manos, vi que a vida deles não era
tão diferente do ambiente em que
cresci. São os mesmos estilos de vi-
da, as mesmas morais e, principal-
mente, as mesmas histórias como
fundamentos de ambas as crenças.
Foi o meu ponto de acesso. O Alco-
rão contém algumas das mesmas
O premiado quadrinista norte-americano Craig Thompson fala sobre os oito histórias da Bíblia, mas de forma
menos linear e mais poética.
anos de criação de Habibi, a produção de uma obra ambientada no mundo
● Desde 2001, com os atentados
islâmico e a oportunidade de viver de quadrinhos pela primeira vez na carreira do 11 de Setembro, é muito fácil cair
em clichês e estereótipos relaciona-
dos ao islamismo. Quais cuidados
você tomou para que isso não aconte-
REPRODUÇÃO
cesse?
Ramon Vitral De certa forma, o livro é uma rea-
ção à “islamofobia”. Confiei em um
mais elogiada gra- grupo de amigos muçulmanos co-
A
phic novel lançada mo consultor. Confiava nos instin-
nos Estados Unidos tos deles em relação a cenas e as-
em 2011 é um conto suntos aparentemente delicados.
de fadas ambientado Nunca houve desejo de evitar situa-
no mundo islâmico, ções mais complicadas, como pode
de autoria de um artista criado acontecer com autores preocupa-
por uma família fundamentalista dos além da conta com uma aborda-
cristã, numa cidade do interior do gem politicamente correta.
Estado rural de Wisconsin.
Habibi chegou às livrarias norte- ● Você publicou três trabalhos
americanas com a pompa de ser o pela Top Shelf e lançou Habibi pela
primeiro trabalho do quadrinista Pantheon Books. Como foi essa
Craig Thompson em um intervalo transição?
de sete anos e apenas o quarto li- Não vivia de quadrinhos até Habi-
vro do autor – dono dos principais bi, até mudar para uma grande edi-
prêmios da indústria de quadri- tora de livros. A Pantheon investe
nhos norte-americana em 2004 por em ampla distribuição e promo-
Retalhos (Companhia das Letras). ção para que o livro alcance públi-
Com previsão de lançamento pa- co além da ilhada comunidade de
ra o fim do primeiro semestre de quadrinhos. Sempre senti que os
2012 no Brasil, também pela Com- quadrinhos têm potencial para al-
panhia das Letras, Habibi tem 672 cançar uma audiência muito mais
páginas em preto e branco e foi ampla da que existe.
editado no Estados Unidos pela gi-
gante Pantheon Books – pouco ha- ● Qual análise você faz desse investi-
bituada a publicações de quadri- mento de editoras tradicionais no mer-
nhos, mas responsável pelo lança- cado de quadrinhos?
mento de coletânea de Maus em É provavelmente uma moda passa-
1991, única HQ dona de um Prê- geira. O meio editorial está sob
mio Pulitzer. tanta pressão que os editores es-
“Ao mudar para uma grande edi- tão apostando em qualquer artifí-
tora, passei a viver de quadrinhos. cio que atraia novos leitores. Tal-
Antes era apenas um hobby que eu vez as graphic novels possam du-
tinha no meu tempo livre”, con- rar por mais tempo como suporte
tou Thompson em entrevista por para impressão do que a prosa. A
e-mail ao Estado. prosa impõe um distanciamento
Em 2004, aos 28 anos, Thomp- técnico do leitor: é facilmente
son contou em Retalhos seus anos adaptável para um e-reader. Já as
de criação em uma família católica graphic novels contêm o traço do
extremamente conservadora que autor – os textos e desenhos são
resultaram em seu afastamento da feitos à mão, criando uma certa in-
Igreja. O retorno às livrarias, aos timidade com o leitor.
37 anos, é com uma obra sobre a
cultura islâmica: “Interagindo com ● Você fez o prefácio de Daytripper,
amigos muçulmanos, vi que a vida dos brasileiros Fábio Moon e Gabriel
deles não era tão diferente do am- Bá. O que acha do trabalho de am-
biente cristão em que eu cresci”. bos? Conhece algum outro artista vin-
Fã dos trabalhos publicados pe- do do Brasil além dos gêmeos?
la editora francesa especializada Amo o trabalho do Moon e do Bá.
em quadrinhos L’Association, Eles fazem livros sensíveis, sexy e
Thompson assume seus esforços com muita humanidade. Elemen-
para ser uma voz destoante no mi- tos que quadrinhos precisam de-
lionário mercado de quadrinhos sesperadamente. Um cartunista
dos Estados Unidos, capitaneado brasileiro que procuro estar de
por revistas de super-heróis. Ami- olho é o Rafael Grampá. Há mui-
go e admirador das publicações tos fãs secos por mais trabalhos
dos gêmeos paulistanos Fábio dele nos Estados Unidos.
Moon e Gabriel Bá, ele diz estar
de olho no trabalho de outro brasi- ● Você alcançou sucesso de público
leiro: Rafael Grampá. “Há muitos e crítica tanto no mercado europeu
fãs secos por mais trabalhos dele como no norte-americano, ambientes
nos Estados Unidos”, conta. com percepções diferentes sobre qua-
drinhos. A que atribui esse sucesso?
● Você lançou Retalhos em 2003 e, O meu trabalho é influenciado por
um ano depois, Carnet de Voyage (iné- Gastei dois anos somente escrevendo europeus – especialmente pelos au-
dito no Brasil). Só voltou a publicar o livro. Escrevo texto e imagens jun- tores franceses publicados pela edi-
“
algo novo agora, em 2011, com Habi- tos. Tendo a me deixar levar fazendo tora L’Association nos anos 1990.
bi. Sete anos é um longo período... os rascunhos com muitos detalhes – Acho o sucesso de Retalhos uma ano-
Pode apostar. Comecei a escrever em parte por trabalhar já com a compo- malia. Produzi como uma reação ao
Habibi no início de 2004, após re- sição das cenas no rascunho, mas prin- quadrinho típico norte-americano.
tornar de uma turnê de lançamen- CONFIEI EM UM GRUPO cipalmente por depender de amigos É uma história em quadrinho gigan-
to de seis meses de Retalhos – que que leem os rascunhos e contribuem te em que, basicamente, nada acon-
DE AMIGOS MUÇULMANOS
incluiu a produção de Carnet de no processo editorial. tece. Foi na hora certa. Na época,
Voyage. No verão de 2005 já tinha COMO CONSULTORES. crescia o gosto pelas coletâneas em
uma primeira versão, mas o final ● Entre a sua primeira graphic novel, detrimento de publicações homeo-
NUNCA HOUVE DESEJO
não funcionava. Entre o outono Good-Bye Chunky Rice, e Retalhos hou- páticas de poucas páginas.
“
de 2005 e 2006 revisei o rascu- DE EVITAR SITUAÇÕES ve quatro anos de intervalo. Esse interva-
nho e redesenhei centenas de pá- lo tão grande influencia no resultado fi- ● No seu blog você deixa no ar a
MAIS COMPLICADAS,
ginas. Já estava desesperado, sem- nal de suas obras? possibilidade da sua próxima obra
pre chegando a becos sem saída. COMO PODE ACONTECER Quatro anos é um bom intervalo
O MEIO EDITORIAL ESTÁ SOB
ser um livro infantil, de ensaios ou
Em outubro de 2006, resolvi co- quando levo em conta que não fui pa- um trabalho erótico. Já sabe qual
COM AUTORES TANTA PRESSÃO QUE OS
meçar a desenhar as páginas fi- go para fazer esses projetos. Enquan- será o escolhido?
nais na esperança de que o livro PREOCUPADOS COM to produzia Chunky Rice, era designer
EDITORES ESTÃO
Estou trabalhando nos três ao mes-
se revelasse enquanto produzia. gráfico em tempo integral e, na época mo tempo. Há uma flexibilidade pa-
UMA ABORDAGEM APOSTANDO EM QUALQUER
Em julho de 2009 ainda não sabia da Retalhos, eu ganhava a vida como ra pular entre os livros e evitar blo-
como encerrar. Durante cinco me- POLITICAMENTE CORRETA.” ilustrador. Fazer quadrinhos nessa
ARTIFÍCIO QUE ATRAIA queios criativos. Mas é possível
ses me concentrei exclusivamen- época era um hobby. Com Habibi eu que acabe o livro infantil primeiro.
te nos últimos capítulos. Ilustrei finalmente tive o privilégio de ganhar NOVOS LEITORES. TALVEZ AS
as últimas três páginas em agosto dinheiro com quadrinhos e, mesmo ● O período de produção desses
GRAPHIC NOVELS POSSAM
de 2010. O ano anterior ao lança- assim, ainda levou mais tempo de próximos trabalhos também vai
mento foi todo por conta de edi- produção do que os trabalhos anterio- DURAR MAIS TEMPO COMO levar quase uma década?
ção, e promoção. res! O trabalho final tira benefício O livro de ensaios e o infantil de-
SUPORTE PARA IMPRESSÃO
desse tempo investido. vem ter 200 páginas cada um. O li-
● Ao longo desses sete anos, durante DO QUE A PROSA” vro erótico deve ser menor, com
a produção de Habibi, você trabalhou ● Como consta em Retalhos, você cres- 48. Pretendo terminar os três em
a partir de alguma rotina? ceu em um ambiente cristão. Como foi quatro ou cinco anos. Vamos ver.