O documento descreve a situação do saneamento básico no Brasil, comparando-a com a Londres do século XIX. Ainda hoje, mais de 40% das cidades brasileiras não têm rede de esgoto, apesar de terem acesso à internet 3G, mostrando que parte do país permanece no século XIX em termos de infraestrutura sanitária. Algumas cidades do Norte apresentam os piores índices, como Ananindeua no Pará, que não tem coleta de esgoto.
O Brasil que está no século 19: esgoto em 43% das cidades
1. 1854 2016
Na metade do século 19, a capital
inglesa, com 2 milhões de pessoas,
mal começava a ter rede de esgoto.
Asujeiraseacumulava
pelasruasdacidade
Aindasemesgoto,acidade
jácomeçouaseverticalizar
Váriasfamíliascompartilham
poçosartesianosefossas
Háumveículoparacada4,4habitantes,segundoo
DepartamentoNacionaldeTrânsito(Denatran)
Emalgunsbairros,oesgotoéescoadodascasas
diretamenteparavalasecorreacéuaberto
Águadebebereracoletada
embombasinstaladasnasruas
Dejetosdasfossaseramrecolhidos
evendidoscomoesterco
Cortiçoseramumaformacomumdehabitação
entreasfamíliasdasclassestrabalhadoras
Hoje, a segunda cidade mais populosa
do Pará, com mais de 500 mil pessoas,
mal começa a ter rede de esgoto.
l o n d r e s
Inglaterra
a n a n i n d e u a
Brasil
36 37
2. Não são poucos os lugares no
Brasil onde o século 19 não aca-
bou — ainda que coexista com a
era do smartphone. Ao menos
2.409 cidades, o que representa
43,2% dos municípios, já têm
sinal de internet 3G, mas ain-
da não possuem rede de esgoto.
A falta de saneamento, porém,
passou longe das campanhas
eleitorais neste ano. E o sanea-
mento é atribuição fundamen-
talmente das cidades, segundo
a lei 11.445/2007.
“Em todas as grandes ci-
dades brasileiras existem de-
terminados bairros em que
ainda estamos efetivamen-
te equiparados ao início do
século 20 ou ao século 19
na Europa”, afirma Marcelo
Araújo, pesquisador da Escola
Nacional de Saúde Pública, da
Fundação Oswaldo Cruz.
A comparação não é exagera-
da. A definição do que é sanea-
mento adequado varia de acor-
do com o tempo e a tecnologia
(leia ao lado). Hoje, dos mais
de 200 milhões de brasileiros,
apenas quatro a cada dez têm
acesso ao mais básico padrão,
a coleta de esgoto em redes.
O Anuário Estatístico 2015
da Comissão Econômica para
a América Latina e o Caribe
(Cepal) comparou o servi-
ço em 17 países da região e o
Brasil ficou em décimo lugar.
Por que isso acontece? Pelo
mesmo motivo que acontecia
na Londres vitoriana. Nas úl-
timas décadas, houve uma rá-
pida migração de pessoas das
zonas rurais para as zonas
urbanas do país. Tão rápida
que não houve tempo para
criar sistemas de sa-
neamento adequados.
Brasil, 2016. Em Ananin-
deua, cidade com mais de
meio milhão de habitantes
na Região Metropolitana de
Belém (PA), Marilda Farias
vive com sua família de seis
pessoas numa casa do bair-
ro Levilândia. Na Rua das
Américas, onde mora, as ca-
sas são cercadas por uma
grande vala. O bairro não
tem água tratada na torneira.
“Dividimos um poço com a
casa aos fundos da nossa, que
é da minha nora. A gente usa
essa água para tudo, até para
beber. Água mineral a gente
só compra quando dá”, con-
ta ela, que está desemprega-
da. Rede de esgoto, nem pen-
sar. Tudo vai para a rua, a céu
aberto. “Tem dia que a gente
não quer nem ficar aqui, de tão
fedido que fica”, conta Farias.
De acordo com os dados mais
recentes do Ministério das
Cidades, o município simples-
mente não tem coleta de esgo-
to. Em 2011, nove a cada mil
habitantes de lá foram parar
no hospital com diarreia.
Inglaterra, 1854. Durante
a Revolução Industrial, uma
maré de gente migra de áreas
rurais para trabalhar na maior
cidade do mundo, Londres.
Pela primeira vez na história,
mais de 2 milhões de pesso-
as vivem numa mesma cida-
de, muitas delas apinhadas
em cortiços. O esgoto corre
a céu aberto. Água é buscada
com balde em bombas públi-
cas. No início de setembro da-
quele ano, na hoje sofisticada
região central do Soho, 500
pessoas morreram de cólera.
A causa foi descoberta pelo
médico John Snow (que sabia
tudo) ao fazer um risquinho
para cada morto num mapa que
virou um clássico da epidemio-
logia. A contaminação veio de
um cueiro de bebê com diarreia,
jogado numa fossa ao lado de
uma bomba de água na Broad
Street. A revelação de que a
causa das mortes não era o mau
cheiro das ruas, como se pensa-
va, levou à criação do primeiro
sistema moderno de saneamen-
to urbano, no final do século 19.
REPORTAGEM no pará por GABRIELA AZEVEDO
ILUSTRAÇÕES MARCUS PENNA
O
BRASIL
QUE
ESTÁ
NO
SÉCULO
DESIGN JOÃO PEDRO BRITO e fernanda didini
Em mais de 40% das cidades do país,
a internet já chegou aos celulares,
mas não existe rede de esgoto
— um atraso de um século e meio
Por MARCELO SOARES e GIULIANA DE TOLEDO
Atualmente,
apenas
quatro
a cada dez
de brasileiros
têm coleta
de esgoto
em rede
ligada à sua
residência
Evolução dos objetivos
de tratamento de
esgoto em países
desenvolvidos
ATÉ O INÍCIO DO
SÉCULO 20
• Remoção
dos sólidos em
suspensão na água
ATÉ A DÉCADA DE 1970
• Tratamento de
matéria orgânica
e eliminação
de organismos
patogênicos
A PARTIR DOS
ANOS 1980
• Remoção de
nutrientes de
bactérias, como
nitrogênio e fósforo
• Aumento
dos padrões
para extração
de produtos
potencialmente
tóxicos lançados
no ambiente
Cada pessoa
gera em torno de
1KGde resíduos
sólidos por dia,
equivalente a
100Lde esgoto.
na ponta
do lÁpis
Fonte: Fiocruz
que ano
é hoje?
39
3. Esgoto
não
não informou
sim
Governo não sabe
Não tem esgoto
Tem esgoto
Sudeste
139
cidades não
informaram
60
cidades não
informaram
319
não têm
rede de
esgoto
36
cidades não
informaram
31
cidades não
informaram
453
têm rede
de esgoto
55
têm rede
de esgoto
41
cidades não
informaram
354
têm rede
de esgoto
156
têm rede
de esgoto
1.161
não têm
rede de esgoto
334
não têm
rede de esgoto
1.301
têm rede
de esgoto
794
não têm rede
de esgoto
279
não têm rede
de esgoto
Governo não sabe
Não tem esgoto
Tem esgoto
Norte
Governo não sabe
Não tem esgoto
Tem esgoto
Nordeste
Não é só em favelas e gro-
tões que isso ocorre. Pense
em locais turísticos. A Baía
de Guanabara recebe 18 mil
litros de esgoto por segundo.
E Ilhabela, ponto nobre do
litoral de São Paulo? Só cole-
tava 28% do esgoto em 2014.
Paraty (RJ), a terra da festa lite-
rária mais badalada do Brasil?
Zero. Santa Catarina, terra de
alto IDH e da Oktoberfest?
Só 17% dos habitantes têm es-
goto coletado em rede.
A origem da palavra sanea-
mento é o latim: sanum, sadio.
Foi na Roma Antiga que sur-
giram os primeiros sistemas,
as cloacas, por onde passa-
vam as águas de drenagem, a
água da chuva, o lixo, as fezes
e até cadáveres — tudo mis-
turado. Tratamento ainda não
era uma preocupação. Levou
tempo para se perceber que a
falta de saneamento faz com
que doenças sejam letais.
A diferença entre a Ananin-
deua do século 21 e a Londres
do século 19 é que os ingleses
precisaram literalmente co-
locar a mão no esgoto antes
da época em que, sem novas
epidemias letais com
que se preocupar, um
DESENCANADOS
Quase 3 mil cidades brasileiras não têm rede de
esgoto. Veja as dez piores entre as mais populosas
População
com coleta: 21,2%
Além da falta de
rede coletora de
esgoto, a capital do
Acre carece de água
encanada. Apenas
50,2% da população
é atendida com
água em casa.
10. Rio Branco · AC
População
com coleta: 21,1%
Para diminuir a falta
de saneamento na
região foi lançada,
em 2013, a Carta
do Cariri, que
incentiva obras para
evitar a poluição
de mananciais.
9.JuazeirodoNorte·CE
População
com coleta: 19,1%
No ano passado, a
prefeitura da capital
do estado culpava
o governo federal
pela situação, por
ter passado anos
sem investir em
saneamento básico.
8. teresina · pi
População
com coleta: 0%
A segunda cidade
mais populosa do
Pará aparece em
todos os rankings
do Trata Brasil como
a pior entre as cem
maiores do país.
1. ananindeua · pa
Quanto coleta: 7,1%
Otaeptatur si cuscid
magnitio odiore et di
cum endae. Ipiditas
quodi ut laceptas
nonse voluptur
acienducit faceptatia
es inciet reheniendi
verovidunt quam si
6. manaus · am 7. belém · pa
População
com coleta: 0%
Com quase 300 mil
moradores, a terceira
cidade com mais
habitantes do estado
está empatada com
Ananindeua em 0%
de rede de esgoto.
2. santarém · pa
População
com coleta: 2%
A rede existente é
antiga, quase toda
instalada junto com
a construção da
ferrovia Madeira-
-Mamoré, no início
do século 20.
3. PORTO VELHO · ro
População
com coleta: 5,5%
Em 2013, segundo o
Jornal Nacional, os
hospitais atendiam
400 pessoas por
dia com doenças
relacionadas ao
saneamento.
4. maCAPÁ · aP
População
com coleta: 6,6%
Boa parte do esgoto
é despejada no
mar, em valões que
correm pela areia
da praia e tornam
a água imprópria
para banho.
5. Jaboatão dos
Guararapes · pe
Fonte: Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento 2014 (Ministério das Cidades);
Ranking do Saneamento 2016 (Instituto Trata Brasil)
Tem esgoto
Não tem esgoto
Cidade não informou
No Norte
do Brasil,
as longas
distâncias
entre as
cidades, a
geografia
e a baixa
densidade
demográfica
tornam
mais difícil a
melhoria do
saneamento
como ler
o mapa
vamos
por
partes
Em proporção
ao número de
municípios, o
Sudeste e o
Centro-Oeste
são as regiões
do Brasil com
mais cidades
que têm rede
coletora
de esgoto.
nordestenorte sudeste sul centro-oeste
Governo não sabe
Não tem esgoto
Tem esgoto
Sul
Governo não sabe
Não tem esgoto
Tem esgoto
Centro-oeste
homem com apelido de Jack
começou a afiar o bisturi no
distrito de Whitechapel. Os
primeiros túneis da rede de
esgoto foram inaugurados em
1865, uma década depois da
epidemia de cólera descoberta
por John Snow. O tratamento
começou no final do século 19.
Já em vários pontos do
Brasil, especialmente no
Norte, o problema é extrema-
mente atual (observe no mapa
ao lado). “Até mesmo as capi-
tais, como Porto Velho (RO),
Belém (PA) e Macapá (AP),
possuem indicadores vergo-
nhosos, algumas delas com
quase 0% de coleta e trata-
mento dos esgotos”, diz Édison
Carlos, presidente executivo
da ONG Instituto Trata Brasil.
TAMANHO
É DOCUMENTO
Devido às características do
serviço, é mais rápido expan-
dir o abastecimento de água do
que a coleta de esgoto. Foi o
que ocorreu na maior parte do
Brasil nas últimas três déca-
das. O desafio aumenta com o
tamanho das cidades: quando
elas são pequenas, porque não
há escala suficiente para o ser-
viço; quando elas são grandes,
porque é muito caro atender
direito tanta gente. No Norte,
as distâncias, a geografia e a
baixa densidade demográfica
tornam tudo ainda mais difícil.
“Em cidades distantes, como
na região Amazônica, as solu-
ções de saneamento serão ne-
cessariamente por sistemas
individuais ou minissistemas
coletivos, mas mesmo esses
são fundamentais para prote-
ger a saúde das pessoas e a na-
tureza”, diz Édison Carlos.
O economista Carlos Saiani,
pesquisador da Universidade
Federal de Uberlândia, apli-
cou ao ritmo de expansão do
acesso à água e da coleta do
esgoto a mesma régua usa-
da pela ONU para verificar o
atendimento das metas
de desenvolvimento do
População
com coleta: 9,9%
Alguns condomínios
têm estação de
esgoto particular.
Em julho deste ano,
uma delas explodiu,
ferindo pessoas que
faziam um churrasco.
População
com coleta: 12,7%
Pesquisa da UFPA
estima que seriam
necessários
R$ 2,5 bilhões para
dar água tratada e
coleta de esgoto a
toda Grande Belém.
2 4
8
7
6
5
9
10
3
1
Consulte como está
sua cidade em
GALILEU.GLOBO.COM
40 41
4. Fonte: IBGE, Censo 2010; os dados refletem a média do uso de cada modalidade nos municípios do estado
Fontes: *Censo; **SNIS
O PAÍS ESTÁ NA FOSSA
Formas precárias de descarte de dejetos, como fossa rudimentar e vala, ainda são
comuns em diversos estados do Brasil; veja como a população se vira em cada local
PI
0
25
50
75
100
%dapopulação
toMTMA ropaAP goAC MSAM RRRN SCRSPRAL CE SEBA PB PEES MG RJ SPDF
É a maneira
mais adequada
de coletar
dejetos. É caro e
trabalhoso fazer
uma rede, por
isso são menos
comuns nas
zonas rurais.
rede de esgoto fossa rudimentar
Não há qualquer
tentativa de
tratamento dos
dejetos, que
são lançados
diretamente
em um buraco
na terra, sem
isolamento.
fossa séptica
Os dejetos
passam por
filtragem antes
de chegarem
à natureza. É
adequada a
zonas rurais,
onde o resultado
pode virar adubo.
não tinham
É basicamente
isso mesmo, as
pessoas disseram
ao Censo que não
tinham esgoto
em casa. Em
2010, isso era
mais comum
no Piauí.
outro tipo
A criatividade
do brasileiro não
conhece limites.
Em alguns
estados, parcela
pequena da
população citou
outras formas
de descarte.
rio, lago ou mar
Acontece
principalmente
em favelas,
por improviso.
Os problemas
da Baía de
Guanabara
na Olimpíada
vieram daí.
É o famoso
esgoto a céu
aberto. Ocorre,
em geral, em
áreas irregulares
e expõe os
moradores a
diversos tipos
de doenças.
vala
trancos
e barrancos
A porcentagem da
população que tem
esgoto melhorou. Só
que melhorou mais
onde já estava melhor
milênio: reduzir pela metade,
até 2015, os déficits de aten-
dimento registrados em 1990.
De acordo com o levan-
tamento, quase todos os es-
tados conseguiram cumprir
a meta no atendimento de
água, exceto cinco. Todos os
que faltaram estão no Norte:
Rondônia, Amapá, Acre, Pará
e Amazonas. No tocante ao es-
goto, foi o contrário. Apenas
cinco estados, com economias
mais fortes, atingiram a meta:
Espírito Santo, Minas Gerais,
Rio de Janeiro, São Paulo e Rio
Grande do Sul. Ainda assim, no
caso dos gaúchos isso ocorreu,
em grande parte, por meio do
uso rural de fossas sépticas —
sistemas de tanques que tratam
quimicamente os dejetos.
O Nordeste, segundo o es-
tudo, foi a região que mais ra-
pidamente evoluiu no período.
Isso ocorreu devido a uma série
de políticas públicas, incluindo
o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC).
“Em alguns aspectos, o sa-
neamento tem evoluído ade-
quadamente; em outros, abai-
xo do desejável, o que reflete,
em grande parte, a própria rea-
lidade socioeconômica do país,
com os déficits regionais e his-
tóricos”, diz Alceu Segamarchi
Júnior, secretário nacional de
Saneamento Ambiental do
Ministério das Cidades. “Não
se pode falar em desenvolvi-
mento sustentável sem que
os índices de saneamento es-
tejam compatíveis com a quali-
dade pretendida”, afirma.
Entre as 5.570 cidades bra-
sileiras, pouco mais da me-
tade (52%) nem sequer tem
contrato com empresa de es-
goto. Geralmente são municí-
pios muito pequenos, pobres
e pouco populosos, no inte-
rior. Das 3.828 cidades com
menos de 20 mil habitantes,
60,7% declararam ao Sistema
Nacional de Informações so-
bre Saneamento, do Ministério
das Cidades, que não
tinham contrato com
empresa de esgoto. Outras 248
delas (6,5%) simplesmente
não deram informações.
Como a população se vira
nesses casos? A melhor pis-
ta que se tem vem do Censo
de 2010, última vez em que
o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE)
bateu à porta de todos os bra-
sileiros para perguntar quem
eles são e como vivem.
Nessas cidadezinhas, quase
metade da população (47%)
informou ao Censo que usava
fossas rudimentares para elimi-
nar seus dejetos. Ou seja: eles
iam para a terra, sem qualquer
tentativa de tratamento. Isso
acontecia principalmente nos
municípios menos habitados do
Centro-Oeste (78%), do Norte
(58%) e do Nordeste (54%).
Outros 13% diziam usar
fossa séptica, solução comum
em áreas rurais, onde as pro-
priedades ficam tão distantes
umas das outras que é muito
caro levar o encanamento de
uma casa a outra. Isso é bas-
tante comum nas microcida-
des da Região Sul (28,4% de
suas populações), muitas delas
emancipadas na explosão de
criação de novos municípios
ocorrida nos anos 1990 e na
primeira década deste século.
Falta de
contrato com
empresas
de esgoto é
mais comum
nas cidades
menores.
Dos 3.828
municípios
com menos
de 20 mil
habitantes,
60,7% não têm
rede coletora
O despacho de dejetos para
rios, lagos ou mar ainda era
comum entre 4% dos brasi-
leiros em 2010. Nas microci-
dades da Região Sudeste, a
mais rica do Brasil, isso che-
gava a quase 9% dos habitan-
tes (confira no gráfico à direita
a situação de cada estado).
“Os micromunicípios, que
são maioria no Brasil, não têm
escala para operar um siste-
ma de esgoto”, afirma Rafael
Terra, pesquisador de políticas
públicas da Universidade de
Brasília. Como solução, novas
tecnologias para propriedades
individuais têm sido desenvol-
vidas. Em São Carlos (SP), a
Embrapa criou há poucos anos
uma fossa biodigestora que não
polui os lençóis freáticos. O lí-
quido resultante pode ser usa-
do como fertilizante e o siste-
ma pode ser construído com
equipamentos que se compram
em lojas de ferragens.
“Faz mais sentido tratarmos
e reusarmos todo o esgoto no
local [onde ele é gerado]”, afir-
ma Molly Winter, diretora da
ONG norte-americana Recode,
em palestra em um evento da
série TED (assista em youtu.
be/2Brajdazp1o). A organização
incentiva sistemas que trans-
formem dejetos em adubo.
2014**2010*
46,5%
Sudeste
55,8%
4,7%
Nordeste
7,94%
9,4%
Centro-Oeste
13,81%
1,34%
Norte
2,81%
Sul
9,14%
11,53%
42
5. Fonte: IBGE, Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios, 2001-2009 e 2011-2014
Fonte: Banco Mundial, 2015
Por que o saneamento
ainda é um desafio
tão grande em 2016?
As cidades brasileiras
cresceram muito nas
últimas décadas, com a
migração do meio rural
para o urbano. Isso foi
bastante intenso no Brasil
e em alguns países da
Ásia e da América Latina.
Não houve tempo de
criar uma estrutura de
saneamento adequada.
Na Europa ocorreu o
mesmo, mas foi há 120,
150 anos, na primeira
Revolução Industrial.
A falta de saneamento
tem “endereço”?
Todo mundo acha que os
problemas de saneamento
do Brasil estão só no
Nordeste. Não é verdade.
Menos de 40% da
população brasileira tem
acesso a esgoto coletado e
tratado. O abastecimento
de água potável atinge
basicamente 90% da
população, em todas
as regiões, inclusive no
Nordeste. Mas mesmo nas
grandes cidades, mesmo
em São Paulo, a metrópole
mais rica do país, grande
parcela da população não
tem seu esgoto e seu lixo
coletados adequadamente.
O problema está
mais perto do que
parece então?
O grande problema está no
planejamento urbano. As
cidades deveriam crescer
com base em projetos em
que os bairros fossem
criados com infraestrutura
de saneamento, mesmo
que a habitação em si não
fosse ideal. Mas o mínimo
necessário é acesso à
água potável e integração
à rede de esgoto.
A fossa séptica é adequada
à região rural, mas não
funciona em áreas de
alta densidade, como
as favelas. A fossa
pode contaminar o solo
e invadir os lençóis
freáticos, transformando
os corpos hídricos das
regiões urbanas em
valas de captação de
esgoto não tratado.
CADê O NOSSO
URBANISMO?
igada ao Ministério da Saúde, a Fiocruz
(Fundação Oswaldo Cruz) é referência
na história do saneamento brasileiro.
A instituição estuda questões importantes
de saúde pública, como o vírus da zika. GALILEU
conversou com o engenheiro Marcelo Araújo,
pesquisador do Departamento de Saneamento e Saúde
Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
Arouca, da Fiocruz, localizada no Rio de Janeiro.
“Mesmo em São Paulo,
a metrópole mais rica
do país, grande parcela
da população não tem
esgoto e lixo coletados
adequadamente”
Winter defende inovações
desse tipo inclusive para os
EUA, que, ao contrário do que
se pode pensar, não dá desti-
no correto aos seus dejetos em
todas as cidades. “Cinquenta
por cento dos municípios [dos
EUA] autodeclaram jogar esgo-
to puro ou parcialmente trata-
do em vias navegáveis”, diz ela.
Quanto à coleta em si, os nú-
meros são mais animadores.
Segundo o Banco Mundial,
99,5% da população norte-a-
mericana conta com fossa ou
rede de esgoto (veja no mapa ao
lado o status de diversos países).
E os prefeitos?
Para chegar a universalizar o
esgoto, existem vários proble-
mas a ser superados. Quatro
deles são determinantes nos
municípios do Brasil. O primei-
ro é dinheiro mesmo. Em 2014,
o governo estimava que seriam
precisos R$ 304 bilhões para
levar água e esgoto a todos
os brasileiros até 2033. Esse
valor já foi corroído pela in-
flação, mas é comparável a
11 anos de Bolsa Família e a
mais de quatro vezes o orça-
mento inteiro do Programa de
Aceleração do Crescimento
(PAC) para saneamento.
Em 2009, o governo Lula
anunciou R$ 70 bilhões para
obras de saneamento pelo
PAC. O problema: muitas das
obras emperraram. Várias an-
dam lentamente — caso de
Ananindeua — ou simplesmen-
te pararam. “A má qualidade
dos projetos apresentados e a
burocracia para acessar os re-
cursos têm sido gargalos difí-
ceis de superar até hoje”, afirma
Édison Carlos, do Trata Brasil.
“Muitos dos projetos que foram
apresentados no PAC 1 precisa-
ram sofrer aditivos técnicos e
financeiros acima do esperado,
e isso atrasa obras até hoje.” Ou
seja: a conta só aumenta.
Na falta de dinheiro para fa-
zer obras, há prefeituras que —
por mais contraditório que isso
pareça — até devolvem dinhei-
L
ro ao Ministério das Cidades.
Guarujá (SP), onde 65,1% da
população tem rede de esgo-
to, por exemplo, abriu mão de
R$ 8 milhões aprovados pelo
governo federal para a remoção
de 242 palafitas instaladas em
cima de um mangue na praia
de Santa Cruz dos Navegantes.
As casas suspensas lançam os
dejetos diretamente na nature-
za. O projeto previa também a
instalação das famílias em ou-
tros locais com saneamento e a
recuperação ambiental da área.
Segundo a Secretaria
Municipal de Habitação, o va-
lor teve que ser devolvido por-
que a conta ficou muito mais
cara que o previsto em 2009.
Há sete anos, a cidade esti-
mava desembolsar R$ 1,8 mi-
lhão para poder fazer a obra,
agora, seriam R$ 22 milhões.
Atualmente, o custo total “se-
ria próximo de R$ 30 milhões,
o que, diante da crise atual do
país com reflexos nas cidades,
impossibilita a prefeitura de
oferecer a contrapartida”, diz
a secretaria por meio de nota.
Mas de onde, então, pode vir
dinheiro para obras que o PAC
não consegue cobrir? De acor-
do com Segamarchi Júnior, o
Plano Nacional de Saneamento
Básico, de 2013, “prevê investi-
mentos de outras fontes, além
de recursos do governo fede-
ral”. As fontes podem ser or-
ganismos internacionais como
o Banco Mundial, mas não só.
Em agosto, o jornal O Globo
publicou a notícia de que o
governo Temer quer conver-
sar com os estados para pri-
vatizar ações de saneamento.
O Trata Brasil disse ver “com
bons olhos” a possibilidade.
Outros discordam. Para espe-
cialistas, ainda que não faça
muita diferença para o cidadão
pagar a conta para uma estatal
ou uma empresa privada, é jus-
tamente onde mais se precisa
de saneamento que as pessoas
menos têm condições de pagar
por ele. “Uma empresa priva-
da vai querer ter lucros. Não
O CHEIRO DO MUNDO
Compare o acesso da população a sistemas que separam dejetos do contato humano
como ler o gráfico
Água encanada Esgoto
CAMINHO DAS ÁGUAS O abastecimento de água é mais eficiente no Brasil do que a coleta de esgoto; observe a porcentagem da população atendida
Porcentagens da
população que usa
algum tipo de instalação
para isolar excrementos
81 - 100%
61 - 80%
41 - 60%
21 - 40%
1 - 20%
Legendas
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2011 2012 2013 20142001
45,43% 46,45% 47,95% 47,93% 48,12% 48,33%
51,15% 52,51% 52,58%
55,02% 57,16% 58,16% 57,62%
77,81% 79,08% 79,62% 79,46% 79,64% 80,85% 81,45% 82,19% 82,93% 83,58% 84,41% 83,96% 84,53%
44
6. E A FILA AUMENTA...
Cada R$ 1 investido no fornecimento de água limpa e esgoto economiza R$ 4 que
seriam gastos para tratar doenças, segundo a Organização Mundial da Saúde
Fonte: Datasus (Ministério da Saúde)
Fonte: Datasus (Ministério da Saúde)
há mágica em relação a isso”,
diz Marcelo Araújo, da Fiocruz.
Em regiões pobres, a pró-
pria existência de uma rede de
esgoto próxima às casas não
é garantia de que os morado-
res conseguirão usá-la. A obra
de ligação da residência à rede
precisa ser paga pelo cliente
— isso sem falar na conta que
passará a chegar todos os me-
ses. Por isso, o Trata Brasil cal-
cula que há grande ociosidade
nas redes do país. Mais de 3,5
milhões de pessoas poderiam
conectar suas casas nas cem
maiores cidades, mas não o fa-
zem, conforme estudo de 2015.
O segundo problema na
universalização do esgoto é o
planejamento. Segamarchi diz
que às vezes até existe dinhei-
ro para mandar para a prefei-
tura, mas ele não é usado por-
que o município não possui
equipes técnicas qualificadas.
Colocando em números: segun-
do a Pesquisa de Informações
Básicas Municipais feita pelo
IBGE em 2014, em nada me-
nos do que 26% das cidades os
responsáveis pela área da saú-
de tinham menos do que o en-
sino superior completo. Muitas
vezes, o dinheiro não chega
porque os projetos são repro-
vados simplesmente por serem
mal preenchidos. Quando pas-
sam, há obstáculos na execu-
ção. Em um terço das cidades,
conforme a mesma pesquisa,
apenas três a cada dez fun-
cionários têm ensino superior
completo. O problema do sa-
neamento passa também pela
(falta de) educação.
O terceiro grande problema
é a escala. Ananindeua, por
exemplo, cresceu depressa e
demorou para começar a in-
vestir em saneamento. “[A ci-
dade] tem 72 anos e cresceu
mais de 450% nos últimos 25
anos. É uma explosão demo-
gráfica”, avalia o secretário de
Saneamento e Infraestrutura,
Osmar Nascimento. Depois
da última informação ao
Ministério das Cidades, refe-
rente a 2014, a gestão diz que
implantou rede de esgoto para
20 mil dos seus 500 mil ha-
bitantes — ou seja, para 4%.
Ocupação acelerada também
é o que nota a líder comunitá-
ria Eliana Rocha na sua vizi-
nhança. Há sete anos morado-
ra do bairro Jardim Canaã, em
Itaquaquecetuba, Grande São
Paulo, ela não para de ganhar
vizinhos. “Tem muita gente fu-
gindo do aluguel em São Paulo
e vindo para cá”, diz ela, que,
em casa, só bebe água de chuva
filtrada. Precavida contra estia-
gens, tem estocados, em garra-
fas PET e tonéis, 3 mil litros,
vindos de chuva recolhida em
calhas e baldes espalhados pelo
pátio e também de uma caixa
comunitária abastecida com
caminhão-pipa pela prefeitura.
Apesar de irregular, sem
água encanada e sem esgoto,
a área do Canaã é negociada
no mercado informal. Um ter-
reno custa até R$ 25 mil. Em
uma volta pelas ruas de terra
— a maioria sem nome, já que
não existem oficialmente —, é
fácil encontrar moradias em
construção, como a de Josélia
Rodrigue. Para economizar, há
dois anos ela trocou o Brás,
no centro da capital paulista,
com saneamento, pelo Canaã,
onde mora com o marido, três
filhos, genro e nora.
O Canaã, segundo a pre-
feitura, está numa fila de 184
áreas que aguardam regulariza-
ção — a rede de esgoto da cida-
de atende 64,6% da população
total. Sem resolução da situa-
ção legal, informa a administra-
ção, a Sabesp, responsável pelo
saneamento, não fará obras.
Segundo Marcelo Araújo,
da Fiocruz, os municípios que
melhor atendem seus cidadãos
com água e esgoto são os de
médio porte. Eles não têm o
volume de habitações irregula-
res das metrópoles e têm esca-
la suficiente para valer a pena
o investimento. “São cidades
com uma economia mais vi-
brante, onde a prefeitura tem
No Brasil, o
tempo médio
para projetar e
aprovar obras
de saneamento
é de dois anos
receitas maiores e condições
mais adequadas”, diz.
O quarto grande problema
é o tempo de planejamento.
O tempo médio para projetar
e aprovar obras do setor é de
dois anos. Ou seja, só o plano
vai demorar metade do man-
dato de um prefeito, para fazer
uma obra cara e longa, que vai
“para baixo da terra” e vai atra-
palhar o trânsito. “O que falta é
vantagem política”, diz Dayana
Rodrigues, técnica em sanea-
mento ambiental do Instituto
Federal do Pará (IFPA), que cri-
tica a demora de Ananindeua
em investir em saneamento.
É difícil e caro, mas vale a
pena. “Nossos estudos apon-
tam que há um ganho na pro-
dutividade do trabalhador pela
redução das ausências ao tra-
balho, melhora a educação das
crianças, que crescem mais sau-
dáveis e distantes da possibili-
dade de contrair doenças cor-
relacionadas à ausência desses
serviços”, diz Édison Carlos, do
Trata Brasil. Segundo estudo
feito em 2014 pelo instituto, a
universalização do saneamento
cortaria quase 7% do atraso es-
colar no país. “Há uma melhora
também no valor dos imóveis,
além do turismo.”
piriri
Diarreia infecciosa. Disenteria.
Amebíase. Ascaridíase. Febre ti-
foide. Esquistossomose. Cólera.
Hepatite A. Leptospirose. A lista
de doenças causadas pela falta
de saneamento cabe numa letra
dos Titãs. Sem nenhum surto
de cólera no país desde 2004,
a pior de todas é a mais comum:Fonte: SNIS
torneira
FECHADA
Total de municípios
com e sem serviço
de água, por região
20001500175010005007501259250
Sudeste
Nordeste
Centro-Oeste
Norte
Sul
MAPA DA HEPATITE A
MORTE NA INFÂNCIA
MAPA DA leptospirose
A infecção do fígado é causada
por água e comida contaminadas.
Total de crianças com menos de 5 anos mortas por diarreia ou infecção intestinal no Brasil
É transmitida pela urina de animais,
como ratos, onde não há saneamento.
Incidência a cada
100 mil habitantes
Incidência a cada
100 mil habitantes
2014 2014
0-1
0-1
1,1-2
1,1-2
2,1-6
2,1-6
6,1-10
6,1-10
10,1-153
Tem água
Não tem água
Governo não sabe
10,1-56
SP
MG
RJ
ES
MS
SC
RS
BA
GO
MT
RO
AC
AM
RR
AP
PA MA
PI
PE
SE
PB
AL
RN
CE
TO
PR
Consulte como está
seu estado em
GALILEU.GLOBO.COM
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
35.795
32.319
28.746
26.240
24.606
24.009
17.438
17.975
15.842
15.233
12.896
10.780
8.263
8.361
8.570
8.109
6.878
4.900
4.301
5.347
4.159
3.279
2.859
2.745
2.679
2.321
2.274
2.017
1.472
1.298
1.122
867
645
699
752
616
Redemocratização
GovernoCollor
PlanoReal
GovernoLula
PAC
SP
MG
RJ
ES
MS
SC
RS
BA
GO
MT
RO
AC
AM
RR
AP
PA MA
PI
PE
SE
PB
AL
RN
CE
TO
PR
7. FALTA TRABALHO SUJO
Cidades tratam pouco o seu esgoto; conheça as dez piores entre as mais populosas
a diarreia, grande responsável
pela mortalidade infantil.
“O indicador básico de sa-
neamento é a mortalidade de
crianças por diarreia com me-
nos de 5 anos”, diz Marcelo
Araújo, da Fiocruz. “Esse é o in-
dicador mais importante, usado
no mundo inteiro. As crianças
são mais sensíveis a essas do-
enças. Os idosos também, mas
eles podem ter várias outras
doenças mortais. Na criança é
mais fácil detectar a causa.”
Ainda em 2009, a Orga-
nização Mundial da Saúde
considerava a diarreia a segun-
da maior causa de morte infan-
til no mundo. Matava mais do
que a soma de Aids, malária e
sarampo, embora seja de fácil
tratamento. O problema é que
esse tratamento depende de
água limpa. E água limpa de-
pende de saneamento.
Ao pegar diarreia infecciosa,
não raro de vírus e bactérias
que vêm do contato com fezes,
o organismo da criança perde
rapidamente líquidos e eletróli-
tos, o que pode levar à falência
dos rins e, então, à morte.
Ananindeua é, dentre as
cem maiores cidades bra-
sileiras, a que mais gasta
com o tratamento da diar-
reia. A cada 100 mil habi-
tantes da cidade, 904 es-
tiveram internados com
diarreia em 2011, consumindo
R$ 314 mil do SUS, segun-
do estudo do Trata Brasil. E,
mesmo assim, nem todos os
casos chegam aos hospitais —
portanto, não entram nas es-
tatísticas do Datasus, sistema
do Ministério da Saúde que
coleta os números de aten-
dimentos no país. Marilda
Farias, cuja história conta-
mos no início da reportagem,
por exemplo, se automedica.
“Muitos moradores nem as-
sociam as doenças que têm à
falta de saneamento, porque
para eles aquilo já virou uma
coisa normal”, destaca Edna
Cardoso, líder de projetos so-
ciais do Trata Brasil.
gato e rato
“A médica me disse que é da
água”, conta Camila Dias en-
quanto levanta a blusa e dei-
xa à mostra a pele da barriga,
cheia de manchas vermelhas
e esbranquiçadas. “É dessa
água que a gente toma banho”,
diz ela, que mora em uma pa-
lafita do bairro Santa Cruz
dos Navegantes, no Guarujá.
A água vem de um “gato”,
instalação irregular feita com
mangueiras que serpenteiam
por debaixo dos casebres de
madeira da favela. Quase to-
das as casas têm uma bom-
ba que leva a água até caixas
instaladas nos telhados. De
lá, ela segue encanada para
as torneiras, os chuveiros e
as caixas de descarga.
Para a filha Maria Clara, de
6 anos, Camila não dá de be-
ber dali: busca água encanada
na casa de uma tia. A menina
corre pelas tábuas de madeira
que ligam sua casa às vizinhas
alheia ao risco que está lá em-
baixo: uma mistura de lama de
mangue com dejetos que caem
diretamente dos vasos sanitá-
rios, ao lado de carcaças de te-
levisão, garrafas PET, brinque-
dos quebrados, pneus furados.
Perto dali, na palafita da vi-
zinha Ciglei Moraes, o medo
é de dengue, desde que uma
das filhas teve a forma hemor-
rágica, a mais grave da doen-
ça. “A gente também vê rato,
mas aqui eu tenho gato”, diz a
aposentada que vive na comu-
nidade desde 1994, quando
“ainda era limpa a água” e “ti-
nha caranguejo no mangue”.
“Agora tenho muita vontade
de sair daqui e comprar uma
casinha. Fico apreensiva de
a água de uma enchente um
dia levantar essa casa”, conta.
“Mas na Pouca Farinha [ape-
lido do bairro, atribuído a um
antigo morador que cobrava em
farinha a travessia de barco até
Santos], a população se une.
Aqui é uma favela, mas é fa-
miliar. Não tem bandido nem
gente se drogando.”
Rumo aos 70
Superado o primeiro desafio
básico, a coleta do esgoto, é
a hora do segundo, o trata-
mento — padrão de saneamen-
to buscado até a década de
1970 em países desenvolvidos.
Apenas 40% do esgoto
coletado no Brasil era trata-
do em 2014, data dos dados
mais recentes disponíveis. O
pior índice do país está no
Pará: 16%. O Maranhão vem
logo depois, com 32%. Já na
outra ponta da estatística, o
Distrito Federal trata 100%.
“O tratamento é uma etapa
mais complicada do que a sim-
ples coleta, tanto do ponto de
vista da implantação da esta-
ção como para a sua operação
posterior, que pode ser com-
plexa e cara, refletindo-se nas
tarifas”, diz Segamarchi Júnior.
De volta a Ananindeua, o
universitário Rafael Reis, que
vive no bairro do Icuí, conta
os trocados para comprar água
mineral em verões intensos,
quando seca o poço artesiano
de onde sua família de seis pes-
soas bebe água. “Há 21 anos,
desde quando nasci, esse bair-
ro está do mesmo jeito. E já
era assim antes de mim”, diz
ele. A prefeitura informou à
GALILEU que pretende ter-
minar as obras de saneamen-
to em dois anos. Com alguma
sorte, até se formar, Reis po-
derá ver seu bairro che-
gar ao século 20.
Somente 40% do
esgoto coletado
no Brasil, que já
é pouco, passa
por tratamento
para retornar
à natureza
joga fora
no lixo
Municípios
com e sem coleta
de lixo, por região
Metros cúbicos
(1.000 litros) tratados
por habitante no
município em 2014
26,1 - 52 m3
0 - 26 m3
52,1 - 78 m3
78,1 - 104 m3
104,1 - 130 m3
130,1 - 156 m3
Legendas
Quanto trata
de esgoto
coletado: 3,8%
Existe coleta para
93,6% dos habitantes
do município do
interior paulista.
Uma estação de
tratamento está
em construção.
10. Bauru · sP
Quanto trata
de esgoto
coletado: 3,7%
Dos dejetos
coletados de 64,6%
da população da
cidade, na Região
Metropolitana de
São Paulo, pouco
chega a ser tratado.
9. Itaquaquecetuba · sp
Quanto trata
de esgoto
coletado: 2,7%
A cidade do Grande
ABCD, apesar de ter
rede de esgoto que
atende 90,1% da
população, tem baixo
índice de tratamento
do material coletado.
8. Mauá · sP
Quanto trata
de esgoto
coletado: 0%
A capital já não é um
exemplo em coleta:
2% dos moradores
são atendidos. Do
pouco coletado, nada
tem tratamento.
3. Porto Velho · RO
Quanto trata
de esgoto
coletado: 0%
Desde que foi feito
o levantamento, a
cidade começou a
testar, em 2015, suas
primeiras estações
de tratamento.
4. santarém · pa
Quanto trata
de esgoto
coletado: 0%
O município da
Baixada Fluminense
coleta o esgoto de
48,9% da população,
porém, não trata
nenhuma parcela.
5. São João
de Meriti · rJ
Quanto trata
de esgoto
coletado: 0,05%
Também na Baixada,
a cidade trata os
dejetos de uma
fração mínima. Há
coleta para 45,1%
dos moradores.
6. Nova Iguaçu · RJ
Quanto trata
de esgoto
coletado: 2,3%
A Companhia de
Saneamento do Pará
(Cosanpa) coleta
esgoto de 12,7% da
população e trata
uma parte pequena.
7. Belém · pa
5
9
4
3
2
6
810
Fonte: Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento 2014 (Ministério das Cidades); Ranking do Saneamento 2016 (Instituto Trata Brasil)
Consulte como está
sua cidade em
GALILEU.GLOBO.COM
Fonte: SNIS
Sudeste
Nordeste
Centro-Oeste
Norte
Sul
Tem coleta de lixo
Não tem coleta de lixo
Governo não sabe
20001500175010005007501259250
1. Ananindeua · pa 2.GovernadorValadares·MG
Quanto trata de
esgoto coletado: 0%
O município da
Grande Belém não
tinha rede coletora
até o levantamento,
logo o número
de tratamento
também é zero.
Quanto trata de
esgoto coletado: 0%
A cidade de quase
280 mil habitantes
coleta quase todo o
seu esgoto (97,4%
da população tem
o serviço), mas
não trata nada.
7
1
49