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Sobre a psicopatologia da vida cotidiana
VOLUME VI
(1901)
Dr. Sigmund Freud
SOBRE A PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA (1901)
ESQUECIMENTOS, LAPSOS DA FALA,EQUÍVOCOS NA AÇÃO, SUPERSTIÇÕES E
ERROS
Nun ist die Luft von solchem Spuk so voll,
Dass niemand weiss, wie er ihn meiden soll.
Fausto, Parte II, Ato V, Cena 5
Desses fantasmas tanto se enche o ar,
Que ninguém sabe como os evitar.
INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS
ZUR PSYCHOPATHOLOGIE DES ALLTAGSLEBEN (Über Vergessen, Versprechen,
Vergreifen, Aberglaube und Irrtum)
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1901 Monatsschr. Psychiat. Neurolog. 10 (1) [Julho], 1-32, e (2) [Agosto], 95-143.
1904 Em forma de livro, Berlim: Karger. 92 págs. (Reimpressão revista.)
1907 2ª ed. (Ampliada.) Mesmos editores. 132 págs.
1910 3ª ed. (Ampliada.) Mesmos editores. 149 págs.
1912 4ª ed. (Ampliada.) Mesmos editores. 198 págs.
1917 5ª ed. (Ampliada.) Mesmos editores, iv + 232 págs.
1919 6ª ed. (Ampliada.) Leipzig e Viena: Internationaler Psychoanalytischer
Verlag. iv + 312 págs.
1920 7ª ed. (Ampliada.) Leipzig, Viena e Zurique: Mesmos editores. iv + 334
págs.
1922 8ª ed. Mesmos editores. (Reimpressão da anterior.)
1923 9ª ed. Mesmos editores. (Reimpressão da anterior.)
1924 10ª. ed. (Ampliada.) Mesmos editores. 310 págs.
1924 G.S., 4, 11-310.
1929 11ª ed. Mesmos editores. (Reimpressão da 10ª ed.)
1941 G.W., 4. iv + 322 págs.
(a) TRADUÇÃO INGLESA:
Psychopathology of Everyday Life
1914 Londres: Fisher Unwin; Nova Iorque: Macmillan. vii + 342 págs. (Tradução
e Introdução de A. A. Brill.)
1938 Londres: Penguin Books. (Nova Iorque, 1939.) 218 págs. (Mesmo trad.)
1938 Em The Basic Writings of Sigmund Freud, Nova Iorque: Modern Library.
Págs. 35-178. (Mesmo trad.)
1949 Londres: Ernest Benn. vii + 239 págs. (Mesmo trad.)
1958 Londres: Collins. viii + 180 págs. (Mesmo trad.)
A presente tradução inglesa, inteiramente nova, é da autoria de Alan Tyson.
Das outras obras de Freud, apenas uma, as Conferências Introdutórias (1916-17),
rivaliza com esta em termos da grande quantidade de edições que teve em alemão e do número
de línguas estrangeiras para as quais foi traduzida. Em quase cada uma das numerosas edições
incluiu-se novo material no livro e, nesse aspecto, poder-se-ia pensar em semelhança com A
Interpretação dos Sonhos e os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, aos quais Freud fez
constantes acréscimos durante toda sua vida. Na verdade, contudo, os casos não se
assemelham. Nesses dois outros livros, o material novo, em sua maior parte, consistiu em
ampliações importantes ou em correções dos dados clínicos e das conclusões teóricas. Em
Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, a quase totalidade das explicações e teorias básicas
já estava presente nas primeiras edições; a grande massa dos acréscimos posteriores consistiu
meramente em exemplos e ilustrações adicionais (parcialmente fornecidos pelo próprio Freud,
mas sobretudo por seus amigos e discípulos), destinados a esclarecer melhor o que ele já havia
examinado. Sem dúvida, a Freud compraziam particularmente tanto as próprias anedotas quanto
a fato de ele receber uma confirmação tão ampla de seus pontos de vista. Mas o leitor não
consegue deixar de sentir, vez por outra, que a profusão de novos exemplos interrompe e até
confunde o fio central da argumentação subjacente. (Ver, por exemplo, em [1]-[2] e [3])
Aqui, como no caso dos livros de Freud sobre os sonhos e os chistes, porém talvez em
maior escala, o tradutor tem de enfrentar o fato de que uma grande parcela do material com que
irá lidar depende de jogos de palavras totalmente intraduzíveis. Na versão anterior, Brill deu ao
problema uma solução drástica; omitiu todos os exemplos que continham termos impossíveis de
traduzir para o inglês e inseriu diversos exemplos próprios que ilustravam pontos semelhantes
aos omitidos. Esse foi, sem dúvida, um procedimento inteiramente justificável naquelas
circunstâncias. Na época da versão de Brill, a obra de Freud era quase desconhecida nos países
de língua inglesa e era importante não criar obstáculos desnecessários à divulgação deste livro,
expressamente projetado pelo próprio Freud para o leitor comum (em [1], nota de rodapé). O
êxito com que Bill logrou esse objetivoevidencia-se pelo fato de que, em 1935, sua tradução já
tivera dezesseis edições e muitas outras iriam seguir-se a elas. Ademais, os exemplos de Brill
eram excelentes em sua maioria e, com efeito, dois ou três foram incluídos por Freud em
edições posteriores do original alemão. Ainda assim, existem objeções óbvias a que se perpetue
essa situação, especialmente numa edição que vise aos estudiosos mais aplicados dos textos de
Freud. Em alguns casos, por exemplo, a omissão de parte do material ilustrativo de Freud
inevitavelmente acarretava a omissão de algum comentário teórico importante ou interessante.
Além disso, embora Brill anunciasse em seu prefácio a intenção de “modificar ou substituir
alguns dos casos do autor”, essas substituições, no texto, em geral não são explicitamente
indicadas, e o leitor fica às vezes sem saber ao certo se está lendo Freud ou Brill. A tradução de
Brill, convém acrescentar, foi feita a partir da edição alemã de 1912 e permaneceu inalterada em
todas as reimpressões posteriores. Desse modo, ela passa ao largo do imenso número de
acréscimos feitos ao texto por Freud nos dez ou mais anos subseqüentes. O efeito total das
omissões devidas a essas diferentes causas é estarrecedor. Das 305 páginas de texto da última
edição, tal como impressas nas Gesammelte Werke, cerca de 90 a 100 páginas (isto é, quase
um terço do livro) até hoje nunca foram publicadas em inglês. O caráter integral da presente
tradução, por conseguinte, é contrabalançado pela perda indubitável de facilidade de leitura, em
virtude da política da Edição Standard de lidar com os jogos de palavras pelo método prosaico
de fornecer as expressões originais em alemão e explicá-las com o auxílio de colchetes e notas
de rodapé.
Encontramos a primeira menção feita por Freud a um ato falho na carta enviada a Fliess
em 26 de agosto de 1809 (Freud, 1950a, Carta 94). Ali ele diz: “finalmente compreendi uma
coisinha de que suspeitava há muito tempo” - o modo como um nome às vezes nos escapa e em
seu lugar nos ocorre um substituto completamente errado. Um mês depois, a 22 desetembro
(ibid., Carta 96), ele dá outro exemplo a Fliess, dessa vez o conhecido exemplo de “Signorelli”,
publicado naquele mesmo ano em forma preliminar na Monatsschrift für Psychiatrie und
Neurologie (1898b) e depois usado no primeiro capítulo da presente obra. No ano seguinte, a
mesma revista publicou um artigo de Freud sobre as lembranças encobridoras (1899a), tema
que ele tornou a examinar de modo bem diferente no Capítulo IV, adiante. No entanto, seu tempo
estava inteiramente tomado pelo trabalho de terminar A Interpretação dos Sonhos e preparar seu
estudo mais breve, Sobre os Sonhos (1901a), e ele só se dedicou seriamente a Sobre a
Psicopatologia da Vida Cotidiana no fim do ano de 1900. Em outubro daquele ano (Freud,
1950a, Carta 139), ele pede a anuência de Fliess para a utilização, como epígrafe da obra, da
citação do Fausto, que de fato veio a ser impressa na página de rosto. A 30 de janeiro de 1901
(Carta 141) ele informa que a obra está “em ponto morto, semi-acabada, mas logo terá
prosseguimento”, e a 15 de fevereiro (Carta 142), anuncia que terminará a obra dentro de mais
alguns dias. Na verdade, ela surgiu em julho e agosto, em duas edições do mesmo periódico de
Berlim que havia publicado os estudos preliminares.
Três anos depois, em 1904, a obra foi publicada pela primeira vez em volume separado,
praticamente sem nenhuma alteração, mas, daí por diante, fizeram-se acréscimos quase
contínuos no decorrer dos vinte anos seguintes. Em 1901 e 1904 o livro tinha dez capítulos. Dois
outros (que agora constituem os Capítulos III e XI) foram acrescentados pela primeira vez em
1907. Na biblioteca de Freud foi encontrado um exemplar da edição de 1904 com folhas de
anotações inseridas, nas quais ele anotara sucintamente outros exemplos. A maioria destes foi
incorporada às edições posteriores: outros, desde que parecessem interessantes, foram aqui
incluídos em notas de rodapé nos lugares apropriados.
A especial simpatia com que Freud encarava os atos falhos se devia, sem dúvida, ao
fato de eles serem, juntamente com os sonhos, o que lhe permitiu estender à vida psíquica
normal as descobertas que antes fizera em relação às neuroses. Pela mesma razão ele os
empregava regularmente como o melhor material preliminar para introduzir nas descobertas da
psicanálise os estudiosos que não eram médicos. Esse material era simples e, pelo menos à
primeira vista, imune a objeções, além de se referir a fenômenos experimentados por qualquer
pessoa normal. Em seus textos expositivos, Freud às vezes preferia os atos falhos aos sonhos,
que envolviam mecanismos mais complicados e tendiam a conduzir rapidamente para águas
mais profundas. Eis por que inaugurou sua grande série de Conferências Introdutórias de 1916-
17 dedicando aos atos falhos as três primeiras - nas quais, por sinal, reaparecem muitos dos
exemplos das páginas seguintes; e deu aos atos falhos prioridade semelhante em suas
contribuições à revista Scientia (1913j) e à enciclopédia de Marcuse (1923a). Apesar de esses
fenômenos serem simples e facilmente explicáveis, Freud pôde com eles demonstrar aquilo que,
afinal, foi a tese fundamental estabelecida em A Interpretação dos Sonhos; a existência de dois
modos distintos de funcionamento psíquico, por ele descritos como os processos primário e
secundário. Ademais, outra crença básica de Freud encontrava apoio convincente no exame dos
atos falhos - sua crença na aplicação universal do determinismo aos eventos psíquicos. É nessa
verdade que ele insiste no último capítulo do livro: teoricamente, seria possível descobrir os
determinantes psíquicos de cada um dos menores detalhes dos processos anímicos. E talvez o
fato de esse objetivo parecer mais fácil de atingir no caso dos atos falhos tenha sido outra razão
para que exercessem sobre Freud uma atração especial. De fato, ele tornou a referir-se
exatamente a esse ponto em seu breve artigo “As Sutilezas de um Ato Falho” (1935b), um de
seus últimos escritos.
CAPÍTULO I - O ESQUECIMENTO DE NOMES PRÓPRIOS
Na edição da Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie de 1898 publiquei um
pequeno artigo, sob o título “O Mecanismo Psíquico do Esquecimento” [Freud, 1898b], cujo
conteúdo recapitularei aqui e tomarei como ponto de partida para discussão mais ampla. Nele
apliquei a análise psicológica ao freqüente caso do esquecimento temporário de nomes próprios,
explorando um exemplo altamente sugestivo extraído de minha auto-observação; e cheguei à
conclusão de que essa situação específica (reconhecidamente comum e sem muita importância
prática) em que uma função psíquica - a memória - se recusa a funcionar admite uma explicação
de muito maior alcance do que a valorização usual que se dá ao fenômeno.
A menos que eu esteja muito enganado, um psicólogo a quem se pedisse para explicar a
razão por que, em tantas ocasiões, deixa de nos ocorrer um nome próprio que pensamos
conhecer perfeitamente se contentaria em responder que os nomes próprios sucumbem mais
facilmente ao processo do esquecimento do que outros conteúdos da memória. Ele a
presentaria razões plausíveis para essa preferência dada aos nomes próprios, mas não
suspeitaria que quaisquer outras condições desempenhassem um papel em tais ocorrências.
Minha preocupação com o fenômeno do esquecimento temporário de nomes nasceu da
observação de certas características que podem ser reconhecidas com bastante clareza em
alguns casos individuais, embora, na verdade, não em todos. Trata-se dos casos em que o nome
não só é esquecido, como também erroneamente lembrado. Em nosso afã de recuperar o nome
perdido, outros - nomes substitutos - nos vêm à consciência; reconhecemos de imediato que são
incorretos, mas eles insistem em retornar e se impõem com grande persistência. O processo que
deveria levar à reprodução do nome perdido foi, por assim dizer, deslocado, e por isso conduziu
a um substituto incorreto. Minha hipótese é que esse deslocamento não está entregue a uma
escolha psíquica arbitrária, mas segue vias previsíveis que obedecem a leis. Em outras palavras,
suspeito que o nome ou os nomes substitutos ligam-se demaneira averiguável com o nome
perdido: e espero, se tiver êxito em demonstrar essa ligação, poder esclarecer as circunstâncias
em que ocorre o esquecimento de nomes.
O nome que tentei lembrar em vão, no exemplo escolhido para análise em 1898, foi o do
artista que pintou os afrescos magníficos das “Quatro Últimas Coisas” na catedral de Orvieto. Em
vez do nome que eu procurava - Signorelli -, impunham-se a mim os nomes de dois outros
pintores - Botticelli e Boltraffio - embora fossem imediata e decisivamente rejeitados por meu
juízo como incorretos. Ao ser informado por outra pessoa do nome correto, reconheci-o
prontamente sem hesitação. A investigação das influências e das vias associativas pelas quais a
reprodução do nome assim se havia deslocado de Signorelli para Botticelli e Boltraffio levou aos
seguintes resultados:
(a) A razão por que o nome Signorelli foi esquecido não deve ser procurada numa
peculiaridade do próprio nome, nem em qualquer característica psicológica do contexto em que
ele se inseriu. O nome esquecido era-me tão familiar quanto um dos nomes substitutos -
Botticelli - e muito mais familiar do que o outro nome substituto - Boltraffio -, sobre cujo portador
eu mal sabia dar outra informação senão a de que pertencia à escola de Milão. Além disso, o
contexto em que o nome fora esquecido me parecia inofensivo e não me trouxe maiores
esclarecimentos. Eu viajava em companhia de um estranho, indo de Ragusa, na Dalmácia, para
um lugar na Herzegovina: nossa conversa voltou-se para o assunto das viagens pela Itália, e
perguntei a meu companheiro de viagem se ele já estivera em Orvieto e se vira ali os famosos
afrescos pintados por…
(b) O esquecimento do nome só foi esclarecido quando me lembrei do assunto que
estávamos discutindo pouco antes, e revelou ser um caso de perturbação do novo tema
emergente pelo tema que o antecedeu. Pouco antes de perguntar a meu companheiro de
viagem se ele já estivera em Orvieto, conversávamos sobre os costumes dos turcos que vivem
na Bósnia e na Herzegovina. Eu lhe havia contado o que ouvira de um colega que trabalhou em
meio a essas pessoas - que elas costumam ter grande confiança no médico e total resignação
ao destino. Quando se é obrigado a lhes dizer que nada pode ser feito por um doente,
respondem: “Herr [Senhor], o que se há de dizer? Se fosse possível salvá-lo, sei que o senhor o
teria salvo.” Nessas frases encontramos pela primeira vez as palavras e nomes Bósnia,
Herzegovinae Herr, que podem ser inseridas numa seqüência associativa entre Signorelli e
Botticelli - Boltraffio.
(c) Suponho que essa seqüência de pensamentos sobre os costumes dos turcos na
Bósnia etc. adquiriu a capacidade de perturbar o pensamento subseqüente por eu ter afastado a
atenção dela antes que fosse concluída. De fato, lembro-me de ter querido contar uma segunda
anedota, que em minha memória estava próxima da primeira. Esses turcos conferem ao gozo
sexual um valor maior que o de qualquer outra coisa, e, na eventualidade de distúrbios sexuais,
caem num desespero que contrasta estranhamente com sua resignação ante a ameaça de
morte. Certa vez, um dos pacientes de meu colega lhe disse: “Sabe Herr, quando isso acaba, a
vida não tem nenhum valor.” Suprimi a comunicação desse traço característico por não querer
tocar nesse tema numa conversa com um estranho. Mas fiz algo mais: também desviei minha
atenção da continuação dos pensamentos que poderiam ter-me surgido a partir do tema “morte e
sexualidade”. Naquela ocasião, eu ainda estava sob a influência de uma notícia que me chegara
algumas semanas antes, durante uma breve estada em Trafoi. Um paciente a quem eu me havia
dedicado muito pusera fim a sua vida por causa de um distúrbio sexual incurável. Tenho certeza
de que esse triste acontecimento e tudo o que se relacionava com ele não me vieram à
lembrança consciente durante essa viagem a Herzegovina. Mas a semelhança entre “Trafoi” e
“Boltraffio” força-me a supor que essa reminiscência, apesar de minha atenção ter sido de
liberadamente desviada disso, passou a atuar em mim na época [da conversa].
(d) Já não me é possível considerar o esquecimento do nome Signorelli como um evento
casual. Sou forçado a reconhecer a influência de um motivo nesse processo. Foi um motivo que
fez com que eu me interrompesse na comunicação de meus pensamentos (a respeito dos
costumes dos turcos etc.), e foi um motivo que, além disso, influenciou-me a impedir que se
conscientizassem em mim os pensamentos ligados a eles, que tinham levado à notícia recebida
em Trafoi. Eu queria, portanto, esquecer algo; havia recalcado algo. É verdade que não queria
esquecer o nome do artista de Orvieto, mas sim outra coisa - essa outra coisa, contudo,
conseguiu situar-se numa conexão associativa com seu nome, tanto que meu ato de vontade
errou o alvo e esqueci uma coisa contra minha vontade, quando queria esquecer
intencionalmente a outra. A aversão ao recordar dirigia-se contra um dos conteúdos;esqueci uma
coisa contra minha vontade, quando queria esquecer intencionalmente a outra. A aversão ao
recordar dirigia-se contra um dos conteúdos; a incapacidade de lembrar surgiu no outro.
Obviamente, o caso seria mais simples se a aversão e a incapacidade de lembrar estivessem
com o mesmo conteúdo. Além disso, os nomes substitutos já não me parecem tão inteiramente
injustificados como antes da elucidação do assunto: por uma espécie de compromisso, eles me
lembram tanto aquilo que eu queria esquecer quanto o que queria recordar e me indicam que
minha intenção de esquecer algo não foi nem um êxito completo nem um fracasso total.
(e) Muito notável é a natureza do enlace que se estabeleceu entre o nome perdido e o
tema recalcado (o tema da morte e sexualidade etc., em que apareceram os nomes Bósnia,
Herzegovina e Trafoi). O diagrama esquemático que agora intercalo, e que foi extraído do artigo
de 1898 [Fig. 1], visa a dar uma imagem clara desse enlace:
O nome Signorelli foi dividido em duas partes. Um dos pares de sílabas (elli) ressurge
inalterado num dos nomes substitutos, enquanto o outro, através da tradução de Signor para
Herr, adquiriu numerosas
Fig. 1
e variadas relações com os nomes contidos no tema recalcado, mas, por esse
motivo,não ficou disponível para a reprodução [consciente]. Seu substituto [para Signor] foi
criado como se tivesse havido um deslocamento ao longo da conexão de nomes “Herzegovina e
Bósnia’’, sem qualquer consideração ao sentido ou aos limites acústicos das sílabas. Assim, os
nomes foram tratados nesse processo como os pictogramas de uma frase destinada a se
transformar num enigma figurado (ou rébus). De todo o curso de acontecimentos que por tais
caminhos produziu, em vez do nome Signorelli, os nomes substitutos, nenhuma informação foi
dada à consciência. À primeira vista parece impossível descobrir qualquer relação entre o tema
em que ocorreu o nome Signorelli e o tema recalcado que o precedeu no tempo, salvo por esse
retorno das mesmas sílabas (ou melhor, seqüências de letras).
Talvez não seja demais assinalar que as condições que os psicólogos presumem ser
necessárias para reproduzir e para esquecer, por eles buscadas em certas relações e
predisposições, não são incompatíveis com a explicação precedente. Tudo o que fizemos, em
certos casos, foi acrescentar um motivo aos fatores reconhecidos desde longa data como
capazes de promover o esquecimento de um nome; ademais, elucidamos o mecanismo da
ilusão de memória. Também em nosso caso essas predisposições são indispensáveis para
possibilitar ao elemento recalcado apoderar-se, por associação, do nome esquecido, arrastando-
o consigo para o recalcamento. No caso de outro nome com condições mais favoráveis de
reprodução, isso talvez não acontecesse. Com efeito, é provável que o elemento suprimido
sempre lute por prevalecer em algum outro lugar, mas só tenha êxito quando depara com
condições favoráveis. Em outras ocasiões, a supressão sobrevém sem qualquer perturbação
funcional, ou, como podemos dizer com razão, sem qualquer sintoma.
As condições necessárias para se esquecer um nome, quando o esquecimento é
acompanhado de ilusão de memória, podem ser resumidas da seguinte maneira: (1) certa
predisposição para esquecer o nome, (2) um processo de supressão realizado pouco antes, (3) a
possibilidade de se estabelecer uma associação externa entre o nome em questão e o elemento
previamente suprimido. É provável que não devamos superestimar a dificuldade de satisfazer
esta última condição, de vez que, levando em conta os requisitos mínimos esperados desse tipo
de associação, é possível estabelecê-la na grande maioria dos casos. Entretanto, existe a
questão maisprofunda da saber se tal associação externa pode realmente ser condição
suficiente para que o elemento recalcado perturbe a reprodução do nome perdido - se não
haveria necessidade de alguma ligação mais íntima entre os dois temas. Numa consideração
superficial, tenderíamos a rejeitar esta última exigência e a aceitar como suficiente a
contigüidade temporal entre ambos, mesmo com conteúdos completamente diferentes. Numa
investigação aprofundada, porém, descobre-se com freqüência cada vez maior que os dois
elementos enlaçados por uma associação externa (o elemento recalcado e o novo) possuem
também alguma ligação de conteúdo; com efeito, tal ligação é demonstrável no exemplo de
Signorelli.
O valor do conhecimento que adquirimos ao analisar o exemplo de Signorelli depende, é
claro, de querermos declará-lo um caso típico ou uma ocorrência isolada. Devo pois afirmar que
o esquecimento de nomes, acompanhado por uma ilusão de memória [Epinnerungstänschung],
ocorre com freqüência incomum tal como o esclarecemos no caso de Signorelli. Quase todas as
vezes em que pude observar esse fenômeno em mim mesmo, pude também explicá-lo da
maneira descrita acima, ou seja, como motivado pelo recalcamento. Devo ainda chamar a
atenção para outra consideração que confirma a natureza típica de nossa análise. Penso não
haver justificativa para se fazer uma separação teórica entre os casos em que o esquecimento
de nomes é acompanhado por ilusão de memória e os outros em que não ocorrem nomes
substitutos incorretos. Esses nomes substitutos surgem espontaneamente em alguns casos;
noutros, nos quais não afloraram espontaneamente, pode-se obrigá-los a emergir mediante um
esforço da atenção, e eles exibem então com o elemento recalcado e com o nome ausente a
mesma relação que teriam caso tivessem aparecido espontaneamente. Dois fatores parecem
decisivos para trazer à consciência os nomes substitutos: primeiro, o esforço da atenção e,
segundo, uma condição interna ligada ao material psíquico. Poderíamos buscar esta última na
maior ou menor facilidade com que se estabelece a necessária associação externa entre os dois
elementos. Assim, boa parte dos casos de esquecimento de nomes sem ilusão de memória pode
ser acrescentada aos casos em que se formam nomes substitutos, aosquais se aplica o
mecanismo do exemplo de Signorelli. No entanto, certamente não ousarei afirmar que todos os
casos de esquecimento de nomes devem ser classificados no mesmo grupo. Não há dúvida de
que existem exemplos muito mais simples. Penso que teremos enunciado os fatos com
suficiente cautela se afirmarmos: junto aos casos simples de esquecimento de nomes próprios,
existe também um tipo de esquecimento motivado pelo recalque.
CAPÍTULO II - O ESQUECIMENTO DE PALAVRAS ESTRANGEIRAS
O vocabulário corrente de nossa própria língua, quando confinado às dimensões do uso
normal, parece protegido contra o esquecimento, Notoriamente, o mesmo não acontece com o
vocabulário de uma língua estrangeira. A predisposição para esquecê-la estende-se a todas as
partes da fala, e um primeiro estágio de perturbação funcional revela-se na medida desigual com
que dispomos do vocabulário estrangeiro, conforme nosso estado geral de saúde e o grau de
nosso cansaço. Numa série de casos, esse tipo de esquecimento exibe o mesmo mecanismo
que nos foi revelado pelo exemplo de Signorelli. Para provar isso, apresentarei uma única
análise, mas que se distingue por algumas características úteis: trata-se do esquecimento de
uma palavra que não era um substantivo numa citação latina. Peço permissão para fazer um
relato amplo e explícito desse pequeno incidente.
No verão passado - também durante uma viagem de férias -. renovei meu contato com
um jovem de formação acadêmica, que logo constatei estar familiarizado com algumas de
minhas publicações psicológicas. Nossa conversa recaiu - já não me lembro como - sobre a
situação social da raça a que ambos pertencemos, e ele, impelido pela ambição, passou a
lamentar-se por sua geração estar condenada à atrofia (segundo sua expressão), não podendo
desenvolver seus talentos ou satisfazer suas necessidades. Concluiu seu discurso, de tom
apaixonado, com o célebre verso de Virgílio em que ainfeliz Dido confia à posteridade sua
vingança de Enéias: “Exoriare…” Melhor dizendo, ele quis concluí-lo desse modo, pois não
conseguiu fazer a citação e tentou esconder uma evidente lacuna em sua lembrança trocando a
ordem das palavras: “Exoriar(e) ex nostris ossibus ultor.’’ Por fim, disse, irritado: “Por favor, não
me faça essa cara tão zombeteira, como se se estivesse comprazendo com meu embaraço, mas
antes me ajude! Falta alguma coisa no verso. Como é mesmo que diz, completo?”
“Ajudarei com prazer”, respondi, e dei-lhe a citação correta: “Exoriar(e) ALIQUIS nostris
ex ossibus ultor.”
“Que tolice, esquecer essa palavra! Por falar nisso, o senhor diz que nunca se esquece
nada sem uma razão. Gostaria muito de saber como foi que esqueci esse pronome indefinido,
‘aliquis‘.”
Aceitei o desafio prontamente, na esperança de conseguir uma contribuição para minha
coleção. Disse-lhe, pois:
-Isso não nos deve tomar muito tempo. Só tenho que lhe pedir que me diga,
sinceramente e sem nenhuma crítica, tudo o que lhe ocorre enquanto estiver dirigindo, sem
nenhuma intenção definida, sua atenção para a palavra esquecida.
-“Certo; então me ocorre a idéia ridícula de dividir a palavra assim: a e liquis.”
-O que quer dizer isso?
-“Não sei.” - E o que mais lhe ocorre? - “Isso continua assim: Reliquien [relíquias],
liquefazer, fluidez, fluido. O senhor já descobriu alguma coisa?”
-Não, ainda não. Mas continue.
-“Estou pensando” - prosseguiu ele com um sorriso irônico - “em Simão de Trento, cujas
relíquias vi há dois anos numa igreja de Trento. Estou pensando na acusação de sacrifícios de
sangue que agora está sendo lançada de novo contra os judeus, e no livro de Kleinpaul [1892],
que vê em todas essas supostas vítimas reencarnações, reedições, por assim dizer, do
Salvador.”
-Essa idéia não está inteiramente desligada do tema de nossa conversa antes que lhe
escapasse da memória a palavra latina.
-“Exato. Estou pensando ainda num artigo que li recentemente num jornal italiano. Acho
que o título era ‘O que diz Santo Agostinho sobre as mulheres’. Que entende o senhor com
isso?”
-Estou esperando.
-“Pois agora vem algo que por certo não tem nenhuma ligação com o nosso tema.”
-Por favor, peço-lhe que se abstenha de qualquer crítica e…
-“Sim, já sei. Lembro-me de um magnífico senhor idoso que encontrei numa de minhas
viagens na semana passada. Ele era realmente original. Parecia uma enorme ave de rapina.
Chamava-se Benedito, se isso lhe interessa.”
-Bem, pelo menos temos uma seqüência de santos e padres da Igreja: São Simão,
Santo Agostinho, São Benedito. Acho que havia um padre da Igreja chamado Orígenes. Além
disso, três desses nomes são também prenomes, como Paul [Paulo] em Kleinpaul.
-“Agora o que me ocorre é São Januário e o milagre de seu sangue - parece que meus
pensamentos avançam mecanicamente.”
-Deixe estar; São Januário e Santo Agostinho têm a ver, ambos, com o calendário. Mas
que tal me ajudar a lembrar do milagre do sangue?
-“O senhor com certeza já ouviu falar nisso! O sangue de São Januário fica guardado
num pequeno frasco, numa igreja de Nápoles, e num determinado dia santo ele se liquefaz
milagrosamente. O povo dá muita importância a esse milagre e fica muito agitado quando há
algum atraso, como aconteceu, certa vez, na época em que os franceses ocupavam a cidade.
Então, o general comandante - ou será que estou enganado? será que foi Garibaldi? - chamou o
padre de lado e, com um gesto inequívoco na direção dos soldados a postos do lado de fora,
deu-lhe a entender que esperava que o milagre acontecesse bem depressa. E, de fato, o milagre
ocorreu…”
-Bem, continue. Por que está hesitando?
-“É que agora realmente me ocorreu uma coisa… mas é íntima demais para ser
comunicada… Além disso, não vejo nenhuma ligação nem qualquer necessidade de contá-lo”.
-Pode deixar a ligação por minha conta. É claro que não posso forçá-lo a falar sobre uma
coisa que lhe seja desagradável; mas então não queira saber de mim como foi que se esqueceu
da palavra aliquis.
-“Realmente? O senhor acha? Pois bem, é que de repente pensei numa dama de quem
eu poderia receber uma notícia que seria bastante desagradável para nós dois.”
-Que as regras dela não vieram?
-“Como conseguiu adivinhar isso?”
-Já não é difícil. Você preparou bem o terreno. Pense nos santos do calendário, no
sangue que começa a fluir num dia determinado, na perturbação quando esse acontecimento
não se dá, na clara ameaça de que o milagre tem que se realizar, se não… Na verdade, você
usou o milagre de São Januário para criar uma esplêndida alusão às regras das mulheres.
-“Sem me dar conta disso. E o senhor realmente acha que foi essa expectativa
angustiada que me deixou impossibilitado de reproduzir uma palavra tão insignificante como
aliquis?”
-Parece-me inegável. Basta lembrar sua divisão em a-liquis, e suas associações:
relíquias, liquefazer, fluido. São Simão foi sacrificado quando criança; devo continuar, e mostrar
como ele entra nesse contexto? O senhor pensou nele partindo do tema das relíquias.
-‘’Não, prefiro que não faça isso. Espero que o senhor não leve muito a sério esses
meus pensamentos, se é que realmente os tive. Em troca, quero confessar que a dama é italiana
e que estive em Nápoles com ela. Mas será que tudo isso não é apenas obra do acaso?”
-Tenho que deixar a seu critério decidir se todas essas relações podem ser explicadas
pela suposição de que são obra do acaso. Posso dizer-lhe, no entanto, que qualquer caso
semelhante que você queira analisar irá levá-lo a “acasos” igualmente notáveis.
Tenho diversas razões para dar valor a essa pequena análise e sou grato a meu ex-
companheiro de viagem por ter-me presenteado. Em primeiro lugar, porque, nesse caso, pude
recorrer a uma fonte que habitualmente me é negada. Para os exemplos aqui reunidos de
perturbações de uma função psíquica na vida cotidiana, tenho de recorrer principalmente à auto-
observação. Empenho-me em evitar o material muito mais rico fornecido por meus pacientes
neuróticos, já que, de outro modo, poder-se-ia objetar que os fenômenos em questão são meras
conseqüências e manifestações da neurose. Por isso, é particularmente valiosopara meus
objetivos que uma outra pessoa que não sofra de doença nervosa se ofereça como objeto de tal
investigação. Essa análise é significativa em outro aspecto: ela esclarece o caso do
esquecimento de uma palavra sem que apareça um substituto na memória. Confirma, portanto,
minha afirmação anterior [em [1]] de que o surgimento ou não-surgimento de substitutos
incorretos na memória não pode ser usado como base para qualquer distinção radical.
Entretanto, a grande importância do exemplo do aliquis reside em outro dos aspectos em
que ele difere do caso de Signorelli. Neste último, a reprodução do nome foi perturbada pelo
efeito prolongado de uma seqüência de pensamentos iniciada e interrompida pouco antes, mas
cujo conteúdo não tinha nenhuma relação clara com o novo tema em que se incluía o nome de
Signorelli. A contigüidade temporal forneceu a única relação entre o tema recalcado e o temado
nome esquecido, mas isso bastou para que eles fossem concatenados numa associação
externa. Por outro lado, no exemplo do aliquis, nada indica a existência de um tema assim,
recalcado e independente, que tivesse ocupado pouco antes o pensamento consciente e
deixado seus ecos numa perturbação. Nesse exemplo, a reprodução foi perturbada em virtude
da própria natureza do tema abordado pela citação, por erguer-se inconscientemente um
protesto contra a idéia desejante nela expressa. A situação dever ser interpretada da seguinte
maneira: o falante vinha deplorando o fato de a geração atual de seu povo estar privada de seus
plenos direitos; uma nova geração - profetizou ele, como Dido - haveria de vingar-se dos
opressores. Nisso ele expressara seu desejo de ter descendentes. Nesse momento intrometeu-
se um pensamento contraditório: “Você realmente deseja descendentes com tanta intensidade?
Isso não é verdade. Quanto não lhe seria embaraçoso receber agora a notícia de que espera
descen-dentes do lugar que você sabe? Não: nada de descendentes… por mais que precisemos
deles para a vingança.” Essa contradição então se afirma exatamente pelos mesmos meios que
no exemplo de Signorelli - estabelecendo uma associação externa entre um de seus elementos
de representação e um dos elementos do desejo repudiado; e dessa vez, de fato, ela o faz de
maneira extremamente arbitrária, valendo-se de uma via associativa indireta que tem toda a
aparência de artificialidade. Uma segunda coincidência essencial entre esse caso e o exemplo
de Signorelli está em que a contradição se enraíza em fontes recalcadas e decorre de
pensamentos que acarretariam um desvio da atenção.
Isto é o que tenho a dizer sobre as diferenças e a afinidade interna entre esses dois
modelos típicos do esquecimento de palavras. Ficamos conhecendo um segundo mecanismo do
esquecimento - a perturbação de um pensamento por uma contradição interna proveniente do
recalcado. Dentre os dois processos, penso ser este o mais fácil de se entender; e tornaremos a
encontrá-lo várias vezes no decorrer desta discussão.
CAPÍTULO III - O ESQUECIMENTO DE NOMES E SEQÜÊNCIAS DE
PALAVRAS
Observações como as anteriores [Capítulo II] sobre o processo de esquecimento de
parte de uma seqüência de palavras numa língua estrangeira despertam nossa curiosidade de
saber se o esquecimento de seqüências de palavras em nossa própria língua exige uma
explicação essencialmente diversa. Com efeito, não costumamos surpreender-nos quando uma
fórmula ou um poema sabidos de cor só conseguem ser reproduzidos sem fidelidade depois de
algum tempo, com alterações e lacunas. Entretanto, de vez que esse esquecimento não atua
uniformemente sobre a totalidade do que foi aprendido, parecendo, ao contrário desarticular
partes isoladas, talvez valha a pena submeter à investigação analítica alguns exemplos de tal
reprodução falha.
Conversando comigo, um colega mais jovem disse achar provável que o esquecimento
de poemas em nossa própria língua bem poderia ter motivos semelhantes aos do esquecimento
de elementos singulares de uma seqüência de palavras em língua estrangeira. Ao mesmo
tempo, ele se ofereceu para ser objeto de uma experiência. Perguntei-lhe com que poema
gostaria de fazer o teste, e ele escolheu “Die Braut von Korinth”, poema de que gostava muito e
do qual acreditava saber pelo menos algumas estrofes de cor. No começo da reprodução ele foi
tomado de uma incerteza realmente notável. “O texto é ‘Viajando de Corinto para Atenas’”,
perguntou, “ou ‘Viajando para Corinto desde Atenas’?” Também eu hesitei por um momento, até
observar, rindo, que o título do poema, “A Noiva de Corinto”, não deixava nenhuma dúvida sobre
a direção em que viajava o rapaz. A reprodução da primeira estrofe sobreveio então sem
dificuldade ou, pelo menos, sem qualquer falsificação marcante. Por algum tempo meu colega
pareceu buscar o primeiro verso da segunda estrofe; logo continuou, recitando:
Aber wird er auch willkommen scheinen,
Jetzt, wo jeder Tag was Neues bringt?
Denn er ist noch Heide mit den Seinen
Und sie sind Christen und - getauft.
Antes que ele chegasse a esse ponto, eu já estranhara, aguçando os ouvidos, e uma
vez terminado o último verso, ambos concordamos em que alguma distorção havia ocorrido.
Mas, como não conseguimos corrigi-la, corremos à biblioteca para consultar os poemas de
Goethe e descobrimos, surpresos, que o segundo verso da estrofe tinha um teor completamente
diferente, que fora, por assim dizer, expulso da memória do meu colega e substituído por algo
aparentemente estranho. A versão correta dizia:
Aber wird er auch willkommen scheinen,
Wenn er teuer nicht die Gunst erkauft?
“Erkauft” rima com “getauft” [“batizado” no quarto verso], e pareceu-me curioso que a
constelação “pagão”, “cristão”, e “batizado” o tivesse ajudado tão pouco a recompor o texto.
“Você pode me explicar”, perguntei a meu colega, “como foi que eliminou tão
completamente um verso de um poema que diz conhecer tão bem, e será que tem alguma idéia
do contexto de onde retirou o substituto?”
Ele pôde dar uma explicação, embora, obviamente, com alguma relutância. “O verso
‘Jetzt, wo jeder Tag was Neues bringt’ me parece familiar; devo ter usado essas palavras há
pouco tempo ao me referir a minha prática profissional, com cuja prosperidade, como o senhor
sabe, estou agora muito satisfeito. Mas como se encaixou aí essa frase? Poderia indicar uma
relação.
Evidentemente, o verso ‘Wenn er teuer nicht die Gunst erkauft’ me desagradou. Ele se
relaciona com uma proposta de casamento que foi rejeitada da primeira vez e que, tendo em
vista a grande melhoria em minha situação material, penso agora em repetir. Não lhe posso dizer
mais nada, mas, se for aceito agora, por certo não me será agradável pensar que, tanto antes
quanto hoje, uma espécie de cálculo pesou na balança."
Isso me pareceu esclarecedor, mesmo sem que eu pudesse conhecer maiores detalhes.
Continuei, porém, com minhas perguntas: “De qualquer modo, como foi que você e seus
assuntos particulares se mesclaram com o texto da ‘Noiva de Corinto’? Será que existem em seu
caso diferenças de credo religioso como as que desempenham um papel importante no poema?”
(Keimt ein Glaube neu,
Wird oft Lieb’ und Treu
Wie ein böses Unkraut ausgerauft.)
Errei na suposição, mas foi curioso observar como uma única pergunta bem-dirigida
deu-lhe uma súbita perspicácia, de modo que ele pôde dar como resposta algo de que
certamente não tinha conhecimento até então. Lançou-me um olhar aflito e contrariado,
murmurando para si uma passagem posterior do poema.
Sieh sie an genau!
Morgen ist sie grau.
e acrescentou resumidamente: “Ela é um pouco mais velha do que eu.” Para evitar
magoá-lo mais, interrompi a indagação. A explicação pareceu-me suficiente. Mas foi sem dúvida
surpreendente que a tentativa de localizar a causa de uma falha inofensiva na memória
esbarrasse em assuntos tão remotos e íntimos da vida particular do sujeito, investidos de um
afeto tão penoso.
Eis aqui outro exemplo, fornecido por Jung (1907, 64), em que há esquecimento de uma
seqüência de palavra num poema famoso. Citarei as palavras do próprio autor.
“Um homem tentava recitar o famoso poema que começa com ‘Ein Fichtenbaum steht
einsam.’ No verso que começa por ‘Ihn schläfert‘,ele estancou irremediavelmente, pois se
esquecera por completo das palavras ‘mit weisser Decke [com um lençol branco]’. O
esquecimento de algo num verso tão conhecido pareceu-me surpreendente, e por isso o fiz
reproduzir o que lhe ocorria em relação a ‘mit weisser Decke‘. Surgiu-lhe a seguinte série de
associações: ‘Um lençol branco faz pensar numa mortalha - um lençol de linho para se cobrir um
morto’ - (pausa) - ‘agora me ocorre um amigo íntimo - seu irmão teve há pouco morte repentina -
dizem que morreu de um ataque cardíaco - ele também era muito corpulento - meu amigo
também é corpulento, e já me ocorreu que isso também poderia acontecer com ele -
provavelmente, ele faz muito pouco exercício - quando soube da morte de seu irmão, fiquei de
repente angustiado com a idéia de que isso também poderia acontecer comigo; é que temos em
nossa família uma tendência a engordar, e meu avô também morreu de ataque cardíaco; reparei
que também estou gordo demais, e por isso comecei recentemente um regime para emagrecer.’
“Assim,” comenta Jung, “o homem se havia identificado de imediato, inconscientemente,
com o pinheiro envolto na mortalha branca.”
O próximo exemplo [1] de esquecimento de uma seqüência de palavras, que devo a meu
amigo Sándor Ferenczi, de Budapeste, difere dos precedentes por se referir a uma expressão
cunhada pelo próprio sujeito, e não a uma frase tomada de um autor. O exemplo também nos
apresenta o caso não muito comum em que o esquecimento se põe a serviço de nosso bom
senso, quando este ameaça sucumbir a um desejo momentâneo. Por conseguinte, o ato falho
adquire uma função útil. Uma vez recobrada nossa sobriedade, damos valor à correção dessa
corrente interna, que antes só se pudera exprimir através de uma falha - um esquecimento, uma
impotência psíquica.
“Numa reunião social alguém citou ‘Tout comprende c’est tout pardonner‘. Comentei que
a primeira parte da sentença bastava; o ‘perdoar’ era uma arrogância que deveria ser deixada a
Deus e aos sacerdotes. Uma das pessoas presentes achou muito boa essa observação, o que
me animou a dizer - provavelmente com a intenção de garantir a opinião favorável do crítico
benevolente - que eu pensara recentemente em algo ainda melhor. Mas quando tentei repeti-lo,
constatei que me havia escapado. Afastei-me imediatamente do grupo e anotei as associações
encobridoras [ou seja, as representações substitutivas]. Primeiro me ocorreram o nome do amigo
e o da rua de Budapest que haviam testemunhado o nascimento da idéia que eu estava
procurando; a seguir veio o nome do outro amigo, Max, a quem costumamos chamar de Maxi.
Isso me levou à palavra ‘máxima’ e à lembrança de que dessa vez (como em meu comentário
original) tratava-se de uma variação de uma máxima famosa. Curiosamente, meu pensamento
seguinte não foi uma máxima, mas esta frase: ‘Deus criou o homem à sua imagem’, e depois a
mesma idéia, ao contrário: ‘O homem criou Deus à sua imagem.’ Ato contínuo, surgiu a
lembrança daquilo que eu procurava. Naquela época, na rua Andrássy, meu amigo me dissera:
‘Nada humano me é estranho’, ao que eu retrucara, aludindo às descobertas da psicanálise:
‘Você deveria ir mais longe e admitir que nada animal lhe é estranho.’
“Entretanto, depois de finalmente recordar o que procurava, foi-me ainda menos possível
repeti-lo na roda social em que me encontrava. Entre as pessoas presentes estava a jovem
esposa do amigo a quem eu relembrara a animalidade do inconsciente, e tive de reconhecer que
ela de modo algum estava preparada para acolher essas verdades tão desagradáveis. Meu
esquecimento poupou-me uma série de perguntas incômodas por parte dela e uma discussão
improfícua. Esse deve ter sido precisamente o motivo de minha ‘amnésia temporária’.
“É interessante que me ocorresse como associação encobridora uma frase em que a
divindade é rebaixada à condição de uma invenção humana, ao passo que, na frase esquecida,
havia uma alusão ao animal no homem. Capitis deminutio [isto é, a privação da condição que se
possuía] é, portanto, o elemento comum a ambas. Evidentemente, todo o assunto não passa de
uma continuação da cadeia de idéias sobre compreender e perdoar, instigada pela conversa.
“Nesse caso, a ocorrência tão rápida daquilo que eu buscava talvez também se tenha
devido a minha retirada imediata para um aposento vazio, saindo da roda social em que isso era
censurado.”
Empreendi desde então várias outras análises de casos de esquecimento ou reprodução
errônea de uma seqüência de palavras, e o coincidente resultado dessas investigações inclinou-
me a supor que o mecanismo de esquecimento acima demonstrado, nos exemplos do “aliquis”
[em [1]] e de “A Noiva de Corinto”, [em [1]] tem validade quase universal. Geralmente é um
pouco embaraçoso comunicar essas análises, de vez que, tal como as que acabo de citar, elas
levam constantemente a assuntos íntimos e desagradáveis para a pessoa analisada. Por isso
não pretendo aumentar o número desse exemplos. O comum a todos esses casos,
independentemente do material, é o fato de o esquecido ou distorcido estabelecer uma ligação,
por alguma via associativa, com um conteúdo de pensamento inconsciente - um conteúdo de
pensamento que é fonte do efeito manifestado no esquecimento.
Volto agora ao esquecimento de nomes. Até aqui, não esgotamos o exame nem da
casuística nem dos motivos subjacentes. Como esse é exatamente o tipo de ato falho que às
vezes observo abundantemente em mim mesmo, não me é difícil apresentar exemplos. Os leves
ataques de enxaqueca de que ainda padeço costumam anunciar-se horas antes por um
esquecimento de nomes, e, no auge desses ataques, durante os quais não sou forçado a
abandonar meu trabalho, é freqüente desaparecerem de minha memória todos os nomes
próprios. Ora, são exatamente os casos como o meuque poderiam dar motivos para uma
objeção de princípio aos nossos esforços analíticos. Acaso não se deveria concluir dessas
observações, necessariamente, que a causa do esquecimento, em particular do esquecimento
de nomes, está em distúrbios da circulação e da função cerebrais em geral, e não deveríamos,
portanto, poupar-nos a busca de explicações psicológicas para esses fenômenos? De maneira
alguma, no meu entender; isso seria confundir o mecanismo de um processo, que é idêntico em
todos os casos, com os fatores favorecedores do processo, que são variáveis e não necessários.
Em vez de uma discussão detalhada, porém, apresentarei uma analogia para lidar com essa
objeção.
Suponhamos que eu tenha sido imprudente o bastante para passear de noite num bairro
deserto da cidade, onde me hajam assaltado e roubado meu relógio e minha carteira. No posto
policial mais próximo, comunico a ocorrência com as seguintes palavras: “Eu estava na rua tal e
tal, e lá o isolamento e a escuridão tiraram meu relógio e minha carteira.” Embora, com essa
afirmação, eu não dissesse nada de inverídico, o texto de minha comunicação me exporia ao
risco de pensarem que não estou muito certo da cabeça. Esse estado de coisas só poderia ser
corretamente descrito dizendo que, favorecidos pelo isolamento do lugar e protegidos pela
escuridão, malfeitores desconhecidos roubaram meus objetos de valor. Ora, a situação no
esquecimento de nomes não tem por que ser diferente; favorecida pelo cansaço, por distúrbios
circulatórios e por uma intoxicação, uma força psíquica desconhecida rouba-me o acesso aos
nomes próprios pertencentes à minha memória - uma força que, em outros casos, pode
ocasionar a mesma falha da memória quando se está com saúde e eficiência plenas.
Quando analiso os casos de esquecimento de nomes que observo em mim mesmo,
quase sempre descubro que o nome retido se relaciona com um tema que me é de grande
importância pessoal e que é capaz de evocar em mim afetos intensos e quase sempre penosos.
Segundo a praxe conveniente e louvável da escola de Zurique (Bleuler, Jung, Riklin), também
posso formular esse fato da seguinte maneira: o nome perdido tocou num “complexo pessoal”
em mim. A relação do nome comigo me é inesperada e em geral se estabelece através de
associações superficiais (tais como a ambigüidade verbal ou a homofonia); em termos genéricos,
ela pode ser caracterizada como uma relação colateral. Alguns exemplos simples esclarecerão
melhor sua natureza:
(1)Um paciente pediu que eu lhe recomendasse uma estação de águas na Riviera. Eu
conhecia um lugar assim bem perto de Gênova e também me lembrava do nome de um colega
alemão que ali trabalhava, mas o nome do lugar em si me escapou, por mais que eu achasse
conhecê-lo também. Não me restou outro recurso senão pedir ao paciente que esperasse,
enquanto eu consultava apressadamente as mulheres de minha família. “Como é mesmo o
nome do lugar perto de Gênova onde o Dr. N. tem seu pequeno sanatório, aquele em que fulana
esteve em tratamento por tanto tempo?” “Claro, justamente você é que havia de esquecer esse
nome. O lugar se chama Nervi.” Devo admitir que já tenho um bocado de trabalho com os
nervos.
(2)Outro paciente falava sobre uma estação de veraneio próxima e declarou que, além
das duas hospedarias famosas de lá, havia uma terceira relacionada com certa lembrança dele;
não tardaria em me dizer o nome. Contestei a existência dessa terceira hospedaria e apelei para
o fato de ter passado sete verões ali, donde deveria conhecer o lugar melhor do que ele. Mas,
estimulado por minha contradição, ele já se havia lembrado do nome. A hospedaria chamava-se
“Hochwartner”. Tive então que ceder e até confessar-lhe que, por sete verões, eu morara bem
perto dessa hospedaria cuja existência havia negado. Nesse caso, por que teria eu esquecido
tanto o nome quanto a coisa? Creio que foi porque o som desse nome era parecido demais com
o de um colega meu, especialista em Viena, e como no caso anterior, tocou em mim no
“complexo profissional”.
(3)Noutra ocasião, quando estava prestes a comprar uma passagem na estação
ferroviária de Reichenhall, não houve meio de me ocorrer o nome da estação principal seguinte,
que era perfeitamente familiar e por onde eu já havia passado com muita freqüência. Fui até
forçado a procurar o nome no guia dos horários. Era “Rosenheim”. Soube então de imediato em
virtude de que associação o nome me havia escapado. Uma hora antes eu visitara minha irmã
em sua casa, perto de Reichenhall; como o nome da minha irmã é Rosa, sua casa era também
um “Rosenheim” [“lar de Rosa”]. O “complexo familiar” me havia roubado esse nome.
(4)Tenho uma multiplicidade de exemplos para ilustrar as atividades francamente
bandidescas do “complexo familiar”.
Um dia veio a meu consultório um rapaz que era irmão mais moço de uma paciente. Eu
o vira inúmeras vezes e costumava referir-me a ele pelo nome de batismo. Depois, quando quis
falar sobre sua visita, percebi que havia esquecido seu nome (que eu sabia não ser nada
incomum), e não houve meio que me ajudasse a recuperá-lo. Saí então para a rua e, pela leitura
dos letreiros sobre as lojas, reconheci seu nome tão logo deparei com ele. A análise do episódio
mostrou-me que eu traçara um paralelo entre o visitante e meu próprio irmão, paralelo este que
tentava culminar na pergunta recalcada: “Ter-se-ia meu irmão comportado de maneira
semelhante nessas mesmas circunstâncias, ou teria ele feito o contrário?” O vínculo externo
entre os pensamentos concernentes a minha própria família e à outra foi possibilitado pela
situação fortuita de que, em ambos os casos, as mães tinham o mesmo nome: Amalia. Entendi
também, posteriormente [nachträglich], os nomes substitutos, Daniel e Franz, que se haviam
impostos a mim sem me fornecer nenhum esclarecimento. Estes, bem como Amalia, são nomes
da [peça] Die Räuber [Os Ladrões], de Schiller, e foram alvo de uma piada feita por Daniel
Spitzer, o “caminhante vienense”.
(5)Numa outra ocasião, eu não conseguia achar o nome de um paciente que pertencia a
relações da minha juventude. Minha análise seguiu um caminho muito tortuoso antes de fornecer
o nome que eu procurava. O paciente expressara um medo de perder a visão, o que despertou a
lembrança de um rapaz que ficara cego com um tiro; e, por sua vez, isso se relacionava com a
figura de mais outro jovem que se ferira com um tiro. Este último tinha o mesmo sobrenome do
primeiro paciente, apesar de não ter com ele nenhum parentesco. Entretanto, só encontrei o
nome depois de me conscientizar de minha transferência de uma expectativa angustiada desses
dois casos juvenis para uma pessoa da minha própria família.
Portanto, meus pensamentos são perpassados por uma corrente contínua de “auto-
referência” da qual, em geral, não tenho nenhum indício, mas que se denuncia através desses
exemplos de esquecimentos de nomes. É como se eu estivesse obrigado a comparar comigo
tudo o que ouço a respeito de outra pessoas; como se meus complexos pessoais fossem postos
em alerta todas as vezes que tenho notícia de outra pessoa. É impossível que isso seja uma
peculiaridade individual minha; deve conter, antes, uma indicação da maneira como entendemos
o “outro” em geral. Tenho razões para supor que, nesse aspecto, as outras pessoas sejam bem
parecidas comigo.
O mais belo desses exemplos foi-me contado por um Sr. Lederer, que passara por essa
experiência pessoalmente. Durante sua lua-de-mel em Veneza, ele encontrou um senhor a quem
conhecia superficialmente e teve de apresentá-lo à jovem esposa. No entanto, como havia
esquecido o nome desse estranho, socorreu-se na primeira vez com um murmúrio ininteligível.
Ao esbarrar no cavalheiro pela segunda vez, como era inevitável em Veneza, ele o afastou para
um lado e lhe pediu que o tirasse de seu embaraço dizendo-lhe seu nome, que ele lamentava ter
esquecido. A resposta do estranho atestou um conhecimento incomum da natureza humana.
“Bem posso acreditar que tenha esquecido meu nome. É o mesmo que o seu; Lederer!” Não se
pode evitar uma ligeira sensação de desagrado quando se esbarra no próprio nome numa
pessoa desconhecida. Há pouco tempo senti isso claramente quando se apresentou em meu
consultório um Sr. S. Freud. (Contudo, devo registrar a garantia de um de meus críticos de que,
nesse aspecto, seus sentimentos são o oposto dos meus.)
(6)Os efeitos produzidos pela “auto-referência” também podem ser vistos no seguinte
exemplo relatado por Jung (1907, 52):
“Um certo Sr. Y. apaixonou-se infrutiferamente por uma dama que pouco depois se
casou com um Sr. X. A partir daí, apesar de conhecer o Sr. X há muito tempo e até manter
relações comerciais com ele, o Sr. Y. passou a esquecer seu nome repetidamente, tanto que em
várias ocasiões teve de indagar a outras pessoas qual era, quando queria corresponder-se com
o Sr. X.”
Mas a motivação do esquecimento nesse caso é mais transparente do que nos
anteriores, enquadrados na constelação da auto-referência. Aqui, o esquecimento parece ser
conseqüência direta da antipatia do Sr. Y. por seu rival mais afortunado; não quer saber nada do
rival: “nunca saber de sua existência”.
(7)O motivo do esquecimento de um nome também pode ser mais sutil, consistir no que
se poderia chamar de um ressentimento “sublimado” contra seu portador. Assim, de Budapest,
escreve a Srta. I. von K.:
“Formulei para mim uma pequena teoria. Tenho observado que as pessoas com talento
para a pintura não têm sensibilidade musical e vice-versa. Faz algum tempo, conversando com
alguém a esse respeito, comentei: ‘Até agora minhas observações sempre foram confirmadas,
com a exceção de uma única pessoa.’ Quando quis lembrar o nome dessa pessoa, constatei que
o havia esquecido irremediavelmente, apesar de saber que seu portador era um de meus amigos
mais chegados. Passados alguns dias, ao ouvir por acaso mencionarem o nome, logo entendi
que estavam falando do destruidor de minha teoria. O ressentimento que eu nutria
inconscientemente contra ele se expressara pelo esquecimento de seu nome, costumeiramente
tão familiar para mim.”
(8) O caso que se segue, relatado por Ferenczi, mostra uma maneira um pouco diferente
de a auto-referência levar ao esquecimento de um nome. Sua análise é particularmente instrutiva
pela explicação dada às associações substitutas (como Botticelli e Boltraffio, substitutos de
Signorelli [em [1]]).
“Uma dama que ouvira falar de psicanálise não conseguia lembrar-se do nome do
psiquiatra Jung.
“Em vez deste, ocorreram-lhe os seguintes nomes: K1 - (um sobrenome), Wilde,
Nietzsche, Hauptmann.
“Não lhe forneci o nome e convidei-a a associar livremente o que lhe ocorre em relação
a cada um desses nomes.
“A partir de K1, ela pensou imediatamente na Sra. K1 - e em como era uma pessoa
cerimoniosa e afetada, mas com muito boa aparência para sua idade. ‘Ela não envelhece.’ Como
caracterização comum para Wilde e Nietzsche, falou em ‘doença mental’. Depois, disse em tom
zombeteiro: ‘Vocês, freudianos, vão continuar procurando as causas da doença mental até vocês
mesmos ficarem loucos.’ Depois: ‘Não suporto Wilde e Nietzsche. Não os entendo. Ouvi dizer
que ambos eram homossexuais; Wilde se relacionava com gente jovem.’ (Apesar de já ter
enunciado nessa frase o nome correto - em húngaro, é verdade -, ela ainda assim não conseguiu
lembrá-lo.)
“Sobre Hauptmann ocorreu-lhe primeiro ‘Halbe‘ e, depois, ‘Jugend‘; e só então, depois
que lhe chamei a atenção para a palavra ‘Jugend‘, foi que ela entendeu que estivera em busca
do nome Jung.
“Essa dama, que perdera o marido aos trinta e nove anos e não tinha perspectiva de
voltar a casar-se, decerto tinha razões suficientes para evitar tudo o que a fizesse lembrar da
juventude ou da idade. É digno de nota que as ocorrências encobridoras do nome buscado
estivessem exclusivamente associadas com o conteúdo, não havendo associações sonoras.”
(9) Eis um exemplo de esquecimento de nome com outra motivação muito sutil,
explicado pelo próprio sujeito afetado:
“Quando eu fazia uma prova de filosofia como matéria complementar, o examinador
interrogou-me sobre a doutrina de Epicuro e, depois disso, perguntou se eu sabia quem a havia
retomado em séculos posteriores. Respondi com o nome de Pierre Gassendi, que eu ouvira
descreverem como discípulo de Epicuro dois dias antes, num café. Ante a pergunta surpresa
sobre como eu sabia disso, respondi atrevidamente que há muito me interessava por Gassendi.
A conseqüência foi um magna cum laude [com louvor] no diploma, porém, infelizmente, também
uma obstinada tendência posterior a esquecer o nome de Gassendi. Creio que minha
consciência pesada é culpada de minha impossibilidade de lembrar esse nome, apesar de todos
os meus esforços. É que, na verdade, também naquela ocasião eu não deveria tê-lo sabido.”
Para que se avalie a intensidade da aversão de nosso informante à recordação desse
episódio do exame, é preciso que se saiba do grande valor que ele confere a seu doutorado e
das inúmeras outras coisas às quais este tem que servir de substituto.
(10) Intercalo aqui outro exemplo de esquecimento do nome de uma cidade. Talvez não
seja tão simples quanto os já citados [em [1] e [2]] mas,para qualquer um que esteja algo
familiarizado com essas investigações, parecerá digno de crédito e valioso. O nome de uma
cidade da Itália escapou à memória do sujeito em conseqüência de sua grande semelhança
fonética com um prenome de mulher a que se ligavam muitas lembranças carregadas de afeto,
que sem dúvida não são integralmente relatadas aqui. Sándor Ferenczi, de Budapeste, que
observou em si mesmo esse caso de esquecimento, tratou-o da maneira como se analisa um
sonho ou uma idéia neurótica - por certo, com toda a razão.
“Estive hoje visitando uma família amiga e a conversa se voltou para as cidades do norte
da Itália. Alguém observou que elas ainda exibem traços da influência austríaca. Algumas dessas
cidades foram mencionadas e também eu quis citar uma delas, mas seu nome não me ocorreu,
embora eu soubesse que ali havia passado dois dias muito agradáveis - um fato que não
combinava muito com a teoria de Freud sobre o esquecimento. Em vez do nome buscado, as
seguintes associações impuseram-se a mim: Capua - Brescia - O Leão de Brescia.
“Visualizei esse ‘Leão’ sob a forma de uma estátua de mármore postada diante de mim
como um objeto concreto, mas logo reparei que ele se parecia menos com o leão do Monumento
à Liberdade em Brescia (que só vi numa ilustração) do que com o outro famoso leão de mármore
que vi no monumento aos mortos em Lucerna - o monumento aos guardas suíços tombados nas
Tulherias, do qual tenho um réplica em miniatura na minha estante. E então me ocorre
finalmente o nome buscado: era Verona.
“Ao mesmo tempo, entendi prontamente quem era a culpada dessa minha amnésia.
Ninguém senão uma antiga empregada da família de quem eu era convidado nessa ocasião.
Seu nome era Veronika (Verona, em húngaro) e eu tinha por ela uma intensa antipatia, por
causa de sua fisionomia repulsiva, de sua voz esganiçada e rouca e sua confiança insuportável,
a que ela achava ter direito por longo tempo de serviço. Também a maneira tirânica com que, em
sua época, ela costumava tratar as crianças da casa me era intolerável. E então compreendi
também o sentido das associações substitutas.
“Minha associação imediata com Capua foi caput mortuum [cabeça de morto]. Muitas
vezes comparei a cabeça de Veronika a uma cabeça de defunto. A palavra húngara ”kapzsi“
(avaro) sem dúvida forneceu mais um determinante para o deslocamento. Descobri também, é
claro, as vias associativas muito mais diretas que ligam Capua e Verona como idéias geográficas
e como palavras italianas que têm o mesmo ritmo.
“O mesmo vale para Brescia, mas também aqui encontram-se vias colaterais
entrelaçadas na associação de idéias.
“Naquela época minha antipatia era tão violenta que eu achava Veronika decididamente
asquerosa, e mais de uma vez manifestei meu assombro de que, apesar disso, ela pudesse ter
uma vida amorosa e ser amada por alguém. ‘Beijá-la’, dizia eu, ‘deve provocar náuseas!’ E por
certo fazia muito tempo que se poderia vinculá-la à idéia dos guardas suíços tombados.
“É muito freqüente se mencionar Brescia, pelo menos aqui na Hungria, não em conexão
com o leão, mas com outro animal selvagem. O nome mais odiado neste país, como também no
norte da Itália, é o do general Haynau, comumente conhecido como a ‘Hiena de Brescia‘. Assim,
um fio de meu pensamento levava do odiado tirano Haynau, via Brescia, para a cidade de
Verona, enquanto o outro levava, através da idéia do animal de voz rouca que freqüenta os
túmulos dos mortos (o que contribui para determinar a emergência de um monumento aos
mortos), para a cabeça de defunto e a voz desagradável de Veronika, tão grosseiramente
insultada por meu inconsciente, pessoa que em sua época agira naquela casa de maneira quase
tão tirânica quanto o general austríaco depois das lutas dos húngaros e italianos pela liberdade.
“A Lucerna liga-se a idéia do verão que Veronika passou com os patrões nas cercanias
da cidade de Lucerna, junto ao lago do mesmo nome. A Guarda Suíça, por sua vez, lembra que
ela sabia tiranizar não só as crianças, mas também os adultos da família, e se comprazia [sich
gefallen] no papel de ‘Garde-Dame’ [governanta, dama de companhia, literalmente ‘guarda de
senhoras’].
“Devo assinalar expressamente que essa minha antipatia por Veronika é -
conscientemente - um coisa há muito superada. Desde aquela época, tanto sua aparência
quanto suas maneiras mudaram muito, para melhor, e posso tratá-la (embora para isso tenha
raras oportunidades) com sentimentos sinceramente amistosos. Como de hábito, meu
inconsciente se aferra com mais tenacidade a minhas impressões [anteriores]: ele é ”de efeito
posterior" e rancoroso.
“As Tulherias são uma alusão a outra pessoa, uma dama francesa idosa que, em muitas
ocasiões, realmente ‘guardava‘ as mulheres da casa; era respeitada por todos, jovens e velhos -
e sem dúvida um pouco temida também. Por algum tempo fui seu élève [aluno] de conversação
em francês. A palavra élève recorda-me ainda que, estando em visita ao cunhado de meu atual
anfitrião, no norte da Boêmia, achei muita graça ao saber que os camponeses do lugar
chamavam os élèves da escola florestal de ‘Löwen’ [leões]. Também essa lembrança divertida
pode ter desempenhado um papel no deslocamento da hiena para o leão.”
(11) Também o exemplo seguinte mostra como um complexo pessoal que domine a
pessoa num dado momento provoca o esquecimento de um nome com base numa ligação muito
remota.
“Dois homens, um mais velho e um mais moço, que seis meses antes haviam feito
juntos uma viagem à Sicília, trocavam lembranças daqueles dias bonitos e memoráveis.
‘Vejamos’, disse o mais jovem, ‘como se chamava o lugar onde pernoitamos antes de nossa
excursão a Selinunte? Calatafimi, não é?’ O mais velho discordou: ‘Não, tenho certeza de que
não era isso, mas também esqueci o nome, embora me lembre muito bem de todos os detalhes
de nossa estada lá. Basta eu saber que alguém esqueceu um nome para que isso logo me faça
esquecê-lo também. [Cf. adiante, em [1]] Quer que procuremos o nome? O único que me ocorre
é Caltanisetta, que com certeza não é o correto.’ - ‘Não’, disse o mais jovem, ‘o nome começa
com w ou então contém w.’ - ‘Mas não existe w em italiano’, objetou o mais velho. ‘Eu quis dizer
v, e só falei w por estar muito acostumado com ele em minha língua.’ O homem mais velho
manteve sua objeção ao v. ‘Aliás’, declarou, ‘acho que já esqueci uma porção de nomes
sicilianos, e essa é uma boa hora para fazermos algumas experiências. Por exemplo, qual era o
nome daquele lugar elevado que na Antigüidade se chamava Enna? Ah, já sei - Castrogiovanni.’
No instante seguinte o homem mais moço recuperou o nome perdido. ‘Castelvetrano’, exclamou,
satisfeito por poder apontar o v em que havia insistido. Durante algum tempo, o mais velho não
teve nenhuma sensação de reconhecimento, mas depois de ter aceito o nome, coube-lheexplicar
por que o havia esquecido ‘Evidentemente’, disse, ‘porque a segunda metade, ”-vetrano“, soa
como ”veterano". ‘Sei que não gosto muito de pensar em envelhecer e tenho reações estranhas
quando me lembram disso. Por exemplo, recentemente usei os mais curiosos disfarces para
acusar um amigo muito estimado de ter perdido a juventude há muito tempo, e isso porque,
numa ocasião anterior, em meio às observações mais lisonjeiras a meu respeito, esse amigo
havia acrescentado que eu “já não era um homem jovem”. Outro indício de que minha
resistência estava voltada contra a segunda metade do nome Castelvetrano é que seu som
inicial ressurgiu no nome substituto Caltanisetta.’ ‘E quanto ao próprio nome Caltanisetta?’,
perguntou o mais jovem. ‘Esse’, confessou o mais velho, ‘sempre me pareceu ser um apelido
carinhoso para uma mulher jovem.’
“Algum tempo depois, acrescentou: ‘Evidentemente, o nome para Enna também era um
nome substituto. E agora me ocorre que Castrogiovanni - o nome que se impôs ao primeiro
plano com a ajuda de uma racionalização - soa como ”giovane“, jovem, assim como o nome
perdido, Castelvetrano, soa como ”veterano“, velho.’
“O homem mais velho acreditou ter assim esclarecido seu esquecimento do nome. Não
foram investigados os motivos da mesma falha de memória no mais moço.”
Não só os motivos, mas também o mecanismo que rege o esquecimento de nomes
merecem nosso interesse. Num grande número de casos um nome é esquecido, não porque ele
próprio desperte esses motivos, mas porque - graças à semelhança fonética e à homofonia - ele
toca em outro nome contra o qual se voltam esses motivos. Como é compreensível, esse
relaxamento das condições facilita extraordinariamente a ocorrência do fenômeno. É o que
mostram os seguintes exemplos:
(12)Relatado pelo Dr. Eduardo Hitschmann (1913a): “O senhor N. queria dar a alguém o
nome da livraria Gilhofer e Ranschburg [de Viena]. Por mais que pensasse, entretanto, só lhe
ocorria o nome Ranschburg, embora ele conhecesse muito bem a firma. Voltou para casa meio
insatisfeito e achou o assunto suficientemente importante para perguntar a seu irmão (que
aparentemente já estava dormindo) qual era a primeira metade do nome. O irmão o forneceu
sem hesitação. Nisto ocorreu ao Sr. N. a palavra ‘Gallhof’, como associação a ‘Gillhofer’. Gallhof
era o lugar onde, alguns meses antes, ele dera um memorável passeio com uma jovem atraente.
Como lembrança, a moça o presenteara com um objeto que trazia a inscrição ‘Recordação da
horas felizes em Gallhof [”Gallhoerf Stunden“, literalmente ”horas de Galhof"]’. Dias antes do
esquecimento do nome, esse presente fora seriamente danificado, aparentemente de modo
acidental, quando N. fechou uma gaveta depressa demais. N. reparou nisso com um certo
sentimento de culpa, familiarizado que estava com o sentido dos atos sintomáticos. [Ver Capítulo
IX.] Na época, seus sentimentos em relação à jovem eram algo ambivalentes: por certo a amava,
mas estava hesitante frente ao desejo dela de se casarem."
(13)Relatado pelo Dr. Hanns Sachs: “Ao conversar sobre Gênova e seus arredores, um
rapaz quis mencionar o lugar chamado Pegli, mas só com esforço conseguiu lembrar o nome,
depois de muito refletir. A caminho de casa, ia meditando sobre o modo desagradável como lhe
escapara um nome tão familiar e, ao fazê-lo, foi conduzido a uma palavra de som muito
semelhante: Peli. Ele sabia haver uma ilha com esse nome nos Mares do Sul, cujos habitantes
ainda conservaram alguns hábitos notáveis. Lera sobre eles recentemente, numa obra de
etnologia, e decidira nesse momento usar as informações para apoiar uma hipótese própria.
Ocorreu-lhe então que Peli era também o cenário de um romance que ele havia lido com
interesse e prazer - o Van Zantens glücklichste Zeit [A Época mais Feliz de Van Zanten], de
Laurids Bruun. Os pensamentos que o haviam ocupado quase incessantemente durante o dia
centralizavam-se numa carta, recebida naquela mesma manhã, de uma dama que lhe era muito
querida. Essa carta o fizera temer que tivesse de renunciar a um encontro marcado. Depois de
passar o dia inteiro com um péssimo humor, ele saíra à noite, decidido a não se atormentar mais
com esses pensamentos irritantes, e sim a desfrutar, com a maior serenidade possível, da
reunião social que tinha à frente e que lhe era de extremo valor. É claro que essa sua resolução
poderia ser gravemente posta em risco pela palavra Pegli, por ser tão estreita a sua semelhança
sonora com Peli; Peli, por sua vez, por ter adquirido um vínculo pessoal com ele através do
interesse etnológico, corporificava não só a ‘época mais feliz’ de Van Zanten, mas também a sua,
e portanto também os medos e angústias que ele alimentara o dia inteiro. É característico que
essa simples interpretação só lhe chegasse assim que uma segunda carta transformou suas
dúvidas na certeza feliz de revê-la em breve.”
Se esse exemplo faz lembrar um outro que lhe é, por assim dizer, vizinho, no qual não
se conseguia recordar o topônimo Nervi (Exemplo 1 [em [1]]), verifica-se como o duplo sentido
de uma palavra pode ser substituído por duas palavras de som semelhante.
(14)Ao deflagrar-se a guerra contra a Itália, em 1915, pude fazer em mim mesmo a
observação de que toda uma série de nomes de lugares italianos, que de hábito me eram
prontamente acessíveis, subtraiu-se de repente de minha memória. Como muitos outros
alemães, eu havia criado o hábito de passar parte das minhas férias em solo italiano, e não pude
duvidar de que esse maciço esquecimento de nomes era a expressão de uma compreensível
animosidade pela Itália, substituindo agora minha predileção anterior. Mas, além desse
esquecimento de nomes diretamente motivado, também se identificou uma amnésia indireta com
origem na mesma influência. Mostrei também uma tendência a esquecer topônimos não-italianos
e, investigando esses incidentes, descobri que tai nomes tinham alguma ligação, por meio de
vagas semelhanças de som, com os nomes inimigos proscritos. Assim, um dia me atormentei
tentando lembrar o nome da cidade de Bisenz, na Morávia. Quando ele finalmente me ocorreu,
reconheci de imediato que esse esquecimento devia ser posto na conta do Palazzo Bisenzi, em
Orvieto. O Hotel Belle Arti, onde eu me hospedara em todas as minhas visitas a Orvieto, situa-se
nesse “palazzo”. As lembranças mais preciosas, é claro, tinham sido as mais prejudicadas pela
mudança em minha atitude emocional.
Alguns exemplos ajudarão também a nos lembrar da diversidade de propósito a cujo
serviço pode colocar-se o ato falho do esquecimento de nomes.
(15)Relatado por A. J. Storfer (1914): ‘’Certa manhã, uma dama residente em Basiléia
recebeu a notícia de que sua amiga de infância, Selma X., de Berlim, então em viagem de lua-
de-mel, estava de passagem por Basiléia, mas ali permaneceria apenas um dia; por isso a dama
de Basiléia apressou-se a chegar logo ao hotel. Quando as amigas se separaram, combinaram
reencontrar-se à tarde e permanecer juntas até a hora da partida da dama berlinense.
“À tarde, a dama de Basiléia esqueceu o encontro marcado. Desconheço os
determinantes desse esquecimento, mas, nessa situação (encontro com uma amiga de infância
recém-casada), são possíveis diversas constelações típicas capazes de determinar uma inibição
contra a repetição do encontro. O ponto de interesse nesse caso está em outro ato falho, que
representa uma proteção inconsciente para o primeiro. Na hora em que deveria estar-se
reencontrando com a amiga de Berlim, a dama de Basiléia se achava numa roda social em outro
lugar. Ali, a conversa recaiu sobre o casamento recente da cantora vienense de ópera de
sobrenome Kurz. A dama de Basiléia teceu alguns comentários críticos (!) sobre esse
casamento, mas, ao querer referir-se à cantora pelo nome, descobriu com enorme embaraço
que não conseguia lembrar-se de seu nome de batismo. (Como se sabe, há uma tendência
especial a se mencionar também o prenome, nos casos em que o sobrenome é monossilábico.)
A dama de Basiléia irritou-se ainda mais com seu lapso de memória porque já ouvira a Kurz
cantar muitas vezes e, comumente, sabia muito bem seu nome (completo). Antes que alguém
mencionasse o prenome desaparecido, a conversa tomou outro rumo.
“Na noite desse mesmo dia, nossa dama de Basiléia estava entre algumas pessoas que,
em parte, eram as mesmas daquela tarde. Por coincidência, a conversa tornou a recair no
casamento da cantora vienense e, sem qualquer dificuldade, a dama citou o nome ‘Selma Kurz’.
E nesse instante exclamou: ‘Oh! Acabo de me lembrar: esqueci por completo que hoje à tarde
tinha um encontro com minha amiga Selma!‘ Uma olhadela no relógio mostrou que a amiga já
devia ter partido.”
Talvez ainda não estejamos preparados para apreciar esse belo exemplo em todos os
seus aspectos. É mais simples o caso seguinte, embora não se tratasse do esquecimento de um
nome e sim de uma palavra estrangeira, por um motivo criado pela situação. (Já podemos notar
que estamos lidando com os mesmos processos, quer eles se apliquem a nomes próprios,
prenomes, palavras estrangeiras ou seqüências de palavras.) Foi o caso de um jovem que
esqueceu a palavra inglesa correspondente a “ouro” - que é idêntica à palavra alemã (“Gold”) -
para, desse modo, ter oportunidade de praticar uma ação que desejava.
(16)Relatado pelo Dr. Hanns Sachs: “Um rapaz travou conhecimento numa pensão com
uma moça inglesa que lhe agradou. Na primeira noite após se conhecerem, ele conversava com
a moça na língua materna desta, que conhecia razoavelmente bem, e quis empregar a palavra
inglês para ‘ouro’. Apesar de seus imensos esforços, o vocábulo não lhe ocorreu. Em vez dele, a
palavra francesa or, a latina aurum e a grega chrysos impuseram-se obstinadamente como
substitutas, tanto que ele só conseguiu rejeitá-las a muito custo, embora soubesse com certeza
que não tinham parentesco algum com a palavra procurada. Por fim, o único caminho que
encontrou para se fazer entender foi tocar num anel de ouro na mão da moça, ficando muito
envergonhado ao saber por ela que a palavra tão procurada para denotar ouro era exatamente
idêntica à alemã, ou seja, ‘gold’. O grande valor desse contato, propiciado pelo esquecimento,
não estava meramente na satisfação inobjetável da pulsão de pegar ou tocar - pois para isso
existem outras oportunidades avidamente exploradas pelos enamorados -, porém, muito mais,
no modo como contribuiu para esclarecer as perspectivas do flerte. O inconsciente da dama,
sobretudo se sentisse simpatia pelo homem com quem ela conversava, adivinharia o objetivo
erótico do esquecimento, oculto por sua máscara de inocência. A maneira de ela corresponder
ao contato e aceitar sua motivação poderia, assim, tornar-se um meio - inconsciente para
ambos, mas muito significativo - de chegarem a um entendimento sobre as possibilidades do
flerte iniciado pouco antes.”
(17)Narro ainda, segundo J. Stärcke (1916), outra observação interessante que
concerne ao esquecimento e à recuperação de um nome próprio. Esse caso se distingue pela
ligação entre o esquecimento do nome e um equívoco na citação de algumas palavras de um
poema, como no exemplo da “Noiva de Corinto” [em [1]].
“Z., um velho jurista e filólogo, contava numa roda como, em seus tempos de estudantes
na Alemanha, conhecera um aluno excepcionalmente estúpido, e teve muitas anedotas a contar
sobre essa estupidez. Mas não conseguiu lembrar o nome do estudante; achou que começava
com W, mas depois reconsiderou essa idéia. Lembrou-se de que esse aluno estúpido mais tarde
se tornara comerciante de vinhos. Depois, ao contar outra anedota sobre a estupidez do rapaz,
tornou a exprimir seu espanto pelo fato de seu nome não lhe ocorrer, e disse: ‘Ele era tão burro
que até hoje não entendo como consegui martelar-lhe o latim na cabeça.’ No momento seguinte,
lembrou-se de que o nome procurado terminava em ‘. man‘. Nesse ponto, perguntamos se lhe
ocorria algum outro nome terminado em ‘man’ e ele disse: ‘Erdmann‘ [homem da terra].’- ‘Quem
é esse?’ - ‘Um outro estudante daquela época.’ - Sua filha, porém, observou que havia também
um professor Erdmann. Uma averiguação mais rigorosa revelou que esse professor Erdmann
era editor de uma revista e, recentemente, só aceitara publicar em forma abreviada um trabalho
apresentado por Z., do qual discordava em parte etc., e Z. ficara bastante aborrecido com isso.
(Ademais, descobri posteriormente que, anos antes, Z. provavelmente tivera expectativas de se
tornar professor da mesma disciplina agora lecionada pelo professor Erdmann, e também nesse
aspecto o nome talvez tivesse tocado num ponto sensível.)
“E então, de repente, ocorreu-lhe o nome do estudante estúpido: ‘Lindeman!’ Como já se
lembrara de que o nome terminava em ‘man’, ‘Linde [tília]’, era o que permanecera recalcado por
mais tempo. Ao se perguntar o que lhe ocorria ao pensar em ‘Linde‘, ele disse a princípio:
‘Absolutamente nada.’ Quando insisti em que sem dúvida lhe ocorreria alguma coisa relacionada
com essa palavra, ele respondeu, erguendo os olhos e fazendo um gesto com a mão no ar: ‘Ora,
uma tília [‘Linde’] é uma árvore bonita.’ Nada mais lhe ocorreu. Todos ficaram calados e cada um
prosseguiu em suas leituras ou outros afazeres, até que, passados alguns momentos, Z. fez a
seguinte citação em tom sonhador:
Steht er mit festen
Gefügigen Knochen
Auf der Erde,
So reicht er nicht auf
Nur mit der Linde
Oder der Rebe
Sich zu vergleichen.
“Dei um grito de triunfo: ‘Aí está o nosso Erdmann [homem da terra]!’ E disse: ‘O homem
que ”se ergue sobre a terra", ou seja, o homem da terra ou Erdmann, não é suficientemente
grande para se comparar nem com a tília (Lindeman) nem com a videira (o comerciante de
vinhos). Em outras palavras, nosso Lindeman, o estudante estúpido que mais tarde se tornou
comerciante de vinhos, certamente era um asno, mas nosso Erdmann, é ainda muito mais burro
e nem sequer se pode comparar ao Lindeman.’ No inconsciente, essa linguagem irônica ou
insultuosa é bastante comum; por isso, pareceu-me que agora se havia encontrado a causa
principal do esquecimento do nome.
“Perguntei, então, de que poema provinham os versos citados. Z. disse que era um
poema de Goethe, que ele achava começar assim:
Edel sei der Mensch
Hilfreich und gut!
e que continha também os versos:
Und hebt er sich aufwärts,
So spielen mit ihm die Winde.
“No dia seguinte, verifiquei esse poema de Goethe e viu-se que o caso era ainda mais
belo (apesar de ser também mais complexo) do que parecera a princípio.
“(a)Os primeiros versos citados dizem (cf. a citação acima):
Steht er mit festen
Markigen Knochen.
“’Gefügige Knochen [ossos flexíveis]’ seria uma combinação muito estranha, mas não
quero ir mais a fundo nesse ponto.
“(b)Os versos seguintes dessa estrofe dizem (cf. a citação acima):
...Auf der wohlgegründeten
Dauernden Erde,
Reicht er nicht auf,
Nur mit der Eiche
Oder der Rebe
Sich zu vergleichen.
Portanto, em todo o poema não há menção a tília alguma! A troca de ‘carvalho’ por ‘tília’
(em seu inconsciente) ocorreu apenas para possibilitar o jogo de palavras ‘terra - tília - videira’.
“(c)Esse poema se chama ‘Grenzen der Menschheit [Os Limites da Humanidade]’ e
compara a onipotência dos deuses com o poder insignificante do homem. Mas o poema que
começa por
Edel sei der Mensch
Hilfreich und gut!
é outro e se encontra algumas páginas adiante [no livro]. Seu título é ‘Das Gottliche. [A
Natureza Divina]’, e também ele contém pensamentos sobre os deuses e os homens. Como não
se examinou a questão mais a fundo, posso no máximo supor que certos pensamentos sobre a
vida e a morte, o temporal e o eterno, e a vida frágil e a morte futura do próprio sujeito também
tenham desempenhado um papel na gênese desse caso."
Em alguns desses exemplos é preciso recorrer a todas as sutilezas da técnica
psicanalítica para explicar o esquecimento de um nome. Quem quiser conhecer melhor essa
tarefa poderá consultar um artigo de Ernest Jones, de Londres (1911a), já traduzido para o
alemão.
(18)Ferenczi observou que o esquecimento de nomes também pode aparecer como um
sintoma histérico. Nessa situação, ele mostra um mecanismo muito diferente do que é próprio
dos atos falhos. A natureza dessa diferença é esclarecida por suas próprias palavras:
“Tenho agora em tratamento uma paciente, uma solteirona já envelhecida, a quem
deixam de ocorrer os nomes próprios mais usuais e mais conhecidos dela, se bem que, afora
isso, sua memória seja boa. No decorrer da análise, ficou claro que mediante esse sintoma ela
visa a documentar sua ignorância. Essa exibição ostensiva de sua ignorância, contudo, é, na
verdade, uma censura a seus pais, que não lhe permitiram receber instrução superior. Também
sua torturante compulsão a fazer limpeza (‘psicose da dona de casa’) provém, em parte, da
mesma fonte. Com isso ela quer dizer algo como: ‘Vocês me transformaram numa empregada.’”
Eu poderia citar outros exemplos do esquecimento de nomes e levar seu exame muito
mais longe, não fosse por querer evitar, neste primeiro estágio, a antecipação de quase todos os
pontos de vista destinados à discussão de temas posteriores. Entretanto, talvez possa permitir-
me resumir em algumas frases as conclusões extraídas das análises aqui relatadas:
O mecanismo do esquecimento de nomes (mais corretamente, de os nomes escaparem
da memória, serem temporariamente esquecidos) consisteem que a pretendida reprodução do
nome sofre a interferência de uma cadeia de pensamentos estranha, não consciente no
momento. Entre o nome assim perturbado e o complexo perturbador existe uma conexão
preexistente; ou essa conexão se estabelece, quase sempre de maneiras aparentemente
artificiais, através de associações superficiais (externas).
Entre os complexos perturbadores, os mais eficazes mostram ser os auto-referentes (ou
seja, os complexos pessoal, familiar e profissional).
Um nome com mais de um sentido e, portanto, pertencente a mais de um grupo de
pensamentos (complexos) é muitas vezes perturbado em sua relação com uma seqüência de
pensamentos, em virtude de sua participação em outro complexo mais forte.
Entre os motivos para essas interferências destaca-se o propósito de evitar que as
lembranças despertem desprazer.
Em geral, podem-se distinguir dois tipos principais de esquecimento de nomes: os casos
em que o próprio nome toca em algo desagradável e aqueles em que ele se liga a outro nome
que tem esse efeito. Assim, os nomes podem ter sua reprodução perturbada por sua própria
causa, ou por causa de seus vínculos ou associativos mais próximos ou mais distantes.
Um exame dessas proposições gerais nos mostra por que o esquecimento temporário
de nomes é, dentre todos os nossos atos falhos, o que se observa com maior freqüência.
(19)Estamos, porém, muito longe de haver delineado todas as peculiaridades desse
fenômeno. Outro ponto que quero assinalar é que o esquecimento de nomes é altamente
contagioso. Numa conversa entre duas pessoas, muitas vezes basta que uma delas mencione
ter esquecido tal ou qual nome para que este escape também à memória da outra. Nesses casos
de esquecimento induzido, porém, o nome esquecido retorna mais facilmente. Esse
esquecimento “coletivo” - a rigor, um fenômeno da psicologia das massas - ainda não se tornou
objeto da investigação psicanalítica. Apenas em um caso, mas que é especialmente belo, Reik
(1920) pôde dar uma boa explicação para esse curioso fenômeno.
“Num pequeno grupo de universitários em que também havia duas estudantes de
filosofia, discutiam-se as numerosas questões suscitadas no campo dos estudos religiosos e no
da história da civilização pela origemdo cristianismo. Uma das moças que participava da
conversa lembrou-se de que, num romance inglês que lera recentemente, encontrara um quadro
interessante das múltiplas correntes religiosas que haviam agitado aquela época. Acrescentou
que o romance retratava toda a vida de Cristo, desde seu nascimento até sua morte; mas o
nome da obra se recusava a ocorrer-lhe. (Sua lembrança visual da capa de livro e da
apresentação gráfica do título era ultraclara [ver em [1]].) Três dos homens presentes também
afirmaram conhecer o romance e notaram que, curiosamente, tampouco eles eram capazes de
reproduzir o nome.”
A moça foi a única a se submeter à análise para esclarecer o esquecimento desse nome.
O título do livro era Ben-Hur, de Lewis Wallace. As idéias que lhe ocorreram como substitutas
foram: “Ecce homo - Homo sum - Quo vadis?”. A própria jovem se apercebeu de haver
esquecido o nome “porque ele contém uma expressão que nem eu nem nenhuma outra moça -
especialmente na companhia de rapazes - gostamos de usar. À luz da interessantíssima análise,
essa explicação assumiu um significado ainda mais profundo. Uma vez feita uma alusão a esse
contexto, a tradução de “homo” (homem) adquire também um sentido pouco recomendável. A
conclusão de Reik é a seguinte. “A moça tratou a palavra como se, ao pronunciar o título dúbio
na presença de rapazes, estivesse reconhecendo desejos que havia rechaçado por lhe serem
penosos e incompatíveis com sua personalidade. Em suma: dizer as palavras ‘Ben-Hur’ foi
inconscientemente identificado por ela com uma proposta sexual e, por conseguinte, o
esquecimento correspondeu ao rechaço dessa tentação inconsciente. Temos razões para supor
que processos inconscientes semelhantes tenham determinado o esquecimento dos rapazes. O
inconsciente deles apreendeu o sentido real do esquecimento da jovem e, por assim dizer,
interpretou-o. O esquecimento dos homens mostra respeito por esse comportamento recatado.
(.) É como se sua interlocutora, por seu repentino lapso de memória, tivesse dado um sinal claro
que os homens, inconscientemente, entenderam muito bem."
Há também [1] um esquecimento sucessivo de nomes em que toda uma cadeia deles é
retirada da memória. Quando, na tentativa de reencontrar umnome perdido, buscam-se outros
estreitamente ligados a ele, não é raro desaparecerem também esses novos nomes, que
deveriam servir de pontos de apoio. Assim, o esquecimento salta de um nome para outro, como
que para provar a existência de um obstáculo que não é facilmente superável.
CAPÍTULO IV - LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA E LEMBRANÇAS
ENCOBRIDORAS
Num segundo artigo, publicado na Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie (1899a),
pude demonstrar, num ponto inesperado, a natureza tendenciosa do funcionamento de nossa
memória. Parti do fato notável de que, nas mais remotas lembranças da infância de uma pessoa,
freqüentemente parece preservar-se aquilo que é indiferente e sem importância, ao passo que
(amiúde, mas não universalmente), na memória dos adultos, não se encontra nenhum vestígio
de impressões importantes, muito intensas e plenas de afeto daquela época. Disso se poderia
presumir, já que é sabido que a memória faz uma seleção entre as impressões que lhe são
oferecidas, que tal seleção se dá, na infância, com base em princípios inteiramente diferentes
dos que vigoram na época da maturidade intelectual. Uma investigação atenta, contudo, mostra
que tal suposição é desnecessária. As lembranças indiferentes da infância devem sua existência
a um processo de deslocamento: são substitutas, na reprodução [mnêmica], de outras
impressões realmente significativas cuja recordação pode desenvolver-se a partir delas através
da análise psíquica, mas cuja reprodução direta é impedida por uma resistência. De vez que as
lembranças indiferentes devem sua preservação, não a seu próprio conteúdo, mas a um vínculo
associativo entre seu conteúdo e outro que está recalcado, elas podem fazer jus ao nome de
“lembranças encobridoras” com que foram por mim designadas.
No artigo mencionado, apenas tangenciei, sem esgotá-la de modo algum, a
multiplicidade dos vínculos e sentidos das lembranças encobridoras. No exemplo que ali analisei
detalhadamente, enfatizei sobretudo a peculiaridade da relação temporal entre a lembrança
encobridora e o conteúdo encoberto por ela. Naquele exemplo, o conteúdo da lembrança
encobridora pertencia a um dos primeiros anos da infância, ao passo que as vivências
depensamento por ela substituídas na memória, que haviam permanecido quase inconscientes,
correspondiam a épocas posteriores na vida do sujeito. Designei esse tipo de deslocamento de
retroativo ou retrocedente. Talvez seja mais freqüente encontrar a relação oposta: uma
impressão indiferente de época recente se consolida na memória como lembrança encobridora,
apesar de dever esse privilégio apenas a sua ligação com um evento anterior que as resistências
impedem de ser diretamente reproduzido. Estas seriam lembranças encobridoras adiantadas ou
avançadas. Aqui o essencial de que se ocupa a memória situa-se, na ordem temporal, atrás da
lembrança encobridora. Por fim, temos ainda a terceira possibilidade, em que a lembrança
encobridora vincula-se à impressão encoberta não só por seu conteúdo, mas também pela
contigüidade temporal: estas são as lembranças encobridoras simultâneas ou contíguas.
Quanto de nossa reserva mnêmica pertence à categoria das lembranças encobridoras e
qual o papel desempenhado por elas nos diferentes processos de pensamento neuróticos são
problemas importantes que não abordei em meu artigo anterior, e nem os abordarei aqui.
Importa-me apenas enfatizar a identidade entre o esquecimento de nomes próprios seguido de
ilusão de memória e a formação das lembranças encobridoras.
À primeira vista, as diferenças entre os dois fenômenos são muito mais flagrantes do
que as eventuais analogias. O primeiro fenômeno refere-se a nomes próprios; aqui, trata-se de
impressões completas, de algo que se vivenciou quer na realidade, quer no pensamento. Ali
temos uma falha manifesta da função mnêmica; aqui, é um ato da memória que nos parece
estranho. Num, trata-se de uma perturbação momentânea - pois o nome agora esquecido pode
ter sido corretamente reproduzido cem vezes antes, e voltará a poder sê-lo de amanhã em
diante; noutro, trata-se de uma posse permanente e constante, pois as lembranças indiferentes
da infância parecem ter o poder de nos acompanhar durante grande parte de nossa vida. Ou
seja, o problema, nesses dois casos, parece ter um enfoque completamente diferente. Num,
tem-se o esquecimento, no outro, a retenção, que desperta nossa curiosidade científica. Um
estudo mais detalhado revela que, a despeito das diferenças entre os dois fenômenos quanto ao
material psíquico e à duração, as coincidências entre ambos predominam em muito. Ambos se
referem a falhas no recordar: o que a memória reproduz não é o que deveria ser corretamente
reproduzido, mas algo diverso que serve de substituto. No casodo esquecimento de nomes, a
lembrança se dá sob a forma de nomes substitutos; o caso da formação de lembranças
encobridoras tem por base o esquecimento de outras impressões mais importantes. Em ambos,
uma sensação intelectual nos dá notícia da interferência de algum fator perturbador, mas o faz
de formas diferentes: no esquecimento de nomes, sabemos que os nomes substitutos são
falsos; nas lembranças encobridoras, ficamos surpresos por possuí-las. Se a análise psicológica
nos revela agora que a formação substitutiva se produziu da mesma maneira em ambos os
casos, por deslocamento ao longo de uma associação superficial, são precisamente as
dessemelhanças entre os dois fenômenos, quanto a seu material, duração e ponto focal, que
contribuem para aguçar nossa expectativa de havermos descoberto algo importante e de
validade universal. E esse universal afirmaria que, quando a função reprodutora falha ou se
extravia, isso indica, com muito mais freqüência do que suspeitamos, a interferência de um fator
partidarista, de uma tendência que favorece uma lembrança, enquanto se empenha em trabalhar
contra outra. [1]
O tema das lembranças da infância me parece tão significativo e interessante que eu
gostaria de dedicar-lhe mais algumas observações, que vão além dos pontos de vista
apresentados até agora.
Até que ponto da infância recuam nossas lembranças? Conheço algumas investigações
a esse respeito, como as de V. e C. Henri (1897) e de Potwin (1901). Eles mostram que existem
grandes diferenças individuais entre as pessoas examinadas: algumas situam suas primeiras
lembranças no sexto mês de vida, ao passo que outras nada lembram de sua vida até
completarem seis ou mesmo oito anos de idade. Mas a que se prendem essas diferenças na
retenção de lembranças da infância, e que significado deve ser-lhes atribuído? Evidentemente,
não basta compilar material para responder a essas perguntas por meio de um questionário;
falta, além disso, elaborar esse material, e desse processo a pessoa que fornece a informação
precisa participar.
Em minha opinião, aceitamos com demasiada indiferença o fato da amnésia infantil - isto
é, a perda das lembranças dos primeiros anos de vida - e deixamos de encará-lo como um
estranho enigma. Esquecemos quão grande são as realizações intelectuais e quão complexos
são os impulsos afetivos de que é capaz uma criança de uns quatro anos, e deveríamos ficar
atônitos ante o fato de a memória dos adultos, em geral, preservar tão pouco desses processos
anímicos, sobretudo já que temos todas as razões para suporque essas mesmas realizações
infantis esquecidas não terão resvalado pelo desenvolvimento da pessoa sem deixar marcas,
mas terão, antes, exercido uma influência determinante sobre todas as fases posteriores de sua
vida. E, malgrado essa eficácia incomparável, foram esquecidas! Isto sugere que existem, para o
ato de lembrar (no sentido da reprodução consciente), condições especialíssimas de que não
tomamos conhecimento até agora. É perfeitamente possível que o esquecimento da infância nos
possa fornecer a chave para o entendimento das amnésias que, segundo nossas descobertas
mais recentes, estão na base da formação de todos os sintomas neuróticos.
Dentre lembranças infantis conservadas, algumas nos parecem perfeitamente
inteligíveis, ao passo que outras parecem estranhas ou incompreensíveis. Não é difícil corrigir
alguns erros quanto a ambas as espécies. Quando as lembranças conservadas pela pessoa são
submetidas à investigação analítica, é fácil determinar que nada garante sua exatidão. Algumas
das imagens mnêmicas certamente são falsificadas, incompletas ou deslocadas no tempo e no
espaço. É evidente que não são dignas de crédito declarações das pessoas indagadas, no
sentido, por exemplo, de que sua primeira lembrança provém do segundo ano de vida. Além
disso, logo se descobrem motivos que tornam compreensíveis a distorção e o deslocamento da
experiência vivenciada, mas que, ao mesmo tempo, mostram que esses erros na recordação
não podem ser causados simplesmente por uma memória traiçoeira. Forças poderosas de
épocas posteriores da vida modelaram a capacidade de lembrar as vivências infantis -
provavelmente, as mesmas forças responsáveis por nos termos alienado tanto da compreensão
dos anos de nossa infância.
Vol. 06   sobre a psicopatologia da vida cotidiana
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  • 1. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana VOLUME VI (1901)
  • 2. Dr. Sigmund Freud SOBRE A PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA (1901) ESQUECIMENTOS, LAPSOS DA FALA,EQUÍVOCOS NA AÇÃO, SUPERSTIÇÕES E ERROS Nun ist die Luft von solchem Spuk so voll, Dass niemand weiss, wie er ihn meiden soll. Fausto, Parte II, Ato V, Cena 5 Desses fantasmas tanto se enche o ar, Que ninguém sabe como os evitar. INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS ZUR PSYCHOPATHOLOGIE DES ALLTAGSLEBEN (Über Vergessen, Versprechen, Vergreifen, Aberglaube und Irrtum) (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1901 Monatsschr. Psychiat. Neurolog. 10 (1) [Julho], 1-32, e (2) [Agosto], 95-143. 1904 Em forma de livro, Berlim: Karger. 92 págs. (Reimpressão revista.) 1907 2ª ed. (Ampliada.) Mesmos editores. 132 págs. 1910 3ª ed. (Ampliada.) Mesmos editores. 149 págs. 1912 4ª ed. (Ampliada.) Mesmos editores. 198 págs. 1917 5ª ed. (Ampliada.) Mesmos editores, iv + 232 págs. 1919 6ª ed. (Ampliada.) Leipzig e Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. iv + 312 págs. 1920 7ª ed. (Ampliada.) Leipzig, Viena e Zurique: Mesmos editores. iv + 334
  • 3. págs. 1922 8ª ed. Mesmos editores. (Reimpressão da anterior.) 1923 9ª ed. Mesmos editores. (Reimpressão da anterior.) 1924 10ª. ed. (Ampliada.) Mesmos editores. 310 págs. 1924 G.S., 4, 11-310. 1929 11ª ed. Mesmos editores. (Reimpressão da 10ª ed.) 1941 G.W., 4. iv + 322 págs. (a) TRADUÇÃO INGLESA: Psychopathology of Everyday Life 1914 Londres: Fisher Unwin; Nova Iorque: Macmillan. vii + 342 págs. (Tradução e Introdução de A. A. Brill.) 1938 Londres: Penguin Books. (Nova Iorque, 1939.) 218 págs. (Mesmo trad.) 1938 Em The Basic Writings of Sigmund Freud, Nova Iorque: Modern Library. Págs. 35-178. (Mesmo trad.) 1949 Londres: Ernest Benn. vii + 239 págs. (Mesmo trad.) 1958 Londres: Collins. viii + 180 págs. (Mesmo trad.) A presente tradução inglesa, inteiramente nova, é da autoria de Alan Tyson. Das outras obras de Freud, apenas uma, as Conferências Introdutórias (1916-17), rivaliza com esta em termos da grande quantidade de edições que teve em alemão e do número de línguas estrangeiras para as quais foi traduzida. Em quase cada uma das numerosas edições incluiu-se novo material no livro e, nesse aspecto, poder-se-ia pensar em semelhança com A Interpretação dos Sonhos e os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, aos quais Freud fez constantes acréscimos durante toda sua vida. Na verdade, contudo, os casos não se assemelham. Nesses dois outros livros, o material novo, em sua maior parte, consistiu em ampliações importantes ou em correções dos dados clínicos e das conclusões teóricas. Em Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, a quase totalidade das explicações e teorias básicas já estava presente nas primeiras edições; a grande massa dos acréscimos posteriores consistiu meramente em exemplos e ilustrações adicionais (parcialmente fornecidos pelo próprio Freud, mas sobretudo por seus amigos e discípulos), destinados a esclarecer melhor o que ele já havia examinado. Sem dúvida, a Freud compraziam particularmente tanto as próprias anedotas quanto a fato de ele receber uma confirmação tão ampla de seus pontos de vista. Mas o leitor não consegue deixar de sentir, vez por outra, que a profusão de novos exemplos interrompe e até confunde o fio central da argumentação subjacente. (Ver, por exemplo, em [1]-[2] e [3])
  • 4. Aqui, como no caso dos livros de Freud sobre os sonhos e os chistes, porém talvez em maior escala, o tradutor tem de enfrentar o fato de que uma grande parcela do material com que irá lidar depende de jogos de palavras totalmente intraduzíveis. Na versão anterior, Brill deu ao problema uma solução drástica; omitiu todos os exemplos que continham termos impossíveis de traduzir para o inglês e inseriu diversos exemplos próprios que ilustravam pontos semelhantes aos omitidos. Esse foi, sem dúvida, um procedimento inteiramente justificável naquelas circunstâncias. Na época da versão de Brill, a obra de Freud era quase desconhecida nos países de língua inglesa e era importante não criar obstáculos desnecessários à divulgação deste livro, expressamente projetado pelo próprio Freud para o leitor comum (em [1], nota de rodapé). O êxito com que Bill logrou esse objetivoevidencia-se pelo fato de que, em 1935, sua tradução já tivera dezesseis edições e muitas outras iriam seguir-se a elas. Ademais, os exemplos de Brill eram excelentes em sua maioria e, com efeito, dois ou três foram incluídos por Freud em edições posteriores do original alemão. Ainda assim, existem objeções óbvias a que se perpetue essa situação, especialmente numa edição que vise aos estudiosos mais aplicados dos textos de Freud. Em alguns casos, por exemplo, a omissão de parte do material ilustrativo de Freud inevitavelmente acarretava a omissão de algum comentário teórico importante ou interessante. Além disso, embora Brill anunciasse em seu prefácio a intenção de “modificar ou substituir alguns dos casos do autor”, essas substituições, no texto, em geral não são explicitamente indicadas, e o leitor fica às vezes sem saber ao certo se está lendo Freud ou Brill. A tradução de Brill, convém acrescentar, foi feita a partir da edição alemã de 1912 e permaneceu inalterada em todas as reimpressões posteriores. Desse modo, ela passa ao largo do imenso número de acréscimos feitos ao texto por Freud nos dez ou mais anos subseqüentes. O efeito total das omissões devidas a essas diferentes causas é estarrecedor. Das 305 páginas de texto da última edição, tal como impressas nas Gesammelte Werke, cerca de 90 a 100 páginas (isto é, quase um terço do livro) até hoje nunca foram publicadas em inglês. O caráter integral da presente tradução, por conseguinte, é contrabalançado pela perda indubitável de facilidade de leitura, em virtude da política da Edição Standard de lidar com os jogos de palavras pelo método prosaico de fornecer as expressões originais em alemão e explicá-las com o auxílio de colchetes e notas de rodapé. Encontramos a primeira menção feita por Freud a um ato falho na carta enviada a Fliess em 26 de agosto de 1809 (Freud, 1950a, Carta 94). Ali ele diz: “finalmente compreendi uma coisinha de que suspeitava há muito tempo” - o modo como um nome às vezes nos escapa e em seu lugar nos ocorre um substituto completamente errado. Um mês depois, a 22 desetembro (ibid., Carta 96), ele dá outro exemplo a Fliess, dessa vez o conhecido exemplo de “Signorelli”, publicado naquele mesmo ano em forma preliminar na Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie (1898b) e depois usado no primeiro capítulo da presente obra. No ano seguinte, a mesma revista publicou um artigo de Freud sobre as lembranças encobridoras (1899a), tema
  • 5. que ele tornou a examinar de modo bem diferente no Capítulo IV, adiante. No entanto, seu tempo estava inteiramente tomado pelo trabalho de terminar A Interpretação dos Sonhos e preparar seu estudo mais breve, Sobre os Sonhos (1901a), e ele só se dedicou seriamente a Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana no fim do ano de 1900. Em outubro daquele ano (Freud, 1950a, Carta 139), ele pede a anuência de Fliess para a utilização, como epígrafe da obra, da citação do Fausto, que de fato veio a ser impressa na página de rosto. A 30 de janeiro de 1901 (Carta 141) ele informa que a obra está “em ponto morto, semi-acabada, mas logo terá prosseguimento”, e a 15 de fevereiro (Carta 142), anuncia que terminará a obra dentro de mais alguns dias. Na verdade, ela surgiu em julho e agosto, em duas edições do mesmo periódico de Berlim que havia publicado os estudos preliminares. Três anos depois, em 1904, a obra foi publicada pela primeira vez em volume separado, praticamente sem nenhuma alteração, mas, daí por diante, fizeram-se acréscimos quase contínuos no decorrer dos vinte anos seguintes. Em 1901 e 1904 o livro tinha dez capítulos. Dois outros (que agora constituem os Capítulos III e XI) foram acrescentados pela primeira vez em 1907. Na biblioteca de Freud foi encontrado um exemplar da edição de 1904 com folhas de anotações inseridas, nas quais ele anotara sucintamente outros exemplos. A maioria destes foi incorporada às edições posteriores: outros, desde que parecessem interessantes, foram aqui incluídos em notas de rodapé nos lugares apropriados. A especial simpatia com que Freud encarava os atos falhos se devia, sem dúvida, ao fato de eles serem, juntamente com os sonhos, o que lhe permitiu estender à vida psíquica normal as descobertas que antes fizera em relação às neuroses. Pela mesma razão ele os empregava regularmente como o melhor material preliminar para introduzir nas descobertas da psicanálise os estudiosos que não eram médicos. Esse material era simples e, pelo menos à primeira vista, imune a objeções, além de se referir a fenômenos experimentados por qualquer pessoa normal. Em seus textos expositivos, Freud às vezes preferia os atos falhos aos sonhos, que envolviam mecanismos mais complicados e tendiam a conduzir rapidamente para águas mais profundas. Eis por que inaugurou sua grande série de Conferências Introdutórias de 1916- 17 dedicando aos atos falhos as três primeiras - nas quais, por sinal, reaparecem muitos dos exemplos das páginas seguintes; e deu aos atos falhos prioridade semelhante em suas contribuições à revista Scientia (1913j) e à enciclopédia de Marcuse (1923a). Apesar de esses fenômenos serem simples e facilmente explicáveis, Freud pôde com eles demonstrar aquilo que, afinal, foi a tese fundamental estabelecida em A Interpretação dos Sonhos; a existência de dois modos distintos de funcionamento psíquico, por ele descritos como os processos primário e secundário. Ademais, outra crença básica de Freud encontrava apoio convincente no exame dos atos falhos - sua crença na aplicação universal do determinismo aos eventos psíquicos. É nessa verdade que ele insiste no último capítulo do livro: teoricamente, seria possível descobrir os
  • 6. determinantes psíquicos de cada um dos menores detalhes dos processos anímicos. E talvez o fato de esse objetivo parecer mais fácil de atingir no caso dos atos falhos tenha sido outra razão para que exercessem sobre Freud uma atração especial. De fato, ele tornou a referir-se exatamente a esse ponto em seu breve artigo “As Sutilezas de um Ato Falho” (1935b), um de seus últimos escritos. CAPÍTULO I - O ESQUECIMENTO DE NOMES PRÓPRIOS
  • 7. Na edição da Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie de 1898 publiquei um pequeno artigo, sob o título “O Mecanismo Psíquico do Esquecimento” [Freud, 1898b], cujo conteúdo recapitularei aqui e tomarei como ponto de partida para discussão mais ampla. Nele apliquei a análise psicológica ao freqüente caso do esquecimento temporário de nomes próprios, explorando um exemplo altamente sugestivo extraído de minha auto-observação; e cheguei à conclusão de que essa situação específica (reconhecidamente comum e sem muita importância prática) em que uma função psíquica - a memória - se recusa a funcionar admite uma explicação de muito maior alcance do que a valorização usual que se dá ao fenômeno. A menos que eu esteja muito enganado, um psicólogo a quem se pedisse para explicar a razão por que, em tantas ocasiões, deixa de nos ocorrer um nome próprio que pensamos conhecer perfeitamente se contentaria em responder que os nomes próprios sucumbem mais facilmente ao processo do esquecimento do que outros conteúdos da memória. Ele a presentaria razões plausíveis para essa preferência dada aos nomes próprios, mas não suspeitaria que quaisquer outras condições desempenhassem um papel em tais ocorrências. Minha preocupação com o fenômeno do esquecimento temporário de nomes nasceu da observação de certas características que podem ser reconhecidas com bastante clareza em alguns casos individuais, embora, na verdade, não em todos. Trata-se dos casos em que o nome não só é esquecido, como também erroneamente lembrado. Em nosso afã de recuperar o nome perdido, outros - nomes substitutos - nos vêm à consciência; reconhecemos de imediato que são incorretos, mas eles insistem em retornar e se impõem com grande persistência. O processo que deveria levar à reprodução do nome perdido foi, por assim dizer, deslocado, e por isso conduziu a um substituto incorreto. Minha hipótese é que esse deslocamento não está entregue a uma escolha psíquica arbitrária, mas segue vias previsíveis que obedecem a leis. Em outras palavras, suspeito que o nome ou os nomes substitutos ligam-se demaneira averiguável com o nome perdido: e espero, se tiver êxito em demonstrar essa ligação, poder esclarecer as circunstâncias em que ocorre o esquecimento de nomes. O nome que tentei lembrar em vão, no exemplo escolhido para análise em 1898, foi o do artista que pintou os afrescos magníficos das “Quatro Últimas Coisas” na catedral de Orvieto. Em vez do nome que eu procurava - Signorelli -, impunham-se a mim os nomes de dois outros pintores - Botticelli e Boltraffio - embora fossem imediata e decisivamente rejeitados por meu juízo como incorretos. Ao ser informado por outra pessoa do nome correto, reconheci-o prontamente sem hesitação. A investigação das influências e das vias associativas pelas quais a reprodução do nome assim se havia deslocado de Signorelli para Botticelli e Boltraffio levou aos seguintes resultados: (a) A razão por que o nome Signorelli foi esquecido não deve ser procurada numa peculiaridade do próprio nome, nem em qualquer característica psicológica do contexto em que
  • 8. ele se inseriu. O nome esquecido era-me tão familiar quanto um dos nomes substitutos - Botticelli - e muito mais familiar do que o outro nome substituto - Boltraffio -, sobre cujo portador eu mal sabia dar outra informação senão a de que pertencia à escola de Milão. Além disso, o contexto em que o nome fora esquecido me parecia inofensivo e não me trouxe maiores esclarecimentos. Eu viajava em companhia de um estranho, indo de Ragusa, na Dalmácia, para um lugar na Herzegovina: nossa conversa voltou-se para o assunto das viagens pela Itália, e perguntei a meu companheiro de viagem se ele já estivera em Orvieto e se vira ali os famosos afrescos pintados por… (b) O esquecimento do nome só foi esclarecido quando me lembrei do assunto que estávamos discutindo pouco antes, e revelou ser um caso de perturbação do novo tema emergente pelo tema que o antecedeu. Pouco antes de perguntar a meu companheiro de viagem se ele já estivera em Orvieto, conversávamos sobre os costumes dos turcos que vivem na Bósnia e na Herzegovina. Eu lhe havia contado o que ouvira de um colega que trabalhou em meio a essas pessoas - que elas costumam ter grande confiança no médico e total resignação ao destino. Quando se é obrigado a lhes dizer que nada pode ser feito por um doente, respondem: “Herr [Senhor], o que se há de dizer? Se fosse possível salvá-lo, sei que o senhor o teria salvo.” Nessas frases encontramos pela primeira vez as palavras e nomes Bósnia, Herzegovinae Herr, que podem ser inseridas numa seqüência associativa entre Signorelli e Botticelli - Boltraffio. (c) Suponho que essa seqüência de pensamentos sobre os costumes dos turcos na Bósnia etc. adquiriu a capacidade de perturbar o pensamento subseqüente por eu ter afastado a atenção dela antes que fosse concluída. De fato, lembro-me de ter querido contar uma segunda anedota, que em minha memória estava próxima da primeira. Esses turcos conferem ao gozo sexual um valor maior que o de qualquer outra coisa, e, na eventualidade de distúrbios sexuais, caem num desespero que contrasta estranhamente com sua resignação ante a ameaça de morte. Certa vez, um dos pacientes de meu colega lhe disse: “Sabe Herr, quando isso acaba, a vida não tem nenhum valor.” Suprimi a comunicação desse traço característico por não querer tocar nesse tema numa conversa com um estranho. Mas fiz algo mais: também desviei minha atenção da continuação dos pensamentos que poderiam ter-me surgido a partir do tema “morte e sexualidade”. Naquela ocasião, eu ainda estava sob a influência de uma notícia que me chegara algumas semanas antes, durante uma breve estada em Trafoi. Um paciente a quem eu me havia dedicado muito pusera fim a sua vida por causa de um distúrbio sexual incurável. Tenho certeza de que esse triste acontecimento e tudo o que se relacionava com ele não me vieram à lembrança consciente durante essa viagem a Herzegovina. Mas a semelhança entre “Trafoi” e “Boltraffio” força-me a supor que essa reminiscência, apesar de minha atenção ter sido de liberadamente desviada disso, passou a atuar em mim na época [da conversa]. (d) Já não me é possível considerar o esquecimento do nome Signorelli como um evento
  • 9. casual. Sou forçado a reconhecer a influência de um motivo nesse processo. Foi um motivo que fez com que eu me interrompesse na comunicação de meus pensamentos (a respeito dos costumes dos turcos etc.), e foi um motivo que, além disso, influenciou-me a impedir que se conscientizassem em mim os pensamentos ligados a eles, que tinham levado à notícia recebida em Trafoi. Eu queria, portanto, esquecer algo; havia recalcado algo. É verdade que não queria esquecer o nome do artista de Orvieto, mas sim outra coisa - essa outra coisa, contudo, conseguiu situar-se numa conexão associativa com seu nome, tanto que meu ato de vontade errou o alvo e esqueci uma coisa contra minha vontade, quando queria esquecer intencionalmente a outra. A aversão ao recordar dirigia-se contra um dos conteúdos;esqueci uma coisa contra minha vontade, quando queria esquecer intencionalmente a outra. A aversão ao recordar dirigia-se contra um dos conteúdos; a incapacidade de lembrar surgiu no outro. Obviamente, o caso seria mais simples se a aversão e a incapacidade de lembrar estivessem com o mesmo conteúdo. Além disso, os nomes substitutos já não me parecem tão inteiramente injustificados como antes da elucidação do assunto: por uma espécie de compromisso, eles me lembram tanto aquilo que eu queria esquecer quanto o que queria recordar e me indicam que minha intenção de esquecer algo não foi nem um êxito completo nem um fracasso total. (e) Muito notável é a natureza do enlace que se estabeleceu entre o nome perdido e o tema recalcado (o tema da morte e sexualidade etc., em que apareceram os nomes Bósnia, Herzegovina e Trafoi). O diagrama esquemático que agora intercalo, e que foi extraído do artigo de 1898 [Fig. 1], visa a dar uma imagem clara desse enlace: O nome Signorelli foi dividido em duas partes. Um dos pares de sílabas (elli) ressurge inalterado num dos nomes substitutos, enquanto o outro, através da tradução de Signor para Herr, adquiriu numerosas Fig. 1 e variadas relações com os nomes contidos no tema recalcado, mas, por esse motivo,não ficou disponível para a reprodução [consciente]. Seu substituto [para Signor] foi criado como se tivesse havido um deslocamento ao longo da conexão de nomes “Herzegovina e Bósnia’’, sem qualquer consideração ao sentido ou aos limites acústicos das sílabas. Assim, os nomes foram tratados nesse processo como os pictogramas de uma frase destinada a se transformar num enigma figurado (ou rébus). De todo o curso de acontecimentos que por tais caminhos produziu, em vez do nome Signorelli, os nomes substitutos, nenhuma informação foi dada à consciência. À primeira vista parece impossível descobrir qualquer relação entre o tema em que ocorreu o nome Signorelli e o tema recalcado que o precedeu no tempo, salvo por esse retorno das mesmas sílabas (ou melhor, seqüências de letras). Talvez não seja demais assinalar que as condições que os psicólogos presumem ser necessárias para reproduzir e para esquecer, por eles buscadas em certas relações e
  • 10. predisposições, não são incompatíveis com a explicação precedente. Tudo o que fizemos, em certos casos, foi acrescentar um motivo aos fatores reconhecidos desde longa data como capazes de promover o esquecimento de um nome; ademais, elucidamos o mecanismo da ilusão de memória. Também em nosso caso essas predisposições são indispensáveis para possibilitar ao elemento recalcado apoderar-se, por associação, do nome esquecido, arrastando- o consigo para o recalcamento. No caso de outro nome com condições mais favoráveis de reprodução, isso talvez não acontecesse. Com efeito, é provável que o elemento suprimido sempre lute por prevalecer em algum outro lugar, mas só tenha êxito quando depara com condições favoráveis. Em outras ocasiões, a supressão sobrevém sem qualquer perturbação funcional, ou, como podemos dizer com razão, sem qualquer sintoma. As condições necessárias para se esquecer um nome, quando o esquecimento é acompanhado de ilusão de memória, podem ser resumidas da seguinte maneira: (1) certa predisposição para esquecer o nome, (2) um processo de supressão realizado pouco antes, (3) a possibilidade de se estabelecer uma associação externa entre o nome em questão e o elemento previamente suprimido. É provável que não devamos superestimar a dificuldade de satisfazer esta última condição, de vez que, levando em conta os requisitos mínimos esperados desse tipo de associação, é possível estabelecê-la na grande maioria dos casos. Entretanto, existe a questão maisprofunda da saber se tal associação externa pode realmente ser condição suficiente para que o elemento recalcado perturbe a reprodução do nome perdido - se não haveria necessidade de alguma ligação mais íntima entre os dois temas. Numa consideração superficial, tenderíamos a rejeitar esta última exigência e a aceitar como suficiente a contigüidade temporal entre ambos, mesmo com conteúdos completamente diferentes. Numa investigação aprofundada, porém, descobre-se com freqüência cada vez maior que os dois elementos enlaçados por uma associação externa (o elemento recalcado e o novo) possuem também alguma ligação de conteúdo; com efeito, tal ligação é demonstrável no exemplo de Signorelli. O valor do conhecimento que adquirimos ao analisar o exemplo de Signorelli depende, é claro, de querermos declará-lo um caso típico ou uma ocorrência isolada. Devo pois afirmar que o esquecimento de nomes, acompanhado por uma ilusão de memória [Epinnerungstänschung], ocorre com freqüência incomum tal como o esclarecemos no caso de Signorelli. Quase todas as vezes em que pude observar esse fenômeno em mim mesmo, pude também explicá-lo da maneira descrita acima, ou seja, como motivado pelo recalcamento. Devo ainda chamar a atenção para outra consideração que confirma a natureza típica de nossa análise. Penso não haver justificativa para se fazer uma separação teórica entre os casos em que o esquecimento de nomes é acompanhado por ilusão de memória e os outros em que não ocorrem nomes substitutos incorretos. Esses nomes substitutos surgem espontaneamente em alguns casos; noutros, nos quais não afloraram espontaneamente, pode-se obrigá-los a emergir mediante um
  • 11. esforço da atenção, e eles exibem então com o elemento recalcado e com o nome ausente a mesma relação que teriam caso tivessem aparecido espontaneamente. Dois fatores parecem decisivos para trazer à consciência os nomes substitutos: primeiro, o esforço da atenção e, segundo, uma condição interna ligada ao material psíquico. Poderíamos buscar esta última na maior ou menor facilidade com que se estabelece a necessária associação externa entre os dois elementos. Assim, boa parte dos casos de esquecimento de nomes sem ilusão de memória pode ser acrescentada aos casos em que se formam nomes substitutos, aosquais se aplica o mecanismo do exemplo de Signorelli. No entanto, certamente não ousarei afirmar que todos os casos de esquecimento de nomes devem ser classificados no mesmo grupo. Não há dúvida de que existem exemplos muito mais simples. Penso que teremos enunciado os fatos com suficiente cautela se afirmarmos: junto aos casos simples de esquecimento de nomes próprios, existe também um tipo de esquecimento motivado pelo recalque. CAPÍTULO II - O ESQUECIMENTO DE PALAVRAS ESTRANGEIRAS O vocabulário corrente de nossa própria língua, quando confinado às dimensões do uso normal, parece protegido contra o esquecimento, Notoriamente, o mesmo não acontece com o vocabulário de uma língua estrangeira. A predisposição para esquecê-la estende-se a todas as partes da fala, e um primeiro estágio de perturbação funcional revela-se na medida desigual com que dispomos do vocabulário estrangeiro, conforme nosso estado geral de saúde e o grau de nosso cansaço. Numa série de casos, esse tipo de esquecimento exibe o mesmo mecanismo que nos foi revelado pelo exemplo de Signorelli. Para provar isso, apresentarei uma única análise, mas que se distingue por algumas características úteis: trata-se do esquecimento de uma palavra que não era um substantivo numa citação latina. Peço permissão para fazer um relato amplo e explícito desse pequeno incidente.
  • 12. No verão passado - também durante uma viagem de férias -. renovei meu contato com um jovem de formação acadêmica, que logo constatei estar familiarizado com algumas de minhas publicações psicológicas. Nossa conversa recaiu - já não me lembro como - sobre a situação social da raça a que ambos pertencemos, e ele, impelido pela ambição, passou a lamentar-se por sua geração estar condenada à atrofia (segundo sua expressão), não podendo desenvolver seus talentos ou satisfazer suas necessidades. Concluiu seu discurso, de tom apaixonado, com o célebre verso de Virgílio em que ainfeliz Dido confia à posteridade sua vingança de Enéias: “Exoriare…” Melhor dizendo, ele quis concluí-lo desse modo, pois não conseguiu fazer a citação e tentou esconder uma evidente lacuna em sua lembrança trocando a ordem das palavras: “Exoriar(e) ex nostris ossibus ultor.’’ Por fim, disse, irritado: “Por favor, não me faça essa cara tão zombeteira, como se se estivesse comprazendo com meu embaraço, mas antes me ajude! Falta alguma coisa no verso. Como é mesmo que diz, completo?” “Ajudarei com prazer”, respondi, e dei-lhe a citação correta: “Exoriar(e) ALIQUIS nostris ex ossibus ultor.” “Que tolice, esquecer essa palavra! Por falar nisso, o senhor diz que nunca se esquece nada sem uma razão. Gostaria muito de saber como foi que esqueci esse pronome indefinido, ‘aliquis‘.” Aceitei o desafio prontamente, na esperança de conseguir uma contribuição para minha coleção. Disse-lhe, pois: -Isso não nos deve tomar muito tempo. Só tenho que lhe pedir que me diga, sinceramente e sem nenhuma crítica, tudo o que lhe ocorre enquanto estiver dirigindo, sem nenhuma intenção definida, sua atenção para a palavra esquecida. -“Certo; então me ocorre a idéia ridícula de dividir a palavra assim: a e liquis.” -O que quer dizer isso? -“Não sei.” - E o que mais lhe ocorre? - “Isso continua assim: Reliquien [relíquias], liquefazer, fluidez, fluido. O senhor já descobriu alguma coisa?” -Não, ainda não. Mas continue. -“Estou pensando” - prosseguiu ele com um sorriso irônico - “em Simão de Trento, cujas relíquias vi há dois anos numa igreja de Trento. Estou pensando na acusação de sacrifícios de sangue que agora está sendo lançada de novo contra os judeus, e no livro de Kleinpaul [1892], que vê em todas essas supostas vítimas reencarnações, reedições, por assim dizer, do Salvador.” -Essa idéia não está inteiramente desligada do tema de nossa conversa antes que lhe escapasse da memória a palavra latina. -“Exato. Estou pensando ainda num artigo que li recentemente num jornal italiano. Acho que o título era ‘O que diz Santo Agostinho sobre as mulheres’. Que entende o senhor com
  • 13. isso?” -Estou esperando. -“Pois agora vem algo que por certo não tem nenhuma ligação com o nosso tema.” -Por favor, peço-lhe que se abstenha de qualquer crítica e… -“Sim, já sei. Lembro-me de um magnífico senhor idoso que encontrei numa de minhas viagens na semana passada. Ele era realmente original. Parecia uma enorme ave de rapina. Chamava-se Benedito, se isso lhe interessa.” -Bem, pelo menos temos uma seqüência de santos e padres da Igreja: São Simão, Santo Agostinho, São Benedito. Acho que havia um padre da Igreja chamado Orígenes. Além disso, três desses nomes são também prenomes, como Paul [Paulo] em Kleinpaul. -“Agora o que me ocorre é São Januário e o milagre de seu sangue - parece que meus pensamentos avançam mecanicamente.” -Deixe estar; São Januário e Santo Agostinho têm a ver, ambos, com o calendário. Mas que tal me ajudar a lembrar do milagre do sangue? -“O senhor com certeza já ouviu falar nisso! O sangue de São Januário fica guardado num pequeno frasco, numa igreja de Nápoles, e num determinado dia santo ele se liquefaz milagrosamente. O povo dá muita importância a esse milagre e fica muito agitado quando há algum atraso, como aconteceu, certa vez, na época em que os franceses ocupavam a cidade. Então, o general comandante - ou será que estou enganado? será que foi Garibaldi? - chamou o padre de lado e, com um gesto inequívoco na direção dos soldados a postos do lado de fora, deu-lhe a entender que esperava que o milagre acontecesse bem depressa. E, de fato, o milagre ocorreu…” -Bem, continue. Por que está hesitando? -“É que agora realmente me ocorreu uma coisa… mas é íntima demais para ser comunicada… Além disso, não vejo nenhuma ligação nem qualquer necessidade de contá-lo”. -Pode deixar a ligação por minha conta. É claro que não posso forçá-lo a falar sobre uma coisa que lhe seja desagradável; mas então não queira saber de mim como foi que se esqueceu da palavra aliquis. -“Realmente? O senhor acha? Pois bem, é que de repente pensei numa dama de quem eu poderia receber uma notícia que seria bastante desagradável para nós dois.” -Que as regras dela não vieram? -“Como conseguiu adivinhar isso?” -Já não é difícil. Você preparou bem o terreno. Pense nos santos do calendário, no sangue que começa a fluir num dia determinado, na perturbação quando esse acontecimento não se dá, na clara ameaça de que o milagre tem que se realizar, se não… Na verdade, você usou o milagre de São Januário para criar uma esplêndida alusão às regras das mulheres.
  • 14. -“Sem me dar conta disso. E o senhor realmente acha que foi essa expectativa angustiada que me deixou impossibilitado de reproduzir uma palavra tão insignificante como aliquis?” -Parece-me inegável. Basta lembrar sua divisão em a-liquis, e suas associações: relíquias, liquefazer, fluido. São Simão foi sacrificado quando criança; devo continuar, e mostrar como ele entra nesse contexto? O senhor pensou nele partindo do tema das relíquias. -‘’Não, prefiro que não faça isso. Espero que o senhor não leve muito a sério esses meus pensamentos, se é que realmente os tive. Em troca, quero confessar que a dama é italiana e que estive em Nápoles com ela. Mas será que tudo isso não é apenas obra do acaso?” -Tenho que deixar a seu critério decidir se todas essas relações podem ser explicadas pela suposição de que são obra do acaso. Posso dizer-lhe, no entanto, que qualquer caso semelhante que você queira analisar irá levá-lo a “acasos” igualmente notáveis. Tenho diversas razões para dar valor a essa pequena análise e sou grato a meu ex- companheiro de viagem por ter-me presenteado. Em primeiro lugar, porque, nesse caso, pude recorrer a uma fonte que habitualmente me é negada. Para os exemplos aqui reunidos de perturbações de uma função psíquica na vida cotidiana, tenho de recorrer principalmente à auto- observação. Empenho-me em evitar o material muito mais rico fornecido por meus pacientes neuróticos, já que, de outro modo, poder-se-ia objetar que os fenômenos em questão são meras conseqüências e manifestações da neurose. Por isso, é particularmente valiosopara meus objetivos que uma outra pessoa que não sofra de doença nervosa se ofereça como objeto de tal investigação. Essa análise é significativa em outro aspecto: ela esclarece o caso do esquecimento de uma palavra sem que apareça um substituto na memória. Confirma, portanto, minha afirmação anterior [em [1]] de que o surgimento ou não-surgimento de substitutos incorretos na memória não pode ser usado como base para qualquer distinção radical. Entretanto, a grande importância do exemplo do aliquis reside em outro dos aspectos em que ele difere do caso de Signorelli. Neste último, a reprodução do nome foi perturbada pelo efeito prolongado de uma seqüência de pensamentos iniciada e interrompida pouco antes, mas cujo conteúdo não tinha nenhuma relação clara com o novo tema em que se incluía o nome de Signorelli. A contigüidade temporal forneceu a única relação entre o tema recalcado e o temado nome esquecido, mas isso bastou para que eles fossem concatenados numa associação externa. Por outro lado, no exemplo do aliquis, nada indica a existência de um tema assim, recalcado e independente, que tivesse ocupado pouco antes o pensamento consciente e deixado seus ecos numa perturbação. Nesse exemplo, a reprodução foi perturbada em virtude da própria natureza do tema abordado pela citação, por erguer-se inconscientemente um protesto contra a idéia desejante nela expressa. A situação dever ser interpretada da seguinte maneira: o falante vinha deplorando o fato de a geração atual de seu povo estar privada de seus plenos direitos; uma nova geração - profetizou ele, como Dido - haveria de vingar-se dos
  • 15. opressores. Nisso ele expressara seu desejo de ter descendentes. Nesse momento intrometeu- se um pensamento contraditório: “Você realmente deseja descendentes com tanta intensidade? Isso não é verdade. Quanto não lhe seria embaraçoso receber agora a notícia de que espera descen-dentes do lugar que você sabe? Não: nada de descendentes… por mais que precisemos deles para a vingança.” Essa contradição então se afirma exatamente pelos mesmos meios que no exemplo de Signorelli - estabelecendo uma associação externa entre um de seus elementos de representação e um dos elementos do desejo repudiado; e dessa vez, de fato, ela o faz de maneira extremamente arbitrária, valendo-se de uma via associativa indireta que tem toda a aparência de artificialidade. Uma segunda coincidência essencial entre esse caso e o exemplo de Signorelli está em que a contradição se enraíza em fontes recalcadas e decorre de pensamentos que acarretariam um desvio da atenção. Isto é o que tenho a dizer sobre as diferenças e a afinidade interna entre esses dois modelos típicos do esquecimento de palavras. Ficamos conhecendo um segundo mecanismo do esquecimento - a perturbação de um pensamento por uma contradição interna proveniente do recalcado. Dentre os dois processos, penso ser este o mais fácil de se entender; e tornaremos a encontrá-lo várias vezes no decorrer desta discussão.
  • 16. CAPÍTULO III - O ESQUECIMENTO DE NOMES E SEQÜÊNCIAS DE PALAVRAS Observações como as anteriores [Capítulo II] sobre o processo de esquecimento de parte de uma seqüência de palavras numa língua estrangeira despertam nossa curiosidade de saber se o esquecimento de seqüências de palavras em nossa própria língua exige uma explicação essencialmente diversa. Com efeito, não costumamos surpreender-nos quando uma fórmula ou um poema sabidos de cor só conseguem ser reproduzidos sem fidelidade depois de algum tempo, com alterações e lacunas. Entretanto, de vez que esse esquecimento não atua uniformemente sobre a totalidade do que foi aprendido, parecendo, ao contrário desarticular partes isoladas, talvez valha a pena submeter à investigação analítica alguns exemplos de tal reprodução falha. Conversando comigo, um colega mais jovem disse achar provável que o esquecimento de poemas em nossa própria língua bem poderia ter motivos semelhantes aos do esquecimento de elementos singulares de uma seqüência de palavras em língua estrangeira. Ao mesmo tempo, ele se ofereceu para ser objeto de uma experiência. Perguntei-lhe com que poema gostaria de fazer o teste, e ele escolheu “Die Braut von Korinth”, poema de que gostava muito e do qual acreditava saber pelo menos algumas estrofes de cor. No começo da reprodução ele foi tomado de uma incerteza realmente notável. “O texto é ‘Viajando de Corinto para Atenas’”, perguntou, “ou ‘Viajando para Corinto desde Atenas’?” Também eu hesitei por um momento, até observar, rindo, que o título do poema, “A Noiva de Corinto”, não deixava nenhuma dúvida sobre a direção em que viajava o rapaz. A reprodução da primeira estrofe sobreveio então sem dificuldade ou, pelo menos, sem qualquer falsificação marcante. Por algum tempo meu colega pareceu buscar o primeiro verso da segunda estrofe; logo continuou, recitando: Aber wird er auch willkommen scheinen, Jetzt, wo jeder Tag was Neues bringt? Denn er ist noch Heide mit den Seinen
  • 17. Und sie sind Christen und - getauft. Antes que ele chegasse a esse ponto, eu já estranhara, aguçando os ouvidos, e uma vez terminado o último verso, ambos concordamos em que alguma distorção havia ocorrido. Mas, como não conseguimos corrigi-la, corremos à biblioteca para consultar os poemas de Goethe e descobrimos, surpresos, que o segundo verso da estrofe tinha um teor completamente diferente, que fora, por assim dizer, expulso da memória do meu colega e substituído por algo aparentemente estranho. A versão correta dizia: Aber wird er auch willkommen scheinen, Wenn er teuer nicht die Gunst erkauft? “Erkauft” rima com “getauft” [“batizado” no quarto verso], e pareceu-me curioso que a constelação “pagão”, “cristão”, e “batizado” o tivesse ajudado tão pouco a recompor o texto. “Você pode me explicar”, perguntei a meu colega, “como foi que eliminou tão completamente um verso de um poema que diz conhecer tão bem, e será que tem alguma idéia do contexto de onde retirou o substituto?” Ele pôde dar uma explicação, embora, obviamente, com alguma relutância. “O verso ‘Jetzt, wo jeder Tag was Neues bringt’ me parece familiar; devo ter usado essas palavras há pouco tempo ao me referir a minha prática profissional, com cuja prosperidade, como o senhor sabe, estou agora muito satisfeito. Mas como se encaixou aí essa frase? Poderia indicar uma relação. Evidentemente, o verso ‘Wenn er teuer nicht die Gunst erkauft’ me desagradou. Ele se relaciona com uma proposta de casamento que foi rejeitada da primeira vez e que, tendo em vista a grande melhoria em minha situação material, penso agora em repetir. Não lhe posso dizer mais nada, mas, se for aceito agora, por certo não me será agradável pensar que, tanto antes quanto hoje, uma espécie de cálculo pesou na balança." Isso me pareceu esclarecedor, mesmo sem que eu pudesse conhecer maiores detalhes. Continuei, porém, com minhas perguntas: “De qualquer modo, como foi que você e seus assuntos particulares se mesclaram com o texto da ‘Noiva de Corinto’? Será que existem em seu caso diferenças de credo religioso como as que desempenham um papel importante no poema?” (Keimt ein Glaube neu, Wird oft Lieb’ und Treu Wie ein böses Unkraut ausgerauft.) Errei na suposição, mas foi curioso observar como uma única pergunta bem-dirigida deu-lhe uma súbita perspicácia, de modo que ele pôde dar como resposta algo de que
  • 18. certamente não tinha conhecimento até então. Lançou-me um olhar aflito e contrariado, murmurando para si uma passagem posterior do poema. Sieh sie an genau! Morgen ist sie grau. e acrescentou resumidamente: “Ela é um pouco mais velha do que eu.” Para evitar magoá-lo mais, interrompi a indagação. A explicação pareceu-me suficiente. Mas foi sem dúvida surpreendente que a tentativa de localizar a causa de uma falha inofensiva na memória esbarrasse em assuntos tão remotos e íntimos da vida particular do sujeito, investidos de um afeto tão penoso. Eis aqui outro exemplo, fornecido por Jung (1907, 64), em que há esquecimento de uma seqüência de palavra num poema famoso. Citarei as palavras do próprio autor. “Um homem tentava recitar o famoso poema que começa com ‘Ein Fichtenbaum steht einsam.’ No verso que começa por ‘Ihn schläfert‘,ele estancou irremediavelmente, pois se esquecera por completo das palavras ‘mit weisser Decke [com um lençol branco]’. O esquecimento de algo num verso tão conhecido pareceu-me surpreendente, e por isso o fiz reproduzir o que lhe ocorria em relação a ‘mit weisser Decke‘. Surgiu-lhe a seguinte série de associações: ‘Um lençol branco faz pensar numa mortalha - um lençol de linho para se cobrir um morto’ - (pausa) - ‘agora me ocorre um amigo íntimo - seu irmão teve há pouco morte repentina - dizem que morreu de um ataque cardíaco - ele também era muito corpulento - meu amigo também é corpulento, e já me ocorreu que isso também poderia acontecer com ele - provavelmente, ele faz muito pouco exercício - quando soube da morte de seu irmão, fiquei de repente angustiado com a idéia de que isso também poderia acontecer comigo; é que temos em nossa família uma tendência a engordar, e meu avô também morreu de ataque cardíaco; reparei que também estou gordo demais, e por isso comecei recentemente um regime para emagrecer.’ “Assim,” comenta Jung, “o homem se havia identificado de imediato, inconscientemente, com o pinheiro envolto na mortalha branca.” O próximo exemplo [1] de esquecimento de uma seqüência de palavras, que devo a meu amigo Sándor Ferenczi, de Budapeste, difere dos precedentes por se referir a uma expressão cunhada pelo próprio sujeito, e não a uma frase tomada de um autor. O exemplo também nos apresenta o caso não muito comum em que o esquecimento se põe a serviço de nosso bom senso, quando este ameaça sucumbir a um desejo momentâneo. Por conseguinte, o ato falho adquire uma função útil. Uma vez recobrada nossa sobriedade, damos valor à correção dessa corrente interna, que antes só se pudera exprimir através de uma falha - um esquecimento, uma impotência psíquica.
  • 19. “Numa reunião social alguém citou ‘Tout comprende c’est tout pardonner‘. Comentei que a primeira parte da sentença bastava; o ‘perdoar’ era uma arrogância que deveria ser deixada a Deus e aos sacerdotes. Uma das pessoas presentes achou muito boa essa observação, o que me animou a dizer - provavelmente com a intenção de garantir a opinião favorável do crítico benevolente - que eu pensara recentemente em algo ainda melhor. Mas quando tentei repeti-lo, constatei que me havia escapado. Afastei-me imediatamente do grupo e anotei as associações encobridoras [ou seja, as representações substitutivas]. Primeiro me ocorreram o nome do amigo e o da rua de Budapest que haviam testemunhado o nascimento da idéia que eu estava procurando; a seguir veio o nome do outro amigo, Max, a quem costumamos chamar de Maxi. Isso me levou à palavra ‘máxima’ e à lembrança de que dessa vez (como em meu comentário original) tratava-se de uma variação de uma máxima famosa. Curiosamente, meu pensamento seguinte não foi uma máxima, mas esta frase: ‘Deus criou o homem à sua imagem’, e depois a mesma idéia, ao contrário: ‘O homem criou Deus à sua imagem.’ Ato contínuo, surgiu a lembrança daquilo que eu procurava. Naquela época, na rua Andrássy, meu amigo me dissera: ‘Nada humano me é estranho’, ao que eu retrucara, aludindo às descobertas da psicanálise: ‘Você deveria ir mais longe e admitir que nada animal lhe é estranho.’ “Entretanto, depois de finalmente recordar o que procurava, foi-me ainda menos possível repeti-lo na roda social em que me encontrava. Entre as pessoas presentes estava a jovem esposa do amigo a quem eu relembrara a animalidade do inconsciente, e tive de reconhecer que ela de modo algum estava preparada para acolher essas verdades tão desagradáveis. Meu esquecimento poupou-me uma série de perguntas incômodas por parte dela e uma discussão improfícua. Esse deve ter sido precisamente o motivo de minha ‘amnésia temporária’. “É interessante que me ocorresse como associação encobridora uma frase em que a divindade é rebaixada à condição de uma invenção humana, ao passo que, na frase esquecida, havia uma alusão ao animal no homem. Capitis deminutio [isto é, a privação da condição que se possuía] é, portanto, o elemento comum a ambas. Evidentemente, todo o assunto não passa de uma continuação da cadeia de idéias sobre compreender e perdoar, instigada pela conversa. “Nesse caso, a ocorrência tão rápida daquilo que eu buscava talvez também se tenha devido a minha retirada imediata para um aposento vazio, saindo da roda social em que isso era censurado.” Empreendi desde então várias outras análises de casos de esquecimento ou reprodução errônea de uma seqüência de palavras, e o coincidente resultado dessas investigações inclinou- me a supor que o mecanismo de esquecimento acima demonstrado, nos exemplos do “aliquis” [em [1]] e de “A Noiva de Corinto”, [em [1]] tem validade quase universal. Geralmente é um pouco embaraçoso comunicar essas análises, de vez que, tal como as que acabo de citar, elas levam constantemente a assuntos íntimos e desagradáveis para a pessoa analisada. Por isso não pretendo aumentar o número desse exemplos. O comum a todos esses casos,
  • 20. independentemente do material, é o fato de o esquecido ou distorcido estabelecer uma ligação, por alguma via associativa, com um conteúdo de pensamento inconsciente - um conteúdo de pensamento que é fonte do efeito manifestado no esquecimento. Volto agora ao esquecimento de nomes. Até aqui, não esgotamos o exame nem da casuística nem dos motivos subjacentes. Como esse é exatamente o tipo de ato falho que às vezes observo abundantemente em mim mesmo, não me é difícil apresentar exemplos. Os leves ataques de enxaqueca de que ainda padeço costumam anunciar-se horas antes por um esquecimento de nomes, e, no auge desses ataques, durante os quais não sou forçado a abandonar meu trabalho, é freqüente desaparecerem de minha memória todos os nomes próprios. Ora, são exatamente os casos como o meuque poderiam dar motivos para uma objeção de princípio aos nossos esforços analíticos. Acaso não se deveria concluir dessas observações, necessariamente, que a causa do esquecimento, em particular do esquecimento de nomes, está em distúrbios da circulação e da função cerebrais em geral, e não deveríamos, portanto, poupar-nos a busca de explicações psicológicas para esses fenômenos? De maneira alguma, no meu entender; isso seria confundir o mecanismo de um processo, que é idêntico em todos os casos, com os fatores favorecedores do processo, que são variáveis e não necessários. Em vez de uma discussão detalhada, porém, apresentarei uma analogia para lidar com essa objeção. Suponhamos que eu tenha sido imprudente o bastante para passear de noite num bairro deserto da cidade, onde me hajam assaltado e roubado meu relógio e minha carteira. No posto policial mais próximo, comunico a ocorrência com as seguintes palavras: “Eu estava na rua tal e tal, e lá o isolamento e a escuridão tiraram meu relógio e minha carteira.” Embora, com essa afirmação, eu não dissesse nada de inverídico, o texto de minha comunicação me exporia ao risco de pensarem que não estou muito certo da cabeça. Esse estado de coisas só poderia ser corretamente descrito dizendo que, favorecidos pelo isolamento do lugar e protegidos pela escuridão, malfeitores desconhecidos roubaram meus objetos de valor. Ora, a situação no esquecimento de nomes não tem por que ser diferente; favorecida pelo cansaço, por distúrbios circulatórios e por uma intoxicação, uma força psíquica desconhecida rouba-me o acesso aos nomes próprios pertencentes à minha memória - uma força que, em outros casos, pode ocasionar a mesma falha da memória quando se está com saúde e eficiência plenas. Quando analiso os casos de esquecimento de nomes que observo em mim mesmo, quase sempre descubro que o nome retido se relaciona com um tema que me é de grande importância pessoal e que é capaz de evocar em mim afetos intensos e quase sempre penosos. Segundo a praxe conveniente e louvável da escola de Zurique (Bleuler, Jung, Riklin), também posso formular esse fato da seguinte maneira: o nome perdido tocou num “complexo pessoal” em mim. A relação do nome comigo me é inesperada e em geral se estabelece através de associações superficiais (tais como a ambigüidade verbal ou a homofonia); em termos genéricos,
  • 21. ela pode ser caracterizada como uma relação colateral. Alguns exemplos simples esclarecerão melhor sua natureza: (1)Um paciente pediu que eu lhe recomendasse uma estação de águas na Riviera. Eu conhecia um lugar assim bem perto de Gênova e também me lembrava do nome de um colega alemão que ali trabalhava, mas o nome do lugar em si me escapou, por mais que eu achasse conhecê-lo também. Não me restou outro recurso senão pedir ao paciente que esperasse, enquanto eu consultava apressadamente as mulheres de minha família. “Como é mesmo o nome do lugar perto de Gênova onde o Dr. N. tem seu pequeno sanatório, aquele em que fulana esteve em tratamento por tanto tempo?” “Claro, justamente você é que havia de esquecer esse nome. O lugar se chama Nervi.” Devo admitir que já tenho um bocado de trabalho com os nervos. (2)Outro paciente falava sobre uma estação de veraneio próxima e declarou que, além das duas hospedarias famosas de lá, havia uma terceira relacionada com certa lembrança dele; não tardaria em me dizer o nome. Contestei a existência dessa terceira hospedaria e apelei para o fato de ter passado sete verões ali, donde deveria conhecer o lugar melhor do que ele. Mas, estimulado por minha contradição, ele já se havia lembrado do nome. A hospedaria chamava-se “Hochwartner”. Tive então que ceder e até confessar-lhe que, por sete verões, eu morara bem perto dessa hospedaria cuja existência havia negado. Nesse caso, por que teria eu esquecido tanto o nome quanto a coisa? Creio que foi porque o som desse nome era parecido demais com o de um colega meu, especialista em Viena, e como no caso anterior, tocou em mim no “complexo profissional”. (3)Noutra ocasião, quando estava prestes a comprar uma passagem na estação ferroviária de Reichenhall, não houve meio de me ocorrer o nome da estação principal seguinte, que era perfeitamente familiar e por onde eu já havia passado com muita freqüência. Fui até forçado a procurar o nome no guia dos horários. Era “Rosenheim”. Soube então de imediato em virtude de que associação o nome me havia escapado. Uma hora antes eu visitara minha irmã em sua casa, perto de Reichenhall; como o nome da minha irmã é Rosa, sua casa era também um “Rosenheim” [“lar de Rosa”]. O “complexo familiar” me havia roubado esse nome. (4)Tenho uma multiplicidade de exemplos para ilustrar as atividades francamente bandidescas do “complexo familiar”. Um dia veio a meu consultório um rapaz que era irmão mais moço de uma paciente. Eu o vira inúmeras vezes e costumava referir-me a ele pelo nome de batismo. Depois, quando quis falar sobre sua visita, percebi que havia esquecido seu nome (que eu sabia não ser nada incomum), e não houve meio que me ajudasse a recuperá-lo. Saí então para a rua e, pela leitura dos letreiros sobre as lojas, reconheci seu nome tão logo deparei com ele. A análise do episódio mostrou-me que eu traçara um paralelo entre o visitante e meu próprio irmão, paralelo este que
  • 22. tentava culminar na pergunta recalcada: “Ter-se-ia meu irmão comportado de maneira semelhante nessas mesmas circunstâncias, ou teria ele feito o contrário?” O vínculo externo entre os pensamentos concernentes a minha própria família e à outra foi possibilitado pela situação fortuita de que, em ambos os casos, as mães tinham o mesmo nome: Amalia. Entendi também, posteriormente [nachträglich], os nomes substitutos, Daniel e Franz, que se haviam impostos a mim sem me fornecer nenhum esclarecimento. Estes, bem como Amalia, são nomes da [peça] Die Räuber [Os Ladrões], de Schiller, e foram alvo de uma piada feita por Daniel Spitzer, o “caminhante vienense”. (5)Numa outra ocasião, eu não conseguia achar o nome de um paciente que pertencia a relações da minha juventude. Minha análise seguiu um caminho muito tortuoso antes de fornecer o nome que eu procurava. O paciente expressara um medo de perder a visão, o que despertou a lembrança de um rapaz que ficara cego com um tiro; e, por sua vez, isso se relacionava com a figura de mais outro jovem que se ferira com um tiro. Este último tinha o mesmo sobrenome do primeiro paciente, apesar de não ter com ele nenhum parentesco. Entretanto, só encontrei o nome depois de me conscientizar de minha transferência de uma expectativa angustiada desses dois casos juvenis para uma pessoa da minha própria família. Portanto, meus pensamentos são perpassados por uma corrente contínua de “auto- referência” da qual, em geral, não tenho nenhum indício, mas que se denuncia através desses exemplos de esquecimentos de nomes. É como se eu estivesse obrigado a comparar comigo tudo o que ouço a respeito de outra pessoas; como se meus complexos pessoais fossem postos em alerta todas as vezes que tenho notícia de outra pessoa. É impossível que isso seja uma peculiaridade individual minha; deve conter, antes, uma indicação da maneira como entendemos o “outro” em geral. Tenho razões para supor que, nesse aspecto, as outras pessoas sejam bem parecidas comigo. O mais belo desses exemplos foi-me contado por um Sr. Lederer, que passara por essa experiência pessoalmente. Durante sua lua-de-mel em Veneza, ele encontrou um senhor a quem conhecia superficialmente e teve de apresentá-lo à jovem esposa. No entanto, como havia esquecido o nome desse estranho, socorreu-se na primeira vez com um murmúrio ininteligível. Ao esbarrar no cavalheiro pela segunda vez, como era inevitável em Veneza, ele o afastou para um lado e lhe pediu que o tirasse de seu embaraço dizendo-lhe seu nome, que ele lamentava ter esquecido. A resposta do estranho atestou um conhecimento incomum da natureza humana. “Bem posso acreditar que tenha esquecido meu nome. É o mesmo que o seu; Lederer!” Não se pode evitar uma ligeira sensação de desagrado quando se esbarra no próprio nome numa pessoa desconhecida. Há pouco tempo senti isso claramente quando se apresentou em meu consultório um Sr. S. Freud. (Contudo, devo registrar a garantia de um de meus críticos de que, nesse aspecto, seus sentimentos são o oposto dos meus.) (6)Os efeitos produzidos pela “auto-referência” também podem ser vistos no seguinte
  • 23. exemplo relatado por Jung (1907, 52): “Um certo Sr. Y. apaixonou-se infrutiferamente por uma dama que pouco depois se casou com um Sr. X. A partir daí, apesar de conhecer o Sr. X há muito tempo e até manter relações comerciais com ele, o Sr. Y. passou a esquecer seu nome repetidamente, tanto que em várias ocasiões teve de indagar a outras pessoas qual era, quando queria corresponder-se com o Sr. X.” Mas a motivação do esquecimento nesse caso é mais transparente do que nos anteriores, enquadrados na constelação da auto-referência. Aqui, o esquecimento parece ser conseqüência direta da antipatia do Sr. Y. por seu rival mais afortunado; não quer saber nada do rival: “nunca saber de sua existência”. (7)O motivo do esquecimento de um nome também pode ser mais sutil, consistir no que se poderia chamar de um ressentimento “sublimado” contra seu portador. Assim, de Budapest, escreve a Srta. I. von K.: “Formulei para mim uma pequena teoria. Tenho observado que as pessoas com talento para a pintura não têm sensibilidade musical e vice-versa. Faz algum tempo, conversando com alguém a esse respeito, comentei: ‘Até agora minhas observações sempre foram confirmadas, com a exceção de uma única pessoa.’ Quando quis lembrar o nome dessa pessoa, constatei que o havia esquecido irremediavelmente, apesar de saber que seu portador era um de meus amigos mais chegados. Passados alguns dias, ao ouvir por acaso mencionarem o nome, logo entendi que estavam falando do destruidor de minha teoria. O ressentimento que eu nutria inconscientemente contra ele se expressara pelo esquecimento de seu nome, costumeiramente tão familiar para mim.” (8) O caso que se segue, relatado por Ferenczi, mostra uma maneira um pouco diferente de a auto-referência levar ao esquecimento de um nome. Sua análise é particularmente instrutiva pela explicação dada às associações substitutas (como Botticelli e Boltraffio, substitutos de Signorelli [em [1]]). “Uma dama que ouvira falar de psicanálise não conseguia lembrar-se do nome do psiquiatra Jung. “Em vez deste, ocorreram-lhe os seguintes nomes: K1 - (um sobrenome), Wilde, Nietzsche, Hauptmann. “Não lhe forneci o nome e convidei-a a associar livremente o que lhe ocorre em relação a cada um desses nomes. “A partir de K1, ela pensou imediatamente na Sra. K1 - e em como era uma pessoa cerimoniosa e afetada, mas com muito boa aparência para sua idade. ‘Ela não envelhece.’ Como caracterização comum para Wilde e Nietzsche, falou em ‘doença mental’. Depois, disse em tom zombeteiro: ‘Vocês, freudianos, vão continuar procurando as causas da doença mental até vocês
  • 24. mesmos ficarem loucos.’ Depois: ‘Não suporto Wilde e Nietzsche. Não os entendo. Ouvi dizer que ambos eram homossexuais; Wilde se relacionava com gente jovem.’ (Apesar de já ter enunciado nessa frase o nome correto - em húngaro, é verdade -, ela ainda assim não conseguiu lembrá-lo.) “Sobre Hauptmann ocorreu-lhe primeiro ‘Halbe‘ e, depois, ‘Jugend‘; e só então, depois que lhe chamei a atenção para a palavra ‘Jugend‘, foi que ela entendeu que estivera em busca do nome Jung. “Essa dama, que perdera o marido aos trinta e nove anos e não tinha perspectiva de voltar a casar-se, decerto tinha razões suficientes para evitar tudo o que a fizesse lembrar da juventude ou da idade. É digno de nota que as ocorrências encobridoras do nome buscado estivessem exclusivamente associadas com o conteúdo, não havendo associações sonoras.” (9) Eis um exemplo de esquecimento de nome com outra motivação muito sutil, explicado pelo próprio sujeito afetado: “Quando eu fazia uma prova de filosofia como matéria complementar, o examinador interrogou-me sobre a doutrina de Epicuro e, depois disso, perguntou se eu sabia quem a havia retomado em séculos posteriores. Respondi com o nome de Pierre Gassendi, que eu ouvira descreverem como discípulo de Epicuro dois dias antes, num café. Ante a pergunta surpresa sobre como eu sabia disso, respondi atrevidamente que há muito me interessava por Gassendi. A conseqüência foi um magna cum laude [com louvor] no diploma, porém, infelizmente, também uma obstinada tendência posterior a esquecer o nome de Gassendi. Creio que minha consciência pesada é culpada de minha impossibilidade de lembrar esse nome, apesar de todos os meus esforços. É que, na verdade, também naquela ocasião eu não deveria tê-lo sabido.” Para que se avalie a intensidade da aversão de nosso informante à recordação desse episódio do exame, é preciso que se saiba do grande valor que ele confere a seu doutorado e das inúmeras outras coisas às quais este tem que servir de substituto. (10) Intercalo aqui outro exemplo de esquecimento do nome de uma cidade. Talvez não seja tão simples quanto os já citados [em [1] e [2]] mas,para qualquer um que esteja algo familiarizado com essas investigações, parecerá digno de crédito e valioso. O nome de uma cidade da Itália escapou à memória do sujeito em conseqüência de sua grande semelhança fonética com um prenome de mulher a que se ligavam muitas lembranças carregadas de afeto, que sem dúvida não são integralmente relatadas aqui. Sándor Ferenczi, de Budapeste, que observou em si mesmo esse caso de esquecimento, tratou-o da maneira como se analisa um sonho ou uma idéia neurótica - por certo, com toda a razão. “Estive hoje visitando uma família amiga e a conversa se voltou para as cidades do norte da Itália. Alguém observou que elas ainda exibem traços da influência austríaca. Algumas dessas cidades foram mencionadas e também eu quis citar uma delas, mas seu nome não me ocorreu, embora eu soubesse que ali havia passado dois dias muito agradáveis - um fato que não
  • 25. combinava muito com a teoria de Freud sobre o esquecimento. Em vez do nome buscado, as seguintes associações impuseram-se a mim: Capua - Brescia - O Leão de Brescia. “Visualizei esse ‘Leão’ sob a forma de uma estátua de mármore postada diante de mim como um objeto concreto, mas logo reparei que ele se parecia menos com o leão do Monumento à Liberdade em Brescia (que só vi numa ilustração) do que com o outro famoso leão de mármore que vi no monumento aos mortos em Lucerna - o monumento aos guardas suíços tombados nas Tulherias, do qual tenho um réplica em miniatura na minha estante. E então me ocorre finalmente o nome buscado: era Verona. “Ao mesmo tempo, entendi prontamente quem era a culpada dessa minha amnésia. Ninguém senão uma antiga empregada da família de quem eu era convidado nessa ocasião. Seu nome era Veronika (Verona, em húngaro) e eu tinha por ela uma intensa antipatia, por causa de sua fisionomia repulsiva, de sua voz esganiçada e rouca e sua confiança insuportável, a que ela achava ter direito por longo tempo de serviço. Também a maneira tirânica com que, em sua época, ela costumava tratar as crianças da casa me era intolerável. E então compreendi também o sentido das associações substitutas. “Minha associação imediata com Capua foi caput mortuum [cabeça de morto]. Muitas vezes comparei a cabeça de Veronika a uma cabeça de defunto. A palavra húngara ”kapzsi“ (avaro) sem dúvida forneceu mais um determinante para o deslocamento. Descobri também, é claro, as vias associativas muito mais diretas que ligam Capua e Verona como idéias geográficas e como palavras italianas que têm o mesmo ritmo. “O mesmo vale para Brescia, mas também aqui encontram-se vias colaterais entrelaçadas na associação de idéias. “Naquela época minha antipatia era tão violenta que eu achava Veronika decididamente asquerosa, e mais de uma vez manifestei meu assombro de que, apesar disso, ela pudesse ter uma vida amorosa e ser amada por alguém. ‘Beijá-la’, dizia eu, ‘deve provocar náuseas!’ E por certo fazia muito tempo que se poderia vinculá-la à idéia dos guardas suíços tombados. “É muito freqüente se mencionar Brescia, pelo menos aqui na Hungria, não em conexão com o leão, mas com outro animal selvagem. O nome mais odiado neste país, como também no norte da Itália, é o do general Haynau, comumente conhecido como a ‘Hiena de Brescia‘. Assim, um fio de meu pensamento levava do odiado tirano Haynau, via Brescia, para a cidade de Verona, enquanto o outro levava, através da idéia do animal de voz rouca que freqüenta os túmulos dos mortos (o que contribui para determinar a emergência de um monumento aos mortos), para a cabeça de defunto e a voz desagradável de Veronika, tão grosseiramente insultada por meu inconsciente, pessoa que em sua época agira naquela casa de maneira quase tão tirânica quanto o general austríaco depois das lutas dos húngaros e italianos pela liberdade. “A Lucerna liga-se a idéia do verão que Veronika passou com os patrões nas cercanias
  • 26. da cidade de Lucerna, junto ao lago do mesmo nome. A Guarda Suíça, por sua vez, lembra que ela sabia tiranizar não só as crianças, mas também os adultos da família, e se comprazia [sich gefallen] no papel de ‘Garde-Dame’ [governanta, dama de companhia, literalmente ‘guarda de senhoras’]. “Devo assinalar expressamente que essa minha antipatia por Veronika é - conscientemente - um coisa há muito superada. Desde aquela época, tanto sua aparência quanto suas maneiras mudaram muito, para melhor, e posso tratá-la (embora para isso tenha raras oportunidades) com sentimentos sinceramente amistosos. Como de hábito, meu inconsciente se aferra com mais tenacidade a minhas impressões [anteriores]: ele é ”de efeito posterior" e rancoroso. “As Tulherias são uma alusão a outra pessoa, uma dama francesa idosa que, em muitas ocasiões, realmente ‘guardava‘ as mulheres da casa; era respeitada por todos, jovens e velhos - e sem dúvida um pouco temida também. Por algum tempo fui seu élève [aluno] de conversação em francês. A palavra élève recorda-me ainda que, estando em visita ao cunhado de meu atual anfitrião, no norte da Boêmia, achei muita graça ao saber que os camponeses do lugar chamavam os élèves da escola florestal de ‘Löwen’ [leões]. Também essa lembrança divertida pode ter desempenhado um papel no deslocamento da hiena para o leão.” (11) Também o exemplo seguinte mostra como um complexo pessoal que domine a pessoa num dado momento provoca o esquecimento de um nome com base numa ligação muito remota. “Dois homens, um mais velho e um mais moço, que seis meses antes haviam feito juntos uma viagem à Sicília, trocavam lembranças daqueles dias bonitos e memoráveis. ‘Vejamos’, disse o mais jovem, ‘como se chamava o lugar onde pernoitamos antes de nossa excursão a Selinunte? Calatafimi, não é?’ O mais velho discordou: ‘Não, tenho certeza de que não era isso, mas também esqueci o nome, embora me lembre muito bem de todos os detalhes de nossa estada lá. Basta eu saber que alguém esqueceu um nome para que isso logo me faça esquecê-lo também. [Cf. adiante, em [1]] Quer que procuremos o nome? O único que me ocorre é Caltanisetta, que com certeza não é o correto.’ - ‘Não’, disse o mais jovem, ‘o nome começa com w ou então contém w.’ - ‘Mas não existe w em italiano’, objetou o mais velho. ‘Eu quis dizer v, e só falei w por estar muito acostumado com ele em minha língua.’ O homem mais velho manteve sua objeção ao v. ‘Aliás’, declarou, ‘acho que já esqueci uma porção de nomes sicilianos, e essa é uma boa hora para fazermos algumas experiências. Por exemplo, qual era o nome daquele lugar elevado que na Antigüidade se chamava Enna? Ah, já sei - Castrogiovanni.’ No instante seguinte o homem mais moço recuperou o nome perdido. ‘Castelvetrano’, exclamou, satisfeito por poder apontar o v em que havia insistido. Durante algum tempo, o mais velho não teve nenhuma sensação de reconhecimento, mas depois de ter aceito o nome, coube-lheexplicar
  • 27. por que o havia esquecido ‘Evidentemente’, disse, ‘porque a segunda metade, ”-vetrano“, soa como ”veterano". ‘Sei que não gosto muito de pensar em envelhecer e tenho reações estranhas quando me lembram disso. Por exemplo, recentemente usei os mais curiosos disfarces para acusar um amigo muito estimado de ter perdido a juventude há muito tempo, e isso porque, numa ocasião anterior, em meio às observações mais lisonjeiras a meu respeito, esse amigo havia acrescentado que eu “já não era um homem jovem”. Outro indício de que minha resistência estava voltada contra a segunda metade do nome Castelvetrano é que seu som inicial ressurgiu no nome substituto Caltanisetta.’ ‘E quanto ao próprio nome Caltanisetta?’, perguntou o mais jovem. ‘Esse’, confessou o mais velho, ‘sempre me pareceu ser um apelido carinhoso para uma mulher jovem.’ “Algum tempo depois, acrescentou: ‘Evidentemente, o nome para Enna também era um nome substituto. E agora me ocorre que Castrogiovanni - o nome que se impôs ao primeiro plano com a ajuda de uma racionalização - soa como ”giovane“, jovem, assim como o nome perdido, Castelvetrano, soa como ”veterano“, velho.’ “O homem mais velho acreditou ter assim esclarecido seu esquecimento do nome. Não foram investigados os motivos da mesma falha de memória no mais moço.” Não só os motivos, mas também o mecanismo que rege o esquecimento de nomes merecem nosso interesse. Num grande número de casos um nome é esquecido, não porque ele próprio desperte esses motivos, mas porque - graças à semelhança fonética e à homofonia - ele toca em outro nome contra o qual se voltam esses motivos. Como é compreensível, esse relaxamento das condições facilita extraordinariamente a ocorrência do fenômeno. É o que mostram os seguintes exemplos: (12)Relatado pelo Dr. Eduardo Hitschmann (1913a): “O senhor N. queria dar a alguém o nome da livraria Gilhofer e Ranschburg [de Viena]. Por mais que pensasse, entretanto, só lhe ocorria o nome Ranschburg, embora ele conhecesse muito bem a firma. Voltou para casa meio insatisfeito e achou o assunto suficientemente importante para perguntar a seu irmão (que aparentemente já estava dormindo) qual era a primeira metade do nome. O irmão o forneceu sem hesitação. Nisto ocorreu ao Sr. N. a palavra ‘Gallhof’, como associação a ‘Gillhofer’. Gallhof era o lugar onde, alguns meses antes, ele dera um memorável passeio com uma jovem atraente. Como lembrança, a moça o presenteara com um objeto que trazia a inscrição ‘Recordação da horas felizes em Gallhof [”Gallhoerf Stunden“, literalmente ”horas de Galhof"]’. Dias antes do esquecimento do nome, esse presente fora seriamente danificado, aparentemente de modo acidental, quando N. fechou uma gaveta depressa demais. N. reparou nisso com um certo sentimento de culpa, familiarizado que estava com o sentido dos atos sintomáticos. [Ver Capítulo IX.] Na época, seus sentimentos em relação à jovem eram algo ambivalentes: por certo a amava, mas estava hesitante frente ao desejo dela de se casarem." (13)Relatado pelo Dr. Hanns Sachs: “Ao conversar sobre Gênova e seus arredores, um
  • 28. rapaz quis mencionar o lugar chamado Pegli, mas só com esforço conseguiu lembrar o nome, depois de muito refletir. A caminho de casa, ia meditando sobre o modo desagradável como lhe escapara um nome tão familiar e, ao fazê-lo, foi conduzido a uma palavra de som muito semelhante: Peli. Ele sabia haver uma ilha com esse nome nos Mares do Sul, cujos habitantes ainda conservaram alguns hábitos notáveis. Lera sobre eles recentemente, numa obra de etnologia, e decidira nesse momento usar as informações para apoiar uma hipótese própria. Ocorreu-lhe então que Peli era também o cenário de um romance que ele havia lido com interesse e prazer - o Van Zantens glücklichste Zeit [A Época mais Feliz de Van Zanten], de Laurids Bruun. Os pensamentos que o haviam ocupado quase incessantemente durante o dia centralizavam-se numa carta, recebida naquela mesma manhã, de uma dama que lhe era muito querida. Essa carta o fizera temer que tivesse de renunciar a um encontro marcado. Depois de passar o dia inteiro com um péssimo humor, ele saíra à noite, decidido a não se atormentar mais com esses pensamentos irritantes, e sim a desfrutar, com a maior serenidade possível, da reunião social que tinha à frente e que lhe era de extremo valor. É claro que essa sua resolução poderia ser gravemente posta em risco pela palavra Pegli, por ser tão estreita a sua semelhança sonora com Peli; Peli, por sua vez, por ter adquirido um vínculo pessoal com ele através do interesse etnológico, corporificava não só a ‘época mais feliz’ de Van Zanten, mas também a sua, e portanto também os medos e angústias que ele alimentara o dia inteiro. É característico que essa simples interpretação só lhe chegasse assim que uma segunda carta transformou suas dúvidas na certeza feliz de revê-la em breve.” Se esse exemplo faz lembrar um outro que lhe é, por assim dizer, vizinho, no qual não se conseguia recordar o topônimo Nervi (Exemplo 1 [em [1]]), verifica-se como o duplo sentido de uma palavra pode ser substituído por duas palavras de som semelhante. (14)Ao deflagrar-se a guerra contra a Itália, em 1915, pude fazer em mim mesmo a observação de que toda uma série de nomes de lugares italianos, que de hábito me eram prontamente acessíveis, subtraiu-se de repente de minha memória. Como muitos outros alemães, eu havia criado o hábito de passar parte das minhas férias em solo italiano, e não pude duvidar de que esse maciço esquecimento de nomes era a expressão de uma compreensível animosidade pela Itália, substituindo agora minha predileção anterior. Mas, além desse esquecimento de nomes diretamente motivado, também se identificou uma amnésia indireta com origem na mesma influência. Mostrei também uma tendência a esquecer topônimos não-italianos e, investigando esses incidentes, descobri que tai nomes tinham alguma ligação, por meio de vagas semelhanças de som, com os nomes inimigos proscritos. Assim, um dia me atormentei tentando lembrar o nome da cidade de Bisenz, na Morávia. Quando ele finalmente me ocorreu, reconheci de imediato que esse esquecimento devia ser posto na conta do Palazzo Bisenzi, em Orvieto. O Hotel Belle Arti, onde eu me hospedara em todas as minhas visitas a Orvieto, situa-se
  • 29. nesse “palazzo”. As lembranças mais preciosas, é claro, tinham sido as mais prejudicadas pela mudança em minha atitude emocional. Alguns exemplos ajudarão também a nos lembrar da diversidade de propósito a cujo serviço pode colocar-se o ato falho do esquecimento de nomes. (15)Relatado por A. J. Storfer (1914): ‘’Certa manhã, uma dama residente em Basiléia recebeu a notícia de que sua amiga de infância, Selma X., de Berlim, então em viagem de lua- de-mel, estava de passagem por Basiléia, mas ali permaneceria apenas um dia; por isso a dama de Basiléia apressou-se a chegar logo ao hotel. Quando as amigas se separaram, combinaram reencontrar-se à tarde e permanecer juntas até a hora da partida da dama berlinense. “À tarde, a dama de Basiléia esqueceu o encontro marcado. Desconheço os determinantes desse esquecimento, mas, nessa situação (encontro com uma amiga de infância recém-casada), são possíveis diversas constelações típicas capazes de determinar uma inibição contra a repetição do encontro. O ponto de interesse nesse caso está em outro ato falho, que representa uma proteção inconsciente para o primeiro. Na hora em que deveria estar-se reencontrando com a amiga de Berlim, a dama de Basiléia se achava numa roda social em outro lugar. Ali, a conversa recaiu sobre o casamento recente da cantora vienense de ópera de sobrenome Kurz. A dama de Basiléia teceu alguns comentários críticos (!) sobre esse casamento, mas, ao querer referir-se à cantora pelo nome, descobriu com enorme embaraço que não conseguia lembrar-se de seu nome de batismo. (Como se sabe, há uma tendência especial a se mencionar também o prenome, nos casos em que o sobrenome é monossilábico.) A dama de Basiléia irritou-se ainda mais com seu lapso de memória porque já ouvira a Kurz cantar muitas vezes e, comumente, sabia muito bem seu nome (completo). Antes que alguém mencionasse o prenome desaparecido, a conversa tomou outro rumo. “Na noite desse mesmo dia, nossa dama de Basiléia estava entre algumas pessoas que, em parte, eram as mesmas daquela tarde. Por coincidência, a conversa tornou a recair no casamento da cantora vienense e, sem qualquer dificuldade, a dama citou o nome ‘Selma Kurz’. E nesse instante exclamou: ‘Oh! Acabo de me lembrar: esqueci por completo que hoje à tarde tinha um encontro com minha amiga Selma!‘ Uma olhadela no relógio mostrou que a amiga já devia ter partido.” Talvez ainda não estejamos preparados para apreciar esse belo exemplo em todos os seus aspectos. É mais simples o caso seguinte, embora não se tratasse do esquecimento de um nome e sim de uma palavra estrangeira, por um motivo criado pela situação. (Já podemos notar que estamos lidando com os mesmos processos, quer eles se apliquem a nomes próprios, prenomes, palavras estrangeiras ou seqüências de palavras.) Foi o caso de um jovem que esqueceu a palavra inglesa correspondente a “ouro” - que é idêntica à palavra alemã (“Gold”) - para, desse modo, ter oportunidade de praticar uma ação que desejava. (16)Relatado pelo Dr. Hanns Sachs: “Um rapaz travou conhecimento numa pensão com
  • 30. uma moça inglesa que lhe agradou. Na primeira noite após se conhecerem, ele conversava com a moça na língua materna desta, que conhecia razoavelmente bem, e quis empregar a palavra inglês para ‘ouro’. Apesar de seus imensos esforços, o vocábulo não lhe ocorreu. Em vez dele, a palavra francesa or, a latina aurum e a grega chrysos impuseram-se obstinadamente como substitutas, tanto que ele só conseguiu rejeitá-las a muito custo, embora soubesse com certeza que não tinham parentesco algum com a palavra procurada. Por fim, o único caminho que encontrou para se fazer entender foi tocar num anel de ouro na mão da moça, ficando muito envergonhado ao saber por ela que a palavra tão procurada para denotar ouro era exatamente idêntica à alemã, ou seja, ‘gold’. O grande valor desse contato, propiciado pelo esquecimento, não estava meramente na satisfação inobjetável da pulsão de pegar ou tocar - pois para isso existem outras oportunidades avidamente exploradas pelos enamorados -, porém, muito mais, no modo como contribuiu para esclarecer as perspectivas do flerte. O inconsciente da dama, sobretudo se sentisse simpatia pelo homem com quem ela conversava, adivinharia o objetivo erótico do esquecimento, oculto por sua máscara de inocência. A maneira de ela corresponder ao contato e aceitar sua motivação poderia, assim, tornar-se um meio - inconsciente para ambos, mas muito significativo - de chegarem a um entendimento sobre as possibilidades do flerte iniciado pouco antes.” (17)Narro ainda, segundo J. Stärcke (1916), outra observação interessante que concerne ao esquecimento e à recuperação de um nome próprio. Esse caso se distingue pela ligação entre o esquecimento do nome e um equívoco na citação de algumas palavras de um poema, como no exemplo da “Noiva de Corinto” [em [1]]. “Z., um velho jurista e filólogo, contava numa roda como, em seus tempos de estudantes na Alemanha, conhecera um aluno excepcionalmente estúpido, e teve muitas anedotas a contar sobre essa estupidez. Mas não conseguiu lembrar o nome do estudante; achou que começava com W, mas depois reconsiderou essa idéia. Lembrou-se de que esse aluno estúpido mais tarde se tornara comerciante de vinhos. Depois, ao contar outra anedota sobre a estupidez do rapaz, tornou a exprimir seu espanto pelo fato de seu nome não lhe ocorrer, e disse: ‘Ele era tão burro que até hoje não entendo como consegui martelar-lhe o latim na cabeça.’ No momento seguinte, lembrou-se de que o nome procurado terminava em ‘. man‘. Nesse ponto, perguntamos se lhe ocorria algum outro nome terminado em ‘man’ e ele disse: ‘Erdmann‘ [homem da terra].’- ‘Quem é esse?’ - ‘Um outro estudante daquela época.’ - Sua filha, porém, observou que havia também um professor Erdmann. Uma averiguação mais rigorosa revelou que esse professor Erdmann era editor de uma revista e, recentemente, só aceitara publicar em forma abreviada um trabalho apresentado por Z., do qual discordava em parte etc., e Z. ficara bastante aborrecido com isso. (Ademais, descobri posteriormente que, anos antes, Z. provavelmente tivera expectativas de se tornar professor da mesma disciplina agora lecionada pelo professor Erdmann, e também nesse aspecto o nome talvez tivesse tocado num ponto sensível.)
  • 31. “E então, de repente, ocorreu-lhe o nome do estudante estúpido: ‘Lindeman!’ Como já se lembrara de que o nome terminava em ‘man’, ‘Linde [tília]’, era o que permanecera recalcado por mais tempo. Ao se perguntar o que lhe ocorria ao pensar em ‘Linde‘, ele disse a princípio: ‘Absolutamente nada.’ Quando insisti em que sem dúvida lhe ocorreria alguma coisa relacionada com essa palavra, ele respondeu, erguendo os olhos e fazendo um gesto com a mão no ar: ‘Ora, uma tília [‘Linde’] é uma árvore bonita.’ Nada mais lhe ocorreu. Todos ficaram calados e cada um prosseguiu em suas leituras ou outros afazeres, até que, passados alguns momentos, Z. fez a seguinte citação em tom sonhador: Steht er mit festen Gefügigen Knochen Auf der Erde, So reicht er nicht auf Nur mit der Linde Oder der Rebe Sich zu vergleichen. “Dei um grito de triunfo: ‘Aí está o nosso Erdmann [homem da terra]!’ E disse: ‘O homem que ”se ergue sobre a terra", ou seja, o homem da terra ou Erdmann, não é suficientemente grande para se comparar nem com a tília (Lindeman) nem com a videira (o comerciante de vinhos). Em outras palavras, nosso Lindeman, o estudante estúpido que mais tarde se tornou comerciante de vinhos, certamente era um asno, mas nosso Erdmann, é ainda muito mais burro e nem sequer se pode comparar ao Lindeman.’ No inconsciente, essa linguagem irônica ou insultuosa é bastante comum; por isso, pareceu-me que agora se havia encontrado a causa principal do esquecimento do nome. “Perguntei, então, de que poema provinham os versos citados. Z. disse que era um poema de Goethe, que ele achava começar assim: Edel sei der Mensch Hilfreich und gut! e que continha também os versos: Und hebt er sich aufwärts, So spielen mit ihm die Winde.
  • 32. “No dia seguinte, verifiquei esse poema de Goethe e viu-se que o caso era ainda mais belo (apesar de ser também mais complexo) do que parecera a princípio. “(a)Os primeiros versos citados dizem (cf. a citação acima): Steht er mit festen Markigen Knochen. “’Gefügige Knochen [ossos flexíveis]’ seria uma combinação muito estranha, mas não quero ir mais a fundo nesse ponto. “(b)Os versos seguintes dessa estrofe dizem (cf. a citação acima): ...Auf der wohlgegründeten Dauernden Erde, Reicht er nicht auf, Nur mit der Eiche Oder der Rebe Sich zu vergleichen. Portanto, em todo o poema não há menção a tília alguma! A troca de ‘carvalho’ por ‘tília’ (em seu inconsciente) ocorreu apenas para possibilitar o jogo de palavras ‘terra - tília - videira’. “(c)Esse poema se chama ‘Grenzen der Menschheit [Os Limites da Humanidade]’ e compara a onipotência dos deuses com o poder insignificante do homem. Mas o poema que começa por Edel sei der Mensch Hilfreich und gut! é outro e se encontra algumas páginas adiante [no livro]. Seu título é ‘Das Gottliche. [A Natureza Divina]’, e também ele contém pensamentos sobre os deuses e os homens. Como não se examinou a questão mais a fundo, posso no máximo supor que certos pensamentos sobre a vida e a morte, o temporal e o eterno, e a vida frágil e a morte futura do próprio sujeito também tenham desempenhado um papel na gênese desse caso." Em alguns desses exemplos é preciso recorrer a todas as sutilezas da técnica psicanalítica para explicar o esquecimento de um nome. Quem quiser conhecer melhor essa tarefa poderá consultar um artigo de Ernest Jones, de Londres (1911a), já traduzido para o alemão. (18)Ferenczi observou que o esquecimento de nomes também pode aparecer como um
  • 33. sintoma histérico. Nessa situação, ele mostra um mecanismo muito diferente do que é próprio dos atos falhos. A natureza dessa diferença é esclarecida por suas próprias palavras: “Tenho agora em tratamento uma paciente, uma solteirona já envelhecida, a quem deixam de ocorrer os nomes próprios mais usuais e mais conhecidos dela, se bem que, afora isso, sua memória seja boa. No decorrer da análise, ficou claro que mediante esse sintoma ela visa a documentar sua ignorância. Essa exibição ostensiva de sua ignorância, contudo, é, na verdade, uma censura a seus pais, que não lhe permitiram receber instrução superior. Também sua torturante compulsão a fazer limpeza (‘psicose da dona de casa’) provém, em parte, da mesma fonte. Com isso ela quer dizer algo como: ‘Vocês me transformaram numa empregada.’” Eu poderia citar outros exemplos do esquecimento de nomes e levar seu exame muito mais longe, não fosse por querer evitar, neste primeiro estágio, a antecipação de quase todos os pontos de vista destinados à discussão de temas posteriores. Entretanto, talvez possa permitir- me resumir em algumas frases as conclusões extraídas das análises aqui relatadas: O mecanismo do esquecimento de nomes (mais corretamente, de os nomes escaparem da memória, serem temporariamente esquecidos) consisteem que a pretendida reprodução do nome sofre a interferência de uma cadeia de pensamentos estranha, não consciente no momento. Entre o nome assim perturbado e o complexo perturbador existe uma conexão preexistente; ou essa conexão se estabelece, quase sempre de maneiras aparentemente artificiais, através de associações superficiais (externas). Entre os complexos perturbadores, os mais eficazes mostram ser os auto-referentes (ou seja, os complexos pessoal, familiar e profissional). Um nome com mais de um sentido e, portanto, pertencente a mais de um grupo de pensamentos (complexos) é muitas vezes perturbado em sua relação com uma seqüência de pensamentos, em virtude de sua participação em outro complexo mais forte. Entre os motivos para essas interferências destaca-se o propósito de evitar que as lembranças despertem desprazer. Em geral, podem-se distinguir dois tipos principais de esquecimento de nomes: os casos em que o próprio nome toca em algo desagradável e aqueles em que ele se liga a outro nome que tem esse efeito. Assim, os nomes podem ter sua reprodução perturbada por sua própria causa, ou por causa de seus vínculos ou associativos mais próximos ou mais distantes. Um exame dessas proposições gerais nos mostra por que o esquecimento temporário de nomes é, dentre todos os nossos atos falhos, o que se observa com maior freqüência. (19)Estamos, porém, muito longe de haver delineado todas as peculiaridades desse fenômeno. Outro ponto que quero assinalar é que o esquecimento de nomes é altamente contagioso. Numa conversa entre duas pessoas, muitas vezes basta que uma delas mencione ter esquecido tal ou qual nome para que este escape também à memória da outra. Nesses casos de esquecimento induzido, porém, o nome esquecido retorna mais facilmente. Esse
  • 34. esquecimento “coletivo” - a rigor, um fenômeno da psicologia das massas - ainda não se tornou objeto da investigação psicanalítica. Apenas em um caso, mas que é especialmente belo, Reik (1920) pôde dar uma boa explicação para esse curioso fenômeno. “Num pequeno grupo de universitários em que também havia duas estudantes de filosofia, discutiam-se as numerosas questões suscitadas no campo dos estudos religiosos e no da história da civilização pela origemdo cristianismo. Uma das moças que participava da conversa lembrou-se de que, num romance inglês que lera recentemente, encontrara um quadro interessante das múltiplas correntes religiosas que haviam agitado aquela época. Acrescentou que o romance retratava toda a vida de Cristo, desde seu nascimento até sua morte; mas o nome da obra se recusava a ocorrer-lhe. (Sua lembrança visual da capa de livro e da apresentação gráfica do título era ultraclara [ver em [1]].) Três dos homens presentes também afirmaram conhecer o romance e notaram que, curiosamente, tampouco eles eram capazes de reproduzir o nome.” A moça foi a única a se submeter à análise para esclarecer o esquecimento desse nome. O título do livro era Ben-Hur, de Lewis Wallace. As idéias que lhe ocorreram como substitutas foram: “Ecce homo - Homo sum - Quo vadis?”. A própria jovem se apercebeu de haver esquecido o nome “porque ele contém uma expressão que nem eu nem nenhuma outra moça - especialmente na companhia de rapazes - gostamos de usar. À luz da interessantíssima análise, essa explicação assumiu um significado ainda mais profundo. Uma vez feita uma alusão a esse contexto, a tradução de “homo” (homem) adquire também um sentido pouco recomendável. A conclusão de Reik é a seguinte. “A moça tratou a palavra como se, ao pronunciar o título dúbio na presença de rapazes, estivesse reconhecendo desejos que havia rechaçado por lhe serem penosos e incompatíveis com sua personalidade. Em suma: dizer as palavras ‘Ben-Hur’ foi inconscientemente identificado por ela com uma proposta sexual e, por conseguinte, o esquecimento correspondeu ao rechaço dessa tentação inconsciente. Temos razões para supor que processos inconscientes semelhantes tenham determinado o esquecimento dos rapazes. O inconsciente deles apreendeu o sentido real do esquecimento da jovem e, por assim dizer, interpretou-o. O esquecimento dos homens mostra respeito por esse comportamento recatado. (.) É como se sua interlocutora, por seu repentino lapso de memória, tivesse dado um sinal claro que os homens, inconscientemente, entenderam muito bem." Há também [1] um esquecimento sucessivo de nomes em que toda uma cadeia deles é retirada da memória. Quando, na tentativa de reencontrar umnome perdido, buscam-se outros estreitamente ligados a ele, não é raro desaparecerem também esses novos nomes, que deveriam servir de pontos de apoio. Assim, o esquecimento salta de um nome para outro, como que para provar a existência de um obstáculo que não é facilmente superável.
  • 35. CAPÍTULO IV - LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA E LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS Num segundo artigo, publicado na Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie (1899a), pude demonstrar, num ponto inesperado, a natureza tendenciosa do funcionamento de nossa memória. Parti do fato notável de que, nas mais remotas lembranças da infância de uma pessoa, freqüentemente parece preservar-se aquilo que é indiferente e sem importância, ao passo que (amiúde, mas não universalmente), na memória dos adultos, não se encontra nenhum vestígio de impressões importantes, muito intensas e plenas de afeto daquela época. Disso se poderia presumir, já que é sabido que a memória faz uma seleção entre as impressões que lhe são oferecidas, que tal seleção se dá, na infância, com base em princípios inteiramente diferentes dos que vigoram na época da maturidade intelectual. Uma investigação atenta, contudo, mostra que tal suposição é desnecessária. As lembranças indiferentes da infância devem sua existência a um processo de deslocamento: são substitutas, na reprodução [mnêmica], de outras impressões realmente significativas cuja recordação pode desenvolver-se a partir delas através da análise psíquica, mas cuja reprodução direta é impedida por uma resistência. De vez que as lembranças indiferentes devem sua preservação, não a seu próprio conteúdo, mas a um vínculo associativo entre seu conteúdo e outro que está recalcado, elas podem fazer jus ao nome de “lembranças encobridoras” com que foram por mim designadas. No artigo mencionado, apenas tangenciei, sem esgotá-la de modo algum, a multiplicidade dos vínculos e sentidos das lembranças encobridoras. No exemplo que ali analisei detalhadamente, enfatizei sobretudo a peculiaridade da relação temporal entre a lembrança encobridora e o conteúdo encoberto por ela. Naquele exemplo, o conteúdo da lembrança encobridora pertencia a um dos primeiros anos da infância, ao passo que as vivências depensamento por ela substituídas na memória, que haviam permanecido quase inconscientes, correspondiam a épocas posteriores na vida do sujeito. Designei esse tipo de deslocamento de retroativo ou retrocedente. Talvez seja mais freqüente encontrar a relação oposta: uma impressão indiferente de época recente se consolida na memória como lembrança encobridora, apesar de dever esse privilégio apenas a sua ligação com um evento anterior que as resistências impedem de ser diretamente reproduzido. Estas seriam lembranças encobridoras adiantadas ou
  • 36. avançadas. Aqui o essencial de que se ocupa a memória situa-se, na ordem temporal, atrás da lembrança encobridora. Por fim, temos ainda a terceira possibilidade, em que a lembrança encobridora vincula-se à impressão encoberta não só por seu conteúdo, mas também pela contigüidade temporal: estas são as lembranças encobridoras simultâneas ou contíguas. Quanto de nossa reserva mnêmica pertence à categoria das lembranças encobridoras e qual o papel desempenhado por elas nos diferentes processos de pensamento neuróticos são problemas importantes que não abordei em meu artigo anterior, e nem os abordarei aqui. Importa-me apenas enfatizar a identidade entre o esquecimento de nomes próprios seguido de ilusão de memória e a formação das lembranças encobridoras. À primeira vista, as diferenças entre os dois fenômenos são muito mais flagrantes do que as eventuais analogias. O primeiro fenômeno refere-se a nomes próprios; aqui, trata-se de impressões completas, de algo que se vivenciou quer na realidade, quer no pensamento. Ali temos uma falha manifesta da função mnêmica; aqui, é um ato da memória que nos parece estranho. Num, trata-se de uma perturbação momentânea - pois o nome agora esquecido pode ter sido corretamente reproduzido cem vezes antes, e voltará a poder sê-lo de amanhã em diante; noutro, trata-se de uma posse permanente e constante, pois as lembranças indiferentes da infância parecem ter o poder de nos acompanhar durante grande parte de nossa vida. Ou seja, o problema, nesses dois casos, parece ter um enfoque completamente diferente. Num, tem-se o esquecimento, no outro, a retenção, que desperta nossa curiosidade científica. Um estudo mais detalhado revela que, a despeito das diferenças entre os dois fenômenos quanto ao material psíquico e à duração, as coincidências entre ambos predominam em muito. Ambos se referem a falhas no recordar: o que a memória reproduz não é o que deveria ser corretamente reproduzido, mas algo diverso que serve de substituto. No casodo esquecimento de nomes, a lembrança se dá sob a forma de nomes substitutos; o caso da formação de lembranças encobridoras tem por base o esquecimento de outras impressões mais importantes. Em ambos, uma sensação intelectual nos dá notícia da interferência de algum fator perturbador, mas o faz de formas diferentes: no esquecimento de nomes, sabemos que os nomes substitutos são falsos; nas lembranças encobridoras, ficamos surpresos por possuí-las. Se a análise psicológica nos revela agora que a formação substitutiva se produziu da mesma maneira em ambos os casos, por deslocamento ao longo de uma associação superficial, são precisamente as dessemelhanças entre os dois fenômenos, quanto a seu material, duração e ponto focal, que contribuem para aguçar nossa expectativa de havermos descoberto algo importante e de validade universal. E esse universal afirmaria que, quando a função reprodutora falha ou se extravia, isso indica, com muito mais freqüência do que suspeitamos, a interferência de um fator partidarista, de uma tendência que favorece uma lembrança, enquanto se empenha em trabalhar contra outra. [1] O tema das lembranças da infância me parece tão significativo e interessante que eu
  • 37. gostaria de dedicar-lhe mais algumas observações, que vão além dos pontos de vista apresentados até agora. Até que ponto da infância recuam nossas lembranças? Conheço algumas investigações a esse respeito, como as de V. e C. Henri (1897) e de Potwin (1901). Eles mostram que existem grandes diferenças individuais entre as pessoas examinadas: algumas situam suas primeiras lembranças no sexto mês de vida, ao passo que outras nada lembram de sua vida até completarem seis ou mesmo oito anos de idade. Mas a que se prendem essas diferenças na retenção de lembranças da infância, e que significado deve ser-lhes atribuído? Evidentemente, não basta compilar material para responder a essas perguntas por meio de um questionário; falta, além disso, elaborar esse material, e desse processo a pessoa que fornece a informação precisa participar. Em minha opinião, aceitamos com demasiada indiferença o fato da amnésia infantil - isto é, a perda das lembranças dos primeiros anos de vida - e deixamos de encará-lo como um estranho enigma. Esquecemos quão grande são as realizações intelectuais e quão complexos são os impulsos afetivos de que é capaz uma criança de uns quatro anos, e deveríamos ficar atônitos ante o fato de a memória dos adultos, em geral, preservar tão pouco desses processos anímicos, sobretudo já que temos todas as razões para suporque essas mesmas realizações infantis esquecidas não terão resvalado pelo desenvolvimento da pessoa sem deixar marcas, mas terão, antes, exercido uma influência determinante sobre todas as fases posteriores de sua vida. E, malgrado essa eficácia incomparável, foram esquecidas! Isto sugere que existem, para o ato de lembrar (no sentido da reprodução consciente), condições especialíssimas de que não tomamos conhecimento até agora. É perfeitamente possível que o esquecimento da infância nos possa fornecer a chave para o entendimento das amnésias que, segundo nossas descobertas mais recentes, estão na base da formação de todos os sintomas neuróticos. Dentre lembranças infantis conservadas, algumas nos parecem perfeitamente inteligíveis, ao passo que outras parecem estranhas ou incompreensíveis. Não é difícil corrigir alguns erros quanto a ambas as espécies. Quando as lembranças conservadas pela pessoa são submetidas à investigação analítica, é fácil determinar que nada garante sua exatidão. Algumas das imagens mnêmicas certamente são falsificadas, incompletas ou deslocadas no tempo e no espaço. É evidente que não são dignas de crédito declarações das pessoas indagadas, no sentido, por exemplo, de que sua primeira lembrança provém do segundo ano de vida. Além disso, logo se descobrem motivos que tornam compreensíveis a distorção e o deslocamento da experiência vivenciada, mas que, ao mesmo tempo, mostram que esses erros na recordação não podem ser causados simplesmente por uma memória traiçoeira. Forças poderosas de épocas posteriores da vida modelaram a capacidade de lembrar as vivências infantis - provavelmente, as mesmas forças responsáveis por nos termos alienado tanto da compreensão dos anos de nossa infância.