SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 232
Rádio MEC herança de um sonho
Realização
Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto – ACERP
Diretora Presidente Beth Carmona
Diretora Geral de Televisão Rosa Crescente
Diretor Administrativo e Financeiro Haroldo Ribeiro
Diretor Geral da Rádio MEC Orlando Guilhon
Conselho de Administração
Presidente
Eduardo Tadao Takahashi
Conselheiros
Yacyra Peixoto Valentim Meira
Marcio Fortes de Almeida
Jafete Abrahão
Marcus Vinícius Di Flora
Carlos Roberto Tibúrcio de Oliveira
Edição
Organização, edição e texto Liana Milanez
Coordenação editorial Beth Carmona
Coordenação de pesquisa Liara Avellar
Coordenação de produção Joice Pacheco
Projeto gráfico, direção de arte e capa Helio de Almeida e Thereza Almeida
Editoração eletrônica Thereza Almeida
Pesquisa e seleção de depoimentos Luiza Pupo, Yonne Polli, Adriana
Ribeiro (SOARMEC), Renata Mello (SOARMEC)
Pesquisa Iconográfica Renato Rocha, Adriana Ribeiro, Renata Mello
(SOARMEC); Liara Avellar (Rádio MEC), Liana Milanez
Revisão Lázaro Simões Neto
Assistência Flavia Teixeira e Rafaela Lamoglia
Agradecimento especial Profª Drª. Elizabeth Cancelli (historiadora)
Rádio MEC herança de um sonho
Organização e edição Liana Milanez
A ciência vai transformando o mundo.
O paraíso, sonhado pela gente de outras
idades, começa a definir-se aos olhos dos
modernos, com as possibilidades que o
passado apenas imaginava. O homem
culto chegou a voar melhor do que as aves;
nadar melhor do que os peixes; libertou-se
do jugo da distância e do tempo; realiza
em um continente o que concebeu em
outro, alguns momentos antes; ouve a
voz dos que morreram, conservada em
lâminas, com o seu timbre, e as inflexões
da dor e da alegria; imortaliza-se, arqui-
vando a palavra articulada, com todas as
suas características, e as suas formas e seus
movimentos com todas as minúcias; e
enquanto, mágico inesgotável, vai modifi-
cando a terra e lutando contra a fatalidade
da morte fazendo reviver as vozes que ela
extinguiu, as formas que ela decompôs, o
homem não consegue transformar-se a si
mesmo, com igual vertiginosa rapidez.
Roquette-Pinto (Rondônia, 1916)
Introdução
Beth Carmona
1 Antecedentes
Primeiros momentos – uma voz para a ciência
Liana Milanez
2 O Pioneiro
Acabaram de ouvir...
Carlos Drummond de Andrade
Roquette-Pinto: O homem-multidão
Ruy Castro
Um menino muito inquieto
Luiz Carlos Saroldi
3 Da Rádio Sociedade à Rádio MEC
Por ares nunca dantes antenados
Renato Rocha
Depoimentos
Testemunhas da história
4 A presença da música
Rádio MEC – Um centro de difusão da música clássica
Edino Krieger
Depoimentos
A música de concerto segundo seus artífices
Os conjuntos musicais
5 Espaço para todos os gêneros
A MPB na Rádio MEC de Roquette-Pinto
Ricardo Cravo Albin
Depoimentos
Os agentes da Música Popular
Sumário
6 O educativo como missão
Rádio MEC – A mais concretizada
expressão da radiodifusão educativa
Marlene Blois
Depoimentos
Educação e cultura
7 Dramaturgia no rádio
Aprendizado de vida e profissão
Fernanda Montenegro
Depoimentos
Teatro no dial
8 Sucessores de Roquette-Pinto
Uma rádio pública, uma gestão democrática
Orlando Guilhon
Depoimentos
Gestão: da inovação à ditadura e aos novos tempos
Depoimentos
Tempos difíceis, tempos tristes
Depoimentos
A perspectiva de alguns dirigentes
complementos
Cronologia histórica (da Rádio MEC)
Relação dos diretores da Rádio MEC a partir de 1936
Relação de depoimentos de funcionários ao “Amigo Ouvinte”
Bibliografia
Créditos das Imagens
Agradecimentos
Introdução
Beth Carmona
Este livro é parte de um conjunto de ações que
procuramos implantar na Associação de Comunicação
Educativa Roquette-Pinto (Acerp), entidade que con-
grega a Rádio MEC e a TVE Brasil, ao longo dos últimos
quatro anos.
Com esse volume dedicado exclusivamente à his-
tória da Rádio MEC, procuramos resgatar o importante
papel desempenhado pelo rádio como instrumento de
educação e aproximação de comunidades isoladas pelo
interior do país e demonstrar nosso respeito ao passado e
aos princípios defendidos pelo pioneiro Edgard Roquet-
te-Pinto e seus compatriotas.
Saber ler não é um fim. O analfabeto é muitas vezes
homem de bons recursos técnicos. Mas não pode
desenvolve-los porque lhe falta aquele uso do sá-
bio companheiro impresso (...) Pois dará (o Estado),
pelo seu preço de custo, a cada brasileiro, o seu mo-
desto rádio em que ele descalço, até mesmo roto,
esfarrapado, amarelo, mole de doença e de ignorân-
cia, aprenderá, antes de saber ler, que a preguiça é
herança de um sonho  
10   Rádio mec herança de um sonho
quase sempre doença; que é preciso plantar o me-
lhor da colheita para obter maior rendimento; que
ser soldado não é ser escravo e sim receber instrução
e educação, em lugares asseados, dirigidos por pa-
trícios dedicados, fraternalmente, a serviço do País;
que o Brasil não é, de fato, o país mais rico do mun-
do, mas que pode vir a ser, facilmente, se os seus fi-
lhos souberem tirar da terra tudo o que ela pode dar;
que os povos fortes, são hoje, os povos que sabem
aplicar a ciência e a arte em melhorar a vida
.
A convicção contida nessas palavras, os ideais que de-
ram origem à Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1923,
e o desprendimento demonstrado no ato de sua doação
à
sociedade brasileira, estão no cerne da missão que persegui-
mos. A mesma missão que impulsionou o grupo de cientis-
tas, liderados pelo mestre Roquette que, como ele, acredita-
vam que o rádio poderia ser:“a escola dos que não têm ecola...
o jornal de quem não sabe ler; ... o mestre de quem não pode ir
à escola; ... o divertimento gratuito do pobre; ... o animador de
novas esperanças, o consolador dos enfermos e o guia dos sãos
– desde que o realizem com espírito altruísta e elevado”.
Na premissa da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro,
como o próprio nome indicava, estava uma associação de
amigos, um clube de ouvintes dispostos a defender a emis-
sora “fundada com fins exclusivamente científicos, técnicos,
artísticos e de pura educação popular”, como ficou impresso
no primeiro estatuto.
Lembrar as palavras proclamadas pelo criador é opor-
tuno quando se deseja destacar a relevância de um veícu-
lo comprometido com a educação em um sentido amplo:
“Que meio para transformar o homem, em poucos minu-
tos, se o empregarem com alma e coração!”
, dizia Roquette
vislumbrando na nova tecnologia um instrumento legítimo
1. ROQUETTE-PINTO, Ed-
gard, in 50 anos da Teleducação,
Suplemento da Revista Brasileira
de Teleducação, 2. 1975, p. 4.
2. No dia 7 de setembro de 1936,
a Rádio Sociedade do Rio de Ja-
neiro foi doada ao Ministério da
Educação, para que pudesse con-
tinuar com suas atividades exclu-
sivamente educacionais.
3. ROQUETTE-PINTO, Edgar,
in OTRIWANO, Gisela Swetla-
na, “Radiojornalismo no Brasil:
fragmentos de história” – “80
anos de radiojornalismo”, Revista
USP, Dez/jan/fev/ - 2002-2003., p.
77-85.
herança de um sonho   11
para vencer as distâncias levando “o conforto moral da ci-
ência e da arte”.
Seu sucessor na direção da Rádio, Fernando Tude
de Souza, partilhava as mesmas idéias. Em palestra como
paraninfo dos bacharéis em Jornalismo de 1951, da Uni-
versidade do Brasil, ele afirmou:
Num mundo em que mais da metade da popula-
ção não sabe ler ou escrever, é fácil compreender o
papel extraordinário que poderão desempenhar os
instrumentos que a ciência colocou à disposição do
homem. O que precisamos fazer, mesmo com luta
e com sacrifício é não permitir que tais desenvol-
vimentos se transformem em instrumentos para
vantagens de alguns e de exploração das maiorias, é
não permitir que, por medidas drásticas, ou mesmo
sutis certos grupos se apossem dessas armas da de-
mocracia para a apresentação da verdade que não é
verdade ou que é apenas meia verdade.
Como resposta ao gesto altruísta de 1936, que brin-
dou o povo brasileiro com um serviço público de radio-
difusão, cabe-nos a tarefa neste momento de resgatar
essa história com o objetivo de preserva-la às gerações
futuras. Foi a nossa escolha para comemorar os 70 anos
da Rádio MEC e, ao mesmo tempo, os 83 anos da radio-
difusão no Brasil.
Os depoimentos, relatos e material fotográfico que
constituem este documento histórico nos levam a refletir
sobre os caminhos e descaminhos das emissoras públicas
no Brasil, com o olhar voltado ao futuro.
É hora dos “Roquettes” do século 21 também vis-
lumbrarem, nas novas tecnologias digitais, a imensa por-
ta que se abre em benefício da difusão do saber. Nas pri-
meiras décadas do século passado, foi a possibilidade de
12   Rádio mec herança de um sonho
propagação do som que mobilizou os atentos cientistas e
educadores. Nesse início de século, são as possibilidades
de uma maior fruição do conhecimento e da informação
- elementos vitais para o desenvolvimento de crianças,
jovens e adultos.
Antes de criar a Rádio Sociedade, Roquette-Pinto
já sonhava com a democratização do saber. “Meu dese-
jo é divulgar o conhecimento das maravilhas da ciência
moderna nas camadas populares”, declarou um dia a
Humberto de Campos, acrescentando: “Eu quero tirar a
ciência do domínio exclusivista dos sábios para entregá-
la ao povo”. E foi vitorioso ao conseguir convencer seus
pares na Academia Brasileira de Ciências a empreender
o projeto de socialização de conhecimentos aproveitando
os recursos tecnológicos da época.
Mais tarde, nos anos 1950, o mesmo Roquette per-
cebeu o valor da imagem agregada ao áudio e lutou tam-
bém pela implantação de uma televisão educativa. Via
mais uma vez a chance de abrir as portas da ignorância
para o saber.
As páginas seguintes trazem parte dessa história
reconstituída pela memória de seus artífices. São textos
elaborados especificamente para esse livro assim como
depoimentos de funcionários e colaboradores recolhidos
no decorrer dos tempos pelo Informativo Amigo Ouvinte
da Soarmec (Sociedade dos Amigos da Rádio MEC). São
profissionais que atuaram nas mais distintas áreas - téc-
nicos, produtores, locutores, administrativos, diretores e
apresentadores – todos eles personagens do dia-a-dia da
Rádio MEC. Os relatos mostram momentos do percurso
dos 70 anos da Rádio, assim como fragmentos de suas
próprias histórias de vida, suas memórias e realizações e,
mais ainda, sua paixão pela emissora que aprenderam a
respeitar e defender como um bem herdado do criador.
herança de um sonho   13
Um povo que rememora seus heróis cultiva energias ne-
cessárias a seu viver futuro, disse um dia Roquette-Pinto.
Estamos nesse momento rememorando tanto o “herói”
criador quanto a criatura. Viramos o século, chegamos a
um novo milênio e as palavras de Edgard Roquette-Pin-
to transcritas no terceiro parágrafo deste texto ecoam as
mesmas verdades ainda tão reais. Que o rádio continue
e cumpra – sempre - o seu papel estratégico como seme-
ador e produtor de cultura.
Beth Carmona - Jornalista, presidente da Acerp. Foi diretora de Programação da TV Cultura,
diretora de Programação e Produção para América Latina e Ibéria dos canais Discovery Kids
e Animal Planet (Grupo Discovery), diretora de Programação do Disney Channel e Fox Kids,
no Brasil. Presidente do Midiativa (Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes)
14   Rádio mec herança de um sonho
herança de um sonho   15
1
Antecedentes
Os pioneiros do Rádio reunidos em almoço
de homenagem a Edgar Roquette-Pinto no
Hotel Itamaraty, na véspera de sua partida à
Suécia, em junho de 1924. Roquette-Pinto,
(com casaca, segurando a bengala e o chapéu
na mão direita), Henrique Morizze (o mais alto
à esquerda de Roquette) e os companheiros
Catulo da Paixão Cearense, Adalberto Santos,
Edgar Sussekind de Mendonça, Francisco
Lafayette, Dulcidio Pereira, Alirio de Matos,
Juvenil Pereira, Carlos Lacombe, Alberto
Jacobina, Paulo Carneiro, Rui Castro, Carlos
Sussekind de Mendonça, Otto H. Leonardos,
Francisco Venâncio Filho, José Jonots Koff de
Almeida Gomes, Carlos Morize, Jorge Leuzinger,
Hirom Jacques, Cosme Pinto, Elizio Rodrigues
Lima, Paulo Roquette-Pinto.
Primeiros momentos – uma voz para a ciência
Liana Milanez
Crescemos, uns, qual árvore indivisa, levados pela
força de um destino retilíneo, como as palmeiras
crescem; outros, com a vida ramificada pelos em-
puxos ambientes. Pretendemos. Tentamos. Retro-
cedemos. Afinal, caminhamos na diretriz primiti-
vamente escolhida, quando o tempo nos concede
alcançar; crescemos com as lianas.
Roquette-Pinto 1
Para entender um pouco dos homens que fize-
ram a história do rádio naquelas primeiras décadas dos
anos 1900, é preciso pensar sobre um Brasil que florescia
urbanística e culturalmente. Em um Rio de Janeiro, ca-
pital da República, em meio à intensa agitação. A pre-
sença de casas de espetáculos teatrais, projeções cinema-
tográficas, cafés, funcionavam como espaços de grande
efervescência cultural e social.
No meio acadêmico o ritmo era o mesmo. A necessi-
dade de divulgar a ciência ecoava na Academia Brasileira
de Ciências (ABC) e ganhava espaço em jornais, revis-
tas, livros e conferências abertas ao público. Mas isso não
1. ROQUETTE-PINTO, Ed-
gard, Rondônia, 1938, p. 62.
antecedentes   17
18   Rádio mec herança de um sonho
bastava ao grupo de cientistas e acadêmicos liderados
por Henrique Morize, presidente da academia. Era pre-
ciso mais para um país de grandes extensões e muitas
dificuldades. Na visão de Morize, era fundamental “es-
palhar a importância da ciência como fator de prosperi-
dade nacional”.
E é nesse ambiente agitado que, em 20 de abril de
1923, surgiu a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, nas sa-
las da ABC. Era uma ação independente – sem ingerên-
cias governamentais. Um tipo de iniciativa altruísta que
movia um grupo de pessoas lideradas pelo Prof. Edgard
Roquette-Pinto. Era a implantação da primeira emissora
de radiodifusão do País. Projeto que acabou tendo êxi-
to e, em 1º de maio, e por mais de oito décadas, o Rio
de Janeiro era contemplado com as transmissões da Rá-
dio Sociedade do Rio de Janeiro, PR-1-A, primeiro, depois
PRA-A, logo adiante PRA-2, e, mais tarde, Rádio MEC
– AM 800 KHz e FM 98,8 MHz .
Vencida a primeira etapa - colocar a emissora no ar
-, Roquette-Pinto tinha uma segunda batalha a vencer: a
legalização dos serviços de radiodifusão. Era preciso con-
vencer as autoridades a mudar, nas palavras de Roquette,
“um regulamento anacrônico, carranca, retrógrado, infe-
liz, que proibia a prática da T.S.F. (Telefonia Sem Fio)
pelos cidadãos” (Roquette-Pinto, Edgard, in Matheus,
Roberto Ruiz, 1984). Nessa época, a polícia apreendia as
“galenas” que eram denunciadas.
Assim, depois de intensa peregrinação, os pionei-
ros da radiodifusão conquistavam mais uma vitória. Em
20 de agosto, quatro meses depois da criação da Rádio
Sociedade, o presidente Arthur Bernardes autorizava,
oficialmente, as irradiações para fins educativos. O Arti-
go 3º dos Estatutos da “primogênita” confirmava o ide-
al dos criadores: “A Rádio Sociedade fundada com fins
antecedentes   19
exclusivamente científicos, técnicos, artísticos e de pura
educação popular, não se envolverá jamais em nenhum
assunto de natureza profissional, industrial, comercial
ou política”.2
Tudo foi muito bem pensado naqueles idos de 1923.
Para cumprir com os objetivos determinados pelos fun-
dadores – ser um veículo de difusão científica - a rádio
deveria manter, em sua sede, uma biblioteca, sala para
cursos e conferências, laboratório de ensaios científicos
e uma estação de broadcasting, para irradiar conferências,
concertos, assuntos de interesse científico, literário ou ar-
tístico, além da hora legal e o boletim do tempo, serviços
de interesse à comunidade.
Sabiam que lidavam com um público eclético e pre-
cisavam fazer eco de suas irradiações. Até o significado
dos novos termos que a tecnologia introduzia era expli-
cado como, por exemplo, a palavra broadcasting:
“Muitas pessoas andam ainda intrigadas com a signi-
ficação precisa do vocábulo –broadcasting–... É uma
2. Integravam o primeiro Conse-
lho Diretor os sócios Henrique
Morize (presidente), Edgard Ro-
quette-Pinto (secretário), Demó-
crito Lartigau Seabra (tesoureiro),
e os diretores Carlos Guinle, Luiz
Betim Paes Leme, Alvaro Ozorio
de Almeida, Francisco Lafaytte,
Mario de Souza e Angelo M. da
Costa Lima. Como presidente
honorário foi escolhido o Ministro
da Viação e Obras Públicas, Fran-
cisco Sá. Entre os diretores ho-
norários estavam personalidades
ilustres como o francês General
Ferrié, o Prof. Abraham, General
Rondon, Dr. Octavio Mangabei-
ra, Dr. Gabriel Ozorio de Almei-
da, entre outros. (Electron, Ano
I, Número 7. Estatutos da Rádio
Sociedade do Rio de Janeiro).
Exemplar do primeiro Estatuto da Rádio
Sociedade do Rio de Janeiro, que informava no
artigo 3º: “... fundada com fins exclusivamente
científicos, técnicos, artísticos e de pura
educação popular...”
20   Rádio mec herança de um sonho
palavra inglesa formada pela junção de dois vocábu-
los. O verbo – –to cast–- part.presente –casting– -
quer dizer –semear–... (...) –Broad–...por sua vez,
significa –ao largo–...ao longe. De onde –broadcas-
ting– ... semear ao longe, lançar bem ao largo a boa
semente. Como ninguém deve semear a má semen-
te, todo o broadcasting deve ser digno do nome...”,
escreveu Roquette-Pinto no primeiro Electron.
Cabia aos desbravadores da radiodifusão brasileira
formar profissionais para a nova tecnologia de comunica-
ção, que chegava ao Brasil em um clima de expectativa
e euforia muito similar ao vivido mais tarde com a che-
gada da televisão e da internet. O projeto teve êxito e,
na comemoração do seu terceiro aniversário, o arquivo
da Rádio Sociedade já possuía cerca de dez mil docu-
mentos, “alguns do maior valor para a história do rádio
no Brasil”.3
A rádio passou a ser um ponto de encontro da in-
telectualidade nacional e estrangeira. Visitantes ilustres,
como Albert Einstein; Madame Curie; o general Ferrié,
cientista francês e também pioneiro da radiodifusão, que
aperfeiçoou a Telefonia sem Fio (T.S.F.) instalando uma
antena no topo da Torre Eiffel; o crítico e historiador
francês, Paul Hazard; o futurista Filippo Tommaso Ma-
rineti, autor do Manifesto Técnico da Literatura Futurista,
entre outras personalidades do mundo intelectual foram
recebidas por Roquette-Pinto e sua equipe. Durante a
visita, Einstein manifestou publicamente suas impres-
sões sobre aquela rádio:
Após minha visita a esta Rádio Sociedade, não posso
deixar demais uma vez admirar os esplêndidos resul-
tados a que chegou a ciência aliada à técnica, permi-
tindo aos que vivem isolados os melhores frutos da
3. In MASSARANI, Luisa, 1998,
A divulgação científica no Rio de Ja-
neiro: algumas reflexões sobre a déca-
da de 20. Dissertação de mestrado,
Ciência da Informação, IBICT e
Escola de Comunicação UFRJ.
http://www.cciencia.ufrj.br/Pu-
blicacoes/Dissertacoes/Massara-
ni_tese.pdf.
antecedentes   21
civilização. É verdade que o livro também poderia
fazer e o tem feito; mas não com a simplicidade e se-
gurança de uma exposição cuidada e ouvida de viva
voz. O livro tem que ser escolhido pelo leitor, o que
por vezes traz dificuldades. Na cultura levada pela
radiotelefonia, desde que sejam pessoas autorizadas
as que se encarreguem das divulgações, quem ouve
recebe além de uma escolha judiciosa, opiniões pes-
soais e comentários que aplainam os caminhos e fa-
cilitam a compreensão: esta é a grande obra da Rádio
Sociedade. (Revista Carioca, 13/05/1948, p. 37)
Exemplar da segunda edição do livro Rondônia,
autografado por Roquette-Pinto, para a Rádio
Sociedade, em 7 de setembro de 1923: “À Rádio
Sociedade, pela grandeza do Brasil”
22   Rádio mec herança de um sonho
Dois anos depois da criação da Rádio Sociedade, em
reunião realizada no dia 29 de abril, os integrantes da Aca-
demia Brasileira de Ciências confirmavam o caráter de di-
vulgação científica da emissora. Na ata ficou registrado a
grande obra de educação e de vulgarização científica que vem
realizando essa instituição nascida no seio da Academia.
Da mesma forma como iniciou, permaneceu até sua
doação ao Ministério da Educação, em 1936, mantida por
um grupo de sócios colaboradores. A participação do go-
verno, nessa primeira fase do rádio no Brasil foi bastante
passiva, conforme observou o professor e pesquisador
Louk de la Rive Box, em sua tese de doutorado Organi-
zation of Educational Broadcasting in Brazil. (BOX, Louk
de la Rive, 1973)4
Estratégias de aproximação com o público
Além da transmissão pelas ondas sonoras, a rádio usou
publicações impressas como estratégia para chegar a um
público maior. Seguia o contexto da época, que conso-
lidou a década de 1920 como uma fase de grande difu-
são científica no País. Era o sonho de chegar longe e em
tempo real que se prenunciava e foi nesse cenário que
nasceu o embrião da atual Rádio MEC.
Como sua parceira impressa, foi lançada, quase si-
multaneamente, a Rádio – Revista de divulgação científica
geral especialmente consagrada a rádiocultura. Com 48 pá-
ginas, bimensal, era o órgão oficial da Rádio Sociedade.
Dirigida por Roquette-Pinto e administrada por Carlos
Sussekind de Mendonça, a Rádio teve seu primeiro nú-
mero em 15 de outubro de 1923. Essa edição trazia arti-
gos técnicos sobre radiotelegrafia, questões da legislação
brasileira que impediam o desenvolvimento da radiodi-
4. Ibid. 76. “In other words, the
government’s part in the develop-
ment of this aspect of broadcast-
ing appears to have been a rather
passive one. It allowed its stations
to be used (or leased) by two com-
mercial grupos; the ecucational
broadcasters had already acquired
their own stations”.
antecedentes   23
fusão no país, entre outros assuntos internacionais liga-
dos ao rádio.
No segundo número, a revista dedicou seu edito-
rial para responder às reações negativas geradas pelo nú-
mero 1, composto basicamente de artigos técnicos sobre
o rádio. O editorial abria com o contraponto “Rádio de
mais... rádio de menos...”, para justificar as impressões
desencontradas que teria provocado. Era uma defesa
contundente sobre os objetivos do rádio: “O nosso fim é
a vulgarização científica geral, a vulgarização de conhe-
cimentos modernos que o povo muitas vezes não apren-
de porque não lhe dizem”. Reconhecia que, até então,
o melhor meio tinha sido o livro: “Mas, hoje, veio o rá-
dio, que é o livro falado e portanto muito mais agradável,
muito mais simples e muito mais acessível”. (Rádio, ano
I, n. 2, 1/nov./1923, In MASSARANI, Luisa, 1998)
Em 1º de janeiro de 1926, surgiu a Electron. Como
a primeira revista, era bimensal e dirigida por Roquet-
te-Pinto. O expediente informava: “Publicação de Rádio
Cultura distribuída aos sócios da Rádio Sociedade do Rio
de Janeiro e mantida exclusivamente pelos seus anun-
ciantes e leitores”. Com 16 páginas e tiragem aproxima-
da de três mil exemplares, era distribuída nos dias 1 e
16. O exemplar avulso era vendido a 600 réis, no Rio de
Janeiro, e 800 réis em outros estados. Na primeira edi-
ção, Electron apresentava-se ao público com um texto de
Edgard Roquette-Pinto, um editorial poético impresso
na primeira página:
Vivo na lasca de carvão, negro e humilde, escravo do
homem a cumprir os seus desejos; vivo na centelha
do céu, que ensinou o fogo à humanidade e rom-
pe a treva das nuvens para clarear o mundo na hora
triste e majestosa das tempestades; vivo na lágrima
24   Rádio mec herança de um sonho
e na gota de leite, num pensamento e num sorriso.
Sou tão pequenino... que quase não existo; e sou tão
grande que faço girar os mundos (...)
Agito-me, sem descanso, para servir a Criação, na
luz, no calor, no som e nas ondas eternas... Os ho-
mens, desvairados, servem-se de mim para empresas
tristes de guerra e maldade; cumpro revoltado esse
mister odioso. Mas a minha ambição maior, o meu
louco desejo, é poder vibrar sempre, livre do mal,
levando pelo infinito os pensamentos bons que num
dia há de transformar as gentes, livrando os escravos
do trabalho e acorrentando as nações na mesma sim-
patia. Sou tão pequeno... ninguém me vê!(...).
Assim cantava Electron, no primeiro minuto do ano
de 1926 quando se preparava, na antena da Rádio
Sociedade do Rio de Janeiro, para desferir o vôo
glorioso pelo espaço. E foi assim que, por descuido,
tudo entregue ao seu delírio, perdeu a onda... e caiu
no cimo dessa página. (ROQUETTE-PINTO, Ed-
gard, Electron, Ano 1, nº 1, 1926).
Em um gesto de respeito aos associados e ouvintes,
o Electron 7 trouxe a íntegra dos “novos” estatutos da Rá-
dio Sociedade. Além de informar sobre a programação que
iria irradiar ao longo da quinzena seguinte, essa edição es-
tava recheada de artigos técnicos, educativos, e, ainda, os
conteúdos dos cursos transmitidos pelas ondas sonoras.
O conteúdo e a escolha dos professores demonstra-
vam preocupação com a qualidade do que era veiculado
pela emissora. Conforme os resumos dos cursos impres-
sos no Electron número 1, a Rádio veiculava aulas de Por-
tuguês, ministradas por José Oiticica (do Colégio Pedro
Dirigida por Roquette-Pinto, a revista bimen-
sal Electron foi lançada em 1º de janeiro de
1926, com tiragem de três mil exemplares. O
número 7 trouxe a íntegra dos estatutos da
Rádio Sociedade
antecedentes   25
II); Inglês, por Luiz Eugenio Moraes Costa (diretor do
Atheneu S. Luiz); Francês, Maria Veloso (o curso era
oferecido pela revista feminina Única); Física, Francisco
Venâncio Filho (também do Colégio Pedro II); Química,
constituía-se de palestras proferidas por Mario Saraiva
(diretor do Instituto de –Chimica– do Rio de Janeiro);
História do Brasil, João Ribeiro (também do Colégio Pe-
dro II); e até um curso de Silvicultura Prática, ministrado
pelo professor de Botânica do Museu Nacional, Alberto
J. de Sampaio.
Completava o quadro, colaboradores como Catullo
da Paixão Cearense, flautista, cantor, violonista e poe-
ta, que se revezava em apresentações variadas como o
Desafio Sertanejo, com João Pernambuco (violonista), o
Conto Sertanejo e ainda Literatura Brasileira. O advogado
Ayres Martins Torres cuidava do programa “Explicação
popular do Código Civil – A lei e sua função social”, o
médico Sebastião Barroso, fazia palestra sobre higiene,
e o professor João Kopke, o papel do vovô em o Quarto
de Hora Infantil.5
A cada noite, no espaço reservado à música, cantores
diferentes acompanhavam as orquestras do Hotel Glória
e da Rádio Sociedade, que se alternavam nas apresenta-
ções. Complementavam a programação musical os reci-
tais de piano, como os dos irmãos José e Octavio Bran-
dão, e os solos de violão com João Pernambuco, entre
outros instrumentistas.
Outro importante papel perseguido pela rádio, já
nesses primeiros tempos, foi o de aproximar o ouvinte
aos acontecimentos culturais restritos às salas de espetá-
culo. Um bom exemplo, foi a transmissão da ópera apre-
sentada pela Companhia Lírica de Paschoal Segreto, en-
cenada no Theatro João Caetano e irradiada no dia 5 de
maio de 1926 às 20h45. 5. Electron, 1/05/1926, p.6
26   Rádio mec herança de um sonho
Diversidade na programação
A grade de programação da Rádio Sociedade era compos-
ta de noticiários, suplemento musical e horário infantil.
Entre os programas fixos destacavam-se o Jornal do Meio
Dia, com notícias extraídas dos jornais da manhã, mais
informações econômicas - abertura das bolsas de algo-
dão, café e açúcar -; Jornal da Tarde, transmitido das 17
às 18h15, com uma interrupção às 17h45 para o Quarto de
hora infantil. Às 22 horas, vinham mais notícias no Jornal
da Noite, com informações recolhidas nos vespertinos,
além de notas econômicas relativas ao fechamento das
bolsas e do câmbio.
Depois de se informar com as notícias do Jornal do
Meio Dia, o ouvinte era brindado com uma faixa especial
denominada Página, composta de temas variados e apre-
sentados em dias pré-determinados. A segunda-feira era
reservada ao esporte, com Página Esportiva; terça-feira,
Página Agronômica; quarta-feira, Página Literária; quin-
ta-feira, Página Infantil; sexta-feira, Página Feminina; e,
sábado, Página Doméstica. No domingo, a programação
iniciava às 15 horas com Música Popular Brasileira.
Como o disco ainda era raridade, apesar de ter che-
gado ao Brasil em 1902, as apresentações musicais eram
feitas ao vivo, diretas do estúdio. Vale reproduzir a progra-
mação do dia 1º de fevereiro de 1926, uma segunda-feira,
quando foi transmitido, entre 20h e 22 horas, o –Concerto
no Estúdio–. Nessa noite, a Orquestra da Rádio Sociedade
apresentou-se acompanhada dos cantores Lucilia Faria e
Ignácio Guimarães, que interpretaram obras de Spialck,
Fietter, Mozart, Gounod, Massenet, Verdi e Francisco
Braga, entre outros compositores. Essas descrições de-
monstram a diversidade da programação, que tinha o in-
tuito de atingir a uma gama variada de ouvintes.
antecedentes   27
Os efeitos da chegada da propaganda
O rádio foi o grande canal de comunicação dos anos 30,
período marcado no país por intenso conflito político:
o golpe de 1930, a revolta constitucionalista de 1932, o
desbaratamento da tentativa do levante comunista de
1935, o “Putsch” integralista e a decretação do Estado
Novo em 1937.
Diante de toda essa movimentação, o rádio não fi-
caria imune. Em 1º de março de 1932, pouco antes da
revolução constitucionalista, o presidente Getúlio Vargas
assinou o decreto-lei que autorizava a utilização de pro-
paganda pelo rádio. Sem levar em consideração os seus
efeitos, esse foi um passo importante para a transforma-
ção do rádio em veículo de comunicação de massa. Como
conseqüência, vieram os anunciantes em busca do gran-
de público.
Consciente da força e do poder do veículo, Getúlio
Vargas soube usufruir suas prerrogativas e, em 1936, criou
a Hora do Brasil. O programa, eminentemente político,
disseminava constantemente os discursos de Vargas e de
outras autoridades do regime, acompanhado da apresenta-
ção de cantores populares, como um atrativo ­motivador.
Em dezembro de 1939, o Estado refinaria seus me-
canismos de controle e censura criando o Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP), dirigido por um dos
mais importantes intelectuais do regime varguista: Lou-
rival Fontes. O DIP tinha o objetivo de difundir o Estado
Novo.Suaorigemeraanterior.SubstituiuoDepartamento
Oficial de Publicidade, criado em 1931, e o posterior De-
partamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC)
de 1934. Já no Estado Novo, no início de 1938, o DPDC
transformou-se no Departamento Nacional de Propagan-
da (DNP), que finalmente deu lugar ao DIP.
28   Rádio mec herança de um sonho
Com a intensificação do trabalho de controle e cen-
sura, a Rádio Sociedade, como outros órgãos de difusão,
passou a receber telegramas com “sugestões” sobre o que
deveria ou não apresentar. A situação agravou-se ainda
com o clima de crise interna e externa alimentado após
a invasão da Polônia pelas tropas alemãs e da posterior
proibição do uso público de línguas estrangeiras, espe-
cialmente as faladas nos países do Eixo: “Comunico vossa
senhoria estão proibidas irradiações gravações músicas canta-
das nas línguas alemã e italiana. Saudações capitão Amílcar
Dutra Menezes, diretor Divisão Rádio – DIP”, esse era o
teor do telegrama recebido em 19 de agosto de 1942, pela
Rádio Sociedade. A Rádio, como outros veículos da época,
foi testemunha da eclosão da 2ª Guerra Mundial.
A doação
Ainda em meados da década de 1930, o inquieto e em-
preendedor Roquette participou da criação da Rádio Es-
cola Municipal do Rio de Janeiro – PRD-5 - vinculada ao
governo do Distrito Federal, atual Rádio Roquette-Pin-
to. A emissora foi ao ar pela primeira vez, em transmissão
experimental, no dia 31 de dezembro de 1933, e inaugu-
rada, oficialmente, em 6 de janeiro do ano seguinte.
Sempre com a idéia fixa para a difusão de conhe-
cimentos em larga escala, Roquette assumiu a direção
do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) em
1936. Foi nesse mesmo ano que precisou se desfazer da
sua Rádio Sociedade. Já não era possível resistir às pres-
sões para cumprir as exigências do Decreto 20.047, de 27
de maio de 19316
, mantendo, ao mesmo tempo, o idealis-
mo de trabalhar exclusivamente pela cultura do povo.
As pressões impostas pelo decreto eram de tal or-
dem, que, para serem atendidas, seria necessário trans-
6. Exigia o aumento de potên-
cia dos transmissores de todas as
emissoras do país.
antecedentes   29
Correspondência do Departamento Nacional
de Propaganda, de 20 de dezembro de 1937,
solicitando que a “Hora do Brasil” fosse
transmitida diretamente dos estúdios da PRA-2
enquanto construíam um estúdio próprio.
30   Rádio mec herança de um sonho
As correspondências oficiais enviadas pelo
Departamento Nacional de Propaganda, foram
rotina durante o Estado Novo, como essa
de 31/10/1983, determinando divulgação do
“catecismo do novo regime”
antecedentes   31
As determinações do Departamento de
Imprensa e Propaganda, dirigido por Lourival
Fontes, chegavam também por telegrama,
como o recebido em 10 de novembro de
1937, comunicando horário de pronuncia-
mento do presidente Getúlio Vargas
A proibição do uso público de línguas estrangei-
ras, principalmente alemão e italiano, durante a
segunda guerra atingiu a programação musical
da Rádio Sociedade, como atesta o telegrama
do DIP.
32   Rádio mec herança de um sonho
formar “aquele centro de ciências, letras e artes, em uma
empresa comercial, exploradora de publicidade”. Os es-
tatutos não permitiam essa reviravolta. Não custa lem-
brar os objetivos de sua criação – “servir modestamente
como instrumento de educação ao povo brasileiro”.
Diante do impasse, restou aos associados cumprir
com o Artigo 20 dos estatutos que determinava, “em caso
de dissolução da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro”, a
transferência de todos os seus bens ao governo. E assim
foi feito. No dia 7 de setembro de 1936, a Rádio Sociedade
mudou de mãos e de nome. Mas com uma condição. A
nova Rádio Ministério da Educação e Cultura deveria con-
tinuar com suas atividades exclusivamente educativas.
No ano seguinte, foi criado o Serviço de Radiodifusão
Educativo (SRE), para operar a PRA-2. Roquette mante-
ve-se à frente da emissora por mais sete anos.
Relatório dirigido por Roquette-Pinto ao Ministro
da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em 1941, in-
formava que a PRA-2 estivera no ar durante aquele ano
2.559 horas e 40 minutos. Sobre a programação, desta-
cava as 112 transmissões externas realizadas em vários
locais, entre eles, a Escola Nacional de Música, Teatro
Municipal, Associação Brasileira de Imprensa e o Palá-
cio Itamarati. Em relação aos programas educativos e
culturais – constituem a atividade normal do SRE. Visam
a ampliação da cultura popular tanto do ponto de vista ar-
tístico quanto informativo no campo de conhecimento, foram
transmitidos 71 no período. Relacionava ainda os progra-
mas extraordinários (efemérides), os noticiosos, cursos,
palestras, além dos Programas culturais em discos - um to-
tal de 411 –, como Revista Musical da Semana, Os Grandes
Intérpretes, Festivais, Recitais, Os mais belos concertos para
piano e orquestra, Os grandes regentes, Óperas, e Intercâmbio
radiofônico. Predominava a música de concerto.
antecedentes   33
Em 11 de março de 1943, assumiria a direção do
SRE, o colaborador de Roquette e também médico, Fer-
nando Tude de Souza. Técnico em Educação do Ministé-
rio da Educação, Tude reunia competências para o cargo.
Fora presidente da Associação Brasileira de Educação,
delegado eleito pela Unesco para membro do Conse-
lho Mundial de Rádio-educativo, tornando-se profundo
conhecedor da radiodifusão. O reconhecimento era pú-
blico. “Fernando Tude de Souza é, na atualidade, um
dos mais positivos valores do broadcasting brasileiro, cujo
renome ultrapassou as nossas fronteiras”, publicava a Re-
vista do Rádio, em 13 de maio de 1948, em reportagem
especial sobre os 25 anos de implantação da primeira rá-
dio no País.
Na entrevista, Tude de Souza foi enfático ao falar
sobre a fidelidade ao antigo projeto de Roquette Pinto:
“O lema de 1923 é, ainda, o lema de 1948. Desde 11 de
março de 1943 que dirijo a Rádio Ministério da Educação
- sucessora da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro” e tudo
tenho feito para não me afastar das normas traçadas pelo
grande brasileiro Roquette-Pinto e seus companheiros
de jornada em 1923–, afirmou o então diretor.
Ao repórter Milton Salles7
, ele anunciou as novida-
des na programação para aquele ano de comemorações do
nascimento da radiodifusão. Com a ampliação do horário
de transmissões, a Rádio Ministério da Educação dedicaria
a maior parte do seu primeiro horário – das 7 às 14 horas
-, para cursos, além de um jornal feito por especialistas e
–música adequada–. As alterações incluíam, ainda, o in-
cremento ao Departamento infanto-juvenil, que passaria
a gerar programas diários voltados à juventude e à infân-
cia. Os microfones da Rádio Ministério estariam abertos a
artistas nacionais e estrangeiros, assim como para progra-
mas culturais entregues a grandes nomes do circuito das
7. Revista do Rádio, A burocra-
cia é a grande inimiga da PRA-2.
13/05/1948, p.16.
34   Rádio mec herança de um sonho
artes. A matéria abordava também as dificuldades enfren-
tadas por uma emissora (estatal) mantida com recursos
escassos. Vale aqui reproduzir a resposta de Tude:
Sou o primeiro a reconhecer que há falhas... Tratei
primeiro da parte material. A tarefa está pratica-
mente vencida. Vou agora cuidar da parte cultural.
Espero convencer as autoridades sobre a urgência
de fornecer os meios para bem utilizar o mais notá-
vel veículo de educação de que dispõe o país no mo-
mento. (Revista do Rádio, A burocracia é a grande
inimiga da PRA-2,1948, p.17)
Como estratégia de sua administração, o novo diretor
prometia uma importante modificação nas diretrizes dos
serviços de rádio educação. Pela primeira vez, o S.R.E.
seria cultural e instrutivo. Segundo ele, “rádio educati-
vo” poderia ser todo o rádio feito no país. Independente
de ter um caráter instrutivo ou de ensino. Dessa forma,
o mais importante é que toda a programação radiofôni-
ca não fosse “deseducativa”, mesmo a transmitida pelas
emissoras puramente comerciais...”.(In PIMENTEL,
Fábio Prado, 2004, p.34)
Cinco anos depois, a promessa havia se cumprido.
Nesse período, ele conseguira adquirir um transmissor
de 25 quilowatts para o canal de ondas curtas, dotar a
estação de dois estúdios modernos, um serviço de gra-
vação, uma biblioteca especializada - a mais completa da
América do Sul -, os departamentos de cursos didáticos,
feminino, infanto-juvenil, e uma discoteca com 12 mil
discos. (CF. Revista Carioca, 13/05/1948, p. 60).
E não parou aí. Com a presença do presidente da
República, General Eurico Gaspar Dutra, foram inaugu-
rados naquele 20 de abril de 1948, o estúdio sinfônico,
antecedentes   35
A música erudita esteve presente desde os
primeiros tempos. A rádio ia para os espaços
públicos como esse concerto da Orquestra
Sinfônica Brasileira, regido pelo maestro
Francisco Mignone, no Museu Nacional, na
Quinta da Boa Vista
36   Rádio mec herança de um sonho
com capacidade para 120 músicos, e as ondas curtas, já
em operação. A solenidade ocupou o novo espaço, com
apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira, regida
pelo maestro Francisco Mignone, e participação especial
da pianista Madalena Tagliaferro entre outros músicos e
cantores líricos.
Duas décadas depois da doação... a tarefa de fazer rádio oficial
Em janeiro de 1956, a Rádio Ministério da Educação e Cul-
tura, então com 20 anos, lançou uma revista que ofere-
cia ao público um panorama de sua programação. Sob o
comando de Fernando Tude de Souza, a iniciativa res-
gatava uma antiga idéia implantada com as publicações
bimensais Rádio (1923) e Electron (1926), substituídas
mais tarde pelos Boletins Informativos, publicados men-
salmente até 1951.
No editorial, Tude de Souza destacava a idéia de
continuidade dos Boletins Informativos, com a ressalva de
que ali estava apenas uma amostra do que a rádio fazia
em “18 horas diárias de irradiação para o Brasil e para o
estrangeiro”. Era mais uma forma de prestação de um
serviço público herdada dos pioneiros. A fidelidade ao
mestre mereceu o destaque transcrito a seguir:
... Quando aqui cheguei, o saudoso Mestre Roquet-
te-Pinto entregou-me a responsabilidade imensa:
continuar-lhe a obra extraordinária. Graças à com-
preensão dos Ministros com que tive a honra de
trabalhar (...) consegui, com os magníficos compa-
nheiros que compõem os quadros do Serviço de Ra-
diodifusão Educativa, manter intacto os ideais dos
que criaram a primeira estação de rádio do Brasil. E
ela se manteve, até aqui, inteiramente dedicada à
antecedentes   37
cultura, fazendo um rádio que representa um esfor-
ço honesto em prol da educação...(Revista da Rádio
Ministério da Educação e Cultura, 1956)
Naquele ano de 1956, o som da rádio chegava a qua-
se todos os “cantos” do mundo. “Enquanto ouvintes de
países distantes aprendem Português através dos nossos
programas didáticos, aqui, nos diversos Estados, milha-
res de alunos acompanham atentamente as aulas desses
mesmos programas, aperfeiçoando o próprio idioma e
aprendendo outros”, afirmou Tude no mesmo editorial.
Admitia a existência de dificuldades: “têm existido e
sempre existirão – a tarefa de fazer rádio oficial não é
fácil”, reconheceu atribuindo o sucesso à dedicação da
equipe. “Quem conta com um grupo tão capaz e tão de-
votado pode encarar o futuro confiante”. (Ibid.)
Com cinco prefixos diferentes, funcionando em
OM (PRA-2) e OC (PRL-2; PRL-3; PRL-4. e PRL-5) a
Rádio Ministério da Educação e Cultura e seu conjunto de
emissoras conquistava o respeito dentro e fora do país.
Sob a direção de Tude de Souza, ganhou contornos mais
populares, com espaços para divulgação da música popu-
lar (brasileira, jazz, folclore, etc), informações agrícolas e
programas voltados ao público feminino.
Intensa atividade nos anos 50
Um balanço elaborado pela gestão de Tude de Souza de-
monstrou que a rádio transmitiu 66.197 horas de progra-
mação entre setembro de 1936 e setembro de 1955. Em
19 anos crescera bastante. No ano da doação – 1936 - es-
tivera no ar durante 849 horas, saltando, em 1955, para 6
mil horas, resultado da ampliação do tempo de irradiação
e aumento no número de programas.
38   Rádio mec herança de um sonho
O programa Falando de Música, conduzido por
Ayres de Andrade, reunia no estúdio especialis-
tas e músicos como Arnaldo Estrela e Andrade
Mirian, colunista de O Globo
antecedentes   39
O trabalho ia mais além do que era irradiado. Os es-
túdios da Rádio Ministério da Educação eram utilizados
também para a gravação de discos. Até 1955, foram gra-
vados cerca de 8 mil discos. A média anual era de 400
gravações, que incluíam não só os programas da própria
emissora, como especiais sobre o Brasil para transmissão
em rádios estrangeiras.
A pluralidade da programação demonstrava a preo-
cupação em atingir uma grande faixa de público – do ur-
bano ao rural. Ao campo eram dedicados dois programas
diários - Informação Agrícola (às 17h30) e Resenha Cafeeira
(às 19h) - e o semanal Terra Brasileira (domingos, às 8h).
Uma demonstração da importância dos temas rurais para
o País, assim como o esforço para chegar a um público
com acesso restrito a outros meios de comunicação exis-
tentes à época. (Cf. LEAL, Maria Cristina, 1999).
Nos espaços reservados ao educativo prevaleciam as
aulas diárias, em horários flexíveis, para permitir ao alu-
no-ouvinte o seu acompanhamento. Embora essas aulas
fossem apenas de nível secundário eram acompanhadas
por boa parte da população, considerando-se que esse
grau era oferecido em poucas escolas situadas nos gran-
des centros urbanos. Um exame da programação mostra
a opção de Fernando Tude de Souza por uma grade que
permeava a cultura em seu sentido amplo. Como educa-
dor, ele via no rádio –um meio moderno e ágil de concre-
tização dos ideais liberais-democráticos–. (Ibid. LEAL,
1999). Para melhor visualização, seguem dois quadros
com os principais programas educativos e culturais:
40   Rádio mec herança de um sonho
Panorama da programação cultural da Rádio MEC, anos 50
Música para
Juventude
Domingo, 10h vários
Programa para a juventude e da juventude. Famosos
regentes e expressivos solistas (novos talentos) par-
ticipavam das audições semanais no Teatro Municipal.
Os ensaios da OSB eram feitos no estúdio sinfônico da
Rádio, sob a direção do maestro Eleazar de Carvalho. O
programa promovia concursos de orfeões.
Ópera Domingo, 16h Galvão Peixoto
Emissão de óperas - das mais antigas às modernas. En-
tre 1953 e 1956, foram irradiadas no programa cerca de
80 óperas inéditas no País.
Vesperal
Sinfônico
Domingo, 15h Maurício Quadrio
Seleção cuidadosa de obras das diferentes escolas e
orientações, com objetivo de aproximar o público do
produto artístico. Esse programa recebeu o compositor
norte-americano Virgil Thompson, crítico do “The New
York Times”.
Em Tempo
de Jazz
3ª a 6ª feira,
18h
Paulo Santos
Mais antigo programa de Jazz transmitido no Brasil.
Promovia concursos, realizava entrevistas, organizava
“jam-sessions” e apresentava, em primeira audição
no País, as principais gravações dos mais importantes
conjuntos.
MPB
Diferentes músicos, desde o compositor Garoto, o solis-
ta de cítara, Avena de Castro, e a Orquestra Afro-bra-
sileira garantiam a diversificação da programação de
música popular.
Falando de Cin-
ema
Sábado, 21h
Alberto
Shatowsky
Orientava o público sobre filmes. Participavam críticos,
produtores e atores em entrevistas e reportagens sobre
filmes específicos ou questões ligadas à sétima arte.
Programa Dia,Horário Produtor Sinopse
antecedentes   41
Fonte: Revista da Rádio MEC, RJ, 1956; e MASSARANI, Luisa, 1998.
Um repórter no
mundo das letras
2ª feira, 21h
Miécio Araújo J.
Honkis
Consistia em um amplo noticiário sobre o movimento
literário no Brasil e no exterior.
Quase memórias
Carlos Drum-
mond de
Andrade
Durante 3 meses o poeta falou sobre fatos de sua vida,
e sobre o fim do simbolismo e o nascimento do mod-
ernismo.
Vida e Romance +
Encontro com a
Literatura
2ª feira, 20h30
Otto Maria
Carpeaux
Discutia e trocava idéias com ouvintes sobre diferentes
obras: de Sheakespeare a James Joyce. Ativo na rádio,
o escritor fez também os programas Encontro com a
Música e Encontro com a Literatura, abordando autores
e livros.
Poesia Viva Geir Campos
Pelo programa passaram alguns dos mais importantes
poetas do Brasil, contando suas histórias, recitando
seus versos e apontando caminhos para os novos.
Ao redor do
Mundo
2ª feira, 20h00
Histórias, música e notícias dos mais distintos povos.
Cada programa era dedicado a um país. Participavam
artistas estrangeiros.
Informações
agrícolas
Diário, 17h30
Procurava manter os ouvintes do campo em dia com
acontecimentos do País e do estrangeiro ligados à sua
atividade.
Resenha cafeeira Diário, 19h
Notícias que interessavam aos cafeicultores (cotação
das bolsas).
Terra Brasileira Domingo, 8h Mário Augusto
Assuntos de interesse dos que viviam no campo. O pro-
grama apresentava histórias interpretadas pelo elenco
de radioatores.
Programa Dia,Horário Produtor Sinopse
42   Rádio mec herança de um sonho
Panorama da programação educativa (e cultural) – Anos 50
Reino da
Alegria
2ª a 6ª feira,
17h
Geni Mar-
condes
Mais antigo programa infantil do Rio de Janeiro, o Rei-
no da Alegria tinha a preocupação de educar fazendo
sorrir. Apresentava histórias, com músicas criada es-
pecialmente pela produtora e apresentadora, com a
participação de radioatores. O programa organizava
espetáculos no auditório da rádio, como o teatro de
fantoches, onde as figuras eram as mesmas vivendo
aventuras diferentes pelos microfones da emissora.
Aqui entre nós
2ª, 4ª e 6ª
feiras, 13h30
Edna Savaget
Programa que deixava de lado receitas e os segre-
dos de beleza para ouvir famosas personalidades do
mundo feminino. Da mulher para mulher apresentava
idéias e realizações, através de entrevistas e debates
sobre assuntos variados.
Novos horizon-
tes
6ª feira, 21h
Miécio Jorge
Hônkis
Além de episódios interpretados pelo elenco de radi-
oteatro, contando as lutas e vitórias da ciência, suce-
diam-se entrevistas com personalidades ligadas ao
mundo das pesquisas. Alexandre Felming, em sua
visita ao Brasil, falou durante 30 minutos aos ouvintes
sobre como chegou à descoberta da penicilina. O pro-
grama organizava visitas de ouvintes para observar
técnicos no próprio local de trabalho, como o Ob-
servatório Nacional.
Programa Dia,Horário Produtor Sinopse
antecedentes   43
Colégio do Ar
Diário,
7h e 20h
Professores
de diversas
disciplinas
Consistia em aulas de nível secundário, ministradas
de acordo com o período letivo (15 de março a 15 de
novembro). O currículo incluía Português, Inglês, Es-
panhol, Francês, Italiano, História do Brasil, Geogra-
fia e Ciências Naturais, Italiano e Ciências Naturais.
Em 1954, foram matriculados 6.500 alunos, atendidos
pelo correio.
Fórum educa-
cional
5ª feira, 22h
Miécio Araújo
J. Honkis
Debatia os diversos problemas ligados ao ensino, à
saúde e à educação, de um modo geral, com a par-
ticipação de autoridades em questões educacionais,
professores, especialistas e técnicos.
Alemão
2ª e 5ª feira,
18h
Prof. Hilde
Sinnek
Em horários diferenciados do Colégio do Ar, a apre-
sentadora ensinava alemão cantando e fazendo seus
alunos cantar. O método incluía recursos visuais e au-
ditivos.
Hora da Ginás-
tica
Diário, 6h
Oswaldo Diniz
Magalhães
Uma escola prática de saúde e civismo. Além das
transmissões do programa da Rede da Saúde, a Rádio
MEC transmitia também das 9h00 às 9h45 uma nova
aula com diferentes exercícios.
Fonte: Revista da Rádio MEC, RJ, 1956; e MASSARANI, Luisa, 1998.
Programa Dia,Horário Produtor Sinopse
44   Rádio mec herança de um sonho
A versatilidade dessa programação era garantida por
uma equipe altamente especializada em suas áreas, com-
posta por profissionais do quadro e colaboradores. É im-
portante destacar que, além de Edgard Roquette-Pinto e
Fernando Tude de Souza, a Rádio MEC contou grandes
colaboradores como René Cave, Carlos Rizzini, Celso
Brant, Mozart Araújo, Murilo Miranda, entre tantos que
passaram e os que ainda permanecem na emissora.
Pelos microfones da Rádio MEC fizeram eco perso-
nalidades marcantes da vida intelectual brasileira, como
será mostrado nos próximos capítulos pelos depoimen-
tos de muitos desses personagens que fizeram parte da
história da PRA-2, hoje AM 800 KHz e FM 98,9 MHz.
A seleção desses “olhares na primeira pessoa” procurou
resgatar, por meio do relato de experiências vividas, a
história de uma rádio que teve sua origem no ideal ambi-
cioso e altruísta de um grupo de solidários cientistas. Os
relatos representam o testemunho vivido e sua validade
está na reflexão proposta pelo educador Paulo Freire,
também uma importante personagem da trajetória da
Rádio MEC:
O fato de me perceber no mundo, com o mundo
e com os outros me põe numa posição em face do
mundo que não é a de quem nada tem a ver com ele.
Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a
ele se adapta mas a de quem nele se insere. É a posi-
ção de quem luta para não ser apenas “objeto”, mas
sujeito também da História. (FREIRE:1997: 60)
Liana Milanez - Jornalista e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP (2005). Foi
presidente da Fundação Cultural Piratini Rádio e Televisão (TVE-RS). Em São Paulo trabalhou
na Agência Estado, Folha de S. Paulo, Rádio Jovem Pan, Gazeta Mercantil e Valor Econômico.
antecedentes   45
Gravação da entrevista para a série Encontros
com Paulo Freire, veiculadas pela Rádio MEC.
Participou o jornalista Toninho Soares, da Rádio
Cultura (Fundação Padre Anchieta), que cedeu o
estúdio em São Paulo
Roquette-Pinto em uma das homenagens que
recebeu, fala ao microfone
46   Rádio mec herança de um sonho
herança de um sonho   47
2
O Pioneiro
48   Rádio mec herança de um sonho
o pioneiro   49
Acabaram de ouvir...
Carlos Drummond de Andrade
Foi há 25 anos. Lembro-me bem. Roquette-
Pinto tomou o elevador do Edifício Rex e procurou, no
16°, o ministro Gustavo Capanema. Ia dar-lhe de graça o
prefixo, o equipamento, a tradição da Radio Sociedade
do Rio de Janeiro. Tudo isso, que parecia pequeno e era
imenso, passava a pertencer ao Ministério da Educação,
sem qualquer indenização aos proprietários, todos eles
professores, cientistas, homens de letras. Nada, nada?
Apenas uma palavra Roquette queria receber em troca
de sua emissora.
– E que palavra é essa?
– O compromisso de que a Rádio continue a fazer
obra cultural e nunca, de forma alguma, faça política.
A palavra foi dada. Preparou-se a transferência legal,
e no entardecer de 7 de setembro de 1936, este cronis-
ta subia com Capanema um outro elevador, rangente e
reumático, num velho prédio da Rua da Carioca. Íamos
para o estúdio da Rádio Sociedade, onde se realizaria a
cerimônia oficial da entrega da estação pioneira ao poder
público. Mestre Roquette, comovido.
1. Crônica de Carlos Drummond
de Andrade publicada na coluna
“Imagens no tempo”, no Correio
da Manhã em 1961, comemoran-
do os 25 anos da Radio MEC.
Carlos Drummond de Andrade e Manuel
Bandeira que ajudaram a construir a história
da Rádio MEC, na sessão de autógrafos do livro
Quadrante, que reuniu as crônicas veiculadas
pelo programa de mesmo nome
50   Rádio mec herança de um sonho
Seus companheiros não disfarçavam a emoção. Pen-
diam lágrimas dos olhos de Beatriz Roquette-Pinto Bo-
junga. O ato tinha qualquer coisa de casamento no seio
de uma família muito unida, que via a filha sair nos bra-
ços do rapaz escolhido livremente, sim, um excelente
rapaz, tudo estava ótimo, os dois seriam muito felizes,
mas... quem sabe? Era uma separação, um dilaceramento
de fibras íntimas. Os assistentes bateram palmas. Saímos
todos vagamente melancólicos.
Mas o casamento deu certo, e agora que se cele-
braram as bodas de prata podemos dizer que a união foi
abençoada. A antiga emissora particular, alheia à com-
petição comercial, não tinha condições para subsistir. Ao
Ministério da Educação, por sua vez, faltava qualquer
experiência no ramo, e teria que improvisar tudo, se não
ganhasse o admirável presente de técnicos e boas-von-
tades. Capanema cumpriu rigorosamente a promessa e
marcou a orientação a ser seguida mesmo quando tudo
em volta parecia mergulhar em propaganda oficial. Ro-
quette passou depois a direção a Fernando Tude de Sou-
za, que lhe honrou os ensinamentos e fez da PRA-2 o
que ela é. Emissora singular no país, todo o seu tempo
está dedicado à obra educativa e civilizadora dos brasilei-
ros: arte, literatura, conhecimento científico, informação
geral, diversão amena ali se reúnem e dali se espalham
pelo Brasil, sem que essa mistura jamais se torne monó-
tona. Sua história é um lembrete cortês aos que fazem
rádio, e muitas vezes o fazem tão mal. Este lembrete não
tem sido inútil. Outras emissoras oficiais fazem o que po-
dem para não desmerecer. Há nas emissoras particulares
alguns programas que não seriam possíveis se a estação
de Roquette-Pinto não houvesse habituado o público a
exigir do rádio mais do que este costuma dar-lhe. Ain-
da agora, com a PRA-2 em plena renovação por artes do
o pioneiro   51
inquieto e imaginoso Murilo Miranda, assistimos ao au-
mento espetacular de seu índice de audiência, e isto se
faz sem concessão ao mau-gosto, pela preservação e apri-
moramento de um nível quase impecável.
Esta é uma crônica de saudades. Saudade do queri-
do Roquette-Pinto, cuja bela voz parece-me escutar ain-
da, locutor ele próprio numa emissora de sábios e edu-
cadores, puro sonho, lírica maluquice de alguns homens
que amavam sua terra e queriam servir ao seu povo. Ma-
luquice e sonho que floresceram. Mudando de nome, a
casa não mudou de alma.
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond, www.carlosdrummond.com.br
Roquette-Pinto: o homem-multidão
Ruy Castro
Opoeta e jornalista Amadeu Amaral, secretá-
rio de redação da Gazeta do Rio e cronista de O Estado
de S. Paulo, teve vontade de rir. Fora convidado por seu
amigo Edgard Roquette-Pinto para ouvir uma transmis-
são experimental da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro,
que este acabara de fundar. Roquette contara-lhe ma-
ravilhas do rádio, mas não o preparara para o espetáculo
que o esperava.
Como todo mundo em 1923, Amadeu Amaral ouvira
falar daquela nova invenção, o rádio. Sabia que era uma
forma de transmitir sons à distância, um misto de telégrafo
com telefone, mas nunca escutara uma transmissão. Em
sua fantasia, deveria ser uma coisa da alta ciência, cheia
de aparelhos complicados. Daí a sua surpresa ao adentrar
a casa de Roquette, na Rua Vila Rica, em Botafogo, e de-
parar-se com um cenário de circo de cavalinhos.
Uma vara de bambu, plantada no jardim, servia de
antena. Dela escorriam fios de cobre, que iam até a sala e
se enfiavam numa bobina de papelão, a qual devia ser o
aparelho. Deste saíam uma tomada de terra, comicamen-
O médico, antropólogo e etnólogo, Roquette-
Pinto, aos 27 anos, com crianças indígenas da
tribo Kozarini, em expedição coordenada por
Cândido Rondon ao Mato Grosso em 1912
o pioneiro   53
54   Rádio mec herança de um sonho
te ligada à torneira da pia, e um fone comum, de telefo-
ne, para ser aplicado à orelha. Uma geringonça infantil,
primitiva e precária. Amadeu Amaral achou graça. Aquilo
é que era o rádio?
Amadeu Amaral esperou o pior: iria escutar grunhi-
dos estalos e chiados, e, para não desagradar seu anfi-
trião, teria de dizer a Roquette que o rádio era mesmo
a oitava maravilha. Olhou resignado para a engenhoca,
aplicou o fone ao ouvido – e, em vez da cacofonia que
imaginava, escutou os poemas e trechos de ópera que
estavam sendo irradiados a quilômetros dali, na estação
da Praia Vermelha. “Tudo tão perceptível como se os
sons se originassem a dois passos. Aquela caranguejola
ridícula funcionava maravilhosamente”, ele escreveria
entusiasmado em O Estado de S. Paulo.
Amadeu Amaral fez mal em duvidar. Afinal, ele co-
nhecia Roquette-Pinto.
Em abril de 1923, quando estava fundando a pri-
meira emissora de rádio do Brasil, Edgard Roquette-Pin-
to tinha 39 anos incompletos. Era, por qualquer crité-
rio, um homem impressionante: atlético (1m78, muito
alto para seu tempo), bonito e, como dele diria Gilberto
Freyre, “com algo de imperialmente brasileiro no seu
porte”. Havia até quem o achasse parecido com Goethe.
Mas sua reputação não repousava na figura física, embo-
ra esta provocasse suspiros em admiradoras, muitas das
quais alimentaram suas paixões por ele (e algumas eram
correspondidas). Roquette-Pinto não era apenas amado
pelos que o conheciam. Era nacionalmente admirado
pelo que já fizera pela ciência brasileira. A introdução do
rádio no país era, a rigor, apenas a sua segunda ou terceira
façanha, e estaria longe de ser a última.
Quando se avalia hoje o monumental legado do ca-
rioca Roquette-Pinto ao Brasil, parece inacreditável que
o pioneiro   55
Roquette-Pinto e um dos animais utilizados na
expedição ao Mato Grosso: o meio de transporte
possível para enfrentar surpresas da mata
56   Rádio mec herança de um sonho
um único homem pudesse fazer tanto. Estamos desabi-
tuados a esses homens-multidão, capazes de aplicar sua
inteligência e ação a interesses tão amplos e múltiplos.
Mas, no caso de Roquette, talvez ele não tivesse escolha.
O Brasil de seu tempo era enorme, muito maior que o
de hoje, e estava todo por ser feito. Com seu dinamismo
científico, filosófico e até espiritual, Roquette-Pinto não
podia esperar que surgissem outros Roquette-Pinto para
ajudá-lo. Enquanto esses não surgissem, ele viveria de
mangas arregaçadas.
Sua biografia ainda não foi escrita e quando o for,
não caberá num único volume. Só através dela poder-se-
á reconstituir o que o levou – desde o seu nascimento,
no dia 25 de setembro de 1884, em Botafogo a preparar-
se para tantas atribuições. Pode ter sido a influência do
homem que, na verdade, o criou: não o seu pai, o rico
advogado Menelio Pinto de Mello, mas seu avô materno
o fazendeiro João Roquette Carneiro de Mendonça, em
cuja fazenda Bela Fama, perto de Juiz de Fora, o menino
Edgar passou três anos. O pouco contato com a família
do pai levou-o até a alterar seu nome de registro – Edgar
Roquette Carneiro de Mendonça Pinto Vieira de Mello
– para Edgard Roquette-Pinto, com um hífen de que não
abria mão. Em 1905, quando se formou pela Escola de
Medicina, Edgard legalizou seu novo sobrenome e de-
pois, estendeu-o aos seus descendentes. Quanto ao pro-
nome, chamava a si próprio de Édgar, não Edgár.
Além do avô João Roquette, que lhe pagou os es-
tudos e lhe transmitiu seu amor à natureza, outros dois
homens foram decisivos para o destino de Roquette, O
primeiro, o biólogo Francisco de Castro, que o fez desis-
tir da idéia de tornar-se oficial da Marinha e convenceu-o
a navegar pelo mundo ainda mais aventuroso da medici-
na e da biologia. O segundo, o médico Henrique Batista,
Roquette era um homem de muitas habilidades:
tocava piano, escrevia poemas, desenhava,
pintava, era hábil em montar ou desmontar
aparelhos elétricos e ainda falava francês, ita-
liano, espanhol, inglês, alemão, tupi, “um pouco
de latim e uma reles lambugem de grego”
o pioneiro   57
que o converteu ao Positivismo - a doutrina fundada pelo
Francês Augusto Comte (1798-1857), segundo o qual a
redenção do homem se daria pelo conhecimento. Mas,
embora fosse prodigiosamente estudioso, havia algo em
Roquette que parecia atraí-lo para fora dos gabinetes.
Sua própria tese de formatura, “O exercício da medicina
entre os indígenas da América”, já insinuava seu rumo
futuro: a antropologia.
Em setembro de 1906, Roquette partiu para o Rio
Grande do Sul a fim de estudar os sambaquis – as jazidas
de conchas, ossos e utensílios do homem pré-histórico
que habitou o litoral da América. E dai também porque,
depois de alguns anos como assistente de Henrique Ba-
tista (com cuja filha Riza casou-se em 1908) e como mé-
dico-legista no Rio, Roquette deu uma guinada em sua
carreira: tornou-se, por concurso, professor da cadeira de
antropologia e etnografia do Museu Histórico Nacional,
na Quinta da Boa Vista. Ali, em 1911, ele conheceu o
homem que, este sim, o marcaria para sempre: o tenen-
te-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon.
O mato-grossense Rondon, nascido em 1865, já
estava nas selvas do Amazonas e do Acre desde 1890,
desbravando a mata, criando povoados, demarcando
fronteiras, estendendo linhas telegráficas e fazendo os
primeiros contatos com tribos à margem de qualquer
civilização, como os parecis, os kabixis , os tapanhumas
e os cajabis. Como Roquette, Rondon também era po-
sitivista e acreditava na ciência e na fraternidade como
molas para o progresso. Levava geólogos, cartógrafos e
outros peritos em suas expedições e, ao voltar de cada
uma, trazia amostras de objetos paleolíticos e os entre-
gava ao Museu Nacional. Muitos desses objetos caíram
nas mãos de Roquette, que se debruçou fascinado para
estudá-los. Deles resultou o seu documento “Nota sobre
58   Rádio mec herança de um sonho
Beatriz Roquette-Pinto, colaboradora e parceira
do pai no projeto da Rádio Sociedade do Rio de
Janeiro, então com 20 anos, em atividade no
estúdio da emissora em 1931
o pioneiro   59
Os pioneiros da Rádio Sociedade. Sentado,
segundo da esquerda para a direita, Edgard
Roquette-Pinto
60   Rádio mec herança de um sonho
os índios nhambiquaras do Brasil Central”, que leu num
congresso de americanistas em Londres, em 1912.
Era a primeira vez que Roquette saía do Brasil – mas,
ao pôr o pé no navio para a Europa já acertava um com-
promisso com Rondon: iria acompanhá-lo na sua próxima
expedição à Serra do Norte. A idéia de defrontar-se com
brasileiros que, em plena alvorada do século XX, ainda
viviam na pré- história, era muito mais excitante para ele
do que qualquer congresso científico nas estranjas.
Em julho daquele mesmo ano, de volta ao Brasil,
Roquette seguiu com destino a Mato Grosso, para jun-
tar-se a Rondon. Tinha 27 anos. Os quatro meses seguin-
tes seriam uma saga de extraordinária importância para
o conhecimento do Brasil - porque, pela primeira vez,
Rondon viajava com um homem à sua altura. Roquette-
Pinto, sozinho, valia por uma equipe de cientistas.
Naquela expedição ele foi etnógrafo, sociólogo,
geógrafo, arqueólogo, botânico, zoólogo, lingüista, mé-
dico, farmacêutico, legista, fotógrafo, cineasta e folclo-
rista. Anotou toda a aparência da região – da floresta à
árvore e à folha – a composição dos solos, o contorno das
montanhas, o fluxo dos rios, a intensidade das quedas e
a riquíssima variedade da fauna. Nas visitas às tribos já
pacificadas, mediu os crânios dos índios, comparou seus
pesos e altura, analisou suas endemias e descreveu suas
formas de produção, comércio e transporte. Registrou
seus conhecimentos científicos, relações familiares, or-
ganização política, hábitos religiosos, formas lingüísticas,
habilidade manual, cantos e danças. E ainda realizou a
primeira dissecação de um indígena – na verdade, uma
indígena – de que se tem notícia.
Roquette não deixou um fio solto. Anotou musi-
calmente os cantos dos nativos e não contente, gravou-
os em cilindros de cera com o fonógrafo portátil que se
o pioneiro   61
usava na época. Filmou tudo que pôde e fotografou ou
desenhou o resto. Sem contar o que recolheu de pedras,
pontas de flechas e objetos indígenas, que transportou
pelos milhares de quilômetros através de rios, pântanos
e picadas abertas na selva. O que sobreviveu desses fo-
nogramas, filmes, fotos, fichas antropométricas e obje-
tos, conservados até hoje no Museu Nacional, dá só uma
vaga idéia das condições em que tudo isso foi realizado.
Roquette foi um Indiana Jones da vida real, só que mais
heróico – porque verdadeiro.
No monstruoso percurso pelas selvas do Mato Gros-
so e do Amazonas e pelas bacias dos rios Paraguai, Jurena
e Gi-Paraná, a morte acompanhou cada passo de Ron-
don, Roquette e seus homens. Dias e dias de caminhada
podiam ser feitos sem sol visível, debaixo da espessa ve-
getação – e se avançassem um quilômetro por dia isso era
considerado ótimo. O princípio da expedição era a paci-
ficação dos nhambiquaras, até então arredios a qualquer
contato com o colonizador. Arredios e hostis. Os mateiros
de Rondon eram flechados à distância por mãos invisí-
veis; outros eram capturados e devolvidos sem cabeças;
e ainda outros se feriam nas armadilhas postas por eles. E
havia as ameaças permanentes da selva, como os animais
e as doenças - varíola, beribéri, impaludismo. Burros, ca-
valos e bois iam morrendo e sendo deixados para trás. Os
homens eram enterrados pelo caminho e Rondon batiza-
va com seus nomes os acidentes geográficos do percurso.
Mas, para o sacrifício de cada homem ou montaria, a ex-
pedição garantia um pedaço de chão que se incorporava
efetivamente ao Brasil.
Para Roquette-Pinto, era tudo um milagre, e esse
milagre chamava-se Cândido Rondon. Sendo ele próprio
mameluco por parte de avós indígenas, e falando os dia-
letos de várias tribos, Rondon conseguia repassar para os
62   Rádio mec herança de um sonho
índios sua mensagem de paz – em nenhuma outra época,
na história da América, o choque entre o “selvagem” e
o “civilizado” foi tão suave e humano. Para isso, seu fa-
moso lema, “Morrer, se preciso for; matar, nunca”, teve
de ser, primeiro, entendido pelos brancos que o seguiam.
Daí Roquette extraiu uma compreensão do problema do
índio que, até hoje, é revolucionária: “Nosso papel so-
cial deve ser simplesmente proteger, sem procurar diri-
gir nem aproveitar essa gente. Não há dois caminhos a
seguir. Não devemos ter a preocupação de fazê-los cida-
dãos do Brasil. Todos sabem que índio é índio, brasileiro
é brasileiro. A nação deve ampará-los e mesmo sustentá-
los, assim como aceita, sem relutância, o ônus de ma-
nutenção dos menores abandonados ou indigentes e dos
enfermos”.
Os nhambiquaras contatados por Rondon e Roquet-
te viviam na Idade da Pedra em 1912. Seus machados
eram de pedra mal polida. As facas eram lascas de madei-
ra. Não conheciam a navegação, a cerâmica ou as redes
de dormir – donde atravessavam os rios a nado, comiam
de mão para mão e dormiam direto no chão. Eram cober-
tos de bernes, pulgas e piolhos. Nunca tinham visto um
homem branco ou negro. E o mal que faziam era, muitas
vezes, por ingenuidade: ao ouvir o zumbido dos fios te-
legráficos, pensavam que o poste ocultava uma colméia
e o derrubavam em busca do mel. Quando Rondon final-
mente conseguiu que se aproximassem do acampamen-
to (o que se deu à zero hora de uma noite memorável
para Roquette), seus presentes para eles foram de um
comovente simbolismo: machados de aço. Poucos anos
depois, os nhambiquaras, já “evoluídos”, iriam rir de
seus velhos machados de pedra.
De volta ao Rio em novembro daquele ano. Ro-
quette depositou no Museu Nacional cerca de uma to-
o pioneiro   63
nelada e meia de objetos que trouxe da Serra do Norte.
As anotações musicais foram entregues a Villa-Lobos,
que as elaborou em composições que assinou com Ro-
quette. Em seu organismo, Roquette trouxe também o
impaludismo, a cujas seqüelas iria atribuir a doença que
o acometeria na maturidade. Mas sua própria volta à ci-
dade já era, para muitos, uma proeza: como um homem
tão urbano, de hábitos tão refinados, um elegante inte-
lectual carioca, podia ter sobrevivido à brutalidade da
vida na selva?
Uma explicação poderia ser a grande parte da infân-
cia passada na fazenda de seu avô. O mato não lhe era
estranho. Mas há uma diferença entre as bucólicas fazen-
das mineiras e o sertão com seus perigos à traição. Poder-
se-ia argumentar também que, aos 27 anos, Roquette
era jovem e forte, e que, quando ainda mais moço, fora
esportista: remara durante anos pelo Botafogo, no tem-
po em que o remo formava os atletas mais completos do
Rio. Mas não há comparação entre um domingo de rega-
tas e atravessar alagados carregando equipamento e com
água pelo pescoço. A única explicação está na pétrea de-
terminação de Roquette: impusera-se uma tarefa e tinha
de cumprí-la. E os que o conheceram sabem que ele só
precisava disso para agir.
O poeta Carlos Drummond de Andrade, que só viria
a conhecê-lo muito depois, definiu-o como “um civiliza-
do a quem a civilização não faria falta, porque seria capaz
de reconstituí-la dentro da mata, adaptando-se ao meio
e extraindo dela valores culturais, sem perda do instinto
nativo, ou por um refinamento prodigioso desse mesmo
instinto”. Mas Roquette fez ainda mais: de volta à cida-
de, reconstituiu pela palavra a cultura da selva.
A grande bagagem que trouxe da expedição foram
as anotações e as memórias de tudo que havia presencia-
64   Rádio mec herança de um sonho
do e vivido. Com elas, Roquette passou os quatro anos
seguintes escrevendo o livro que, por si só, garantiria o
seu lugar na imortalidade: Rondônia.
Um monumental tratado antropológico, botânico,
geológico, climático, zoológico e etnográfico de uma vas-
ta região do Brasil entre os rios Juruena e Madeira, com-
preendendo partes do Mato Grosso, Amazonas, Pará,
Acré e Guaporé. O fio condutor era, claro, a expedição
de 1912. Mal publicado o livro, em 1916, tornou-se lugar-
comum dizer que Rondônia estava para a saga de Ron-
don como Os sertões, de Euclides da Cunha, estava para
a de Canudos. Os dois livros revelavam um Brasil que,
até então, muitos brasileiros julgavam existir apenas na
imaginação dos poetas. Para Roquette, não poderia haver
elogio maior do que ser comparado a Euclides (aliás, co-
lega de turma de Rondon na Escola de Cadetes da Praia
Vermelha, classe de 1888) – porque, para ele, Os sertões
era comparável aos Lusíadas ou a Don Quixote.
No futuro, mais precisamente em 1956, o crítico e
ensaísta Álvaro Lins estabeleceria uma outra virtude de
Rondônia: a literária. Segundo ele, era pela força estilista
de seu tratado científico (e não pelos fracos contos e po-
emas que depois escreveria) que Roquette-Pinto fazia
parte da literatura brasileira. E Gilberto Freyre, outro
exigente no seu julgamento dos colegas, nunca deixaria
de elogiar, ao lado da exuberante escrita de Rondônia, a
“segura base cientifica” de Roquette – distinção que não
conferia a mais ninguém daquele tempo. Em seu livro
Ordem e progresso, Gilberto menciona treze vezes a se-
riedade de Roquette. O qual, não importavam as loas,
sempre foi modesto ao falar de sua obra-prima: “É um
instantâneo da situação social, antropológica e etnológica
dos índios da Serra do Norte, antes que principiasse o
o pioneiro   65
trabalho de alteração que nossa cultura vai processando.
É prova fotográfica – um clichê cru”.
Mas, naturalmente, era muito mais que isso. Suas
experiências com os nativos e com os homens do sertão
deram a Roquette os instrumentos para desfechar uma
campanha anti-racista que atingiria em cheio o arianis-
mo então vigente no Brasil. Para muitos naquela época
(como para alguns ainda hoje), nossas mazelas seriam
originárias da presença dos negros, mestiços e índios na
composição racial brasileira. A tese original era do diplo-
mata francês Joseph Arthur, conde de Gobineau (1816-
1882), autor de uma teoria racial da História e que um dia
resultaria no nazismo. Uma visão “benigna” do proble-
ma, defendida pelo então diretor do Museu Nacional, o
antropólogo João Batista de Lacerda, apostava no “em-
branquecimento” do povo: em poucas décadas, os suces-
sivos cruzamentos extinguiriam a raça negra no Brasil...
Mas Roquette, que via o Brasil como “um imenso labo-
ratório de antropologia”, pensava diferente:
“Nenhum dos tipos da população brasileira apre-
senta qualquer estigma de degeneração antropológica”,
escreveu ele, “Ao contrário. As características de todos
eles são as melhores que se poderiam desejar. [...] O nú-
mero de indivíduos somaticamente deficientes em al-
gumas regiões do país é considerável. Isso, porém, não
corre por conta de qualquer fator de ordem racial; deriva
de causas patológicas cuja remoção, na maioria dos casos,
independe da antropologia. É questão de política sanitá-
ria e educativa. [...] A antropologia prova que o homem
no Brasil precisa ser educado, e não substituído”.
O alcance de Rondônia não ficaria por aí. O livro fa-
ria a glória do futuro general e marechal Rondon, embora
este também desconhecesse por completo o sentimento
da vaidade. Um único índio que escapasse ao martírio
66   Rádio mec herança de um sonho
era-lhe mais importante que os quilos de medalhas que
espetavam em sua farda. Mas a verdade é que, sem o
livro de Roquette, ninguém poderia calcular a dimensão
da obra de Rondon, muito menos seguir o seu exemplo.
Mesmo assim, Roquette não se dava por satisfeito. Para
que o Brasil soubesse o quanto de seu território devia a
Rondon, propôs que esse território- entre os paralelos 8 e
14 ao sul do Equador e entre os meridianos 12 e 20 a oes-
te do Rio de Janeiro – se chamasse, justamente, Rondô-
nia. A idéia, lançada por Roquette em 1915, numa confe-
rência no Museu Nacional, seria afinal adotada... 41anos
depois, em 1956, quando uma área muito menor, a do
território do Guaporé, passou a chamar-se Rondônia.
Pouco depois de Rondônia, em 1920, Roquette, de
passagem, conquistou a admiração de um povo que de-
dicara seus últimos 50 anos a olhar para o Brasil com pro-
fundo ressentimento e rancor: o do Paraguai. Em 1927,
no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Le-
tras, ele defenderia a convicção de que fora o Brasil o
responsável pelo início da Guerra do Paraguai, contra
a opinião do acadêmico a quem sucedia na cadeira 17:
o poeta Osório Duque Estrada, patriotíssimo autor do
Hino Nacional.
Ao ouvir aquilo, muitos imortais ficaram inquietos
dentro dos fardões. E, já prevendo que alguns ali pudes-
sem acusá-lo de pouco patriota, Roquette jogou cal nos
possíveis ataques:
“Pelo progresso de minha terra, tenho arriscado con-
tente e mais de uma vez, a vida que ela me deu. Mas só
compreendo o patriotismo que não precisa de mentiras
para manter sua existência”.
Tanta coragem e determinação tornavam Roquet-
te-Pinto um vulto quase onipresente na cena brasileira.
As pessoas o apontavam ao vê-lo passar nas ruas, quase
o pioneiro   67
sempre com um charuto entre os dedos. Quando não era
o charuto, o objeto mais presente em sua mão era um
lápis de duas cores (vermelho e azul), com que circulava
ou sublinhava qualquer texto que o interessasse. Sabia-
se que falava francês, italiano, espanhol, inglês, alemão,
tupi e, segundo ele próprio, “um pouco de latim e uma
reles lambujem de grego”. Mas podia ser tudo, menos
um pernóstico: “Gosto muito de gíria e tenho horror à
gramática. Se escrevo certo, é sempre por acaso”, dizia. E
sabia-se também que tocava piano, que escrevia poemas
sem intenção de publicá-los, que desenhava e pintava
e era capaz de montar ou desmontar qualquer aparelho
mecânico ou elétrico: “Gosto imenso de trabalhar com as
mãos. As mãos é que fazem o homem inteligente”.
Numa época pobre em comunicações e rica em me-
xericos, sabia-se também que ele e sua mulher se haviam
separado. Separações eram chocantes naquele tempo, e
mais ainda entre pessoas públicas. Mas, no seu caso, não
havia motivo para mexericos. Como sua família sempre
soubera, Roquette simplesmente não era “casável”. Sua
inquietação não lhe deixava muito tempo para os praze-
res domésticos ou para desfrutar os dois filhos – Paulo,
nascido em 1909 e Beatriz, em 1911. E Riza, ao contrário,
era uma mulher com acentuado gosto pelas coisas do lar.
Como nenhum dos dois podia mudar sua natureza, afas-
taram-se de comum acordo, por volta de 1920, chorando
nos braços um do outro. Anos depois, Riza iria casar-se
com um oficial da Marinha, ao passo que Roquette tor-
nou-se o melhor partido do Rio de Janeiro, disponível
para as muitas mulheres que o interessavam. Mas nunca
voltaria a casar-se – não oficialmente, pelo menos.
Logo após a separação, conheceu a paulista Noemia
Álvaro Salles, sua aluna na escola normal. Noemia tinha
18 anos e era bem avant-garde, precocemente feminista
Winter und Frühling … (Inverno e Primavera)
escreveu Roquette-Pinto no verso da foto em
que aparece abraçado à filha Carmem Lúcia,
Milú como ele a chamava. Os dois costumavam
conversar em alemão
68   Rádio mec herança de um sonho
e comunista. Era, sobretudo, corajosa. Quando era bem
pequena, seus pais se separaram e, devido à rigidez dos
valores familiares em São Paulo, sua mãe nunca mais saíra
de casa, onde terminaria com problemas mentais. Noemia
decidiu que não queria um destino semelhante para si.
Aos 15 anos, veio para o Rio, a fim de morar com os avós,
tios e primos. Mas, três anos depois, conheceu Roquette,
e seus parentes também não aceitaram esse relaciona-
mento – Roquette era um homem separado e quase vin-
te anos mais velho. Noemia sustentou sua paixão e, com
isso, teve também de sair de casa. Foi morar com uma
prima que, por apoiá-la, também seria ostracizada pela
família. Sete anos depois, em 1927, Noemia e Roquet-
te teriam uma filha, Carmen Lucia. Mesmo antes disso,
Roquette, já formalmente desquitado, propusera que ele
e Noemia oficializassem a união, casando-se no Uruguai.
Mas Noemia, apesar de apaixonada por ele, nunca achou
que a situação precisasse ser “regularizada”.
Com toda a diferença de temperamentos, foram fe-
lizes por vários anos. Roquette era um gentleman, basi-
camente conciliador e não gostava de enfrentamentos;
Noemia era decidida, arrojada e militante política. Essa
militância acabou por minar o relacionamento. Os dois
se separaram e Noemia se casaria de novo, desta vez
com um médico, com quem teria outro filho. Roquet-
te continuaria a conviver com Carmen Lucia, a quem ia
buscar nos fins de semana para passeios pelo Rio. Jun-
tos, os dois almoçavam no restaurante Cristal, na Lapa,
visitavam monumentos e iam a livrarias. Ele a chamava
de Miluzinha, dava-lhe livros de literatura brasileira e a
estimulou a aprender alemão – muitas vezes, os dois só
falavam nessa língua. Quando ele morreu, ela tinha 27
anos e nem por um minuto se sentira rejeitada ou fruto
de uma união “irregular”.
o pioneiro   69
Não eram apenas as mulheres que interessavam Ro-
quette - tudo o interessava. No passado, a caminho de
juntar-se a Rondon na selva, ele percebera a importân-
cia da telegrafia na integração dos grotões mais distantes.
Em 1922, durante as comemorações do Centenário da
Independência, Roquette começara a perceber a impor-
tância de uma nova e extraordinária invenção: o rádio.
Os primeiros a chegar à enorme Exposição do Cen-
tenário, instalada na esplanada aberta pelo desmonte do
morro do Castelo, no Centro do Rio, não deram muita
importância às estranhas cornetas metálicas instaladas
em alguns postes. Vistas de relance, lembravam as cor-
nucópias dos gramofones em voga em 1922, mas poucos
naquele 7 de setembro, dia da abertura da exposição, sa-
beriam dizer para quê serviam. A multidão estava mais
interessada nos luxuosos pavilhões dos países partici-
pantes e, principalmente, na montanha-russa armada em
frente ao palácio Monroe. De repente, ao cair da tarde,
as pessoas ouviram assombradas, como se aqueles sons
viessem das nuvens, o Hino Nacional e um discurso do
presidente Epitácio Pessoa. Como, mesmo naquele tem-
po, ninguém acreditasse que o hino ou Epitácio tivesse
nada de celestial, concluiu-se rapidamente que o som
saía pelas tais cornetas. Afinal, era para aquilo que ser-
viam as geringonças penduradas no postes. Eram “alto-
falantes” - e era o rádio chegando.
Duas companhias americanas de energia elétrica, a
Western e a Westinghouse, haviam instalado pequenas
estações de 500 watts no pavilhão dos Estados Unidos
para demonstrar a última novidade. Seus transmissores
tinham sido montados, respectivamente, na Praia Ver-
melha e no alto do Corcovado (ainda sem a estátua do
Cristo), com 80 alto-falantes distribuídos pela exposição
e por Niterói, Petrópolis e São Paulo. À noite daquele
70   Rádio mec herança de um sonho
mesmo dia, o assombro foi ainda maior quando os alto-
falantes irradiaram a ópera O guarani, de Carlos Gomes,
direto do Teatro Municipal. Bem, assombro em termos.
O som era falho e rouco, como se um coro de sapos ti-
vesse entrado pelos alto-falantes e coaxasse em uníssono
fazendo passar-se por Epitácio ou por Peri e Ceci. Era
preciso apurar as orelhas para se entender alguma coisa.
Nos dias seguintes foram transmitidas várias palestras,
inclusive uma sobre higiene, mas, àquela altura, o públi-
co já desistira de esforçar-se para ouvir.
Em janeiro de 1923, finda a exposição, a Westin-
ghouse desmontou a estação do Corcovado e a levou de
volta para os Estados Unidos. Mas a Western conservou
a sua na Praia Vermelha, na esperança de que o governo
brasileiro se interessasse em comprá-la. O governo acei-
tou e comprou a estação, mas entregou-a aos Correios
para que ele a operasse como telégrafo. Não era o que
os primeiros radioamadores nacionais estavam esperan-
do. Já havia muitos pelo país, construindo seus próprios
aparelhos e comunicando-se entre si no Rio, no Paraná,
em São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco. Alguns dele
conseguiram autorização e começaram a usar a Praia Ver-
melha para transmitir boletins meteorológicos, cotações
da Bolsa de Açúcar e Café, notinhas sobre santos e efe-
mérides do dia, audição de cançonetas e poemas e outras
pequenas atrações.
Mas era quase uma audição para surdos, porque
havia um obstáculo legal a que a escuta se espalhasse:
para possuir um receptor em casa, o cidadão tinha de
“requerer permissão” ao Ministério da Viação através
dos Correios e Telégrafos e, ainda por cima, “apresen-
tando fiador idôneo” - um responsável pela integrida-
de patriótica do indigitado. Com os ecos e fumaças da
Grande Guerra de 1914-1918 ainda no ar, supunha-se
o pioneiro   71
que o rádio podia ser um instrumento perigoso, capaz de
levar os segredos militares brasileiros para as potências
estrangeiras – donde todo cuidado era pouco. A polícia
estava autorizada a prender quem fosse flagrado ouvin-
do aparelhos desautorizados.
Roquette-Pinto não estava preocupado com segre-
dos ou com militares. Aliás, sua opinião sobre estes era
arrojada para a época: era favorável ao serviço militar, mas
achava que eles deveriam se limitar a “construir pontes
e estradas, aprender um ofício, trabalhar numa coisa útil.
[...] A Grande Guerra, aliás, veio mostrar que a vitória
caberá a quem melhor abastecer-se. O soldado, hoje, é
principalmente um operário. As guerras são ganhas pelos
eletricistas, pelos mecânicos, pelos motoristas”. Para Ro-
quette, ao contrário de guardar segredos, o rádio deveria
servir para difundir a coisa de que o Brasil mais precisa-
va: educação.
Nos Estados Unidos, a primeira emissora com trans-
missão regular surgira em 1920, em East Pittsburgh, na
Pensilvânia. Ou seja, outro dia mesmo, e, agora, menos
de três anos depois, o rádio já alcançava cerca de 12 mi-
lhões de americanos, com mais de cem estações trans-
mitindo. Os Estados Unidos estavam sendo interligados
pelo rádio e a Europa também, através de Marconi. Nas
fantasias dos mais otimistas, já havia operários ouvindo
Mozart, analfabetos bebendo as palavras de Bernard
Shaw e gente dos mais distantes rincões sabendo as últi-
mas de Wall Street ou do palácio de Buckingham, tudo
pelo rádio. Ele era uma arma, mil vezes mais poderosa do
que os canhões da Grande Guerra. Roquette começou a
imaginá-la integrando e educando os milhões de brasi-
leiros dispersos pelos mais de 8 milhões de quilômetros
quadrados. Seria como completar, só que em escala na-
cional, a obra de Rondon.
72   Rádio mec herança de um sonho
Era preciso fundar uma rádio, e ele era o homem
para isso. Mas uma rádio educativa, “com fins científicos
e sociais”, de preferência ligada a Academia Brasileira
de Ciências, da qual era secretário. O primeiro passo era
pedir o apoio do fundador e presidente desta, Henrique
Morize, seu velho mestre – para cuidar da parte operacio-
nal do projeto e contagiar os outros membros da acade-
mia. E Morize não resistiu ao incandescente entusiasmo
do discípulo. Nascido na França em 1860 e no Brasil des-
de os 15 anos, era engenheiro meteorologista, físico, as-
trônomo, catedrático da Escola Politécnica do Rio e com
um papel de destaque em inúmeras áreas da ciência. Em
1905, por exemplo, iniciara os estudos de sismologia no
Brasil, ao instalar no Observatório Nacional, de que era
diretor, os instrumentos que permitiam registrar sismos.
Em outra ocasião, ajudara a difundir o uso dos raios-X no
país. E, em seus cursos de física experimental, fora tal-
vez o primeiro no Brasil a realizar demonstrações práticas
durante as aulas. Sua múltipla contribuição à ciência era
equivalente à de Roquette em suas áreas de interesse – à
sua maneira, Morize também era um homem-multidão.
Com Morize a seu lado, tratava-se agora, para Ro-
quette, de remover os obstáculos legais. No dia 14 de
abril de 1923, Roquette soltou pela Gazeta de Notícias a
campanha para libertar o rádio da lei que dificultava que
os cidadãos possuíssem aparelhos domésticos. Tinha um
argumento forte: devido às transmissões da Praia Verme-
lha, os Correios haviam fornecido 536 licenças especiais
apenas nos primeiros meses daquele ano. Tal demanda
era uma prova de que o Brasil inteiro queria o rádio (uma
das licenças, aliás, contemplara o próprio Roquette, em-
bora seu aparelho fosse o que provocara risos abafados
em Amadeu Amaral).
o pioneiro   73
Mas só um fato consumado, como a existência da
rádio, forçaria a queda da lei. Pois ele cuidou de que isso
acontecesse: no dia 20 de abril, na sala de física da Escola
Politécnica, no largo de São Francisco, em plena reunião
da academia, os cientistas comandados por ele fundaram
a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro – a PR-1-A.
A primeira diretoria já saiu constituída daquela reu-
nião. Morize foi aclamado presidente, Roquette, secre-
tário, e outros acadêmicos ocuparam os cargos de tesou-
reiro e conselheiros. Os demais membros da academia
assinaram eufóricos a ata de fundação e mais de trezen-
tos sócios-efetivos e associados a subscreveram. Para os
padrões daquele tempo, era quase um ato de desobedi-
ência civil, praticado por senhores de pince-nez e colari-
nho duro – se se aplicasse a lei, não haveria cadeia no Rio
de Janeiro para todos. Mas, numa jogada hábil, Roquette
indicou para presidente de honra da Rádio Sociedade o
próprio ministro da Viação e Obras Públicas, Francisco
Sá – de quem dependeria a revogação da lei que tornava
o rádio uma atividade clandestina.
No dia 1º de maio, sob vista grossa da autoridade,
com um transmissor montado por Morize, a Rádio Socie-
dade fez a sua primeira transmissão experimental pela
estação da Praia Vermelha. Às 20h30 em ponto, Cauby
de Araújo, um dos signatários, anunciou a declaração de
Roquette-Pinto comunicando a fundação da rádio. Ro-
quette tomou o microfone e, com grande otimismo e
exagero, disse: “[A partir de agora] todos os lares espa-
lhados pelo imenso território do Brasil receberão livre-
mente o conforto moral da ciência e da arte pelo milagre
das ondas misteriosas que transportam, silenciosamente,
no espaço, as harmonias”.
Belas palavras, mas ainda levaria tempo para que o
rádio atingisse todos esses lares. E ainda havia a lei “re-
74   Rádio mec herança de um sonho
trógrada e carrança”, como ele a chamava. Mas a pressão
deu resultado. No dia 11 de maio, Francisco Sá assinou
a revogação: o rádio no Brasil estava finalmente livre.
Já era possível ter um aparelho em casa sem ir parar no
presídio da rua dos Barbonos, futura Evaristo da Veiga.
Ao governo caberia apenas licenciar o funcionamento
das emissoras. Uma semana depois, no dia 19, a Rádio
Sociedade promoveu a sua instalação solene, usando no-
vamente emprestado o equipamento da Praia Vermelha
para a sua transmissão inaugural.
E ponha solene nisso. Roquette e seus colegas
reunidos na Escola Politécnica, ouviram emocionados
quando, da Praia Vermelha, Edgar Sussekind de Men-
donça abriu a transmissão recitando um soneto do pró-
prio Roquette, intitulado, bem a propósito, “O raio”.
Era simbólico: o raio viaja pelo espaço e vai cair sabe-se
onde – como o rádio. (A única cópia do poema perdeu-se
naquela noite e o autor nunca conseguiu reconstituí-lo
de memória). Em seguida, Heloisa Alberto Torres, filha
do abolicionista Alberto Torres, leu um conto infantil de
Monteiro Lobato, de que não há registro do título. E,
concluindo, Francisco Venâncio Filho leu uma página de
Os sertões. Com aqueles poucos minutos de vozes no ar,
a Rádio Sociedade silenciou e a estação da Praia Verme-
lha voltou aos seus serviços telegráficos. Mas, para todos
os efeitos, uma rádio brasileira ferira pela primeira vez
– como se dizia – o éter.
Vibrando com o resultado, M. B. Astrada, sócio-fun-
dador da rádio e representante no Brasil da Casa Pekan,
de Buenos Aires, especialista em equipamentos de ra-
diofonia, doou à Rádio Sociedade uma pequena estação
emissora e receptora – suficiente para que, com boa von-
tade, ela se fizesse ouvir no centro da cidade e arredo-
res. Três meses depois, no dia 20 de agosto, o governo
Pavilhão da Tchecoslováquia, construído para
a Exposição do Centenário, em 1992: um ano
depois passou a abrigar a Rádio Sociedade do
Rio de Janeiro, já com o prefixo PRA-A, (antes
de sua transferência para a Rua da Carioca
e posteriormente para o prédio da Praça da
República, onde permanece até hoje)
o pioneiro   75
76   Rádio mec herança de um sonho
federal, já com Arthur Bernardes na presidência, autori-
zou oficialmente o início das irradiações no Brasil, desde
que “para fins educativos”. Bernardes não parou por aí:
permitiu que a Rádio Sociedade fizesse uma hipoteca
do material emissor no Banco do Brasil, no valor de 100
contos de réis, para instalar a antena e cobrir as despesas.
Entre estas, estava a compra de uma estação de 1 quilo-
watt, fornecida pela Marconi, com a qual a rádio poderia
ultrapassar até os limites do então Distrito Federal.
No dia 7 de setembro – um ano depois da Exposi-
ção do Centenário e funcionando no pavilhão doado pela
Tchecoslováquia, em frente à Santa Casa de Misericór-
dia, na rua Santa Luzia -, a Rádio Sociedade do Rio de
Janeiro, agora com o prefixo de PRA-A, entrou triunfal-
mente no ar.
Não era nada parecida com a rádio que logo se faria
no Brasil. Ao contrário, com seu programa de “educa-
ção em massa”, a Rádio Sociedade parecia, a princípio,
uma extensão da Academia de Ciências. Os acadêmicos
faziam tudo: produziam, escreviam e apresentavam os
programas. Roquette dava o exemplo: acordava todos
os dias às 5 da manhã, lia os matutinos, circulava com
seu lápis de duas cores tudo que lhe parecesse interes-
sante e, duas horas depois, estava diante do microfone
apresentando o “Jornal da Manhã”. Lia as notícias, com
destaque para o noticiário internacional (normalmente,
o mais privilegiado pelos jornais), e comentava-as para
os ouvintes. Outros levavam discos de suas coleções de
clássicos e óperas, botavam-nos para tocar e falavam dos
compositores, músicos e cantores. Ninguém era pago,
era tudo por amor. E havia os que se apresentavam nos
programas, recitando poesia, cantando ou tocando piano
– entre os quais o próprio Roquette.
o pioneiro   77
Para que não se pense que a rádio era um instru-
mento de sua vaidade, é bom dizer que Roquette era ra-
zoavelmente eficiente ao piano e que sua voz de barítono
costumava ser elogiada pelos entendidos. Ele próprio era
um homem rigoroso. Quando, certa vez, o escritor Afrâ-
nio Peixoto insistiu em cantar na rádio, Roquette não fez
por menos: “Mas, com essa voz, Afrânio?”. Peixoto caiu
em si e contentou-se em recitar poemas de cordel, no
que foi acompanhado ao piano por Roquette.
Nem tudo era música e literatura. Os acadêmicos
também davam palestras e cursos pelo microfone, de
acordo com suas especialidades: português, biologia, his-
tória, francês, geografia e até silvicultura. O Rio, capital
da República, recebia toda espécie de personalidades da
área cultural e científica, e um programa obrigatório des-
ses figurões era uma visita às instalações da Rádio Socie-
dade – um deles, em 1925, já na rua da Carioca, 45, foi
Albert Einstein.
O amadorismo da rádio era tão flagrante quanto a
boa vontade dos que a faziam. A programação também
não era de cunho exatamente popular, mas ninguém se
importava: os aparelhos eram caros naqueles primeiros
tempos, poucos podiam possuí-lo e esses poucos gosta-
vam do que a rádio punha no ar. O que os desagradava
era o som terrível das transmissões. Os jornais viviam
cheios de cartas protestando contra os ruídos e chiados
da PRA‑A e temendo pelo futuro do rádio no Brasil, caso
aquilo não melhorasse. Roquette, com sua larga visão
histórica, não se assustava com a ameaça:
“Nós, que assistimos à aurora do rádio, sentimos o
que deveriam ter sentido alguns dos que conseguiram
possuir e ler os primeiros livros”, ele disse ao microfone.
“O rádio é a escola dos que não têm escola. É o jornal
de quem não sabe ler; é o mestre de quem não pode ir à
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho
Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho

Cordel e Comunicação de Massa
Cordel e Comunicação de MassaCordel e Comunicação de Massa
Cordel e Comunicação de MassaLeonia
 
Caderno1 modos dever
Caderno1 modos deverCaderno1 modos dever
Caderno1 modos deverferccr
 
Limites e possibilidades do rádio na educação a distância
Limites e possibilidades do rádio na educação a distânciaLimites e possibilidades do rádio na educação a distância
Limites e possibilidades do rádio na educação a distânciaMatt Morgan
 
Rádiojornalismo / Editoria Internacional
Rádiojornalismo / Editoria InternacionalRádiojornalismo / Editoria Internacional
Rádiojornalismo / Editoria InternacionalUlisses Neto
 
Novas tecnologias, novos modos de viver
Novas tecnologias, novos modos de viverNovas tecnologias, novos modos de viver
Novas tecnologias, novos modos de viverpricaevaristo
 
CLC5.Caderno n.º 1.Meios de Comunicação.pdf
CLC5.Caderno n.º 1.Meios de Comunicação.pdfCLC5.Caderno n.º 1.Meios de Comunicação.pdf
CLC5.Caderno n.º 1.Meios de Comunicação.pdfManuela Isidro
 
O Instituto Nacional de Cinema Educativo: o cinema como meio de comunicação e...
O Instituto Nacional de Cinema Educativo: o cinema como meio de comunicação e...O Instituto Nacional de Cinema Educativo: o cinema como meio de comunicação e...
O Instituto Nacional de Cinema Educativo: o cinema como meio de comunicação e...richard_romancini
 
Trajetórias na educação_dos_surdos
Trajetórias na educação_dos_surdosTrajetórias na educação_dos_surdos
Trajetórias na educação_dos_surdosPaula Aparecida Alves
 
Artigo - O rádio que nos espera
Artigo - O rádio que nos esperaArtigo - O rádio que nos espera
Artigo - O rádio que nos esperaAndreza Salgueiro
 
Revista Blogs - Edição 004/2012
Revista Blogs - Edição 004/2012Revista Blogs - Edição 004/2012
Revista Blogs - Edição 004/2012RevistaBlogs
 
Educacaoem linha12 (1)
Educacaoem linha12 (1)Educacaoem linha12 (1)
Educacaoem linha12 (1)dartfelipe
 
AUGUSTO CURY - O Homem mais Inteligente da His.pdf
AUGUSTO CURY - O Homem mais Inteligente da His.pdfAUGUSTO CURY - O Homem mais Inteligente da His.pdf
AUGUSTO CURY - O Homem mais Inteligente da His.pdfVIEIRA RESENDE
 
17302558 Espiritismo Infantil Historia 72
17302558 Espiritismo Infantil Historia 7217302558 Espiritismo Infantil Historia 72
17302558 Espiritismo Infantil Historia 72Ana Cristina Freitas
 
17302558 Espiritismo Infantil Historia 72
17302558 Espiritismo Infantil Historia 7217302558 Espiritismo Infantil Historia 72
17302558 Espiritismo Infantil Historia 72Ana Cristina Freitas
 

Semelhante a Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho (20)

Cordel e Comunicação de Massa
Cordel e Comunicação de MassaCordel e Comunicação de Massa
Cordel e Comunicação de Massa
 
Caderno1 modos dever
Caderno1 modos deverCaderno1 modos dever
Caderno1 modos dever
 
Inf historia 9
Inf historia 9Inf historia 9
Inf historia 9
 
Cultura
CulturaCultura
Cultura
 
Indústria cultural cultura de massa pdf
Indústria cultural cultura de massa   pdfIndústria cultural cultura de massa   pdf
Indústria cultural cultura de massa pdf
 
Sociedade e Cultura
Sociedade e CulturaSociedade e Cultura
Sociedade e Cultura
 
Limites e possibilidades do rádio na educação a distância
Limites e possibilidades do rádio na educação a distânciaLimites e possibilidades do rádio na educação a distância
Limites e possibilidades do rádio na educação a distância
 
O professor e a leitura de jornal 2
O professor e a leitura de jornal 2O professor e a leitura de jornal 2
O professor e a leitura de jornal 2
 
Rádiojornalismo / Editoria Internacional
Rádiojornalismo / Editoria InternacionalRádiojornalismo / Editoria Internacional
Rádiojornalismo / Editoria Internacional
 
Novas tecnologias, novos modos de viver
Novas tecnologias, novos modos de viverNovas tecnologias, novos modos de viver
Novas tecnologias, novos modos de viver
 
CLC5.Caderno n.º 1.Meios de Comunicação.pdf
CLC5.Caderno n.º 1.Meios de Comunicação.pdfCLC5.Caderno n.º 1.Meios de Comunicação.pdf
CLC5.Caderno n.º 1.Meios de Comunicação.pdf
 
O Instituto Nacional de Cinema Educativo: o cinema como meio de comunicação e...
O Instituto Nacional de Cinema Educativo: o cinema como meio de comunicação e...O Instituto Nacional de Cinema Educativo: o cinema como meio de comunicação e...
O Instituto Nacional de Cinema Educativo: o cinema como meio de comunicação e...
 
Trajetórias na educação_dos_surdos
Trajetórias na educação_dos_surdosTrajetórias na educação_dos_surdos
Trajetórias na educação_dos_surdos
 
Artigo - O rádio que nos espera
Artigo - O rádio que nos esperaArtigo - O rádio que nos espera
Artigo - O rádio que nos espera
 
Revista Blogs - Edição 004/2012
Revista Blogs - Edição 004/2012Revista Blogs - Edição 004/2012
Revista Blogs - Edição 004/2012
 
Diz Jornal - Edição 222
Diz Jornal - Edição 222Diz Jornal - Edição 222
Diz Jornal - Edição 222
 
Educacaoem linha12 (1)
Educacaoem linha12 (1)Educacaoem linha12 (1)
Educacaoem linha12 (1)
 
AUGUSTO CURY - O Homem mais Inteligente da His.pdf
AUGUSTO CURY - O Homem mais Inteligente da His.pdfAUGUSTO CURY - O Homem mais Inteligente da His.pdf
AUGUSTO CURY - O Homem mais Inteligente da His.pdf
 
17302558 Espiritismo Infantil Historia 72
17302558 Espiritismo Infantil Historia 7217302558 Espiritismo Infantil Historia 72
17302558 Espiritismo Infantil Historia 72
 
17302558 Espiritismo Infantil Historia 72
17302558 Espiritismo Infantil Historia 7217302558 Espiritismo Infantil Historia 72
17302558 Espiritismo Infantil Historia 72
 

Livro Rádio MEC - Herança de um Sonho

  • 1. Rádio MEC herança de um sonho
  • 2. Realização Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto – ACERP Diretora Presidente Beth Carmona Diretora Geral de Televisão Rosa Crescente Diretor Administrativo e Financeiro Haroldo Ribeiro Diretor Geral da Rádio MEC Orlando Guilhon Conselho de Administração Presidente Eduardo Tadao Takahashi Conselheiros Yacyra Peixoto Valentim Meira Marcio Fortes de Almeida Jafete Abrahão Marcus Vinícius Di Flora Carlos Roberto Tibúrcio de Oliveira Edição Organização, edição e texto Liana Milanez Coordenação editorial Beth Carmona Coordenação de pesquisa Liara Avellar Coordenação de produção Joice Pacheco Projeto gráfico, direção de arte e capa Helio de Almeida e Thereza Almeida Editoração eletrônica Thereza Almeida Pesquisa e seleção de depoimentos Luiza Pupo, Yonne Polli, Adriana Ribeiro (SOARMEC), Renata Mello (SOARMEC) Pesquisa Iconográfica Renato Rocha, Adriana Ribeiro, Renata Mello (SOARMEC); Liara Avellar (Rádio MEC), Liana Milanez Revisão Lázaro Simões Neto Assistência Flavia Teixeira e Rafaela Lamoglia Agradecimento especial Profª Drª. Elizabeth Cancelli (historiadora)
  • 3. Rádio MEC herança de um sonho Organização e edição Liana Milanez
  • 4.
  • 5. A ciência vai transformando o mundo. O paraíso, sonhado pela gente de outras idades, começa a definir-se aos olhos dos modernos, com as possibilidades que o passado apenas imaginava. O homem culto chegou a voar melhor do que as aves; nadar melhor do que os peixes; libertou-se do jugo da distância e do tempo; realiza em um continente o que concebeu em outro, alguns momentos antes; ouve a voz dos que morreram, conservada em lâminas, com o seu timbre, e as inflexões da dor e da alegria; imortaliza-se, arqui- vando a palavra articulada, com todas as suas características, e as suas formas e seus movimentos com todas as minúcias; e enquanto, mágico inesgotável, vai modifi- cando a terra e lutando contra a fatalidade da morte fazendo reviver as vozes que ela extinguiu, as formas que ela decompôs, o homem não consegue transformar-se a si mesmo, com igual vertiginosa rapidez. Roquette-Pinto (Rondônia, 1916)
  • 6. Introdução Beth Carmona 1 Antecedentes Primeiros momentos – uma voz para a ciência Liana Milanez 2 O Pioneiro Acabaram de ouvir... Carlos Drummond de Andrade Roquette-Pinto: O homem-multidão Ruy Castro Um menino muito inquieto Luiz Carlos Saroldi 3 Da Rádio Sociedade à Rádio MEC Por ares nunca dantes antenados Renato Rocha Depoimentos Testemunhas da história 4 A presença da música Rádio MEC – Um centro de difusão da música clássica Edino Krieger Depoimentos A música de concerto segundo seus artífices Os conjuntos musicais 5 Espaço para todos os gêneros A MPB na Rádio MEC de Roquette-Pinto Ricardo Cravo Albin Depoimentos Os agentes da Música Popular Sumário
  • 7. 6 O educativo como missão Rádio MEC – A mais concretizada expressão da radiodifusão educativa Marlene Blois Depoimentos Educação e cultura 7 Dramaturgia no rádio Aprendizado de vida e profissão Fernanda Montenegro Depoimentos Teatro no dial 8 Sucessores de Roquette-Pinto Uma rádio pública, uma gestão democrática Orlando Guilhon Depoimentos Gestão: da inovação à ditadura e aos novos tempos Depoimentos Tempos difíceis, tempos tristes Depoimentos A perspectiva de alguns dirigentes complementos Cronologia histórica (da Rádio MEC) Relação dos diretores da Rádio MEC a partir de 1936 Relação de depoimentos de funcionários ao “Amigo Ouvinte” Bibliografia Créditos das Imagens Agradecimentos
  • 8.
  • 9. Introdução Beth Carmona Este livro é parte de um conjunto de ações que procuramos implantar na Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto (Acerp), entidade que con- grega a Rádio MEC e a TVE Brasil, ao longo dos últimos quatro anos. Com esse volume dedicado exclusivamente à his- tória da Rádio MEC, procuramos resgatar o importante papel desempenhado pelo rádio como instrumento de educação e aproximação de comunidades isoladas pelo interior do país e demonstrar nosso respeito ao passado e aos princípios defendidos pelo pioneiro Edgard Roquet- te-Pinto e seus compatriotas. Saber ler não é um fim. O analfabeto é muitas vezes homem de bons recursos técnicos. Mas não pode desenvolve-los porque lhe falta aquele uso do sá- bio companheiro impresso (...) Pois dará (o Estado), pelo seu preço de custo, a cada brasileiro, o seu mo- desto rádio em que ele descalço, até mesmo roto, esfarrapado, amarelo, mole de doença e de ignorân- cia, aprenderá, antes de saber ler, que a preguiça é herança de um sonho  
  • 10. 10   Rádio mec herança de um sonho quase sempre doença; que é preciso plantar o me- lhor da colheita para obter maior rendimento; que ser soldado não é ser escravo e sim receber instrução e educação, em lugares asseados, dirigidos por pa- trícios dedicados, fraternalmente, a serviço do País; que o Brasil não é, de fato, o país mais rico do mun- do, mas que pode vir a ser, facilmente, se os seus fi- lhos souberem tirar da terra tudo o que ela pode dar; que os povos fortes, são hoje, os povos que sabem aplicar a ciência e a arte em melhorar a vida . A convicção contida nessas palavras, os ideais que de- ram origem à Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1923, e o desprendimento demonstrado no ato de sua doação à sociedade brasileira, estão no cerne da missão que persegui- mos. A mesma missão que impulsionou o grupo de cientis- tas, liderados pelo mestre Roquette que, como ele, acredita- vam que o rádio poderia ser:“a escola dos que não têm ecola... o jornal de quem não sabe ler; ... o mestre de quem não pode ir à escola; ... o divertimento gratuito do pobre; ... o animador de novas esperanças, o consolador dos enfermos e o guia dos sãos – desde que o realizem com espírito altruísta e elevado”. Na premissa da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, como o próprio nome indicava, estava uma associação de amigos, um clube de ouvintes dispostos a defender a emis- sora “fundada com fins exclusivamente científicos, técnicos, artísticos e de pura educação popular”, como ficou impresso no primeiro estatuto. Lembrar as palavras proclamadas pelo criador é opor- tuno quando se deseja destacar a relevância de um veícu- lo comprometido com a educação em um sentido amplo: “Que meio para transformar o homem, em poucos minu- tos, se o empregarem com alma e coração!” , dizia Roquette vislumbrando na nova tecnologia um instrumento legítimo 1. ROQUETTE-PINTO, Ed- gard, in 50 anos da Teleducação, Suplemento da Revista Brasileira de Teleducação, 2. 1975, p. 4. 2. No dia 7 de setembro de 1936, a Rádio Sociedade do Rio de Ja- neiro foi doada ao Ministério da Educação, para que pudesse con- tinuar com suas atividades exclu- sivamente educacionais. 3. ROQUETTE-PINTO, Edgar, in OTRIWANO, Gisela Swetla- na, “Radiojornalismo no Brasil: fragmentos de história” – “80 anos de radiojornalismo”, Revista USP, Dez/jan/fev/ - 2002-2003., p. 77-85.
  • 11. herança de um sonho   11 para vencer as distâncias levando “o conforto moral da ci- ência e da arte”. Seu sucessor na direção da Rádio, Fernando Tude de Souza, partilhava as mesmas idéias. Em palestra como paraninfo dos bacharéis em Jornalismo de 1951, da Uni- versidade do Brasil, ele afirmou: Num mundo em que mais da metade da popula- ção não sabe ler ou escrever, é fácil compreender o papel extraordinário que poderão desempenhar os instrumentos que a ciência colocou à disposição do homem. O que precisamos fazer, mesmo com luta e com sacrifício é não permitir que tais desenvol- vimentos se transformem em instrumentos para vantagens de alguns e de exploração das maiorias, é não permitir que, por medidas drásticas, ou mesmo sutis certos grupos se apossem dessas armas da de- mocracia para a apresentação da verdade que não é verdade ou que é apenas meia verdade. Como resposta ao gesto altruísta de 1936, que brin- dou o povo brasileiro com um serviço público de radio- difusão, cabe-nos a tarefa neste momento de resgatar essa história com o objetivo de preserva-la às gerações futuras. Foi a nossa escolha para comemorar os 70 anos da Rádio MEC e, ao mesmo tempo, os 83 anos da radio- difusão no Brasil. Os depoimentos, relatos e material fotográfico que constituem este documento histórico nos levam a refletir sobre os caminhos e descaminhos das emissoras públicas no Brasil, com o olhar voltado ao futuro. É hora dos “Roquettes” do século 21 também vis- lumbrarem, nas novas tecnologias digitais, a imensa por- ta que se abre em benefício da difusão do saber. Nas pri- meiras décadas do século passado, foi a possibilidade de
  • 12. 12   Rádio mec herança de um sonho propagação do som que mobilizou os atentos cientistas e educadores. Nesse início de século, são as possibilidades de uma maior fruição do conhecimento e da informação - elementos vitais para o desenvolvimento de crianças, jovens e adultos. Antes de criar a Rádio Sociedade, Roquette-Pinto já sonhava com a democratização do saber. “Meu dese- jo é divulgar o conhecimento das maravilhas da ciência moderna nas camadas populares”, declarou um dia a Humberto de Campos, acrescentando: “Eu quero tirar a ciência do domínio exclusivista dos sábios para entregá- la ao povo”. E foi vitorioso ao conseguir convencer seus pares na Academia Brasileira de Ciências a empreender o projeto de socialização de conhecimentos aproveitando os recursos tecnológicos da época. Mais tarde, nos anos 1950, o mesmo Roquette per- cebeu o valor da imagem agregada ao áudio e lutou tam- bém pela implantação de uma televisão educativa. Via mais uma vez a chance de abrir as portas da ignorância para o saber. As páginas seguintes trazem parte dessa história reconstituída pela memória de seus artífices. São textos elaborados especificamente para esse livro assim como depoimentos de funcionários e colaboradores recolhidos no decorrer dos tempos pelo Informativo Amigo Ouvinte da Soarmec (Sociedade dos Amigos da Rádio MEC). São profissionais que atuaram nas mais distintas áreas - téc- nicos, produtores, locutores, administrativos, diretores e apresentadores – todos eles personagens do dia-a-dia da Rádio MEC. Os relatos mostram momentos do percurso dos 70 anos da Rádio, assim como fragmentos de suas próprias histórias de vida, suas memórias e realizações e, mais ainda, sua paixão pela emissora que aprenderam a respeitar e defender como um bem herdado do criador.
  • 13. herança de um sonho   13 Um povo que rememora seus heróis cultiva energias ne- cessárias a seu viver futuro, disse um dia Roquette-Pinto. Estamos nesse momento rememorando tanto o “herói” criador quanto a criatura. Viramos o século, chegamos a um novo milênio e as palavras de Edgard Roquette-Pin- to transcritas no terceiro parágrafo deste texto ecoam as mesmas verdades ainda tão reais. Que o rádio continue e cumpra – sempre - o seu papel estratégico como seme- ador e produtor de cultura. Beth Carmona - Jornalista, presidente da Acerp. Foi diretora de Programação da TV Cultura, diretora de Programação e Produção para América Latina e Ibéria dos canais Discovery Kids e Animal Planet (Grupo Discovery), diretora de Programação do Disney Channel e Fox Kids, no Brasil. Presidente do Midiativa (Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes)
  • 14. 14   Rádio mec herança de um sonho
  • 15. herança de um sonho   15 1 Antecedentes
  • 16. Os pioneiros do Rádio reunidos em almoço de homenagem a Edgar Roquette-Pinto no Hotel Itamaraty, na véspera de sua partida à Suécia, em junho de 1924. Roquette-Pinto, (com casaca, segurando a bengala e o chapéu na mão direita), Henrique Morizze (o mais alto à esquerda de Roquette) e os companheiros Catulo da Paixão Cearense, Adalberto Santos, Edgar Sussekind de Mendonça, Francisco Lafayette, Dulcidio Pereira, Alirio de Matos, Juvenil Pereira, Carlos Lacombe, Alberto Jacobina, Paulo Carneiro, Rui Castro, Carlos Sussekind de Mendonça, Otto H. Leonardos, Francisco Venâncio Filho, José Jonots Koff de Almeida Gomes, Carlos Morize, Jorge Leuzinger, Hirom Jacques, Cosme Pinto, Elizio Rodrigues Lima, Paulo Roquette-Pinto.
  • 17. Primeiros momentos – uma voz para a ciência Liana Milanez Crescemos, uns, qual árvore indivisa, levados pela força de um destino retilíneo, como as palmeiras crescem; outros, com a vida ramificada pelos em- puxos ambientes. Pretendemos. Tentamos. Retro- cedemos. Afinal, caminhamos na diretriz primiti- vamente escolhida, quando o tempo nos concede alcançar; crescemos com as lianas. Roquette-Pinto 1 Para entender um pouco dos homens que fize- ram a história do rádio naquelas primeiras décadas dos anos 1900, é preciso pensar sobre um Brasil que florescia urbanística e culturalmente. Em um Rio de Janeiro, ca- pital da República, em meio à intensa agitação. A pre- sença de casas de espetáculos teatrais, projeções cinema- tográficas, cafés, funcionavam como espaços de grande efervescência cultural e social. No meio acadêmico o ritmo era o mesmo. A necessi- dade de divulgar a ciência ecoava na Academia Brasileira de Ciências (ABC) e ganhava espaço em jornais, revis- tas, livros e conferências abertas ao público. Mas isso não 1. ROQUETTE-PINTO, Ed- gard, Rondônia, 1938, p. 62. antecedentes   17
  • 18. 18   Rádio mec herança de um sonho bastava ao grupo de cientistas e acadêmicos liderados por Henrique Morize, presidente da academia. Era pre- ciso mais para um país de grandes extensões e muitas dificuldades. Na visão de Morize, era fundamental “es- palhar a importância da ciência como fator de prosperi- dade nacional”. E é nesse ambiente agitado que, em 20 de abril de 1923, surgiu a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, nas sa- las da ABC. Era uma ação independente – sem ingerên- cias governamentais. Um tipo de iniciativa altruísta que movia um grupo de pessoas lideradas pelo Prof. Edgard Roquette-Pinto. Era a implantação da primeira emissora de radiodifusão do País. Projeto que acabou tendo êxi- to e, em 1º de maio, e por mais de oito décadas, o Rio de Janeiro era contemplado com as transmissões da Rá- dio Sociedade do Rio de Janeiro, PR-1-A, primeiro, depois PRA-A, logo adiante PRA-2, e, mais tarde, Rádio MEC – AM 800 KHz e FM 98,8 MHz . Vencida a primeira etapa - colocar a emissora no ar -, Roquette-Pinto tinha uma segunda batalha a vencer: a legalização dos serviços de radiodifusão. Era preciso con- vencer as autoridades a mudar, nas palavras de Roquette, “um regulamento anacrônico, carranca, retrógrado, infe- liz, que proibia a prática da T.S.F. (Telefonia Sem Fio) pelos cidadãos” (Roquette-Pinto, Edgard, in Matheus, Roberto Ruiz, 1984). Nessa época, a polícia apreendia as “galenas” que eram denunciadas. Assim, depois de intensa peregrinação, os pionei- ros da radiodifusão conquistavam mais uma vitória. Em 20 de agosto, quatro meses depois da criação da Rádio Sociedade, o presidente Arthur Bernardes autorizava, oficialmente, as irradiações para fins educativos. O Arti- go 3º dos Estatutos da “primogênita” confirmava o ide- al dos criadores: “A Rádio Sociedade fundada com fins
  • 19. antecedentes   19 exclusivamente científicos, técnicos, artísticos e de pura educação popular, não se envolverá jamais em nenhum assunto de natureza profissional, industrial, comercial ou política”.2 Tudo foi muito bem pensado naqueles idos de 1923. Para cumprir com os objetivos determinados pelos fun- dadores – ser um veículo de difusão científica - a rádio deveria manter, em sua sede, uma biblioteca, sala para cursos e conferências, laboratório de ensaios científicos e uma estação de broadcasting, para irradiar conferências, concertos, assuntos de interesse científico, literário ou ar- tístico, além da hora legal e o boletim do tempo, serviços de interesse à comunidade. Sabiam que lidavam com um público eclético e pre- cisavam fazer eco de suas irradiações. Até o significado dos novos termos que a tecnologia introduzia era expli- cado como, por exemplo, a palavra broadcasting: “Muitas pessoas andam ainda intrigadas com a signi- ficação precisa do vocábulo –broadcasting–... É uma 2. Integravam o primeiro Conse- lho Diretor os sócios Henrique Morize (presidente), Edgard Ro- quette-Pinto (secretário), Demó- crito Lartigau Seabra (tesoureiro), e os diretores Carlos Guinle, Luiz Betim Paes Leme, Alvaro Ozorio de Almeida, Francisco Lafaytte, Mario de Souza e Angelo M. da Costa Lima. Como presidente honorário foi escolhido o Ministro da Viação e Obras Públicas, Fran- cisco Sá. Entre os diretores ho- norários estavam personalidades ilustres como o francês General Ferrié, o Prof. Abraham, General Rondon, Dr. Octavio Mangabei- ra, Dr. Gabriel Ozorio de Almei- da, entre outros. (Electron, Ano I, Número 7. Estatutos da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro). Exemplar do primeiro Estatuto da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que informava no artigo 3º: “... fundada com fins exclusivamente científicos, técnicos, artísticos e de pura educação popular...”
  • 20. 20   Rádio mec herança de um sonho palavra inglesa formada pela junção de dois vocábu- los. O verbo – –to cast–- part.presente –casting– - quer dizer –semear–... (...) –Broad–...por sua vez, significa –ao largo–...ao longe. De onde –broadcas- ting– ... semear ao longe, lançar bem ao largo a boa semente. Como ninguém deve semear a má semen- te, todo o broadcasting deve ser digno do nome...”, escreveu Roquette-Pinto no primeiro Electron. Cabia aos desbravadores da radiodifusão brasileira formar profissionais para a nova tecnologia de comunica- ção, que chegava ao Brasil em um clima de expectativa e euforia muito similar ao vivido mais tarde com a che- gada da televisão e da internet. O projeto teve êxito e, na comemoração do seu terceiro aniversário, o arquivo da Rádio Sociedade já possuía cerca de dez mil docu- mentos, “alguns do maior valor para a história do rádio no Brasil”.3 A rádio passou a ser um ponto de encontro da in- telectualidade nacional e estrangeira. Visitantes ilustres, como Albert Einstein; Madame Curie; o general Ferrié, cientista francês e também pioneiro da radiodifusão, que aperfeiçoou a Telefonia sem Fio (T.S.F.) instalando uma antena no topo da Torre Eiffel; o crítico e historiador francês, Paul Hazard; o futurista Filippo Tommaso Ma- rineti, autor do Manifesto Técnico da Literatura Futurista, entre outras personalidades do mundo intelectual foram recebidas por Roquette-Pinto e sua equipe. Durante a visita, Einstein manifestou publicamente suas impres- sões sobre aquela rádio: Após minha visita a esta Rádio Sociedade, não posso deixar demais uma vez admirar os esplêndidos resul- tados a que chegou a ciência aliada à técnica, permi- tindo aos que vivem isolados os melhores frutos da 3. In MASSARANI, Luisa, 1998, A divulgação científica no Rio de Ja- neiro: algumas reflexões sobre a déca- da de 20. Dissertação de mestrado, Ciência da Informação, IBICT e Escola de Comunicação UFRJ. http://www.cciencia.ufrj.br/Pu- blicacoes/Dissertacoes/Massara- ni_tese.pdf.
  • 21. antecedentes   21 civilização. É verdade que o livro também poderia fazer e o tem feito; mas não com a simplicidade e se- gurança de uma exposição cuidada e ouvida de viva voz. O livro tem que ser escolhido pelo leitor, o que por vezes traz dificuldades. Na cultura levada pela radiotelefonia, desde que sejam pessoas autorizadas as que se encarreguem das divulgações, quem ouve recebe além de uma escolha judiciosa, opiniões pes- soais e comentários que aplainam os caminhos e fa- cilitam a compreensão: esta é a grande obra da Rádio Sociedade. (Revista Carioca, 13/05/1948, p. 37) Exemplar da segunda edição do livro Rondônia, autografado por Roquette-Pinto, para a Rádio Sociedade, em 7 de setembro de 1923: “À Rádio Sociedade, pela grandeza do Brasil”
  • 22. 22   Rádio mec herança de um sonho Dois anos depois da criação da Rádio Sociedade, em reunião realizada no dia 29 de abril, os integrantes da Aca- demia Brasileira de Ciências confirmavam o caráter de di- vulgação científica da emissora. Na ata ficou registrado a grande obra de educação e de vulgarização científica que vem realizando essa instituição nascida no seio da Academia. Da mesma forma como iniciou, permaneceu até sua doação ao Ministério da Educação, em 1936, mantida por um grupo de sócios colaboradores. A participação do go- verno, nessa primeira fase do rádio no Brasil foi bastante passiva, conforme observou o professor e pesquisador Louk de la Rive Box, em sua tese de doutorado Organi- zation of Educational Broadcasting in Brazil. (BOX, Louk de la Rive, 1973)4 Estratégias de aproximação com o público Além da transmissão pelas ondas sonoras, a rádio usou publicações impressas como estratégia para chegar a um público maior. Seguia o contexto da época, que conso- lidou a década de 1920 como uma fase de grande difu- são científica no País. Era o sonho de chegar longe e em tempo real que se prenunciava e foi nesse cenário que nasceu o embrião da atual Rádio MEC. Como sua parceira impressa, foi lançada, quase si- multaneamente, a Rádio – Revista de divulgação científica geral especialmente consagrada a rádiocultura. Com 48 pá- ginas, bimensal, era o órgão oficial da Rádio Sociedade. Dirigida por Roquette-Pinto e administrada por Carlos Sussekind de Mendonça, a Rádio teve seu primeiro nú- mero em 15 de outubro de 1923. Essa edição trazia arti- gos técnicos sobre radiotelegrafia, questões da legislação brasileira que impediam o desenvolvimento da radiodi- 4. Ibid. 76. “In other words, the government’s part in the develop- ment of this aspect of broadcast- ing appears to have been a rather passive one. It allowed its stations to be used (or leased) by two com- mercial grupos; the ecucational broadcasters had already acquired their own stations”.
  • 23. antecedentes   23 fusão no país, entre outros assuntos internacionais liga- dos ao rádio. No segundo número, a revista dedicou seu edito- rial para responder às reações negativas geradas pelo nú- mero 1, composto basicamente de artigos técnicos sobre o rádio. O editorial abria com o contraponto “Rádio de mais... rádio de menos...”, para justificar as impressões desencontradas que teria provocado. Era uma defesa contundente sobre os objetivos do rádio: “O nosso fim é a vulgarização científica geral, a vulgarização de conhe- cimentos modernos que o povo muitas vezes não apren- de porque não lhe dizem”. Reconhecia que, até então, o melhor meio tinha sido o livro: “Mas, hoje, veio o rá- dio, que é o livro falado e portanto muito mais agradável, muito mais simples e muito mais acessível”. (Rádio, ano I, n. 2, 1/nov./1923, In MASSARANI, Luisa, 1998) Em 1º de janeiro de 1926, surgiu a Electron. Como a primeira revista, era bimensal e dirigida por Roquet- te-Pinto. O expediente informava: “Publicação de Rádio Cultura distribuída aos sócios da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro e mantida exclusivamente pelos seus anun- ciantes e leitores”. Com 16 páginas e tiragem aproxima- da de três mil exemplares, era distribuída nos dias 1 e 16. O exemplar avulso era vendido a 600 réis, no Rio de Janeiro, e 800 réis em outros estados. Na primeira edi- ção, Electron apresentava-se ao público com um texto de Edgard Roquette-Pinto, um editorial poético impresso na primeira página: Vivo na lasca de carvão, negro e humilde, escravo do homem a cumprir os seus desejos; vivo na centelha do céu, que ensinou o fogo à humanidade e rom- pe a treva das nuvens para clarear o mundo na hora triste e majestosa das tempestades; vivo na lágrima
  • 24. 24   Rádio mec herança de um sonho e na gota de leite, num pensamento e num sorriso. Sou tão pequenino... que quase não existo; e sou tão grande que faço girar os mundos (...) Agito-me, sem descanso, para servir a Criação, na luz, no calor, no som e nas ondas eternas... Os ho- mens, desvairados, servem-se de mim para empresas tristes de guerra e maldade; cumpro revoltado esse mister odioso. Mas a minha ambição maior, o meu louco desejo, é poder vibrar sempre, livre do mal, levando pelo infinito os pensamentos bons que num dia há de transformar as gentes, livrando os escravos do trabalho e acorrentando as nações na mesma sim- patia. Sou tão pequeno... ninguém me vê!(...). Assim cantava Electron, no primeiro minuto do ano de 1926 quando se preparava, na antena da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, para desferir o vôo glorioso pelo espaço. E foi assim que, por descuido, tudo entregue ao seu delírio, perdeu a onda... e caiu no cimo dessa página. (ROQUETTE-PINTO, Ed- gard, Electron, Ano 1, nº 1, 1926). Em um gesto de respeito aos associados e ouvintes, o Electron 7 trouxe a íntegra dos “novos” estatutos da Rá- dio Sociedade. Além de informar sobre a programação que iria irradiar ao longo da quinzena seguinte, essa edição es- tava recheada de artigos técnicos, educativos, e, ainda, os conteúdos dos cursos transmitidos pelas ondas sonoras. O conteúdo e a escolha dos professores demonstra- vam preocupação com a qualidade do que era veiculado pela emissora. Conforme os resumos dos cursos impres- sos no Electron número 1, a Rádio veiculava aulas de Por- tuguês, ministradas por José Oiticica (do Colégio Pedro Dirigida por Roquette-Pinto, a revista bimen- sal Electron foi lançada em 1º de janeiro de 1926, com tiragem de três mil exemplares. O número 7 trouxe a íntegra dos estatutos da Rádio Sociedade
  • 25. antecedentes   25 II); Inglês, por Luiz Eugenio Moraes Costa (diretor do Atheneu S. Luiz); Francês, Maria Veloso (o curso era oferecido pela revista feminina Única); Física, Francisco Venâncio Filho (também do Colégio Pedro II); Química, constituía-se de palestras proferidas por Mario Saraiva (diretor do Instituto de –Chimica– do Rio de Janeiro); História do Brasil, João Ribeiro (também do Colégio Pe- dro II); e até um curso de Silvicultura Prática, ministrado pelo professor de Botânica do Museu Nacional, Alberto J. de Sampaio. Completava o quadro, colaboradores como Catullo da Paixão Cearense, flautista, cantor, violonista e poe- ta, que se revezava em apresentações variadas como o Desafio Sertanejo, com João Pernambuco (violonista), o Conto Sertanejo e ainda Literatura Brasileira. O advogado Ayres Martins Torres cuidava do programa “Explicação popular do Código Civil – A lei e sua função social”, o médico Sebastião Barroso, fazia palestra sobre higiene, e o professor João Kopke, o papel do vovô em o Quarto de Hora Infantil.5 A cada noite, no espaço reservado à música, cantores diferentes acompanhavam as orquestras do Hotel Glória e da Rádio Sociedade, que se alternavam nas apresenta- ções. Complementavam a programação musical os reci- tais de piano, como os dos irmãos José e Octavio Bran- dão, e os solos de violão com João Pernambuco, entre outros instrumentistas. Outro importante papel perseguido pela rádio, já nesses primeiros tempos, foi o de aproximar o ouvinte aos acontecimentos culturais restritos às salas de espetá- culo. Um bom exemplo, foi a transmissão da ópera apre- sentada pela Companhia Lírica de Paschoal Segreto, en- cenada no Theatro João Caetano e irradiada no dia 5 de maio de 1926 às 20h45. 5. Electron, 1/05/1926, p.6
  • 26. 26   Rádio mec herança de um sonho Diversidade na programação A grade de programação da Rádio Sociedade era compos- ta de noticiários, suplemento musical e horário infantil. Entre os programas fixos destacavam-se o Jornal do Meio Dia, com notícias extraídas dos jornais da manhã, mais informações econômicas - abertura das bolsas de algo- dão, café e açúcar -; Jornal da Tarde, transmitido das 17 às 18h15, com uma interrupção às 17h45 para o Quarto de hora infantil. Às 22 horas, vinham mais notícias no Jornal da Noite, com informações recolhidas nos vespertinos, além de notas econômicas relativas ao fechamento das bolsas e do câmbio. Depois de se informar com as notícias do Jornal do Meio Dia, o ouvinte era brindado com uma faixa especial denominada Página, composta de temas variados e apre- sentados em dias pré-determinados. A segunda-feira era reservada ao esporte, com Página Esportiva; terça-feira, Página Agronômica; quarta-feira, Página Literária; quin- ta-feira, Página Infantil; sexta-feira, Página Feminina; e, sábado, Página Doméstica. No domingo, a programação iniciava às 15 horas com Música Popular Brasileira. Como o disco ainda era raridade, apesar de ter che- gado ao Brasil em 1902, as apresentações musicais eram feitas ao vivo, diretas do estúdio. Vale reproduzir a progra- mação do dia 1º de fevereiro de 1926, uma segunda-feira, quando foi transmitido, entre 20h e 22 horas, o –Concerto no Estúdio–. Nessa noite, a Orquestra da Rádio Sociedade apresentou-se acompanhada dos cantores Lucilia Faria e Ignácio Guimarães, que interpretaram obras de Spialck, Fietter, Mozart, Gounod, Massenet, Verdi e Francisco Braga, entre outros compositores. Essas descrições de- monstram a diversidade da programação, que tinha o in- tuito de atingir a uma gama variada de ouvintes.
  • 27. antecedentes   27 Os efeitos da chegada da propaganda O rádio foi o grande canal de comunicação dos anos 30, período marcado no país por intenso conflito político: o golpe de 1930, a revolta constitucionalista de 1932, o desbaratamento da tentativa do levante comunista de 1935, o “Putsch” integralista e a decretação do Estado Novo em 1937. Diante de toda essa movimentação, o rádio não fi- caria imune. Em 1º de março de 1932, pouco antes da revolução constitucionalista, o presidente Getúlio Vargas assinou o decreto-lei que autorizava a utilização de pro- paganda pelo rádio. Sem levar em consideração os seus efeitos, esse foi um passo importante para a transforma- ção do rádio em veículo de comunicação de massa. Como conseqüência, vieram os anunciantes em busca do gran- de público. Consciente da força e do poder do veículo, Getúlio Vargas soube usufruir suas prerrogativas e, em 1936, criou a Hora do Brasil. O programa, eminentemente político, disseminava constantemente os discursos de Vargas e de outras autoridades do regime, acompanhado da apresenta- ção de cantores populares, como um atrativo ­motivador. Em dezembro de 1939, o Estado refinaria seus me- canismos de controle e censura criando o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), dirigido por um dos mais importantes intelectuais do regime varguista: Lou- rival Fontes. O DIP tinha o objetivo de difundir o Estado Novo.Suaorigemeraanterior.SubstituiuoDepartamento Oficial de Publicidade, criado em 1931, e o posterior De- partamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC) de 1934. Já no Estado Novo, no início de 1938, o DPDC transformou-se no Departamento Nacional de Propagan- da (DNP), que finalmente deu lugar ao DIP.
  • 28. 28   Rádio mec herança de um sonho Com a intensificação do trabalho de controle e cen- sura, a Rádio Sociedade, como outros órgãos de difusão, passou a receber telegramas com “sugestões” sobre o que deveria ou não apresentar. A situação agravou-se ainda com o clima de crise interna e externa alimentado após a invasão da Polônia pelas tropas alemãs e da posterior proibição do uso público de línguas estrangeiras, espe- cialmente as faladas nos países do Eixo: “Comunico vossa senhoria estão proibidas irradiações gravações músicas canta- das nas línguas alemã e italiana. Saudações capitão Amílcar Dutra Menezes, diretor Divisão Rádio – DIP”, esse era o teor do telegrama recebido em 19 de agosto de 1942, pela Rádio Sociedade. A Rádio, como outros veículos da época, foi testemunha da eclosão da 2ª Guerra Mundial. A doação Ainda em meados da década de 1930, o inquieto e em- preendedor Roquette participou da criação da Rádio Es- cola Municipal do Rio de Janeiro – PRD-5 - vinculada ao governo do Distrito Federal, atual Rádio Roquette-Pin- to. A emissora foi ao ar pela primeira vez, em transmissão experimental, no dia 31 de dezembro de 1933, e inaugu- rada, oficialmente, em 6 de janeiro do ano seguinte. Sempre com a idéia fixa para a difusão de conhe- cimentos em larga escala, Roquette assumiu a direção do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) em 1936. Foi nesse mesmo ano que precisou se desfazer da sua Rádio Sociedade. Já não era possível resistir às pres- sões para cumprir as exigências do Decreto 20.047, de 27 de maio de 19316 , mantendo, ao mesmo tempo, o idealis- mo de trabalhar exclusivamente pela cultura do povo. As pressões impostas pelo decreto eram de tal or- dem, que, para serem atendidas, seria necessário trans- 6. Exigia o aumento de potên- cia dos transmissores de todas as emissoras do país.
  • 29. antecedentes   29 Correspondência do Departamento Nacional de Propaganda, de 20 de dezembro de 1937, solicitando que a “Hora do Brasil” fosse transmitida diretamente dos estúdios da PRA-2 enquanto construíam um estúdio próprio.
  • 30. 30   Rádio mec herança de um sonho As correspondências oficiais enviadas pelo Departamento Nacional de Propaganda, foram rotina durante o Estado Novo, como essa de 31/10/1983, determinando divulgação do “catecismo do novo regime”
  • 31. antecedentes   31 As determinações do Departamento de Imprensa e Propaganda, dirigido por Lourival Fontes, chegavam também por telegrama, como o recebido em 10 de novembro de 1937, comunicando horário de pronuncia- mento do presidente Getúlio Vargas A proibição do uso público de línguas estrangei- ras, principalmente alemão e italiano, durante a segunda guerra atingiu a programação musical da Rádio Sociedade, como atesta o telegrama do DIP.
  • 32. 32   Rádio mec herança de um sonho formar “aquele centro de ciências, letras e artes, em uma empresa comercial, exploradora de publicidade”. Os es- tatutos não permitiam essa reviravolta. Não custa lem- brar os objetivos de sua criação – “servir modestamente como instrumento de educação ao povo brasileiro”. Diante do impasse, restou aos associados cumprir com o Artigo 20 dos estatutos que determinava, “em caso de dissolução da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro”, a transferência de todos os seus bens ao governo. E assim foi feito. No dia 7 de setembro de 1936, a Rádio Sociedade mudou de mãos e de nome. Mas com uma condição. A nova Rádio Ministério da Educação e Cultura deveria con- tinuar com suas atividades exclusivamente educativas. No ano seguinte, foi criado o Serviço de Radiodifusão Educativo (SRE), para operar a PRA-2. Roquette mante- ve-se à frente da emissora por mais sete anos. Relatório dirigido por Roquette-Pinto ao Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em 1941, in- formava que a PRA-2 estivera no ar durante aquele ano 2.559 horas e 40 minutos. Sobre a programação, desta- cava as 112 transmissões externas realizadas em vários locais, entre eles, a Escola Nacional de Música, Teatro Municipal, Associação Brasileira de Imprensa e o Palá- cio Itamarati. Em relação aos programas educativos e culturais – constituem a atividade normal do SRE. Visam a ampliação da cultura popular tanto do ponto de vista ar- tístico quanto informativo no campo de conhecimento, foram transmitidos 71 no período. Relacionava ainda os progra- mas extraordinários (efemérides), os noticiosos, cursos, palestras, além dos Programas culturais em discos - um to- tal de 411 –, como Revista Musical da Semana, Os Grandes Intérpretes, Festivais, Recitais, Os mais belos concertos para piano e orquestra, Os grandes regentes, Óperas, e Intercâmbio radiofônico. Predominava a música de concerto.
  • 33. antecedentes   33 Em 11 de março de 1943, assumiria a direção do SRE, o colaborador de Roquette e também médico, Fer- nando Tude de Souza. Técnico em Educação do Ministé- rio da Educação, Tude reunia competências para o cargo. Fora presidente da Associação Brasileira de Educação, delegado eleito pela Unesco para membro do Conse- lho Mundial de Rádio-educativo, tornando-se profundo conhecedor da radiodifusão. O reconhecimento era pú- blico. “Fernando Tude de Souza é, na atualidade, um dos mais positivos valores do broadcasting brasileiro, cujo renome ultrapassou as nossas fronteiras”, publicava a Re- vista do Rádio, em 13 de maio de 1948, em reportagem especial sobre os 25 anos de implantação da primeira rá- dio no País. Na entrevista, Tude de Souza foi enfático ao falar sobre a fidelidade ao antigo projeto de Roquette Pinto: “O lema de 1923 é, ainda, o lema de 1948. Desde 11 de março de 1943 que dirijo a Rádio Ministério da Educação - sucessora da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro” e tudo tenho feito para não me afastar das normas traçadas pelo grande brasileiro Roquette-Pinto e seus companheiros de jornada em 1923–, afirmou o então diretor. Ao repórter Milton Salles7 , ele anunciou as novida- des na programação para aquele ano de comemorações do nascimento da radiodifusão. Com a ampliação do horário de transmissões, a Rádio Ministério da Educação dedicaria a maior parte do seu primeiro horário – das 7 às 14 horas -, para cursos, além de um jornal feito por especialistas e –música adequada–. As alterações incluíam, ainda, o in- cremento ao Departamento infanto-juvenil, que passaria a gerar programas diários voltados à juventude e à infân- cia. Os microfones da Rádio Ministério estariam abertos a artistas nacionais e estrangeiros, assim como para progra- mas culturais entregues a grandes nomes do circuito das 7. Revista do Rádio, A burocra- cia é a grande inimiga da PRA-2. 13/05/1948, p.16.
  • 34. 34   Rádio mec herança de um sonho artes. A matéria abordava também as dificuldades enfren- tadas por uma emissora (estatal) mantida com recursos escassos. Vale aqui reproduzir a resposta de Tude: Sou o primeiro a reconhecer que há falhas... Tratei primeiro da parte material. A tarefa está pratica- mente vencida. Vou agora cuidar da parte cultural. Espero convencer as autoridades sobre a urgência de fornecer os meios para bem utilizar o mais notá- vel veículo de educação de que dispõe o país no mo- mento. (Revista do Rádio, A burocracia é a grande inimiga da PRA-2,1948, p.17) Como estratégia de sua administração, o novo diretor prometia uma importante modificação nas diretrizes dos serviços de rádio educação. Pela primeira vez, o S.R.E. seria cultural e instrutivo. Segundo ele, “rádio educati- vo” poderia ser todo o rádio feito no país. Independente de ter um caráter instrutivo ou de ensino. Dessa forma, o mais importante é que toda a programação radiofôni- ca não fosse “deseducativa”, mesmo a transmitida pelas emissoras puramente comerciais...”.(In PIMENTEL, Fábio Prado, 2004, p.34) Cinco anos depois, a promessa havia se cumprido. Nesse período, ele conseguira adquirir um transmissor de 25 quilowatts para o canal de ondas curtas, dotar a estação de dois estúdios modernos, um serviço de gra- vação, uma biblioteca especializada - a mais completa da América do Sul -, os departamentos de cursos didáticos, feminino, infanto-juvenil, e uma discoteca com 12 mil discos. (CF. Revista Carioca, 13/05/1948, p. 60). E não parou aí. Com a presença do presidente da República, General Eurico Gaspar Dutra, foram inaugu- rados naquele 20 de abril de 1948, o estúdio sinfônico,
  • 35. antecedentes   35 A música erudita esteve presente desde os primeiros tempos. A rádio ia para os espaços públicos como esse concerto da Orquestra Sinfônica Brasileira, regido pelo maestro Francisco Mignone, no Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista
  • 36. 36   Rádio mec herança de um sonho com capacidade para 120 músicos, e as ondas curtas, já em operação. A solenidade ocupou o novo espaço, com apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira, regida pelo maestro Francisco Mignone, e participação especial da pianista Madalena Tagliaferro entre outros músicos e cantores líricos. Duas décadas depois da doação... a tarefa de fazer rádio oficial Em janeiro de 1956, a Rádio Ministério da Educação e Cul- tura, então com 20 anos, lançou uma revista que ofere- cia ao público um panorama de sua programação. Sob o comando de Fernando Tude de Souza, a iniciativa res- gatava uma antiga idéia implantada com as publicações bimensais Rádio (1923) e Electron (1926), substituídas mais tarde pelos Boletins Informativos, publicados men- salmente até 1951. No editorial, Tude de Souza destacava a idéia de continuidade dos Boletins Informativos, com a ressalva de que ali estava apenas uma amostra do que a rádio fazia em “18 horas diárias de irradiação para o Brasil e para o estrangeiro”. Era mais uma forma de prestação de um serviço público herdada dos pioneiros. A fidelidade ao mestre mereceu o destaque transcrito a seguir: ... Quando aqui cheguei, o saudoso Mestre Roquet- te-Pinto entregou-me a responsabilidade imensa: continuar-lhe a obra extraordinária. Graças à com- preensão dos Ministros com que tive a honra de trabalhar (...) consegui, com os magníficos compa- nheiros que compõem os quadros do Serviço de Ra- diodifusão Educativa, manter intacto os ideais dos que criaram a primeira estação de rádio do Brasil. E ela se manteve, até aqui, inteiramente dedicada à
  • 37. antecedentes   37 cultura, fazendo um rádio que representa um esfor- ço honesto em prol da educação...(Revista da Rádio Ministério da Educação e Cultura, 1956) Naquele ano de 1956, o som da rádio chegava a qua- se todos os “cantos” do mundo. “Enquanto ouvintes de países distantes aprendem Português através dos nossos programas didáticos, aqui, nos diversos Estados, milha- res de alunos acompanham atentamente as aulas desses mesmos programas, aperfeiçoando o próprio idioma e aprendendo outros”, afirmou Tude no mesmo editorial. Admitia a existência de dificuldades: “têm existido e sempre existirão – a tarefa de fazer rádio oficial não é fácil”, reconheceu atribuindo o sucesso à dedicação da equipe. “Quem conta com um grupo tão capaz e tão de- votado pode encarar o futuro confiante”. (Ibid.) Com cinco prefixos diferentes, funcionando em OM (PRA-2) e OC (PRL-2; PRL-3; PRL-4. e PRL-5) a Rádio Ministério da Educação e Cultura e seu conjunto de emissoras conquistava o respeito dentro e fora do país. Sob a direção de Tude de Souza, ganhou contornos mais populares, com espaços para divulgação da música popu- lar (brasileira, jazz, folclore, etc), informações agrícolas e programas voltados ao público feminino. Intensa atividade nos anos 50 Um balanço elaborado pela gestão de Tude de Souza de- monstrou que a rádio transmitiu 66.197 horas de progra- mação entre setembro de 1936 e setembro de 1955. Em 19 anos crescera bastante. No ano da doação – 1936 - es- tivera no ar durante 849 horas, saltando, em 1955, para 6 mil horas, resultado da ampliação do tempo de irradiação e aumento no número de programas.
  • 38. 38   Rádio mec herança de um sonho O programa Falando de Música, conduzido por Ayres de Andrade, reunia no estúdio especialis- tas e músicos como Arnaldo Estrela e Andrade Mirian, colunista de O Globo
  • 39. antecedentes   39 O trabalho ia mais além do que era irradiado. Os es- túdios da Rádio Ministério da Educação eram utilizados também para a gravação de discos. Até 1955, foram gra- vados cerca de 8 mil discos. A média anual era de 400 gravações, que incluíam não só os programas da própria emissora, como especiais sobre o Brasil para transmissão em rádios estrangeiras. A pluralidade da programação demonstrava a preo- cupação em atingir uma grande faixa de público – do ur- bano ao rural. Ao campo eram dedicados dois programas diários - Informação Agrícola (às 17h30) e Resenha Cafeeira (às 19h) - e o semanal Terra Brasileira (domingos, às 8h). Uma demonstração da importância dos temas rurais para o País, assim como o esforço para chegar a um público com acesso restrito a outros meios de comunicação exis- tentes à época. (Cf. LEAL, Maria Cristina, 1999). Nos espaços reservados ao educativo prevaleciam as aulas diárias, em horários flexíveis, para permitir ao alu- no-ouvinte o seu acompanhamento. Embora essas aulas fossem apenas de nível secundário eram acompanhadas por boa parte da população, considerando-se que esse grau era oferecido em poucas escolas situadas nos gran- des centros urbanos. Um exame da programação mostra a opção de Fernando Tude de Souza por uma grade que permeava a cultura em seu sentido amplo. Como educa- dor, ele via no rádio –um meio moderno e ágil de concre- tização dos ideais liberais-democráticos–. (Ibid. LEAL, 1999). Para melhor visualização, seguem dois quadros com os principais programas educativos e culturais:
  • 40. 40   Rádio mec herança de um sonho Panorama da programação cultural da Rádio MEC, anos 50 Música para Juventude Domingo, 10h vários Programa para a juventude e da juventude. Famosos regentes e expressivos solistas (novos talentos) par- ticipavam das audições semanais no Teatro Municipal. Os ensaios da OSB eram feitos no estúdio sinfônico da Rádio, sob a direção do maestro Eleazar de Carvalho. O programa promovia concursos de orfeões. Ópera Domingo, 16h Galvão Peixoto Emissão de óperas - das mais antigas às modernas. En- tre 1953 e 1956, foram irradiadas no programa cerca de 80 óperas inéditas no País. Vesperal Sinfônico Domingo, 15h Maurício Quadrio Seleção cuidadosa de obras das diferentes escolas e orientações, com objetivo de aproximar o público do produto artístico. Esse programa recebeu o compositor norte-americano Virgil Thompson, crítico do “The New York Times”. Em Tempo de Jazz 3ª a 6ª feira, 18h Paulo Santos Mais antigo programa de Jazz transmitido no Brasil. Promovia concursos, realizava entrevistas, organizava “jam-sessions” e apresentava, em primeira audição no País, as principais gravações dos mais importantes conjuntos. MPB Diferentes músicos, desde o compositor Garoto, o solis- ta de cítara, Avena de Castro, e a Orquestra Afro-bra- sileira garantiam a diversificação da programação de música popular. Falando de Cin- ema Sábado, 21h Alberto Shatowsky Orientava o público sobre filmes. Participavam críticos, produtores e atores em entrevistas e reportagens sobre filmes específicos ou questões ligadas à sétima arte. Programa Dia,Horário Produtor Sinopse
  • 41. antecedentes   41 Fonte: Revista da Rádio MEC, RJ, 1956; e MASSARANI, Luisa, 1998. Um repórter no mundo das letras 2ª feira, 21h Miécio Araújo J. Honkis Consistia em um amplo noticiário sobre o movimento literário no Brasil e no exterior. Quase memórias Carlos Drum- mond de Andrade Durante 3 meses o poeta falou sobre fatos de sua vida, e sobre o fim do simbolismo e o nascimento do mod- ernismo. Vida e Romance + Encontro com a Literatura 2ª feira, 20h30 Otto Maria Carpeaux Discutia e trocava idéias com ouvintes sobre diferentes obras: de Sheakespeare a James Joyce. Ativo na rádio, o escritor fez também os programas Encontro com a Música e Encontro com a Literatura, abordando autores e livros. Poesia Viva Geir Campos Pelo programa passaram alguns dos mais importantes poetas do Brasil, contando suas histórias, recitando seus versos e apontando caminhos para os novos. Ao redor do Mundo 2ª feira, 20h00 Histórias, música e notícias dos mais distintos povos. Cada programa era dedicado a um país. Participavam artistas estrangeiros. Informações agrícolas Diário, 17h30 Procurava manter os ouvintes do campo em dia com acontecimentos do País e do estrangeiro ligados à sua atividade. Resenha cafeeira Diário, 19h Notícias que interessavam aos cafeicultores (cotação das bolsas). Terra Brasileira Domingo, 8h Mário Augusto Assuntos de interesse dos que viviam no campo. O pro- grama apresentava histórias interpretadas pelo elenco de radioatores. Programa Dia,Horário Produtor Sinopse
  • 42. 42   Rádio mec herança de um sonho Panorama da programação educativa (e cultural) – Anos 50 Reino da Alegria 2ª a 6ª feira, 17h Geni Mar- condes Mais antigo programa infantil do Rio de Janeiro, o Rei- no da Alegria tinha a preocupação de educar fazendo sorrir. Apresentava histórias, com músicas criada es- pecialmente pela produtora e apresentadora, com a participação de radioatores. O programa organizava espetáculos no auditório da rádio, como o teatro de fantoches, onde as figuras eram as mesmas vivendo aventuras diferentes pelos microfones da emissora. Aqui entre nós 2ª, 4ª e 6ª feiras, 13h30 Edna Savaget Programa que deixava de lado receitas e os segre- dos de beleza para ouvir famosas personalidades do mundo feminino. Da mulher para mulher apresentava idéias e realizações, através de entrevistas e debates sobre assuntos variados. Novos horizon- tes 6ª feira, 21h Miécio Jorge Hônkis Além de episódios interpretados pelo elenco de radi- oteatro, contando as lutas e vitórias da ciência, suce- diam-se entrevistas com personalidades ligadas ao mundo das pesquisas. Alexandre Felming, em sua visita ao Brasil, falou durante 30 minutos aos ouvintes sobre como chegou à descoberta da penicilina. O pro- grama organizava visitas de ouvintes para observar técnicos no próprio local de trabalho, como o Ob- servatório Nacional. Programa Dia,Horário Produtor Sinopse
  • 43. antecedentes   43 Colégio do Ar Diário, 7h e 20h Professores de diversas disciplinas Consistia em aulas de nível secundário, ministradas de acordo com o período letivo (15 de março a 15 de novembro). O currículo incluía Português, Inglês, Es- panhol, Francês, Italiano, História do Brasil, Geogra- fia e Ciências Naturais, Italiano e Ciências Naturais. Em 1954, foram matriculados 6.500 alunos, atendidos pelo correio. Fórum educa- cional 5ª feira, 22h Miécio Araújo J. Honkis Debatia os diversos problemas ligados ao ensino, à saúde e à educação, de um modo geral, com a par- ticipação de autoridades em questões educacionais, professores, especialistas e técnicos. Alemão 2ª e 5ª feira, 18h Prof. Hilde Sinnek Em horários diferenciados do Colégio do Ar, a apre- sentadora ensinava alemão cantando e fazendo seus alunos cantar. O método incluía recursos visuais e au- ditivos. Hora da Ginás- tica Diário, 6h Oswaldo Diniz Magalhães Uma escola prática de saúde e civismo. Além das transmissões do programa da Rede da Saúde, a Rádio MEC transmitia também das 9h00 às 9h45 uma nova aula com diferentes exercícios. Fonte: Revista da Rádio MEC, RJ, 1956; e MASSARANI, Luisa, 1998. Programa Dia,Horário Produtor Sinopse
  • 44. 44   Rádio mec herança de um sonho A versatilidade dessa programação era garantida por uma equipe altamente especializada em suas áreas, com- posta por profissionais do quadro e colaboradores. É im- portante destacar que, além de Edgard Roquette-Pinto e Fernando Tude de Souza, a Rádio MEC contou grandes colaboradores como René Cave, Carlos Rizzini, Celso Brant, Mozart Araújo, Murilo Miranda, entre tantos que passaram e os que ainda permanecem na emissora. Pelos microfones da Rádio MEC fizeram eco perso- nalidades marcantes da vida intelectual brasileira, como será mostrado nos próximos capítulos pelos depoimen- tos de muitos desses personagens que fizeram parte da história da PRA-2, hoje AM 800 KHz e FM 98,9 MHz. A seleção desses “olhares na primeira pessoa” procurou resgatar, por meio do relato de experiências vividas, a história de uma rádio que teve sua origem no ideal ambi- cioso e altruísta de um grupo de solidários cientistas. Os relatos representam o testemunho vivido e sua validade está na reflexão proposta pelo educador Paulo Freire, também uma importante personagem da trajetória da Rádio MEC: O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é a de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta mas a de quem nele se insere. É a posi- ção de quem luta para não ser apenas “objeto”, mas sujeito também da História. (FREIRE:1997: 60) Liana Milanez - Jornalista e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP (2005). Foi presidente da Fundação Cultural Piratini Rádio e Televisão (TVE-RS). Em São Paulo trabalhou na Agência Estado, Folha de S. Paulo, Rádio Jovem Pan, Gazeta Mercantil e Valor Econômico.
  • 45. antecedentes   45 Gravação da entrevista para a série Encontros com Paulo Freire, veiculadas pela Rádio MEC. Participou o jornalista Toninho Soares, da Rádio Cultura (Fundação Padre Anchieta), que cedeu o estúdio em São Paulo Roquette-Pinto em uma das homenagens que recebeu, fala ao microfone
  • 46. 46   Rádio mec herança de um sonho
  • 47. herança de um sonho   47 2 O Pioneiro
  • 48. 48   Rádio mec herança de um sonho
  • 49. o pioneiro   49 Acabaram de ouvir... Carlos Drummond de Andrade Foi há 25 anos. Lembro-me bem. Roquette- Pinto tomou o elevador do Edifício Rex e procurou, no 16°, o ministro Gustavo Capanema. Ia dar-lhe de graça o prefixo, o equipamento, a tradição da Radio Sociedade do Rio de Janeiro. Tudo isso, que parecia pequeno e era imenso, passava a pertencer ao Ministério da Educação, sem qualquer indenização aos proprietários, todos eles professores, cientistas, homens de letras. Nada, nada? Apenas uma palavra Roquette queria receber em troca de sua emissora. – E que palavra é essa? – O compromisso de que a Rádio continue a fazer obra cultural e nunca, de forma alguma, faça política. A palavra foi dada. Preparou-se a transferência legal, e no entardecer de 7 de setembro de 1936, este cronis- ta subia com Capanema um outro elevador, rangente e reumático, num velho prédio da Rua da Carioca. Íamos para o estúdio da Rádio Sociedade, onde se realizaria a cerimônia oficial da entrega da estação pioneira ao poder público. Mestre Roquette, comovido. 1. Crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada na coluna “Imagens no tempo”, no Correio da Manhã em 1961, comemoran- do os 25 anos da Radio MEC. Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira que ajudaram a construir a história da Rádio MEC, na sessão de autógrafos do livro Quadrante, que reuniu as crônicas veiculadas pelo programa de mesmo nome
  • 50. 50   Rádio mec herança de um sonho Seus companheiros não disfarçavam a emoção. Pen- diam lágrimas dos olhos de Beatriz Roquette-Pinto Bo- junga. O ato tinha qualquer coisa de casamento no seio de uma família muito unida, que via a filha sair nos bra- ços do rapaz escolhido livremente, sim, um excelente rapaz, tudo estava ótimo, os dois seriam muito felizes, mas... quem sabe? Era uma separação, um dilaceramento de fibras íntimas. Os assistentes bateram palmas. Saímos todos vagamente melancólicos. Mas o casamento deu certo, e agora que se cele- braram as bodas de prata podemos dizer que a união foi abençoada. A antiga emissora particular, alheia à com- petição comercial, não tinha condições para subsistir. Ao Ministério da Educação, por sua vez, faltava qualquer experiência no ramo, e teria que improvisar tudo, se não ganhasse o admirável presente de técnicos e boas-von- tades. Capanema cumpriu rigorosamente a promessa e marcou a orientação a ser seguida mesmo quando tudo em volta parecia mergulhar em propaganda oficial. Ro- quette passou depois a direção a Fernando Tude de Sou- za, que lhe honrou os ensinamentos e fez da PRA-2 o que ela é. Emissora singular no país, todo o seu tempo está dedicado à obra educativa e civilizadora dos brasilei- ros: arte, literatura, conhecimento científico, informação geral, diversão amena ali se reúnem e dali se espalham pelo Brasil, sem que essa mistura jamais se torne monó- tona. Sua história é um lembrete cortês aos que fazem rádio, e muitas vezes o fazem tão mal. Este lembrete não tem sido inútil. Outras emissoras oficiais fazem o que po- dem para não desmerecer. Há nas emissoras particulares alguns programas que não seriam possíveis se a estação de Roquette-Pinto não houvesse habituado o público a exigir do rádio mais do que este costuma dar-lhe. Ain- da agora, com a PRA-2 em plena renovação por artes do
  • 51. o pioneiro   51 inquieto e imaginoso Murilo Miranda, assistimos ao au- mento espetacular de seu índice de audiência, e isto se faz sem concessão ao mau-gosto, pela preservação e apri- moramento de um nível quase impecável. Esta é uma crônica de saudades. Saudade do queri- do Roquette-Pinto, cuja bela voz parece-me escutar ain- da, locutor ele próprio numa emissora de sábios e edu- cadores, puro sonho, lírica maluquice de alguns homens que amavam sua terra e queriam servir ao seu povo. Ma- luquice e sonho que floresceram. Mudando de nome, a casa não mudou de alma. Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond, www.carlosdrummond.com.br
  • 52.
  • 53. Roquette-Pinto: o homem-multidão Ruy Castro Opoeta e jornalista Amadeu Amaral, secretá- rio de redação da Gazeta do Rio e cronista de O Estado de S. Paulo, teve vontade de rir. Fora convidado por seu amigo Edgard Roquette-Pinto para ouvir uma transmis- são experimental da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que este acabara de fundar. Roquette contara-lhe ma- ravilhas do rádio, mas não o preparara para o espetáculo que o esperava. Como todo mundo em 1923, Amadeu Amaral ouvira falar daquela nova invenção, o rádio. Sabia que era uma forma de transmitir sons à distância, um misto de telégrafo com telefone, mas nunca escutara uma transmissão. Em sua fantasia, deveria ser uma coisa da alta ciência, cheia de aparelhos complicados. Daí a sua surpresa ao adentrar a casa de Roquette, na Rua Vila Rica, em Botafogo, e de- parar-se com um cenário de circo de cavalinhos. Uma vara de bambu, plantada no jardim, servia de antena. Dela escorriam fios de cobre, que iam até a sala e se enfiavam numa bobina de papelão, a qual devia ser o aparelho. Deste saíam uma tomada de terra, comicamen- O médico, antropólogo e etnólogo, Roquette- Pinto, aos 27 anos, com crianças indígenas da tribo Kozarini, em expedição coordenada por Cândido Rondon ao Mato Grosso em 1912 o pioneiro   53
  • 54. 54   Rádio mec herança de um sonho te ligada à torneira da pia, e um fone comum, de telefo- ne, para ser aplicado à orelha. Uma geringonça infantil, primitiva e precária. Amadeu Amaral achou graça. Aquilo é que era o rádio? Amadeu Amaral esperou o pior: iria escutar grunhi- dos estalos e chiados, e, para não desagradar seu anfi- trião, teria de dizer a Roquette que o rádio era mesmo a oitava maravilha. Olhou resignado para a engenhoca, aplicou o fone ao ouvido – e, em vez da cacofonia que imaginava, escutou os poemas e trechos de ópera que estavam sendo irradiados a quilômetros dali, na estação da Praia Vermelha. “Tudo tão perceptível como se os sons se originassem a dois passos. Aquela caranguejola ridícula funcionava maravilhosamente”, ele escreveria entusiasmado em O Estado de S. Paulo. Amadeu Amaral fez mal em duvidar. Afinal, ele co- nhecia Roquette-Pinto. Em abril de 1923, quando estava fundando a pri- meira emissora de rádio do Brasil, Edgard Roquette-Pin- to tinha 39 anos incompletos. Era, por qualquer crité- rio, um homem impressionante: atlético (1m78, muito alto para seu tempo), bonito e, como dele diria Gilberto Freyre, “com algo de imperialmente brasileiro no seu porte”. Havia até quem o achasse parecido com Goethe. Mas sua reputação não repousava na figura física, embo- ra esta provocasse suspiros em admiradoras, muitas das quais alimentaram suas paixões por ele (e algumas eram correspondidas). Roquette-Pinto não era apenas amado pelos que o conheciam. Era nacionalmente admirado pelo que já fizera pela ciência brasileira. A introdução do rádio no país era, a rigor, apenas a sua segunda ou terceira façanha, e estaria longe de ser a última. Quando se avalia hoje o monumental legado do ca- rioca Roquette-Pinto ao Brasil, parece inacreditável que
  • 55. o pioneiro   55 Roquette-Pinto e um dos animais utilizados na expedição ao Mato Grosso: o meio de transporte possível para enfrentar surpresas da mata
  • 56. 56   Rádio mec herança de um sonho um único homem pudesse fazer tanto. Estamos desabi- tuados a esses homens-multidão, capazes de aplicar sua inteligência e ação a interesses tão amplos e múltiplos. Mas, no caso de Roquette, talvez ele não tivesse escolha. O Brasil de seu tempo era enorme, muito maior que o de hoje, e estava todo por ser feito. Com seu dinamismo científico, filosófico e até espiritual, Roquette-Pinto não podia esperar que surgissem outros Roquette-Pinto para ajudá-lo. Enquanto esses não surgissem, ele viveria de mangas arregaçadas. Sua biografia ainda não foi escrita e quando o for, não caberá num único volume. Só através dela poder-se- á reconstituir o que o levou – desde o seu nascimento, no dia 25 de setembro de 1884, em Botafogo a preparar- se para tantas atribuições. Pode ter sido a influência do homem que, na verdade, o criou: não o seu pai, o rico advogado Menelio Pinto de Mello, mas seu avô materno o fazendeiro João Roquette Carneiro de Mendonça, em cuja fazenda Bela Fama, perto de Juiz de Fora, o menino Edgar passou três anos. O pouco contato com a família do pai levou-o até a alterar seu nome de registro – Edgar Roquette Carneiro de Mendonça Pinto Vieira de Mello – para Edgard Roquette-Pinto, com um hífen de que não abria mão. Em 1905, quando se formou pela Escola de Medicina, Edgard legalizou seu novo sobrenome e de- pois, estendeu-o aos seus descendentes. Quanto ao pro- nome, chamava a si próprio de Édgar, não Edgár. Além do avô João Roquette, que lhe pagou os es- tudos e lhe transmitiu seu amor à natureza, outros dois homens foram decisivos para o destino de Roquette, O primeiro, o biólogo Francisco de Castro, que o fez desis- tir da idéia de tornar-se oficial da Marinha e convenceu-o a navegar pelo mundo ainda mais aventuroso da medici- na e da biologia. O segundo, o médico Henrique Batista, Roquette era um homem de muitas habilidades: tocava piano, escrevia poemas, desenhava, pintava, era hábil em montar ou desmontar aparelhos elétricos e ainda falava francês, ita- liano, espanhol, inglês, alemão, tupi, “um pouco de latim e uma reles lambugem de grego”
  • 57. o pioneiro   57 que o converteu ao Positivismo - a doutrina fundada pelo Francês Augusto Comte (1798-1857), segundo o qual a redenção do homem se daria pelo conhecimento. Mas, embora fosse prodigiosamente estudioso, havia algo em Roquette que parecia atraí-lo para fora dos gabinetes. Sua própria tese de formatura, “O exercício da medicina entre os indígenas da América”, já insinuava seu rumo futuro: a antropologia. Em setembro de 1906, Roquette partiu para o Rio Grande do Sul a fim de estudar os sambaquis – as jazidas de conchas, ossos e utensílios do homem pré-histórico que habitou o litoral da América. E dai também porque, depois de alguns anos como assistente de Henrique Ba- tista (com cuja filha Riza casou-se em 1908) e como mé- dico-legista no Rio, Roquette deu uma guinada em sua carreira: tornou-se, por concurso, professor da cadeira de antropologia e etnografia do Museu Histórico Nacional, na Quinta da Boa Vista. Ali, em 1911, ele conheceu o homem que, este sim, o marcaria para sempre: o tenen- te-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon. O mato-grossense Rondon, nascido em 1865, já estava nas selvas do Amazonas e do Acre desde 1890, desbravando a mata, criando povoados, demarcando fronteiras, estendendo linhas telegráficas e fazendo os primeiros contatos com tribos à margem de qualquer civilização, como os parecis, os kabixis , os tapanhumas e os cajabis. Como Roquette, Rondon também era po- sitivista e acreditava na ciência e na fraternidade como molas para o progresso. Levava geólogos, cartógrafos e outros peritos em suas expedições e, ao voltar de cada uma, trazia amostras de objetos paleolíticos e os entre- gava ao Museu Nacional. Muitos desses objetos caíram nas mãos de Roquette, que se debruçou fascinado para estudá-los. Deles resultou o seu documento “Nota sobre
  • 58. 58   Rádio mec herança de um sonho Beatriz Roquette-Pinto, colaboradora e parceira do pai no projeto da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, então com 20 anos, em atividade no estúdio da emissora em 1931
  • 59. o pioneiro   59 Os pioneiros da Rádio Sociedade. Sentado, segundo da esquerda para a direita, Edgard Roquette-Pinto
  • 60. 60   Rádio mec herança de um sonho os índios nhambiquaras do Brasil Central”, que leu num congresso de americanistas em Londres, em 1912. Era a primeira vez que Roquette saía do Brasil – mas, ao pôr o pé no navio para a Europa já acertava um com- promisso com Rondon: iria acompanhá-lo na sua próxima expedição à Serra do Norte. A idéia de defrontar-se com brasileiros que, em plena alvorada do século XX, ainda viviam na pré- história, era muito mais excitante para ele do que qualquer congresso científico nas estranjas. Em julho daquele mesmo ano, de volta ao Brasil, Roquette seguiu com destino a Mato Grosso, para jun- tar-se a Rondon. Tinha 27 anos. Os quatro meses seguin- tes seriam uma saga de extraordinária importância para o conhecimento do Brasil - porque, pela primeira vez, Rondon viajava com um homem à sua altura. Roquette- Pinto, sozinho, valia por uma equipe de cientistas. Naquela expedição ele foi etnógrafo, sociólogo, geógrafo, arqueólogo, botânico, zoólogo, lingüista, mé- dico, farmacêutico, legista, fotógrafo, cineasta e folclo- rista. Anotou toda a aparência da região – da floresta à árvore e à folha – a composição dos solos, o contorno das montanhas, o fluxo dos rios, a intensidade das quedas e a riquíssima variedade da fauna. Nas visitas às tribos já pacificadas, mediu os crânios dos índios, comparou seus pesos e altura, analisou suas endemias e descreveu suas formas de produção, comércio e transporte. Registrou seus conhecimentos científicos, relações familiares, or- ganização política, hábitos religiosos, formas lingüísticas, habilidade manual, cantos e danças. E ainda realizou a primeira dissecação de um indígena – na verdade, uma indígena – de que se tem notícia. Roquette não deixou um fio solto. Anotou musi- calmente os cantos dos nativos e não contente, gravou- os em cilindros de cera com o fonógrafo portátil que se
  • 61. o pioneiro   61 usava na época. Filmou tudo que pôde e fotografou ou desenhou o resto. Sem contar o que recolheu de pedras, pontas de flechas e objetos indígenas, que transportou pelos milhares de quilômetros através de rios, pântanos e picadas abertas na selva. O que sobreviveu desses fo- nogramas, filmes, fotos, fichas antropométricas e obje- tos, conservados até hoje no Museu Nacional, dá só uma vaga idéia das condições em que tudo isso foi realizado. Roquette foi um Indiana Jones da vida real, só que mais heróico – porque verdadeiro. No monstruoso percurso pelas selvas do Mato Gros- so e do Amazonas e pelas bacias dos rios Paraguai, Jurena e Gi-Paraná, a morte acompanhou cada passo de Ron- don, Roquette e seus homens. Dias e dias de caminhada podiam ser feitos sem sol visível, debaixo da espessa ve- getação – e se avançassem um quilômetro por dia isso era considerado ótimo. O princípio da expedição era a paci- ficação dos nhambiquaras, até então arredios a qualquer contato com o colonizador. Arredios e hostis. Os mateiros de Rondon eram flechados à distância por mãos invisí- veis; outros eram capturados e devolvidos sem cabeças; e ainda outros se feriam nas armadilhas postas por eles. E havia as ameaças permanentes da selva, como os animais e as doenças - varíola, beribéri, impaludismo. Burros, ca- valos e bois iam morrendo e sendo deixados para trás. Os homens eram enterrados pelo caminho e Rondon batiza- va com seus nomes os acidentes geográficos do percurso. Mas, para o sacrifício de cada homem ou montaria, a ex- pedição garantia um pedaço de chão que se incorporava efetivamente ao Brasil. Para Roquette-Pinto, era tudo um milagre, e esse milagre chamava-se Cândido Rondon. Sendo ele próprio mameluco por parte de avós indígenas, e falando os dia- letos de várias tribos, Rondon conseguia repassar para os
  • 62. 62   Rádio mec herança de um sonho índios sua mensagem de paz – em nenhuma outra época, na história da América, o choque entre o “selvagem” e o “civilizado” foi tão suave e humano. Para isso, seu fa- moso lema, “Morrer, se preciso for; matar, nunca”, teve de ser, primeiro, entendido pelos brancos que o seguiam. Daí Roquette extraiu uma compreensão do problema do índio que, até hoje, é revolucionária: “Nosso papel so- cial deve ser simplesmente proteger, sem procurar diri- gir nem aproveitar essa gente. Não há dois caminhos a seguir. Não devemos ter a preocupação de fazê-los cida- dãos do Brasil. Todos sabem que índio é índio, brasileiro é brasileiro. A nação deve ampará-los e mesmo sustentá- los, assim como aceita, sem relutância, o ônus de ma- nutenção dos menores abandonados ou indigentes e dos enfermos”. Os nhambiquaras contatados por Rondon e Roquet- te viviam na Idade da Pedra em 1912. Seus machados eram de pedra mal polida. As facas eram lascas de madei- ra. Não conheciam a navegação, a cerâmica ou as redes de dormir – donde atravessavam os rios a nado, comiam de mão para mão e dormiam direto no chão. Eram cober- tos de bernes, pulgas e piolhos. Nunca tinham visto um homem branco ou negro. E o mal que faziam era, muitas vezes, por ingenuidade: ao ouvir o zumbido dos fios te- legráficos, pensavam que o poste ocultava uma colméia e o derrubavam em busca do mel. Quando Rondon final- mente conseguiu que se aproximassem do acampamen- to (o que se deu à zero hora de uma noite memorável para Roquette), seus presentes para eles foram de um comovente simbolismo: machados de aço. Poucos anos depois, os nhambiquaras, já “evoluídos”, iriam rir de seus velhos machados de pedra. De volta ao Rio em novembro daquele ano. Ro- quette depositou no Museu Nacional cerca de uma to-
  • 63. o pioneiro   63 nelada e meia de objetos que trouxe da Serra do Norte. As anotações musicais foram entregues a Villa-Lobos, que as elaborou em composições que assinou com Ro- quette. Em seu organismo, Roquette trouxe também o impaludismo, a cujas seqüelas iria atribuir a doença que o acometeria na maturidade. Mas sua própria volta à ci- dade já era, para muitos, uma proeza: como um homem tão urbano, de hábitos tão refinados, um elegante inte- lectual carioca, podia ter sobrevivido à brutalidade da vida na selva? Uma explicação poderia ser a grande parte da infân- cia passada na fazenda de seu avô. O mato não lhe era estranho. Mas há uma diferença entre as bucólicas fazen- das mineiras e o sertão com seus perigos à traição. Poder- se-ia argumentar também que, aos 27 anos, Roquette era jovem e forte, e que, quando ainda mais moço, fora esportista: remara durante anos pelo Botafogo, no tem- po em que o remo formava os atletas mais completos do Rio. Mas não há comparação entre um domingo de rega- tas e atravessar alagados carregando equipamento e com água pelo pescoço. A única explicação está na pétrea de- terminação de Roquette: impusera-se uma tarefa e tinha de cumprí-la. E os que o conheceram sabem que ele só precisava disso para agir. O poeta Carlos Drummond de Andrade, que só viria a conhecê-lo muito depois, definiu-o como “um civiliza- do a quem a civilização não faria falta, porque seria capaz de reconstituí-la dentro da mata, adaptando-se ao meio e extraindo dela valores culturais, sem perda do instinto nativo, ou por um refinamento prodigioso desse mesmo instinto”. Mas Roquette fez ainda mais: de volta à cida- de, reconstituiu pela palavra a cultura da selva. A grande bagagem que trouxe da expedição foram as anotações e as memórias de tudo que havia presencia-
  • 64. 64   Rádio mec herança de um sonho do e vivido. Com elas, Roquette passou os quatro anos seguintes escrevendo o livro que, por si só, garantiria o seu lugar na imortalidade: Rondônia. Um monumental tratado antropológico, botânico, geológico, climático, zoológico e etnográfico de uma vas- ta região do Brasil entre os rios Juruena e Madeira, com- preendendo partes do Mato Grosso, Amazonas, Pará, Acré e Guaporé. O fio condutor era, claro, a expedição de 1912. Mal publicado o livro, em 1916, tornou-se lugar- comum dizer que Rondônia estava para a saga de Ron- don como Os sertões, de Euclides da Cunha, estava para a de Canudos. Os dois livros revelavam um Brasil que, até então, muitos brasileiros julgavam existir apenas na imaginação dos poetas. Para Roquette, não poderia haver elogio maior do que ser comparado a Euclides (aliás, co- lega de turma de Rondon na Escola de Cadetes da Praia Vermelha, classe de 1888) – porque, para ele, Os sertões era comparável aos Lusíadas ou a Don Quixote. No futuro, mais precisamente em 1956, o crítico e ensaísta Álvaro Lins estabeleceria uma outra virtude de Rondônia: a literária. Segundo ele, era pela força estilista de seu tratado científico (e não pelos fracos contos e po- emas que depois escreveria) que Roquette-Pinto fazia parte da literatura brasileira. E Gilberto Freyre, outro exigente no seu julgamento dos colegas, nunca deixaria de elogiar, ao lado da exuberante escrita de Rondônia, a “segura base cientifica” de Roquette – distinção que não conferia a mais ninguém daquele tempo. Em seu livro Ordem e progresso, Gilberto menciona treze vezes a se- riedade de Roquette. O qual, não importavam as loas, sempre foi modesto ao falar de sua obra-prima: “É um instantâneo da situação social, antropológica e etnológica dos índios da Serra do Norte, antes que principiasse o
  • 65. o pioneiro   65 trabalho de alteração que nossa cultura vai processando. É prova fotográfica – um clichê cru”. Mas, naturalmente, era muito mais que isso. Suas experiências com os nativos e com os homens do sertão deram a Roquette os instrumentos para desfechar uma campanha anti-racista que atingiria em cheio o arianis- mo então vigente no Brasil. Para muitos naquela época (como para alguns ainda hoje), nossas mazelas seriam originárias da presença dos negros, mestiços e índios na composição racial brasileira. A tese original era do diplo- mata francês Joseph Arthur, conde de Gobineau (1816- 1882), autor de uma teoria racial da História e que um dia resultaria no nazismo. Uma visão “benigna” do proble- ma, defendida pelo então diretor do Museu Nacional, o antropólogo João Batista de Lacerda, apostava no “em- branquecimento” do povo: em poucas décadas, os suces- sivos cruzamentos extinguiriam a raça negra no Brasil... Mas Roquette, que via o Brasil como “um imenso labo- ratório de antropologia”, pensava diferente: “Nenhum dos tipos da população brasileira apre- senta qualquer estigma de degeneração antropológica”, escreveu ele, “Ao contrário. As características de todos eles são as melhores que se poderiam desejar. [...] O nú- mero de indivíduos somaticamente deficientes em al- gumas regiões do país é considerável. Isso, porém, não corre por conta de qualquer fator de ordem racial; deriva de causas patológicas cuja remoção, na maioria dos casos, independe da antropologia. É questão de política sanitá- ria e educativa. [...] A antropologia prova que o homem no Brasil precisa ser educado, e não substituído”. O alcance de Rondônia não ficaria por aí. O livro fa- ria a glória do futuro general e marechal Rondon, embora este também desconhecesse por completo o sentimento da vaidade. Um único índio que escapasse ao martírio
  • 66. 66   Rádio mec herança de um sonho era-lhe mais importante que os quilos de medalhas que espetavam em sua farda. Mas a verdade é que, sem o livro de Roquette, ninguém poderia calcular a dimensão da obra de Rondon, muito menos seguir o seu exemplo. Mesmo assim, Roquette não se dava por satisfeito. Para que o Brasil soubesse o quanto de seu território devia a Rondon, propôs que esse território- entre os paralelos 8 e 14 ao sul do Equador e entre os meridianos 12 e 20 a oes- te do Rio de Janeiro – se chamasse, justamente, Rondô- nia. A idéia, lançada por Roquette em 1915, numa confe- rência no Museu Nacional, seria afinal adotada... 41anos depois, em 1956, quando uma área muito menor, a do território do Guaporé, passou a chamar-se Rondônia. Pouco depois de Rondônia, em 1920, Roquette, de passagem, conquistou a admiração de um povo que de- dicara seus últimos 50 anos a olhar para o Brasil com pro- fundo ressentimento e rancor: o do Paraguai. Em 1927, no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Le- tras, ele defenderia a convicção de que fora o Brasil o responsável pelo início da Guerra do Paraguai, contra a opinião do acadêmico a quem sucedia na cadeira 17: o poeta Osório Duque Estrada, patriotíssimo autor do Hino Nacional. Ao ouvir aquilo, muitos imortais ficaram inquietos dentro dos fardões. E, já prevendo que alguns ali pudes- sem acusá-lo de pouco patriota, Roquette jogou cal nos possíveis ataques: “Pelo progresso de minha terra, tenho arriscado con- tente e mais de uma vez, a vida que ela me deu. Mas só compreendo o patriotismo que não precisa de mentiras para manter sua existência”. Tanta coragem e determinação tornavam Roquet- te-Pinto um vulto quase onipresente na cena brasileira. As pessoas o apontavam ao vê-lo passar nas ruas, quase
  • 67. o pioneiro   67 sempre com um charuto entre os dedos. Quando não era o charuto, o objeto mais presente em sua mão era um lápis de duas cores (vermelho e azul), com que circulava ou sublinhava qualquer texto que o interessasse. Sabia- se que falava francês, italiano, espanhol, inglês, alemão, tupi e, segundo ele próprio, “um pouco de latim e uma reles lambujem de grego”. Mas podia ser tudo, menos um pernóstico: “Gosto muito de gíria e tenho horror à gramática. Se escrevo certo, é sempre por acaso”, dizia. E sabia-se também que tocava piano, que escrevia poemas sem intenção de publicá-los, que desenhava e pintava e era capaz de montar ou desmontar qualquer aparelho mecânico ou elétrico: “Gosto imenso de trabalhar com as mãos. As mãos é que fazem o homem inteligente”. Numa época pobre em comunicações e rica em me- xericos, sabia-se também que ele e sua mulher se haviam separado. Separações eram chocantes naquele tempo, e mais ainda entre pessoas públicas. Mas, no seu caso, não havia motivo para mexericos. Como sua família sempre soubera, Roquette simplesmente não era “casável”. Sua inquietação não lhe deixava muito tempo para os praze- res domésticos ou para desfrutar os dois filhos – Paulo, nascido em 1909 e Beatriz, em 1911. E Riza, ao contrário, era uma mulher com acentuado gosto pelas coisas do lar. Como nenhum dos dois podia mudar sua natureza, afas- taram-se de comum acordo, por volta de 1920, chorando nos braços um do outro. Anos depois, Riza iria casar-se com um oficial da Marinha, ao passo que Roquette tor- nou-se o melhor partido do Rio de Janeiro, disponível para as muitas mulheres que o interessavam. Mas nunca voltaria a casar-se – não oficialmente, pelo menos. Logo após a separação, conheceu a paulista Noemia Álvaro Salles, sua aluna na escola normal. Noemia tinha 18 anos e era bem avant-garde, precocemente feminista Winter und Frühling … (Inverno e Primavera) escreveu Roquette-Pinto no verso da foto em que aparece abraçado à filha Carmem Lúcia, Milú como ele a chamava. Os dois costumavam conversar em alemão
  • 68. 68   Rádio mec herança de um sonho e comunista. Era, sobretudo, corajosa. Quando era bem pequena, seus pais se separaram e, devido à rigidez dos valores familiares em São Paulo, sua mãe nunca mais saíra de casa, onde terminaria com problemas mentais. Noemia decidiu que não queria um destino semelhante para si. Aos 15 anos, veio para o Rio, a fim de morar com os avós, tios e primos. Mas, três anos depois, conheceu Roquette, e seus parentes também não aceitaram esse relaciona- mento – Roquette era um homem separado e quase vin- te anos mais velho. Noemia sustentou sua paixão e, com isso, teve também de sair de casa. Foi morar com uma prima que, por apoiá-la, também seria ostracizada pela família. Sete anos depois, em 1927, Noemia e Roquet- te teriam uma filha, Carmen Lucia. Mesmo antes disso, Roquette, já formalmente desquitado, propusera que ele e Noemia oficializassem a união, casando-se no Uruguai. Mas Noemia, apesar de apaixonada por ele, nunca achou que a situação precisasse ser “regularizada”. Com toda a diferença de temperamentos, foram fe- lizes por vários anos. Roquette era um gentleman, basi- camente conciliador e não gostava de enfrentamentos; Noemia era decidida, arrojada e militante política. Essa militância acabou por minar o relacionamento. Os dois se separaram e Noemia se casaria de novo, desta vez com um médico, com quem teria outro filho. Roquet- te continuaria a conviver com Carmen Lucia, a quem ia buscar nos fins de semana para passeios pelo Rio. Jun- tos, os dois almoçavam no restaurante Cristal, na Lapa, visitavam monumentos e iam a livrarias. Ele a chamava de Miluzinha, dava-lhe livros de literatura brasileira e a estimulou a aprender alemão – muitas vezes, os dois só falavam nessa língua. Quando ele morreu, ela tinha 27 anos e nem por um minuto se sentira rejeitada ou fruto de uma união “irregular”.
  • 69. o pioneiro   69 Não eram apenas as mulheres que interessavam Ro- quette - tudo o interessava. No passado, a caminho de juntar-se a Rondon na selva, ele percebera a importân- cia da telegrafia na integração dos grotões mais distantes. Em 1922, durante as comemorações do Centenário da Independência, Roquette começara a perceber a impor- tância de uma nova e extraordinária invenção: o rádio. Os primeiros a chegar à enorme Exposição do Cen- tenário, instalada na esplanada aberta pelo desmonte do morro do Castelo, no Centro do Rio, não deram muita importância às estranhas cornetas metálicas instaladas em alguns postes. Vistas de relance, lembravam as cor- nucópias dos gramofones em voga em 1922, mas poucos naquele 7 de setembro, dia da abertura da exposição, sa- beriam dizer para quê serviam. A multidão estava mais interessada nos luxuosos pavilhões dos países partici- pantes e, principalmente, na montanha-russa armada em frente ao palácio Monroe. De repente, ao cair da tarde, as pessoas ouviram assombradas, como se aqueles sons viessem das nuvens, o Hino Nacional e um discurso do presidente Epitácio Pessoa. Como, mesmo naquele tem- po, ninguém acreditasse que o hino ou Epitácio tivesse nada de celestial, concluiu-se rapidamente que o som saía pelas tais cornetas. Afinal, era para aquilo que ser- viam as geringonças penduradas no postes. Eram “alto- falantes” - e era o rádio chegando. Duas companhias americanas de energia elétrica, a Western e a Westinghouse, haviam instalado pequenas estações de 500 watts no pavilhão dos Estados Unidos para demonstrar a última novidade. Seus transmissores tinham sido montados, respectivamente, na Praia Ver- melha e no alto do Corcovado (ainda sem a estátua do Cristo), com 80 alto-falantes distribuídos pela exposição e por Niterói, Petrópolis e São Paulo. À noite daquele
  • 70. 70   Rádio mec herança de um sonho mesmo dia, o assombro foi ainda maior quando os alto- falantes irradiaram a ópera O guarani, de Carlos Gomes, direto do Teatro Municipal. Bem, assombro em termos. O som era falho e rouco, como se um coro de sapos ti- vesse entrado pelos alto-falantes e coaxasse em uníssono fazendo passar-se por Epitácio ou por Peri e Ceci. Era preciso apurar as orelhas para se entender alguma coisa. Nos dias seguintes foram transmitidas várias palestras, inclusive uma sobre higiene, mas, àquela altura, o públi- co já desistira de esforçar-se para ouvir. Em janeiro de 1923, finda a exposição, a Westin- ghouse desmontou a estação do Corcovado e a levou de volta para os Estados Unidos. Mas a Western conservou a sua na Praia Vermelha, na esperança de que o governo brasileiro se interessasse em comprá-la. O governo acei- tou e comprou a estação, mas entregou-a aos Correios para que ele a operasse como telégrafo. Não era o que os primeiros radioamadores nacionais estavam esperan- do. Já havia muitos pelo país, construindo seus próprios aparelhos e comunicando-se entre si no Rio, no Paraná, em São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco. Alguns dele conseguiram autorização e começaram a usar a Praia Ver- melha para transmitir boletins meteorológicos, cotações da Bolsa de Açúcar e Café, notinhas sobre santos e efe- mérides do dia, audição de cançonetas e poemas e outras pequenas atrações. Mas era quase uma audição para surdos, porque havia um obstáculo legal a que a escuta se espalhasse: para possuir um receptor em casa, o cidadão tinha de “requerer permissão” ao Ministério da Viação através dos Correios e Telégrafos e, ainda por cima, “apresen- tando fiador idôneo” - um responsável pela integrida- de patriótica do indigitado. Com os ecos e fumaças da Grande Guerra de 1914-1918 ainda no ar, supunha-se
  • 71. o pioneiro   71 que o rádio podia ser um instrumento perigoso, capaz de levar os segredos militares brasileiros para as potências estrangeiras – donde todo cuidado era pouco. A polícia estava autorizada a prender quem fosse flagrado ouvin- do aparelhos desautorizados. Roquette-Pinto não estava preocupado com segre- dos ou com militares. Aliás, sua opinião sobre estes era arrojada para a época: era favorável ao serviço militar, mas achava que eles deveriam se limitar a “construir pontes e estradas, aprender um ofício, trabalhar numa coisa útil. [...] A Grande Guerra, aliás, veio mostrar que a vitória caberá a quem melhor abastecer-se. O soldado, hoje, é principalmente um operário. As guerras são ganhas pelos eletricistas, pelos mecânicos, pelos motoristas”. Para Ro- quette, ao contrário de guardar segredos, o rádio deveria servir para difundir a coisa de que o Brasil mais precisa- va: educação. Nos Estados Unidos, a primeira emissora com trans- missão regular surgira em 1920, em East Pittsburgh, na Pensilvânia. Ou seja, outro dia mesmo, e, agora, menos de três anos depois, o rádio já alcançava cerca de 12 mi- lhões de americanos, com mais de cem estações trans- mitindo. Os Estados Unidos estavam sendo interligados pelo rádio e a Europa também, através de Marconi. Nas fantasias dos mais otimistas, já havia operários ouvindo Mozart, analfabetos bebendo as palavras de Bernard Shaw e gente dos mais distantes rincões sabendo as últi- mas de Wall Street ou do palácio de Buckingham, tudo pelo rádio. Ele era uma arma, mil vezes mais poderosa do que os canhões da Grande Guerra. Roquette começou a imaginá-la integrando e educando os milhões de brasi- leiros dispersos pelos mais de 8 milhões de quilômetros quadrados. Seria como completar, só que em escala na- cional, a obra de Rondon.
  • 72. 72   Rádio mec herança de um sonho Era preciso fundar uma rádio, e ele era o homem para isso. Mas uma rádio educativa, “com fins científicos e sociais”, de preferência ligada a Academia Brasileira de Ciências, da qual era secretário. O primeiro passo era pedir o apoio do fundador e presidente desta, Henrique Morize, seu velho mestre – para cuidar da parte operacio- nal do projeto e contagiar os outros membros da acade- mia. E Morize não resistiu ao incandescente entusiasmo do discípulo. Nascido na França em 1860 e no Brasil des- de os 15 anos, era engenheiro meteorologista, físico, as- trônomo, catedrático da Escola Politécnica do Rio e com um papel de destaque em inúmeras áreas da ciência. Em 1905, por exemplo, iniciara os estudos de sismologia no Brasil, ao instalar no Observatório Nacional, de que era diretor, os instrumentos que permitiam registrar sismos. Em outra ocasião, ajudara a difundir o uso dos raios-X no país. E, em seus cursos de física experimental, fora tal- vez o primeiro no Brasil a realizar demonstrações práticas durante as aulas. Sua múltipla contribuição à ciência era equivalente à de Roquette em suas áreas de interesse – à sua maneira, Morize também era um homem-multidão. Com Morize a seu lado, tratava-se agora, para Ro- quette, de remover os obstáculos legais. No dia 14 de abril de 1923, Roquette soltou pela Gazeta de Notícias a campanha para libertar o rádio da lei que dificultava que os cidadãos possuíssem aparelhos domésticos. Tinha um argumento forte: devido às transmissões da Praia Verme- lha, os Correios haviam fornecido 536 licenças especiais apenas nos primeiros meses daquele ano. Tal demanda era uma prova de que o Brasil inteiro queria o rádio (uma das licenças, aliás, contemplara o próprio Roquette, em- bora seu aparelho fosse o que provocara risos abafados em Amadeu Amaral).
  • 73. o pioneiro   73 Mas só um fato consumado, como a existência da rádio, forçaria a queda da lei. Pois ele cuidou de que isso acontecesse: no dia 20 de abril, na sala de física da Escola Politécnica, no largo de São Francisco, em plena reunião da academia, os cientistas comandados por ele fundaram a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro – a PR-1-A. A primeira diretoria já saiu constituída daquela reu- nião. Morize foi aclamado presidente, Roquette, secre- tário, e outros acadêmicos ocuparam os cargos de tesou- reiro e conselheiros. Os demais membros da academia assinaram eufóricos a ata de fundação e mais de trezen- tos sócios-efetivos e associados a subscreveram. Para os padrões daquele tempo, era quase um ato de desobedi- ência civil, praticado por senhores de pince-nez e colari- nho duro – se se aplicasse a lei, não haveria cadeia no Rio de Janeiro para todos. Mas, numa jogada hábil, Roquette indicou para presidente de honra da Rádio Sociedade o próprio ministro da Viação e Obras Públicas, Francisco Sá – de quem dependeria a revogação da lei que tornava o rádio uma atividade clandestina. No dia 1º de maio, sob vista grossa da autoridade, com um transmissor montado por Morize, a Rádio Socie- dade fez a sua primeira transmissão experimental pela estação da Praia Vermelha. Às 20h30 em ponto, Cauby de Araújo, um dos signatários, anunciou a declaração de Roquette-Pinto comunicando a fundação da rádio. Ro- quette tomou o microfone e, com grande otimismo e exagero, disse: “[A partir de agora] todos os lares espa- lhados pelo imenso território do Brasil receberão livre- mente o conforto moral da ciência e da arte pelo milagre das ondas misteriosas que transportam, silenciosamente, no espaço, as harmonias”. Belas palavras, mas ainda levaria tempo para que o rádio atingisse todos esses lares. E ainda havia a lei “re-
  • 74. 74   Rádio mec herança de um sonho trógrada e carrança”, como ele a chamava. Mas a pressão deu resultado. No dia 11 de maio, Francisco Sá assinou a revogação: o rádio no Brasil estava finalmente livre. Já era possível ter um aparelho em casa sem ir parar no presídio da rua dos Barbonos, futura Evaristo da Veiga. Ao governo caberia apenas licenciar o funcionamento das emissoras. Uma semana depois, no dia 19, a Rádio Sociedade promoveu a sua instalação solene, usando no- vamente emprestado o equipamento da Praia Vermelha para a sua transmissão inaugural. E ponha solene nisso. Roquette e seus colegas reunidos na Escola Politécnica, ouviram emocionados quando, da Praia Vermelha, Edgar Sussekind de Men- donça abriu a transmissão recitando um soneto do pró- prio Roquette, intitulado, bem a propósito, “O raio”. Era simbólico: o raio viaja pelo espaço e vai cair sabe-se onde – como o rádio. (A única cópia do poema perdeu-se naquela noite e o autor nunca conseguiu reconstituí-lo de memória). Em seguida, Heloisa Alberto Torres, filha do abolicionista Alberto Torres, leu um conto infantil de Monteiro Lobato, de que não há registro do título. E, concluindo, Francisco Venâncio Filho leu uma página de Os sertões. Com aqueles poucos minutos de vozes no ar, a Rádio Sociedade silenciou e a estação da Praia Verme- lha voltou aos seus serviços telegráficos. Mas, para todos os efeitos, uma rádio brasileira ferira pela primeira vez – como se dizia – o éter. Vibrando com o resultado, M. B. Astrada, sócio-fun- dador da rádio e representante no Brasil da Casa Pekan, de Buenos Aires, especialista em equipamentos de ra- diofonia, doou à Rádio Sociedade uma pequena estação emissora e receptora – suficiente para que, com boa von- tade, ela se fizesse ouvir no centro da cidade e arredo- res. Três meses depois, no dia 20 de agosto, o governo Pavilhão da Tchecoslováquia, construído para a Exposição do Centenário, em 1992: um ano depois passou a abrigar a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, já com o prefixo PRA-A, (antes de sua transferência para a Rua da Carioca e posteriormente para o prédio da Praça da República, onde permanece até hoje)
  • 76. 76   Rádio mec herança de um sonho federal, já com Arthur Bernardes na presidência, autori- zou oficialmente o início das irradiações no Brasil, desde que “para fins educativos”. Bernardes não parou por aí: permitiu que a Rádio Sociedade fizesse uma hipoteca do material emissor no Banco do Brasil, no valor de 100 contos de réis, para instalar a antena e cobrir as despesas. Entre estas, estava a compra de uma estação de 1 quilo- watt, fornecida pela Marconi, com a qual a rádio poderia ultrapassar até os limites do então Distrito Federal. No dia 7 de setembro – um ano depois da Exposi- ção do Centenário e funcionando no pavilhão doado pela Tchecoslováquia, em frente à Santa Casa de Misericór- dia, na rua Santa Luzia -, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, agora com o prefixo de PRA-A, entrou triunfal- mente no ar. Não era nada parecida com a rádio que logo se faria no Brasil. Ao contrário, com seu programa de “educa- ção em massa”, a Rádio Sociedade parecia, a princípio, uma extensão da Academia de Ciências. Os acadêmicos faziam tudo: produziam, escreviam e apresentavam os programas. Roquette dava o exemplo: acordava todos os dias às 5 da manhã, lia os matutinos, circulava com seu lápis de duas cores tudo que lhe parecesse interes- sante e, duas horas depois, estava diante do microfone apresentando o “Jornal da Manhã”. Lia as notícias, com destaque para o noticiário internacional (normalmente, o mais privilegiado pelos jornais), e comentava-as para os ouvintes. Outros levavam discos de suas coleções de clássicos e óperas, botavam-nos para tocar e falavam dos compositores, músicos e cantores. Ninguém era pago, era tudo por amor. E havia os que se apresentavam nos programas, recitando poesia, cantando ou tocando piano – entre os quais o próprio Roquette.
  • 77. o pioneiro   77 Para que não se pense que a rádio era um instru- mento de sua vaidade, é bom dizer que Roquette era ra- zoavelmente eficiente ao piano e que sua voz de barítono costumava ser elogiada pelos entendidos. Ele próprio era um homem rigoroso. Quando, certa vez, o escritor Afrâ- nio Peixoto insistiu em cantar na rádio, Roquette não fez por menos: “Mas, com essa voz, Afrânio?”. Peixoto caiu em si e contentou-se em recitar poemas de cordel, no que foi acompanhado ao piano por Roquette. Nem tudo era música e literatura. Os acadêmicos também davam palestras e cursos pelo microfone, de acordo com suas especialidades: português, biologia, his- tória, francês, geografia e até silvicultura. O Rio, capital da República, recebia toda espécie de personalidades da área cultural e científica, e um programa obrigatório des- ses figurões era uma visita às instalações da Rádio Socie- dade – um deles, em 1925, já na rua da Carioca, 45, foi Albert Einstein. O amadorismo da rádio era tão flagrante quanto a boa vontade dos que a faziam. A programação também não era de cunho exatamente popular, mas ninguém se importava: os aparelhos eram caros naqueles primeiros tempos, poucos podiam possuí-lo e esses poucos gosta- vam do que a rádio punha no ar. O que os desagradava era o som terrível das transmissões. Os jornais viviam cheios de cartas protestando contra os ruídos e chiados da PRA‑A e temendo pelo futuro do rádio no Brasil, caso aquilo não melhorasse. Roquette, com sua larga visão histórica, não se assustava com a ameaça: “Nós, que assistimos à aurora do rádio, sentimos o que deveriam ter sentido alguns dos que conseguiram possuir e ler os primeiros livros”, ele disse ao microfone. “O rádio é a escola dos que não têm escola. É o jornal de quem não sabe ler; é o mestre de quem não pode ir à