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Livro - FUNDAMENTOS
ESTETICOS DA EDUCAÇÃO
Química
Universidade Federal de Roraima (UFRR)
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FUNDAMENTOS ESTETICOS
DA EDUCAc;:AO
JOAO- FRANCISCO DUARTE JR.
COLE(AO EDUCA(AO COnTEmPORAnEA
Fundamentos Esteticos da
Educa~ao
Joao-Francisco Duarte Junior
Ultimamente a educa~o tern mereddo uma
infinidade de textos, muitos dos quais apresentan-
do determinadas formulas e tecnicas, com o in-
tuito de torna-la mais "atraente", para o edu-
cando, ou mais segura a sua aprendizagem. De
certa forma tais eseritos se assemelham muito
aos famosos "como fazer" ("how to make"}
norte-americamos, e acabam pecando pela au-
sencia de uma reflexao em torno dos fundamen-
tos da educa.;ao; fundamentos esses de ordem fi-
losofica e ate politica.
Este, porem, nao e urn texto assim. Justamen-
te o que nele niio cxiste sao as formulas e reeeitas
para se melhorar o ensino. 0 autor procura
situar-se nas premissas basicas do conhecimento
humano, o sentir eo pensar, e em torno delas de-
senvolvcr o seu tema: a importdneia da Arte na
formacao do hornem. Procura, atraves de uma
linguagem propositalmente simples, pensar a
educa~ao e o processo do conhecimento - situa-
dos em urn contexto cultural - , numa reflexao
em que estao envolvidos elementos da Antropo-
Jogia Filos6fica, da Psicologia, da Filosofia da
.Educac;ao e da Arte. Aqui o que se pretende e, de
certa rnaneira, ampliar os dominios da educa~ilo,
que vern sendo sistematicamehte estreitados pela
visao da escola como simples transmissora de co-
nhecimentos "objetivos" e agencia formadora
de mao·de-obra para o mundo tecnol6gico.
A Arte nao leva a produ~ao de autom6veis
mais velozes, nem de detergentes mais eficazes, e
por isso ela erelegada a ser quase nada nos curri-
culos de nossas escolas. Contudo. ela pode con-
duzir a forma~ao de individuos mais sensiveis.
Mais sensiveis asua condi~ao hu"ana e areati-
dade asua volta, Jevando-os, conseqilcntemente,
a pensarem de forma critica o contexto onde es-
tao. Desta forma, a Arte possui tambem.elemen-
tos pedag6gicos libercadores, que ajudam a que-
brar as cadeias do pensamento pre-fixado e das
abstracoes muitas vezes escamoteadoras da vida
concretamente vivida. Como diz o proprio autor,
nao esua i nten~ao "afirmar que sobre a arte re-
pousam todas as solu~oes para os problemas
criados por nossa cindida civilizacao e sua educa-
cao impositiva". Ele apenas quer "crer que a ar-
te eurn fator imponante na vida humana, name-
dida em que permite o acesso a dimensoes nao re-
veladas pela 1
6gica e pelo pensamento discursivo.
Na medida em que, atraves dela, se opera a edu-
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Joao-Francisco Duarte Junior
Ultimamente a educa~ao tem merecido uma
infrnidade de textos, muitos dos quais apresentan-
do determinadas formulas e tecnicas, com o in-
tuito de torna-ta mais atraente, para edu-
cando, ou mais segura a sua aprendizagem. De
certa forma tais escritos se assemelham muito
aos famosos como fazer (how to make)
norte-americamos, e acabam pecando pela au-
sencia de uma reflexao em torno dos fundamen-
tos da educa~ao; fundamentos esses de ordem fi-
los6fica e ate politica.
Este, porem, nao eum texto assim. Justamen-
te o que nele nao existe sao as formulas e receitas
para se melhorar o ensino. 0 autor procura
situar-se nas premissas basicas do conhecimento
humano, o sentlr eo pensar, e em torno delas de-
senvolver o seu tema: a importlincia da Arte na
forma~ao do homem. Procura, atraves de uma
linguagem propositalmente simples, pensar a
educa~ao eo processo do conhecimento - situa-
dos em urn contexto cultural -, numa reflexao
em que estao envolvidos elementos da Antropo-
Jogia Filos6fica, da Psicologia, da Filosofia da
.Educa~ao e da Arte. Aqui o que se pretende e, de
certa maneira, ampliar os dominios da educacao,
que vem sendo sistematicamente estreitados pela
visao da escola como simples transmissora de co-
nhecimentos objetivos e ag~ncia formadora
de mao-de-obra para o mundo tecnologico.
A Arte nao leva a produ~ao de autom6veis
mais velozes, nem de detergentes mais eficazes, e
por isso eta erelegada a ser quase nada nos curri-
culos de nossas escolas. Contudo, eta pode con-
duzir a formacao de indivlduos mais sensiveis.
Mais sensiveis asua condicao hu'ana e areali-
dade asua volta, levando-os, conseqUentemente,
a pensarem de forma critica o contexte onde es-
tao. Desta forma, a Arte possui tambern elemen-
tos pedag6gicos libertadores, que ajudam a que-
brar as cadeias do pensamento pre-fixado e das
abstracoes muitas vezes escamoteadoras da vida
concretamente vivida. Como diz o proprio autor,
nao esua intencao afirmar que sobre a arte re-
pousam todas as soluciies para os problemas
criados por nossa cindida civilizacao e sua educa-
cao impositiva. Ele apenas quer crer que a ar-
te eum fator importante na vida humana, na me-
dida em que permite o acesso a dimensOes nao re-
veladas pela 16gica e pelo pensamento discursive.
Na medida em que, atraves dela, se opera a edu-
c._ ll'~i·l_irsru ·ad~ federal ce Pel
I
.Se.;So de Controle Patrlm
Nu;~~- de .f.JJ,_83'-1
COLE(.RO EDUCA(.RO conTEmPOA-~J4~~~r~E'A~---
JOAO-FRANCISCO DUARTE JR.
FUNDAMENTOS ESTETICOS DA EDUCAQAO
Obra publicada com a· colabora!raO da
Universidade Federal de Uberlfmdia
Reitor: Prof. Ataulfo Marques Martins da Costa
Pr6-Reitor Academico: Prof. Antonino Martins da Silva Jr.
~CORTEL
$toiTORA
ff'
·(.I)
UNIVUSIDADE fEDERAl DE UIULANDIA
AUTORES IQ
ASSOCIADOS ~I
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Consellzo editorial
Antonio Joaquim Severino, Casemiro dos Reis Filbo, Dermeval Savianl,
Gilberta S. de Martino ~annuzzi, Joel Martins, Mauricio Tragtenberg, Moacir
Gadotti, Miguel de La Puente, Milton de Miranda e Walter F. Garcia.
Produfiio editorial: Helen Diniz
Revisiio: Marlene Crespo
CIP-Brasil. Cataloga~ll.o-na-Fonte
Cllrnara Brasileira do Livro, SP
Duarte Junior, Joll.o-Francisco.
D875f Fundarnentos esteticos da educa~ll.o I Joll.o-Francisco
81-1131
Duarte Jr. - Silo Paulo : Cortez : Autores Associados ;
[Uberlandia, MG) : Universidade de Uberlandia, 1981.
(Col~ll.o educa~ll.o contemporanea)
Bibliografia.
I. Arte 2. Arte - Estudo e ensino 3. Educa~ll.o- File-
sofia I. Titulo.
CDD-370.1
-701
indices para catatogo sistematico:
I. Arte e educa~ll.o : Filosofia da educa~ll.o 3.70.1
2. Educa~ll.o : Fundarnentos esteticos : Filosofia da educa~ll.o 370.1
3. Educacll.o artistica 707
4 Educacilo e arte : Filosofia da educacilo 370.1
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada
sem a autoriza~ao ·expressa do autor e dos editores.
Copyright © do autor
Direitos para esta edi~ao
CORTEZ EDITORA/AUTORES ASSOCIADOS
Rua Bartira, 387 - Tel. (011) 864-0111
05009 - Sao Paulo - SP
1981
Impresso no Brasil
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I
C lass. -----·-·----J.:lP....!..............................
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Reglstro ·-- -- -~--~/:n3. ...........~ ...................
D a ta...:..J./L.J....i..0.....!......8.J.......
Li vraria .J1a...Ll:JIY...9....f.~~Y.J..~ :c..r2.
Cr$ .....3.6..{}
,;-.(2.0 ........................................
Ao RUBEM, que me ajudou a descobrir que a
filosofia e, sobretudo, urn exercicio
de beleza
e
Ao REGIS, amigo e incentivador constante.
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Lo que puede el sentimiento
No lo ha podido el saber
(Violeta Parra)
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. I
SUMARIO
A utilidade e o prazer: um conflito educacional 9
INTRODU;;::A.O . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Capitulo I - APRENDIZAGEM E CRIA;;::A.O DO SIGNI-
FICADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
1. 0 processo do conhecimento: sentir e simboliza~ . . . . . . . . 19
2. A linguagem e a constru~ao do rear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
Capitulo II - CONCRETIZA;;::A.O E TRANSMISSA.O DOS
SIGNIFICADOS: CULTURA E EDUCA;;::.AO : . . . . . . . . . 45
1. 0 jogo da cultura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
2. Educa~ao e rela~6es interculturais .·....... . ....·. . . . . . . 54
Capitulo III - NOS DOMlNIOS DO SENTIMENTO: ARTE
E EXPERI:BNCIA ESttTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
1. Algumas rela~6es sentimerito-compreensao
2. A simboliza~ao .dos sentimentos: a arte
67
72
3. A experiencia estetica .................. . ..... . . . . : . ·82
.Capitulo IV- COMO A ARTE EDUCA? . . . . . . . . . . . . . . 87.
1. Algumas palavras sobre o ato .da cria~ao ....... .. . . . : . . . 87
2. A arte e o adulto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
3. A arte e a crian~a ........... . . . .. .. . . .. . .. : . . . . . . . 102
Capitulo V - BREVE VIS.AO DA ARTE NO ENSINO BRA-
- SILEIRO . ..... .. . . · . · · · . .. . . .. .·. · · . . . . . 109
Bibliografia .. . .. . .......... . .. : . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . 126
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~-· ·
A UTILIDADE E 0 PRAZER: UM CONFLITO EDUCACIONAL
Para que voce nao seja enganado ao come~ar a ler este livro,
aqui vai a minha advertencia: ele defende uma causa altamente im-
provtivel, possivelmente derrotada . ..
E esta e, precisamente, a razao porque escrevo este prefacio.
As solu~oes triunfantes me causam certo mal-estar. Talvez porque,
historicamente, os vitoriosos tenham sempre arrastado consigo uma
dose de crueldade. Pode ser, inclusive, que a verdade seja o oposto:
niio que a vit6ria gere a crueldade, mas que a crueldade seja mais
vocacionada para o triunfo que a mansidiio. A preserva~iio do Indio
e suas culturas, a harmonia do homem com a natureza, a salva~iio
das florestas, rios e mares, a recusa aviolencia, a op~iio pelo paci-
fismo - todas estas sao causas derrotadas. Elas niio tem chance
alguma frente ao poder economico e ao poder das armas. E aqui
esta alguem que sugere que a educa~ao seja pensada a partir da
beleza - 0 que equivale a ajirmar que 0 poeta e 0 musico sao mais
importantes que o banqueiro e o fabricante de armas, o que sem
duvida provocara sorrisos tanto nos vencedores quanto nos vencidos.
Esta e, de forma sintetica, a linda proposta fraca que este trabalho
oferece como tema para nossa medita~ao.
Seria compreensivel e mesmo defensavel um apelo para que os
valores esteticos fossem incluidos em nossos currlculos. Ninguem
negaria que a beleza tenha sido deles banida de forma espantosa-
mente radical. Por b'oas razoes, e claro. Afinal de contas a sensi-
bilidade ar~istica parece niio oferecer contribui~ao algu,ma, seja ao
desenvolvimento, seja a seguran~a do pais. . . Bem diz o ditado
popular que beleza nao poe mesa. Claro que coisas uteis siio mais
importantes que coisas belas. Mas mesmo o mais endurecido mate-
rialista estaria disposto a concordar em que a arte, as vezes, tem
certas utilidades. Por bem ou por mal o fato e que vivemos numa
civiliza~iio que cultivou e cultiva a aprecia~iio de valores esteticos,
niio sendo possivel ignorar que a arte e bom assunto para conver-
9
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saroes a mesa, boa ideia para presentes, quando niio se constitui
em diversiio terapeu~ica: a alienariio estetica produz sonos mais
repousantes . ..
. Niio haveria problema algum em se propor uma presenra mais
sensivel da arte em nossas praticas educativas. Na verdade isto niio
interferiria em coisa alguma. Niio provocaria confusoes institucionais
ou politicos. Pelo contrario, propiciaria o desenvolvimento de uma
funfiiO a mais.
-/)Todo mundo sabe que a sociedade industrial, capitalista ou
com_
unista, depende da divisiio do trabalho. As pessoas sao especia-
lizadas. Fazem somente um coisa. Pilotos, ascensoristas, engenheiros
nucleares, agronomos, meteorologistas, pedicuros, pediatras, e assim
por diante. Mas acontece que ela niio separou simplesmente as
pessoas em grupos que desempenham as mesmas funroes. Fez co-
nosco o que um esquartejador faz com um corpo: desmembrou-nos,
desmontou-nos numa serie de funfoes independentes e freq.Uente-
mente contrat/.it6rias. Assim, nada impede que uma pessoa trabalhe
numa fabrica de armas~ freq.Uente grupos de orariio, leve seus filhos
ao parque de diversoes, jogue na balsa de valores, contribua para
orfanatos, cultive o gosto pelo canto gregoriano, alem de fazer parte
de uma sociedade ecol6gica cujos membros plantam legumes no
fundo de seus quintals. Fragmentam-se as funroes, fragmentam-se .
os olhos, fragmenta-se o pensamento: as pessoas se tomam incapazes
de perceber sua condi9ii0 como totalidade. 0 desenvolvimento das
funfoes esteticas estaria bern em harmonia com esta tendencia. Niio
atrapalharia coisa alguma.
Mas niio e isto que se propoe. .
---1_4..9 ~iio niio e in_£/uir a arteJJ,a_etj,UC(JfiiO. .(- )• '
A questiio e repensar a educafiiO sob a perspectiva da arte.
Educariio como atividade estetica . . .
E e entiio que as coisas se complicam. Porque educariio, como
atividade e~tetica, colide com tudo o que esta. ai, solidificado como
pratica, fincado como instituiriio,. batizado como politica.
A come9ar pelo fato de que a atividade estetica niio pode nunca
ser considerada .como meio. Ela e sempre um fim em si mesma. E
nisto se parece muito com o brinquedo. Interessante que o ingles
e o alemiio usem um mesmo verba para se referir ao brinquedo e
ao ato de tocar um instrumento: to play, spielen . ..
Que e que 0 brinquedo produz?
Que objeto novo se encontra no fim da concentrada atividade
dos musicos de uma orquestra?
Tudo tiio diferente da linha de montagem.
Aqui a atividade se justifica apenas em funriio daquilo que apa-
rece no fim. No brinquedo e na arte niio aparece coisa alguma no
10
,,
fim. E pode-se entiio perguntar: Mas comq justificar estas atividades
curiosas, inuteis, improdutivas? E que elas produzem prazer: ·ativi-
dades que siio um fim em si mesmas. Niio existem em funfiiO de
coisa alguma a niio ser elas mesmas e a alegria que faz'em nascer.
E ao olhar para a educafiiO pela perspectiva da arte somas
entiio forrados a nos perguntar se cada crian9a nao e urn fim em si
mesmo, e se_cada momenta a ocasiiio de uma experiencia que deve
ser avaliada pelo prazer que produz . . . Mas niio sera verdade que
toda a nossa pratica educacional se assenta sobre o pressuposto de
que a crianra e apenas um meio para se tornar adulto, e que cada
corpo ip,fantil brincante deve ser reprimido para vir a ser um cidadiio
economicamente produtivo? 0 prazer gratuito da experiencia estetica
e ludica foi banido das nossas escolas. E se alguem duvida que olhe
para os rostos amedrontados dos nossos mOfOS, assombrados pelo
fantasma do vestibular, atormentados pela e~igencia da eficacia,
fazendo coisas sem entender e sem rir. . . Dizer que a educariio e
atividade irmii do brinquedo e da arte e denunciar. a repressiio, re-
lembrar o paraiso·perdido, anunciar a possibilidade da alegria, rejeitar
as experiencias fragmentadas, .buscar a experiencia perdida da cul-
tura, dilacerada pela sistematica administrafiiO centralizada da vida
que, em nome da eficacia, quer gerenciar todas as coisas.
E o brinquedo tern que comerar agora. Porque, no espirito do
Joiio-Francisco que o escreveu, e necessaria pegar o texto da mesma
forma como se pega uma flauta, pra acordar o artista que dorme em
nos, ou como quem pega uma pipa, fazendo voar os pensamentos.
E sempre. assim com a arte e o brinqu'edo: o prazer s6 vern quando
o corpo se poe a danrar.
Rubem Alves
11
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INTRODUQ.AO
Ao se falar em educac;ao esta sempre implicita urna determinada
teoria do conhecimento, isto e, uma teoria que fundamenta e explica
a maneira e o processo pelos quais o homem vern a conhecer o
mundo. 0 como o homem conhece, o como ele encontra um sentido
para sua vida ~ no mundo, passa a ser a pedra angular de qualquer
processo educativo. Se educar e levar a conhecer, e necessaria que
se defina eotao como se da o ato de conhecimento, para que a
educac;ao se fundarnente nesse processo. A capacidade humana de
atribuir significac;6es - em outros termos, a consciencia do homem
- decorre de sua dimensiio simb6lica. Por intermedio dos sfmbolos
o homem transcende a simples esfera fisica e biol6gica, tomando o
muodo e ·a si proprio como objetos de compreensao. Pela palavra, o
universo adquire urn seotido, e o homem pode vir a conhece-lo,
emprestaodo-lhe significac;6es. Portanto, na raiz de todo conhecimento
subjazem a palavra e os demais processos simb6Iicos empregados
pelo homem.
A linguagem e o nosso mais profunda e, possivelmente, meoos
visivel meio ambiente, afirmam Postman e Weingartner.1 '£ preciso
que se compreenda o processo lingiifstico para que se entenda o que
significa conhecer. 0 sentido da linguagem no mundo humano deve
ser elucidado, a fim de que se possa perceber os mecanismos de
significac;ao de que se vale o homem. Niio ha conhecimento sem
sfmbolos. Esta e uma afirmac;ao basica, que norteara nossas conside-
rac;6es ao Iongo das paginas seguintes. 0 esforc;o humano para
compreender e o esforc;o para encontrar sfmbolos que representem
e signifiquem o objeto conhecido. A conscieocia e a razao humanas,
como se demonstrara, nascem com a linguagem e s6 se dao atraves
deJa. Toda compreeosao 16gica e racional somente e possivel atraves
da linguagem e de seus derivativos (como a 16gica formal e a
linguagem matem~hica).
I. Contesta~iio - nova formula de ensino. p. 123.
13
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Porem, antes que o pensamento possa tomar qualquer experiencia
c.omo _seu objeto, ocorre ja urn certo colo.car-se · e~ rela;:ao a
Situa;:ao, que envolve aspectos para alem da consciencia simb6lica.
Este experienciar compreende entao urn envolvimento mais abran-
gente do homem com o mundo, em que se incluem percep;:6es e
estados afetivos, anteriores as simboliza;:6es do pensamento. Para~
fraseando Merleau-Ponty, podemos dizer que o mundo nao e s6
o que pensamos, mas o que vivemos. Porque a dimensao vivida
anterior a sirnboliza;:ao, nao se esgota jamais no pensamento. H~
sempre uma regiao que permanece fora do alcance do pensamento e
da hnguagem. E esta regiao e o sentimento humano. Por sentimento,
entenda-se, assim, a apreensao da situa;:ao em que nos encontramos,
que precede qualquer Significa;:ao que OS sfmbolos dao. 0 sentir e
anterior ao pensar, e compreende aspectos perceptivos (intemos e
extemos) e_ aspectos emo~ionais. Por isso pode-se afirmar que, antes
de ser razao, o homem e emo;:ao.
0 conhecimento do mundo advem, desta forma, de urn processo
onde o sentir e o simbolizar se articulam e se completam. Contudo
nao M linguagem que explicite e aclare totalmente os sentimento~
humanos. Nao se pode, nunca, descrever com palavras como e a
dor de dente ou como e a temura que estamos sentindo. 0 conheci-
m~~to _dos sen~imentos e a sua expressao so podem se dar pela .
utihza;:ao de s1mbolos outros que nao os lingtiisticos; so podem
se dar atraves de uma consciencia distinta da que se poe no pensa-
mento ~acional. ,Uma yonte que nos leva a conhecer e a expressar
os senhmentos e, entao, a arte, e a forma de nossa consciencia
apreende-los e atraves da experiencia estetica. Na arte busca-se
concr~tizar ?s sentimentos numa forma, que a consciencia capta de
maneua ma1s global·e abrangente do que no pensamento rotineiro.
Na arte sao-nos apresentados aspectos e maneiras de nos sentirmos
no mundo, que a linguagem nao pode conceituar.
· Este e, portanto, o nucleo de nossas considera;:6es: a arte como
forma de conhecimento humano. Isto e: atraves da arte o homem
encontra sentidos que nao podem se dar de outra maneira senao
por ela propria. Em torno desta asser;:ao central pretendemos, pois,
desenvolver nosso problema, qual seja: a .dimensao estetica da
educa;:ao. Dit_o ~e _ : o~_tra maneira, e ~reciso que se verifique como
a arte se conshtUI'num elemento educat1vo; como ela prove elementos
para que o. hotnem desenvolv~ sua atividade _
significadora, ampliando
seu conhecimento_ a r.egi6es que ? simb~Iismo conceitual nao alcan;:a.
Contudo, nao 1remos aqUI focahzar nossa aten;:ao sobre o
trabalho (B: pr_axis) do artista. ~ processo especffico de cria;:ao na
arte necess1tana urn estudo particular, centrado na figura do criador
e em suas rela;:6es com a sociedade. Ta.mpouco nos preocuparemos
com as obras de arte enquanto objetos para uma reflexao de ordem
14
estetica; isto e, nao e nosso intuito discutir aquilo que faz com que
uma obra seja boa ou rna, do ponto de vista estetico. Nossa
posi;:ao sera muito mais a do espectador, do publico para quem se
dirige o trabalho artfstico. Na pessoa do fruidor da arte e que
buscaremos compreender seus efeitos educativos; no conhecimento
que ela possibilita ao espectador e que iremos procurar sua dimensao
educacional - com exce;:ao da arte infantil, na medida em que, para
a crian;:a, a arte e uma atividade, urn fazer. ·
Isto envolve a conceitua;:ao da educa;:ao de uma perspectiva
mais abrangente que a simples transmissao de conhecimentos. Envolve
a considera;:ao 'da educa;:ao como urn processo formativo do humano,
como urn processo pelo qual se auxilia o homem a desenvolver
sentidos e significados que orientem a sua a;:ao no mundo. Neste
sentido, o termo educafiio transcende os Iimites dos muros da escola,
para se inserir no proprio contexto cultural onde se esta.
A questao da educa;:ao gira sempre em tomo da cria;:ao e da
criatividade: ao aprender, estamos criando um esquema de significados
que permite interpretar nossa situa;:ao e desenvolver nossa a;:ao
numa certa dire;:ao. E, como assinala Alain Beaudot: 2  ••• o
ambiente cultural de urn pais deve influir largamente sobre o desen-
volvimento - ou sufocamento - da criatividade dos indivfduos.
A educa;:ao, dessa maneira, compreende tambem o ambiente cultural
no qual o indivfduo vive, na medida em que !he possibilite ou lhe
vete a constitui;:ao de urn sentido (o mais amplo possfvel) para
sua existencia. .A circula;:ao de ideias, significados e sentidos, no
interior de uma cultura, e o acesso a essa circula;:ao compreendem
pois o contexto foirnativo (educacional) mais amplo no qual estamos
inseridos. Os metodos pelos quais se permite ou se veta a participa;:ao
dos indivfduos nos produtos culturais sao, em ultima analise, metodos
educativos. Na afirma;:ao de Herbert Read: a A diferen;:a entre
o ideal de cidadania em uma democracia livre e o ideal de servi;:o
num estado totalitario e tao absoluta que desde a infancia ate a
idade adulta implica uma completa divergencia em objetivos e meto-
dos epucativos.
A arte e sempre produto de uma cultura e de urn determinado
periodo hist6rico. Nela se expressam os sentirnentos de urn povo
com rela;:ao as quest6es humanas, como sao interpretadas e vividas
em seu ambiente e em sua epoca. Atraves da arte temos acesso a
essa dimensao da vida cultural nao explicitamente formulada nas
demais constru;:6es racionais (ciencia, filosofia). Por outro lado,
quando se pensa na dimensiio estetica da educafiio, esta expressao
envolve urn sentido para alem dos dominios da propria arte. Porque
2. A criatividade na escola, p. 96.
3. Educaci6n por el arte, p. 223.
15
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o termo estetica sup6e uma certa harmonia, urn certo equilibria
Lie elementos. E, em nossa civilizac;ao, vern sendo sobremaneira
dificil o encontro de ·urn equilibria entre os sentidos que damos a
vida e anossa ac;ao concreta no cotidiano. Talvez se possa considerar
que nas culturas ditas primitivas a vida seja mais esteticamente
vivida, na medida em que cada ac;ao do indivfduo faz parte de urn
universo de valores e sentidos, do qual ele tern uma visao abrangente.
Enquanto que n6s, civilizados, estamos rnergulhados num oceano de
significac;6es, entre as quais devemos eleger aquelas que pautem o
nosso agir diario; e nem sempre e possfvel que este agir diario se
co~d~ne com nosso esquema de valores e significados. Assim, a
propna educac;ao possui uma dimensao estetica: levar o educando
a criar os sentidos e valores que fundamentem sua ac;ao no seu
ambiente cultural, de modo que haja coerencia, harmonia, entre o
sentir, o pensar e o fazer. Caso contrario, estamos frente atendencia
esquiz6ide de nossos tempos: a dicotomia entre o falar e o fazer,
entre o pensar e o agir, entre o sentir e o atuar.
Em resumo, nossa proposta aqui e buscar a importancia da
arte no prooesso educativo, entendendo-o de maneira mais ampla
que o simples ensino escolar. Devemos tentar estabelecer como a
arte participa na formac;ao do homem: qual a sua significac;ao no
processo de conhecimento humano. Portanto, foge a nossos prop6sitos
o estabelecimento de uma pedagogia artfstica ou a demarcac;ao de
metodos para a utilizac;ao da arte como veiculo educacional. Estas
sao quest6es mais pertinentes aos artistas ou aos especialista~ em
arte-educac;ao do que ao psic6logo ou ao fil6sofo educacional.
Pretendemos somente articular o processo do conhecimento (e a
apr~ndizagem) c;_om. a arte, inserindo-os num contexto cultural. Apenas
a titulo de apend1ce, trac;amos algumas considerac;6es de como a
arte foi e vern sendo encarada pelo ensino oficial brasileiro. Restrin-
gimos tais reflex6es ao ensino oficial porque a considerac;ao da arte
na cultura brasileira e tambem assunto por demais amplo, e mais
af~it~ ao campo da hist6ria da arte. Enquanto que o acesso aos
objetJvos e ao processo concreto de nosso ensino e mais facilmente
evidenciavel, mesmo por fazer parte de nosso trabalho cotidiano.
Ainda com relac;ao a expressiio artfstica deve-se trac;ar uma
diferenciac;ao nem sempre aclarada: aquela entre os conceitos de
comunicat;iio e expressiio. A comunicac;ao, como se vera, diz respeito
a transmissiio de significados explicitos, atraves da linguagem. En-
quanta a expressiio subentende a indicat;iio, o desvelamento de
sentimentos, nao passfveis de significac;ao conceitual. Esta e uma
distinc;ao importante, especialmente no ambito da psicologia. Laing
e Cooper, os iniciadores da chamada antipsiquiatria, tern freqiiente-
mente trac;ado uma critica a postura cientificista da psicologia e
psiquiatria tradicionais, que tern a ver com es . diferenciac;ao.
16
Le-se em muitos textos sobre psicopatologia que o doente mental
(especialmente o esquizofrenico) apresenta uma linguagem incongruente
e incompreensivel. Contudo, dizem OS autores citados, ela apenas e
incongruente do ponto de vista da linguagem conceitual com que o
espirito cientificista desses senhores pretende compreender o
paciente. Nao se pode pensar que as falas do esquizofrenico preten-
dam comunicar significados conceituais. Antes, ele esta totalmente
imerso na dimensao dos seus sentimentos, os quais procura expressar
atraves de Simbolos lingiiisticos mais pr6ximos da poesia. 0 esquizo-
frenico nao diz, mas exprime-,se por meio de Sfmbolos que devem
ser compreendidos como se compreende a arte: sentindo-os, muito
mais que interpretando-os apenas racionalmente. Por isso Cooper 4
chega a afirmar que  . .. os esquizofrenicos sao os poetas estrangu-
lados de nossa epoca.
Procuramos entao, no decorrer de nossas argumentac;oes e
considerac;6es, inserir no presente texto uma serie de versos e expres-
s6es poeticas. Queremos crer que elas possam permitir uma com-
preensao mais ampla de nossas reflex6es, por expressarem elementos
para alem da simples comunicac;ao conceitual. 0 que confere tambem
ao trabalho uma certa abertura, isto e, permite ao leitor a desco-
berta e a criac;ao de sentidos outros que nao estejam conceitualmente
colocados. Porque, no seio da reflexao sobre arte e criatividade,
restringir a compreensao apenas ao ambito 16gico ou cientifico
talvez seja empobrecer os sentidos encontrados. Segundo George
F. Kneller, 5 as abordagens cientificas e intuitivas tern de comple-
tar-se mutuamente, nao apenas agora, quando a ciencia da criatividade
esta ainda na infancia, mas permanentemente. Proscrever uma delas
sera dogmatismo alheio ao sadio espirito de ambas (... ). Alem
disso, a psicologia encarregou-se de provar que ela e instrumento
limitado para a explorac;ao do processo criador. Por umas tantas
raz6es os psic6logos conseguiram s6 poucas conclus6es definitivas.
Por fim, desejamos afirmar que uma preocupac;ao central ao
elaborar este trabalho se referiu a linguagem nele empregada. Pro-
curamos reduzir a urn mfnimo os termos tecnicos e demais express6es
tao caras a urn sem-numero de cientistas e pensadores. Isso por
ac:reditar que o conhecimento produzido .no interior de uma Universi-
dade ou Instituto de Pesquisas pertence a comunidade, e nao e de
uso exclusivo de uma serie de iniciados. Pode-se elaborar uma
pesquisa e urn texto conclusivos numa linguagem objetivamente
tecnica e hermetica. Todavia,  . . .o conhecimento assim obtido ...
4. Psiquiatria e antipsiquiatria, p. 140. A esse respeito, vejam-se ainda as
outras obras do autor: A morte da familia, Gramtitica da vida e A linguagem
da loucura. Bern como Ronald D. LAING, 0 eu dividido, A politica da familia e
A politica da experiencia e a ave do paraiso. .
5. Arte e ciencia da criatividade, p. 30 e 28.
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e entregue nao aos homens sobre os quais se fala, mas a outros
homens. Como se o cientista dissesse ao seu objeto: 'Eu te estudo.
Mas o meu conhecimento a teu respeito, eu o ocultarei de ti, atraves
do meu estilo'. 6 Especialmente no interior da filosofia e das
ciencias humanas a linguagem empregada e de suma importancia.
Meu pensamento sobre a natureza nao altera a natureza. Mas, o
meu pensamento sobre a sociedade altera a sociedade. Por isto a
linguagem, ela mesma, e uma ferramenta para interferencia direta
num mundo social. Uma linguagem cientifica que nao se articula
com a linguagem falada no cotidiano, portanto, corre o risco de
ser semelhante a uma tecnica de laborat6rio que nao tern meios de
interagir como objeto que esta sendo investigado. 7 Assim, queremos
crer que esta preocupa;ao com a linguagem possa permitir o acesso
as nossas reflex6es ao maior numero possivel de pessoas, que se
interessem pela arte e pela educa;ao. Dois fenomenos profundamente
humanos. E interpenetrantes.
6. Rubem ALVES, Pesquisa: para que?, Ref/exiio, I (1):39-40.
7. Ibid., p. 40.
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CAP1TULO I
APRENDIZAGEM E C~IAQA.O DO SIGNIFICADO
0 ideal pedag6gico do 16gico se ap6ia sobre a falsa sliposi!;iiO de
que 0 pensamento 16gico produtivo opera devido as leis da 16gica
e tei:n nelas sua base psicol6gica, pois opera de acordo com elas,
e com elas concordam seus resultados.
(Herbert Read, Educaci6n por el arte, p. 78.)
Assim como a consciencia humana difere da ·dos animais,
assim tambem, e claro, diferem o sentir e a emo91io hu-
manos. Como o nosso meio ambiente e urn mundo, teritos
sentimentos relativamente ao mundo - nao excita~es
trimsit6rias mas uma atitude emocional permanente em
rela~rao a urn universo permanente.
(Susanne K. Langer, Ensaios fi/os6ficos, p. 136.)
Por meu destino o cora~rao e quem responde .. .
(Renato Teixeira)
1 . 0 Processo•do Conhecimento: Sentir e Simbolizar
·Ha alguns instailtes, ao perceber que havia alguem oeste comodo,
o cachorro da casa empurrou a porta com o focinho e veio deitar-se
sobre o tapete. Mas.olio sem antes fazer alguma festa, abanando
a cauda, e depois dando varias voltas sobre o lugar onde se deitaria.
Este,e urn comportamento que ele aprendeu rapidamflnte: empurrar
a porta quando ouve rufdos ou ve as luzes acesas na biblioteca.
Porem, as voltas sobre o local de . descanso, nlio podemos dizer
propriamente que ele as tenha aprendido. Trata-se de ·uma atitude
comum a todos os clies, em qualquer parte do mundo. Grosso modo,
diriamos . que aqui estamos frente a urn instinto; a mesma especie
de impulso que leva o passaro a tecer o seu ninho, ali na arvore em
frente a janela. 0 que significam, contudo, tais comporta1Jlentos?
Qual a fun;lio desses atos, comuns a todos os animais da mesma
especie? Como .surgiram, e por que sao transmitidos, geneticamente,
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de gerac;ao a gerac;ao? Sera que em algum momento da evoluc;ao
eles tambem nao tiveram de ser aprendidos, e se fixaram no orga-
nismo animal?
Vamo~ tentar pensar nestas quest6es, comec;ando pela ultima.
Antes, porem, p~ecisamos relembrar que a vida tende para a morte.
Que cada ato VItal demanda uma certa quantidade de energia que
deve ser reposta, a fim de que a vida se mantenha. Que em ultima
a~alise, as ac;~es dos organismos visam sempre a man'utenc;ao da
vtda: a sobrevzvencia. Assim, deve o anirilal organizar sua ac;ao de
forma que ela se tome eficaz na satisfac;ao desse imperativo basico
9ue. e ~e manter vi~o. , Entao notamos que o chamado comportament~
mstmtJvo nada mats e que uma atividade que por ter se mostrado
uti! n~ so?revivenc~a, foi ma~tida .ao Iongo d~ evoluc;ao da especie.
Ou seja: ~ uma ac;ao aprendzda e mcorporada na memoria biol6gica
dos orgarus~os. Especies que nao conseguiram desenvolver e preser-
var mecamsmos de sobrevivencia se extinguiram. Portanto, em
algum ponto de sua hist6ria evolutiva, a especie incorporou a si
estes comportamentos que hoje chamamos instintivos, justamente
por eles terem s.: ~ostrado uteis a s,ua sobrevivencia. Aprender:
~reservar a exper~enc1a testada, para usa-la no futuro. A aprendizagem
e a transformac;ao de uma experiencia que se poderia perder no
passado numa ferramenta para conquistar o futuro. 1 Aqui se
depreende a func;ao da memoria: evitar que os comportamentos se
?,eem ~ .esmo; substi~ir o jogo de ensaio e erro por uma atividade
Ja defintda como eficaz. Para o cao, as voltas sobre o Iugar de
descanso sempre tiveram urn papel a cumprir: verificar se no local
nao havia cobras ou outros predadores, e amassar a vegetac;ao
para se deitar. Atividade milenar mantida ate hoje, atraves de sua
memoria bio!6gica.
Olhemos mais de perto esta expressao memoria biologica to-
mada d~ emprestimo a Rubem ALVES.2 Ele pretende significar, ~qui,
a ~r6pna programac;ao organfsmica do·animal. Isto e: em cada especie
amm.al, aquelas respostas que se mostraram eficazes a manutenc;ao
da vtda foram preservadas, sendo incorporadas a sua estrutura orga-
nica. Cad.a especie tern suas ac;6es instintivas caracterfsticas, pr6prias
daquele tJpo de organismo. 0 passaro constr6i seu ninho, o cao
amassa a vegetac;ao e o peixe sobe o rio para desovar. Esta mem6ria
biol6gica, de certa forma, fecha o comportamento do animal. Ele
nasce praticamente programado, nao podendo alterar qualitativa-
mente o seu comportamento, reorganizando sua ac;ao. Ao nascer,
nesta.sua memoria biol6gica ja se encontram gravadas aquelas ac;6es
1. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, Re/lexiio,
4 (13):22.
2. Ibid., p. 22.
20
basicas que o habilitarao a se manter vivo. E dali nao podem ser
removidas: nao ha esquecimento no caso dos instintos. Por isso
Merleau-Ponty chama esta forma de comportamento de amovivel. 3
Comportamentos amovfveis sao, entao, aqueles comportamentos
instintivos que se acham presentes no organismo desde seu nascimento,
e que dali nao podem ser removidos.
· Mas o cao que citamos no primeiro paragrafo nao comportou-se
apenas instintivamente. Dissemos que ele aprendeu a empurrar a
porta e entrar quando percebe pessoas no aposento. lsto nao e
comum a todos os caes, mas caracterfstico deste, em particular. :E
urn comportamento aprendido e retido nao pela especie, mas por
este indivfduo. Tal fato significa que, apesar de programado, o
animal possui uma pequena margem de ac;ao, que pode ser preenchida
atraves do aprendizado de novos comportamentos. 0 cao pode
aprender a abrir a porta e a apanh.ar uma bola, o elefante pode ser
treinado pera plantar bananeiras e o urso para andar de bicicleta.
Porem estas novas atividades adquiridas estao subordinadas sempre
aquela programac;ao original. Jamais urn cao aprendera a construir
urn ninho, nero urn peixe a andar de bicicleta. Insistimos: o compor-
tamento animal e fechado, determinado biologicamente. Novos com-
portamentos somente serao possfveis na medida em que nao divirjam
de sua estrutura organfsmica e nela se ancorem. Os animais sao
sempre treinados a partir dos impulsos basicos para comer e beber,
satisfeitos pelo treinador ap6s cada resposta correta emitida. A
estes comportamentos aprendidos, mas ancorados no determinismo
da especie, Merleau-Ponty chama de sincreticos. 4
Voltando ao nosso cao, devemos notar uma coisa com relac;ao
ao seu comportamento de abrir a porta: ele somente a empurra
quando ve as luzes acesas, ouve rufdos ou fareja determinados odores,
isto e, quando percebe que seus donos estao naquele comodo. lsto
quer dizer que existe, por parte dele, uma ·certa interpretafiio do
ambiente, que o leva a emitir ou nao aquele comportamento. Urn
outro exemplo: a raposa faminta nao se aproxima do galinheiro
quando ele esta guardado pelo cachorro do fazendeiro. 0 impulso
instintivo para comer e sustado em func;ao da sobrevivencia -
este valor maior da vida, que e manter-se. Portanto, a atividade
animal, seja em formas amovfveis ou sincreticas, nao se cta a esmo:
e necessaria uma interpretac;ao da situac;ao. Atraves do corpo do
animal e informado se seu ambiente e propfcio ou ameac;ador, se
ele deve avanc;ar ou fugir. Sem esta atividade interpretativa a ac;ao
nao podera ser coordenada com eficacia. Generalizemos: para ser
eficaz, a atividade tem de se dar em resposta a uma atividade inter-
3. Cf. A estrutura do comportamento.
4. Ibid.
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pretativa que e, mesmo nos seus ntveis mais elementares uma forma
de conhecimento.  '
Assim, .o ·animal colhe no ambiente determinados sinais, que
passam a onentar sua ac;ao. A estes sinais os .behavioristas chamam
d~ ~st~mulos discriminativos: estfmulos que permitem ao orgatiismo
dtscnm~ar qual comportamento deve ser emitido naquela situac;ao.
Se antenormente haviamos chamado de memoria biol6gica a re-
t~nc;ao. de respostas pela espckie, chamemos agora esta retenc;ao
~mcrettca_ de mem6~ia de sinais. Atraves dela o animal pode armazenar
!nformac;o.es 9ue dtgam respeito a sua vida particular, a sua situac;ao
enq~anto m~tvidu?·. Na mem?ri~ biol6gica armazenam-se informac;6es
pert~nentes a e~pe?t; - os mstintos; na mem6ria de sinais aquelas
pertmentes ao mdtvtduo - os condicionamentos. Observemos tam-
hem que esta margem de condicionamentos cresce a medida que se
so~e na e~ca l a das especies. Ou seja: quanta mais evoluido o
antmal, mats comportamentos novos ele pode vir a adquirir. Dizendo
de outra forma, quanta mais inferior a especie mais programado
fechaqo, nasce o animal. A medida que ~e sobe nesta escala'
maior tambem vai sendo ~ infancia do animal, isto e, aquele period~
~ode ele depend~ dos cutdados da mlie; conseqtientemente, menos
acabado. ele nasce.
. Ca~e. ainda acrescentar aqui, com respeito aatividade interpreta-
hva ,d~ ~al, que .o mecanismo ~asico pelo qual esta interpretac;ao
se da ~ ... a capactdade do orgamsmo para sentir dor ou prazer. A
sensac;ao !_e praze~ e um a~o de conhecimento que interpreta uma
dada relac;ao orgamsmo-am b~n te como sendo favoravel ou asobrevi-
vencia o~ a expressao do corpo. A sensac;ao de dor, ao contrario,
faz ,o an~mal saber que s~a vida esta em perigo. A atividade se
dara, entao, ou pela aproxtmac;lio do animal do objeto que lhe causa
prazer, ou pela sua fuga daquele que lhe causa dor. o
Saltemos agora do Ultimo degrau da escala evolutiva animal
(ocupado pelos ·antrop6ides), para o homem. Este olio e urn salto
somente quantitativa, mas qualitativo. 0 abismo cavado entre urn
e ??tro nao pode ser vencido apenas atraves dos esquemas de analise
?ti hzad~s pa~a o COII~po~amento amovivel e o sincretico. :B preciso
u.-se ~dtante. Em pnmeuo lugar, o homem olio nasce programado
biOlogtcamente para a tarefa da sobrevivencia - inclusive sua infancia
e a mais longa dentre as de todos OS Seres vivos. Nao ha nenhun;a
relafao determinada entre seu organismo e sua atividade como no
caso .1os animais. Um exemplo banal: o homem nao p~ssui asas,
mas Ja se elevou aos ares. Assim, nao existe uma mera continuidade
5. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, Joe. cit., p. 23.
6. lbid. p. 23. ..
22
entre o organismo e o comportamento humanos. Outro aspecto dessa
radical diferenc;a entre homem e animal diz respeito as relac;6es
com o meio. Enquanto o animal procura adaptar-se, ajustar-se as
condic;oes que lhe sao impostas pelo meio ambiente, o ser humano
busca transforma-lo, adapta-lo as suas necessidades. 0 animal reage
as mudanc;as do meio; o homem age, mudando o meio. E modifica
o meio nlio apenas com o uso da tecnologia, por meio de mudanc;as
fisicas, mas basica e fundamentalmente atraves da palavra, dos
stmbolos que cria para interpretar o mundo. 0 proprio ato de
organizar simbolicamente a natureza j.a e uma tecnica de que 0
homem lanc;ou mao para transformar o universo fisico de um continuo
espacio-temporal indiferenciado, num cosmo, numa estrutura signifi-
cativa dentro da qual ele pudesse orientar-se.1 Urn simbolo constitui
urn determinado objeto ou sinal que representa alga; que permite o
conhecimento de coisas e eventos nlio presentes ou, mesmo, inexis-
tentes concretamente. Por intermedio dos simbolos o mundo pode
ser apreendido como uma totalidade, ja que eles permitem a reuniao
e o entrelac;amento de objetos e fatos ausentes (e mesmo dfspares),
na consciencia humana.
0 homem e, portanto, urn ser de slmbolos. A palavra possibili-
tou-lhe urn desprendimento de seu corpo, isto e, deu-lhe a capacidade
de voltar-se sabre si proprio, numa atitude de reflexao. Nlio mais
aderido e limitado a seu organismo, tornou-se urn objeto para si
proprio, ou seja, pode ver-se de fora, pode buscar um significado,
urn sentido para a sua vida. Com a palavra humana nasce a
consciencia do homem. Com a consciencia, o homem se descobriu
no mundo e no tempo. Nlio mais se pode falar em meio ambiente,
como no caso do animal, limitado pelas dimens6es espaciais que
seus sentidos lhe permitem; deve-se dizer mundo, ja que os simbolos
possibilitam a consciencia de espac;os outros que nlio o existente ao
seu redor. Quando digo China, por exemplo, a palavra traz-me a
consciencia uma regiao totalmente inalcanc;avel pelos meus sentidos
agora. E ainda, descobrindo-se no tempo, o qomem tornou-se hist6ri-
co: seus sfmbolos permitem-lhe evocar o passado e planejar o futuro,
enquanto que, ao nlio ter urn amanha nero urn hoje, por viver num
presente esmagador, o animal~ a-hist6rico. 8 Por isso, na classificac;lio
das formas de comportamento encetada por Merleau-Ponty, o humano
e chamado de comportamento simb6lico. ° Comportamento que olio
se da apenas em reac;ao a materialidade do presente, mas em funrao
de urn universo significativo, construfdo pelos sfmbolos. Quando se
7. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, Joe. cit., p. 24.
8. Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 104.
9. Cf. A estrutura do comportamento.
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fala, em linguagem filos6fica, da transcendencia do homem, e
justarnente oeste sentido: da sua nao aderencia ao aqui e agora, de
sua consciencia do ali e do depois (ou do antes).
Desta forma, entre homem e natureza colocam-se os sfmbolos
a palavra, a linguagem humana. E ·a vida (biologica) acrescenta-s~
urn sentfdo, tornando-a existencia. 0 homem nao vive, simplesmente,
mas extste: busca mais e mais dar urn significado ao fato de se
encontrar aqui, nascendo, construindo e morrendo. ·A historia do
homem e a historia do sentido que ele procura irnprimir ao universo.
Retornemos urn pouco ao comportamento animal. Ja dissemos
que ele pode vir a adquirir alguns comportamentos novas com base
na memoria de sinais, e por meio de condicionamentos.' Isto e o
animal pode adquirir a capacidade de responder a alguns estim~Ios
que lhe foram tornados relevantes. Porem sua resposta sera sempre
a '!'esma, frente ao mesmo est.imulo. Exemplifiquemos. Urn cao
tremado para sentar-se cada vez que se lhe apresenta urn circulo
recortado em cartao, nao o fara se lhe apresentarrnos o mesmo
circul_o desen~ado num~ f?~ha de papel. Isso porque ele reage a
um smal, e nao a um szgmfzcado. Em ambos os casas o significado
(o drculo) e o mesmo, inas nao o sinal. Fac;amos outra experiencia.
0 cao agora sera treinado para sentar-se quando acendermos uma
lampada de 100 watts. Se, porem, uma lampada de 60 watts for
ac~sa,. e yrovavel que ele venh_a a sentar-se. Isso pelo fato de os
d01~ smats serem bastante parectdos, e ele nao conseguir discriminar
a diferenc;a entre eles. Este fenomeno foi estudado pelos behavioris-
tas, que lhe deram o nome de generaliza{:iio: a resposta frente a
urn ~stimulo e general.izada para est.imulos similares. Montemos agora
urn JOgo com uma cnanc;a: cada vez que lhe mostrarmos urn circulo
ela devera bater palmas. Podemos apresentar-lhe diversos circulos:
desenhados, recortados, brancos, coloridos, etc., que fatalmente ela
aplau~ira. :E clara que, neste caso, a crianc;a deve saber o que e
urn ctrcul~: dev~ ter o seu conceito, saber seu significado. Aqui
esta a radtcal dtferenc;a entre os comportamentos sincreticos e os
simb61icos. Nos sincreticos, o organismo reage mecanicamente a urn
sinal, enquanto nos simb6licos a interpretac;ao se prende ao significado
que os simbolos transmitem, independentemente de suas caracteristicas
ffsicas. A crianc;a transfere o significado retido, de uma experiencia
a .out~a, enquanto o animal apenas generaliza a sua resposta. No
pnmetro caso temos uma mem6ria de significados, no segundo, nossa
j~ conhecida memoria de sinais.
. . ~a primeira citac;ao deste .!exto, Rubem Alves diz que aprender
stgmft~a. a~azenar uma expene~;ia, comprovada como eficaz, para
sua utl.hzac;ao futura. Pelo que Ja foi dito, a retenyao (ou seja, a
aprend1zagem) a nfvel animal se cJ.a de maneira mecanica. :E preser-
vada uma conexao estimulo-resposta, fixa e invariavel. A nivel
24
I .
r

humano, pot:em, a armazenagem se da em termos de significac;ao.
Uma dada experiencia e transforrnada em simbolos - extrai-se dela
0 significado -, que sao guardados e incorporados aqueles ja
existentes, provenientes de situac;oes passadas. Frente a uma nova
situac;ao, a interpretac;ao do homem se dara, entao, a partir daqueles
significados preexistentes. 0 ato de conhecer e, portanto, um ato
de re-conhecer: a constatac;ao da concordancia entre dados sens6rios
novas e as forrnas memorizadas. Conhec;o o novo, dou-lhe um nome.
somente depois de reconhece-lo por compara-lo com urn modelo
preexistente em minha mente e que organiza o processo pelo qual
estruturo minha experienciaY1 Nesses termos, nao se pode realmente
falar em aprendizagem animal, mas sim em adestramento. 0
adestramento supoe uma atividade adqtiirida a partir dos comporta-
mentos amoviveis, e que e mantida de forma rigida, sempre identica,
nao sofrendo aperfeic;oamentos par parte do animal. Utilizemos,
daqui ern diante, o termo aprendizagem apenas para o comportamento
humano, onde os simbolos retem o significado da situac;ao vivida,
permitindo refinamentos e reinterpretac;6es. :E in-
teressante notar que,
nao atentando para o processo humano de simbolizac;ao e significac;ao,
0 behaviorismo ate hoje nao produziu mais que teorias do adestra-
mento, e nao da aprendizagem, no sentido forte do termo.
Ate aqui vinhamos dizendo que a ac;ao do organismo se cJ.a
primordialmente em func;ao de urn interesse, ou motivo, qual seja,
o de se manter vivo. A sobrevivencia e o motor das atividades
organismicas em face do universo natural. Isso e totalmente verda-
deiro quer se trate do comportamento animal, quer se trate do
humano. Contudo, e necessaria que olhemos mais de perto o compor-
tamento simb6lico em termos deste interesse, ja que ele eradicalmente
distinto dos comportamentos sincreticos e amovfveis. Para o animal,
a relac;ao de seu corpo com o. meio ambiente se estrutura de forma
mecanica: ele se adapta as cbndic;oes fisicas atraves dos mecanismos
regulatorios da dar e do prazer, da ameac;a e da promessa de vida.
Para o homem, que busca mais do que a manutenc;ao da vida -
busca urn sentido para ela -, este motivo vital adquire contornos
mais especificos. Porque se trata agora de procurar nao apenas a
equilibrac;ao biologica, mas tambem a coerencia simb6lica. Frente ao
mundo o homem se pergunta acerca do valor que as coisas tern
em relac;ao a sua vida, isto e, a respeito de sua significafiio. Assim,
os mecanismos interpretativos da dar e do prazer se transformam
num esquema de interpretafiiO de valores, no contexto bumano. Urn
valor positivo e aquele que auxilia o homem na manuten~ao da
vida e de seu significado (a existencia); urn negativo, ao contn1rio,
diz respeito a destruic;ao da vida e de sua coerencia. Portanto, OS
10. Rubem ALYES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, loc. cit., p. 29.
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valores sao filhos diretos da relac;ao homem-mundo, gerados pela
necessidade de sobrevivencia e paridos pelo universo simb61ico que
o homem construiu.
Desta maneira, notamos que o ato de conhecer - de dar um
significado as coisas e aos fatos - brota de uma atitude valorativa
do homem. Este procura interpretar o mundo a partir do significado
que ele adquire para sua sobrevivencia. Na raiz de todo conhecimento
se encontra uma necessidade vital, a sobrevivencia - valor basico
reinterpretado pelos sfmbolos humanos. Por isso, nao e correto
separar o conhecimento objetivo das emoc;oes e dos valores. Ao
contnirio. A relac;ao entre eles e dialetica. ( ...) 0 verdadeiro
conhecimento objetivo brota de uma atitude valorativa e emotiva, e
pretende ser uma ferramenta para que o hoJ?lem integre eficazmente
o referido objeto no seu projeto de dominar o mundo.11 A atitude
do homem frente ao mundo e basica e primordialmente emotiva, e
os rudimentos dessa emoc;ao sao os mesmos encontrados no animal:
o prazer e a dor (a vida e a morte). Atraves da significac;ao que o
homem procura, estas emoc;6es basicas sao refinadas na usina simb6-
lica da valorac;ao. Nao procuramos conhecer o mundo apenas por
um prazer intelectual, como supunha Arist6teles, mas para transfer-
ma-lo em func;ao de nossas carencias. Assim, a experiencia primaria
que o homem tern do mundo nao e a de urn enigma intelectual a ser
decifrado, mas de urn problema vital, de cuja solU;ao depende a
sua sobrevivencia. 12
A vida humana e urn constante fluir emotivo, sobre. o qual
advem as significac;oes que a palavra lhe da. 0 homem experiencia
o mundo primordialmente de maneira direta, emocional, voltando-se
entao sobre estas experiencias e conferindo-lhes urn sentido, atraves
de simbolizac;oes adequadas. Qualqoer especie de conhecimento
somente se da a partir deste fluxo vital, que se desenrola desde o
nosso nascimento ate a nossa morte. Isso quer dizer, primeiramente,
que as experiencias s6 se tornam significativas ap6s terem sido
vividas, quando o pensamento pode toma-las como objeto e transfor-
ma-las em simbolos. S6 do ponto de vista retrospective e que
existem experiencias delimitadas. Somente o que ja foi vivenciado
e significative, e nao aquila que esta sendo vivenciado. Pois o
significado e meramente uma operac;ao da intencionalidade, a qual,
no entanto, s6 se torna visfvel reflexivamente. Do ponto de vista da
experiencia que esta se passando, a predicac;ao de significado e,
necessariamente, trivial, ja que significado, aqui, s6 pode ser entendido
como urn olhar atento dirigido nao a experiencia que esta passando,
11. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, loc cit., p. 34.
12. Ibid., p. 35.
26
mas a experiencia ja passada. 1
~ A_ razao.huroana, a refl~xao, porta~ to:
s6 se da a partir de urn fundo mdiferenctado de sensac;oes e .emo.c;~es,
o pensamento significado~ A pr.ocura, d~sta forma, tomar mtehg1vel
ao homem este alicerce dmamtco, nasctdo de seu encontro com o
mundo. Esta corrente vital foi chamada por alguns fil6sofos (especia~­
mente os fenomen6logos) de vivido, ou de irreflet~do: 14
«: const-
dera-se que ela seja sempre ma.ior .que ~~alquer s.tgmftcac;~o. Ou
seja: a vida vivida nao se esgota Jama1s na v1da refletida; os stmbolos
(a palavra) nao podem nunca pretender esgotar a foote de onde
jorram. )';; das profundezas da vi~a que o precede e·o _envo~ve que
vern o pensamento, estando entendtdo que suas ~onstruc;oes n~o con-
seguirao, jamais, conquistar ·e esclarecer perfettamente aqmlo que
constitui sua propria fonte.15
· • • _
Nossas palavras, nossas construc;oes mentat.
s- 16gt~as ou.n.ao -,
somente sao significativas por ~eferencia a .n~ss~ vtda vtvtda! a
este fundo indeterminado que arqmteta nossa extstencta. Neste ~entid?,
tornar significativa a vida (refletindo sobre ela), talvez nao se]a
mais do que buscar esta harmonia co~ que ela. se ?esenvolve, ~ntes
de ser reduzida ao pensamento. Os stmbolos cnstabzam ~ paralisam
o ritmo continuo de nosso viver. Ritmo este que evolut ordenada-
mente desde nosso impulso pela sobrevivencia, passan~o p~las sensa-
c;oes e percep;Oes que temos do mundo. Po~to, nao ?a qua~9u~r
coisa de estetico na apreensao deste pulsar vtta~? Ser~ que .nao
poderemos denominar existencia uma certeza mrus lummosa, runda
que tambem indefinfvel, cuja apreensao com toda clareza permanec:-
ria de algum modo estetica, isto e, independente de toda formulac;ao
conceptual?. 1a Nao podemos, oeste momento, alongar~o-nos nestas
considerac;6es, que serao retomadas e aprofundadas ad1ant~. Basta,
por ora, constatar que este ritmo vital se desenvolve harmorucamente,
nao podendo ser integralmente recuperado pelo ~o.sso P.ensament~;
Heidegger inclusive afirmava que o pensamento logico, calculante
(como ele 0 chamava) e inferior ao pensamento meditante, em
capacidade para exprimir o vivido. Portadora deste pensamento
meditante era a linguagem dos fi16sofos gregos. Mas portadora dele
, 1 d t  17
etambem essa outra palavra nascente que e a pa avra o. P?,e a ....
Por isso, nada mais natural que ilustremos essa nossa 1de1a da ~Ida
(irrefletida) como urn fluir constante, com os versos do poeta, rettra-
dos do seu 0 rio que constr6i: lR •
13 . . Alfred SCHUTZ, Fet~omen~logia e ,;ela~oe~ soc!?is, ~; 6_3. . '·
14. Outros sinonimos senam, aJnda: o atematJzado , o pre-reflexwo ,
0 antepredicativo ou o pre-predicativo. .
15. Andre DARTIGUES, 0 que e a fenomenolog,a?, p. 65.
16. Ibid., p. 92 (grifo nosso).
17. Ibid., p. 133. 1 c t 
18. Regis de MORAIS, Queda de areia, p. 28. (Sao Pau o, or ez
Moraes, 1976.)
27
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0 rio que constr6i os meus segredos
as vezes quase seca e sinto medo
as vezes se avoluma e eu fico muitos
as vezes se desmente. Nao me escuto.
0 rio que sc cumpre no meu peito
as vezes cala e apenas se entrega
as vezes mlo faz nada e me confunde
ou me faz enfrentar o que serei.
.Antes de seguir adiante, recapitulemos alguns conceitos basicos.
Ja. ?I~semos que apre~der significa yreservar uma experiencia, para
utJhza-la no futuro. D1ssemos tambem que somente ha aprendizagem
n? ~~so ~umano, onde as experiencias sao preservadas a partir da
Slgn!/lCafao .~~e. o ,ho~e~ lhes atribui. A experiencia, que ocorre
a ~1vel d? VIVldo , e sunboliz~da e armazenada pelo homem por
me10 da h~gua~em. Desta m~ne1ra, pode ele transferir os significados
de urn~ s1tua9ao a outra, ~1ferentemente dos animais, qQe apenas
generall~m respostas. Ass1m, os mecanismos basicos ·da aprendi-
zagem sao:
a) 0 i~te r esse, ~ou__ motivo) - somente se aprende aquilo que se
cons1dera utll a tarefa da sobrevivencia. No caso humano a
sobrevivencia e interpretada a partir dos valores que 0 ho~em
atribui ao mundo. '
b) A mem6ria- permite a reten~ao dos significados (valores) at·
ribui-
dos a experiencia. .
c) A transferencia - que consiste em interpretar e agir em novas
situa0es com base nos significados retidos de experiencias
antenores.
Dentre os te6ricos da psicologia da aprendizagem, talvez seja
Gen~lin quem tenha ido mais a fundo no problema, justamente por
cons1derar estas duas dimensoes humanas: o vivido (que ele chama
de experiencing - a experiencia) e a sua simboliza~ao. Explicando
a teoria deste autor, diz M. de La Puente: 19 0 que Gendlin se
prop6e e redefinir a no~ao de significado, que esclarece ipso facto
o que e aprendizagem significativa. Gendlin distingue no significado
duas dimensoes: a dimensao experiencial e a dimensao simb6lica
e o define como a relafiio funcional existente entre simbolos ;
e~pe~iencias': . ~- ainda: 0 conhecimento tern uma dimensao expe-
nencial. 0 sigmficado pode ser abordado nao apenas como significado
simb?lic~ acerca das coisas, ou como apenas uma estrutura 16gica,
mas 1mphcando a experiencia (experiencing). 0 significado eabordado
como o resultado de uma intera~ao entre o experiencing e os
I9. 0 ensino centrado no estudante, p. 31.
28
slmbolos. 20
A aquisi~ao de urn novo significado (ou aprendizagem
significativa)·deve mobilizar, entao, tanto nossos conceitos como as
experiencias a que eles se referem. 0 significado possui assim uma
dimensao sentida (vivida) e uma simbolizada (refletida). Esta dimensao
sentida do significado e facilmente demonstrada atraves de urn
exemplo: quando procuramos lembrar uma palavra e nao o consegui-
mos, ficamos como que a sentindo, enquanto ela nao nos vern a
consciencia; alguem sugere algumas outras que, no entanto, por nao
se encaixarem neste sentimento, sao logo refutadas, ate que encontre-
mos o termo exato.
Estes fatos tern conseqiiencias importantes para qualquer educa-
dor. A mais fundamental e que ninguem ·adquire novos conceitos se
estes niio se referirem as suas experiencias de vida. Novos significados
somente serao incorporados a estrutura cognitiva do indivfduo se
constituirem simboliza96es de experiencias ja vividas. David Ausubel,
outro te6rico da aprendizagem, discorda dessa tese. Diz ele que
novos conceitos podem ser aprendidos sem a sua dimensao experien-
cial, bastando que sejam ancorados naqueles ja existentes no
repert6rio do individuo. lsto e fato. Porem, o de que Ausubel se
esquece, e que, em ultima analise, OS. Simbolos ja presentes no
repert6rio do individuo s6 o estao porque surgiram a partir de suas
vivencias. Novos significados, quando adquiridos desta maneira, sao
filtrados por aqueles ja presentes, oriundos de experiencias vitais. 21
Nosso universo simb6lico, nossa .visao de mundo, esta intimamente
relacionada com nossa existencia concreta. Aquilo que nao perce-
bemos como importante nao e retido - e-nos insignificante. Em
psicologia existe uma serie de experimentos a respeito da memoriza~ao
de sflabas e palavras sem sentido. Em todos se demonstrou que
este material, ap6s decorado, e rapidamente esquecido. Isso e
uma demonstra~ao experimental de que nossa memoria e uma memoria
de significados, que retem apenas aquilo que fale diretamente anossa
vida. Por isso, urn sistema de ensino calcado sobre a memorizac;ao
mecanica tende a nao produzir aprendizagem alguma.
Gendlin tambem nos demonstra que a experiencia basica que
temos do mundo e emocional, ou seja, e sentida, antes de ser
compreendida. As rela~oes 16gicas ocorrem somente depois dos
significados sentidos. Tomemos .uma metafora, ou urn verso, para
exemplificar. Quando o poeta (Ledo Ivo) diz  ...o dia e urn
cao 1 que se deita para morrer ... , em termos 16gicos, esta relac;ao
nao diz nada. Urn dia nao e urn cao, muito menos que se deita
para morrer. Porem, a partir da experiencia que temos de urn dia
e de urn cao a mort~, atraves do sentimento que OS dois elementos
20. 0 ensino centrado no estudante, p. 28.
21. Ibid., p. 43.
29
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evocam, podemos chegar a compreender a rela;ao. A metcifora nao
se baseia mi semelhan;a, mas a semelhan;a se baseia na metafora...
Uma vez encontrado o novo significado, descobre-se depois a seme-
lhan;a, como rela;ao l6gica. .Nao existe semelhan;a antes da cria;ao
do significado a partir da experiencia de alguem. 22 0 que se
fez aqui foi aproximar dois significados sentidos, dois sentimentos,
simbolizados por palavras (dia e cao amorte) que, logicamente, nao
estao relacionados entre si. A expressao popular chove canivetes
e outro .exemplo, talvez mais claro ainda. Nossa experiencia de
chuva e de canivete (como algo afiado e penetrante) estabelece, num
nfvel infral6gico, a rela;ao, que entao se torna compreensfvel.
Para Gendlin, e importante que se de aten;ao a dimensao
experiencial do conhecimento. Focalizando sua aten;ao sobre o que
sente (significado sentido), o individuo pode encontrar novos signifi-
cados, ligando, a estas experiencias, simbolos novos que as tornem
significativas. Criar e olhar diretamente para a Corrente experiencial
(...) e prestar aten;ao ao que se esta sentindo, de modo a produzir
novos significados atraves de novos simbolos em intera;ao com as
·experiencias . . . Pensar nao e eliminar conceitos, mas dinamiza-los
experiencialmente. ( ... ) Talvez, explica-se Gendlin, a diferen;a entre
pessoas criativas e nao criativas resida precisamente no fato de que
as primeiras, diferentemente das segundas, dao aten;ao a dimensao
experiencial do conhecimento...  2a Assim, estar aberto a expe-
riencia e condi;ao fundamental na aquisi;ao e cria;ao de novos
significados. Simbolos e conceitos que nao possam ser referidos a
experiencia sao vazios de significa;ao. Podemos explicar a urn serin-
gueiro amazonense, nascido e criado na selva, o que seja a polui;ao
das grandes cidades, porem sua compreensao do fenomeno sera
incompleta; faltar-lhe-a sempre uma dimensao basica da compreensao:
a vivencia da polui;ao. Da mesma forma, quando alguem nos descreve
urna cidade que nao conhecemos, ficamos com urna·impressao urn
tanto quanto abstrata de como ela e realmente. So iremos preencher
este vazio e conhece-la de maneira mais completa quando pudermos
andar por suas ruas e permanecer nela urn certo tempo. E af pode ·
ser, inclusive, que consideremos falsa a descri;ao que tinhamos: tal
descri;ao havia brotado da maneira como nosso interlocutor sentira
a cidade, que e diferente 9a maneira como a sentimos agora.
Lowenfeld e Brittain, 24 dois autores voltados a educa;ao infantil,
assim descrevem esta questao:
0 processo de crescimento mental tende, ,pois, a ser uma
fun;ao abstrata, na medida em que esses sfmbolos·adquirem sign_ifi-
22. Miguel de La PUENTE, op. cit., p. 43.
23. Ibid., p. 50.
24. Desenvolvimento. e capacidade criadora, p. 16.
30
cados diferentes e cada .vez mais complicados. Contudo, nao e o
conhecimento desses simbolos ou a habilidade para redistribui-los
que ptomove o crescimento mental, mas, tambem, o que eles represen-
tam. Estar capacitado para reunir determinadas letras na seqUencia
adequada para que se leia coelho nao constitui uma compreensao
do que seja urn coelho. Para conhecer realmente urn coelho a
crianc;a deve poder toca-lo, sentir o contato de sua pele, observar
como mexe o focinho, alimenta-lo e aprender os seus Mbitos. :£ a
intera;ao dos simbolos, do eu e do ambiente que fornece os elementos
necessarios aos processos intelectuais abstratos.
Finalme~te, para refor;ar essa tese sobre a importancia do
vivido no processo de conhecimento, citemos Merleau-Ponty: 25 Tudo
o que sei do mundo, mesmo devido aciencia, o sei a partir de minha
visao pessoal ou de um'a experiencia do mundo sem a qual os
simbolos da ciencia nada significariam. Todo o universo da ciencia
econstruido sobre o mundo vivido, e se quisermos pensar na propria
ciencia com rigor, apreciar exatamente o seu sentido, e seu alcance,
convem despertarmos primeiramente esta experiencia do mundo da
qual ela e expressao segunda. ( . . .) Retornar as coisas mesmas e
retornar a este mundo antes do conhecimento cujo conhecimento
fala sempre, e com respeito ao qual toda determina;ao cientffica e
abstrata, representativ,.a e dependente, como a geografia com relac;ao a
paisagem onde aprendemos primeiramente 0 que·e uma floresta, urn
campo, urn rio.
Encerrando este primeiro item gostariamos de enfatizar uma
afirmagao que fizem;s alguns paragrafos atras. Haviamos dito, ali,
que o fluir harmonica de nossa experiencia;ao guarda em si algo de
estetjco. Ou seja: que nosso processo de sentir o mundo consiste
numa apreensao direta, de certa forma equilibrada e harmonizada,
dos fenomenos ao nosso rector. lsto se tornara mais claro quando
abordarmos a questao da percep;ao humana. Basta agora conside-
rarmos o seguinte exemplo, que fala a favor desta afirmac;ao. :£
comum ouvir-se, especialmente entre os profissionais da medicina e
da psicologia, a seguinte assertiva: Estou atendendo (ou tratando de)
urn caso muito bonito. Ora, sera que a beleza a que se refere o
profissional se encontra em u~ corpo (ou mente) ~nfermo? Nao.
A beleza, ai, reside na rela;ao que ele mantem com urn fenomeno
que deve ser decifrado. Ela consiste no prazer experimentado por
ele ao veneer urn desafio imposto pela doen;a: compreende-la e
atuar sobre ela de forma correta. Sob todo o seu equipamento e
raciocinio 16gico e cientffico, subjaz urn sentimento da situa;ao que
25. .Fenomenologia da percep~iiq , p. 6-7.
31
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ele interpreta como bela. 26
• Herbert Read, 27 neste ·sentido, assimila:
 ... sustento que a vida mesma, em suas fontes mais secretas e
essenciais, e estetica.
E ainda o mesmo autor, a respeito da memoria humana, tece
as seguintes considera(,:6es: De passagem digamos ·que tampouco a
memoria e independente dos fatores esteticos. Numa ocasiao, assisti
a uma demonstra~ao extraordimiria de memoria, na qual o sujeito
se mostrou capaz de reproduzir as cifras decimais de 'T1' em qualquer
quantidade; depois de anotar varias centep.as de 'lugares', podia
continuar a serie em qualquer ponto dado, saltando os lugares que
se lhe pedia. Ao interroga-lo, o sujeito confessou que recordava as
cifras mediante certo 'ritmo'. 28 Alias, e comum o procedimento
empregado pelos estudantes, de memorizar determinadas passagens
ou classi ,fica~6es mediante sua transforma~ao em versos ou seqtiencias
ritmicas - processo mnemonico apoiado sabre fatores esteticos,
como a rima e o ritmo. Portanto, essa considera~ao da existencia
humana, em si, como urn fato estetico, parece ser mais do que simples
suposi~ao literaria. Como tambem ja dizia Goethe, tudo ria vida
e ritmo.
2. A Linguagem e a Constru~ao do Real
Ate aqui concentramos nossas aten~6es sabre o processo humano
de conhecer o mundo. Porem, de certa maneira, vendo-o como
ocorrente·num individuo isolado. Por quest6es didaticas deixamos
de considerar este individuo como inserido numa comunidade, num
meio social. Ao proceder assim, aspectos fundamentais da aprendiza-
gem deixaram de ser examinados. E nosso intuito agora ampliar este
quadro referencjal, a fim de que obtenhamos uma visao mais completa
dos mecanismos do conhecimento. Afirmamos, por exemplo, que
frente ao mundo o homem se pergunta acerca do valor (do significado)
que as coisas tern em rela~ao a sua vida. E dissemos que aqueles
mecanismos rudimentares de interpreta~ao do mundo atraves da dor
·e do prazer, encontrados nos animais, se refinam no homeni ao
serem traduzidos em termos de valor. Esses valores e 'sigp.ificados,
contudo, nao surgem do nada, nem ao menos da atividade isolada
de urn unico individuo, mesmo porque niio existem seres humanos.
26. Poder-se-ia argumentar, aqui, que a beleza nao nasce desta rela~ao ·
curativa, mas que e percebida na enfermidade -mesmo, na medida em que ela
se aproxime de modelos ideais. Ou seja: que existem determinados paradigmas
definidores dos tipos de doen~a, e que urn caso e sentido (talvez morbida-
mente) como belo, quando se aproximar de tais paradigmas. Contudo, isso
nao invalida nossa tese do sentimento subjacente a compreensao 16gica.
27. Educaci6n por el arte, p. 56.
28 . Ibid., p. 56.
32
is?l~dos. ·C? q~e · existem sao comunidades h'umanas~ .Se 0 valor
b~s170 da VIda e manter-se, os organismos desenvolvem determinadas .
tecm~as que l~e.s · ~ermitelll: ~gir. so~r~ a. natureza, a fim de repor _
a
energm necessana a ~o~reviVen.cta. Tecmcas sao extens6es do corpo.
S_?b.este P?nto de VIsta. .
a soctedade pode ser entendida como uma
tecmca, P?IS que as neces~idades h~~anas de sobrevivencia so podem
ser res~lvtdas por mecamsmos socials. Assim como as tecnicas sao
expansoes do corpo, tambem 0 e a sociedade. 29 .
Os valores humanos, desta maneira, surgem da atividade do
grupo social. Se o corpo do animal interpreta, atraves da dor e do
pra~er, as. suas rela~6es com o meio, no caso humano, e·seu corpo
~oczal que?! transform~ estes mecanismos elementares num esquema
mterpr~tattvo d~ valores. ~ essa transforma~ao se da, como ja vimos,
po~ me10 dos Slillbolos cnados pelo homem - pela linguagem. 0
anlillal, ~uar?a em sua .n;te~no~ia biologica e de sinais as informa~6es
necessanas a sua sobrevtvencia, enquarrto o homem, pela linguagem,
ence~ra-as na sua memoria de significados. A linguagem ea memoria
coletlva da sociedade. E ela que prove as categorias fundamentais
para ~ue certo grupo social interprete o mundo, ou seja, para ·
que
ele dtga ~omo ele e. 3{) Atraves da linguagem, as experiencias
bem-sucedidas na luta pela sobrevivencia podem ser socializadas,
armazenadas e transmitidas. Nossas experiencias sao, assim valoradas
(tomam-se signific~ti~as). pela linguagem, o que nos faz pensar que
os val?r:s ~e a propna lmguagem) nascem de exigencias praticas de
sobrevtvencia. Mesmo as concep~6es e ideias mais abstratas nasceram
desses problemas praticos com que se defrontam os grupos humanos.
( ~~ribui~ao de valores, pelo homem, e uma resposta aquestao
?o slgm/lcad~ da~ .coisas para sua vida. Ou seja, e uma resposta
aquela questao basica: prazer ou dar?; vida ou morte? 0 valor,
portanto, subentende uma relariio: a da vida (do homem) com o
mundo. A atitude valorativa, situando-se primordialmente na esfera
do sentir, e anterior a raziio. Hessen aponta tres caracteristicas
b.a.sicas da valora~ao: a) sua imediatidade; b) sua intuitividade, ou
Seja, ~Ua f~rma nao elaborada, anterior aconceitua~ao logica, e C) sua
emocwnalldade, no ~entido de ela se subordinar a esfera dos senti-
mentos. 31 Portanto, a razao humana e uma opera~ao posterior a
valorariio; pela razao o homem dinamiza e relaciona os significados
oriundos de sua atividade valorativa. Por isso, como ja dissemos
antes~ frente a vida a postura humana nunca e objetiva, no sentido
de conhecimento desinteressado. E por peiceber alga como impor-
29. Rubem ALVES, Notas introdut6rias s~bre a linguagem, Zoe. cit., p. 25.
30. Ibid., p. 29.
31. Apud J. F. Regis de MORAIS, Escolas: a liberta~ao do novo
Reflexao, 4 (14):23-, · '
33
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tante para sua vida (como.urn valor) que o homem se atira a tarefa
de conhece-lo. Deixemos que fale Rubem Alves: 32 A experiencia
que 0 homem tern do seu mundo e primordialmente emocional.
'Bern', poderia o cientista objetivo retorquir, 'isto e assim porque
o homem ainda nao se treinou para o conhecimento verdadeiro, puro e
desinteressado.' Nao, as coisas sao assim porque. o homem, ao se
relacionar com o seu ambiente, se encontra sempre face a face. com
o imperativo da sobrevivencia. E porque ele deseja viver, o ambiente
nunca e percebido como algo neutro. 0 ambiente promete vida e
morte, prazer e dor - e, portanto, qualquer pessoa que se encontre
realmente em meio a !uta pela sobrevivencia e for~ada a perceber
o mundo emocionalmente. E e esta experiencia imediata - emotiva,
e na maioria dos casos nao verbalizada e olio verbalizavel - ,que
determina a nossa maneira de ser no mundo. Esta e a matriz
emociooal que estrutura o mundo em que vivemos.
Mas voltemos a Iinguagem. Como ja foi dito, ela e o instru-
mento que possibilita a um grupo humano a coexistencia, ou seja,
o compartilhar de uma mesma estrutura de valores. Utilizando-a,
uma comunidade interpreta o mundo e tra~ as diretrizes para. sua
sobrevivencia. A linguagem, tornando significativos os valores, pbssi-
bilita ao homem um esquema interpretative do mundo, de maoeira
que este possa orientar sua a~ao. Ela surge, portaoto, das necessi-
dades praticas e concretas da vida; surge como uma forma de coor-
denar as ar;oes em grupo, com fins de sobrevivencia. Isso pos faz
pensar que a categoria verdade nada mais e do que uma maneira sim-
b6lica de nos referirmos aquilo que e pratico e funcional. Conside-
ramos uma ideia verdadeira na medida em que ela nos permite
interpretar o muodo e oele agir de maoeira eficaz. Nossas verdades
nao sao etemas e imutaveis; novas descobertas, novas formas de.
atuar-se sobre .a realidad~, freqtientemente destronam aqueles mo-
delos que ate entao tinhamos como verdadeiros. Foi assim, por
exemplo, com o modelo heliocentrico de · astronomia, criado por
Copernico; ou ainda com a teoria evolutiva de Darwin; ou mesmo
com a psicanalise de Freud, ao propor o conceito de inconsciente. A
linguagem permite entao que comunidades humanas coordeoem suas
atividades, a partir de uma certa interpreta;ao da realidade, que e
compartilhada por todos os seus membros.
0 homem nao apenas reage aos estimulos provenientes do meio,
como o .animal, mas procura organiza-los de uma forma significa-
tiva, dando-lhes urn seotido, isto e, construindo o mundo. Portaoto,
entre o homem e seu meio ffsico interpoe-se a tela da linguagem.
E assim, a organiza~ao do mundo numa atitude compreensivel tor-
. na-se possivel gra;as a linguagem. Os estlmulos provenientes do meio
32. 0 enigma da religiiio, p. 130-131.
34
sao filtrados e organizados por ela, .e isto equivale a dizer que nossa
percepr;ao, de certa forma, e fun~ao de nossa linguagem. Dete-
nhamo-nos urn pouco oa questao da percep;ao humana. Esta euma
questao que, desde os prim6rdios da fisiologia e da psicologia, vern
ocupando os cientistas, sem que se tenha ainda chegado a conclu-
soes definitivas (o que, e claro, nao e possivel em campo algum).
Como e que percebemos o mundo? Como e que as diversas formas
de energia (sonora, luminosa, etc.), ap6s penetrarem em nossos 6rgaos
dos sentidos, sao organizadas pelo cerebra num esquema significative?
Tais interroga~oes foram particularmente propostas pela psicologia
da forma, ou da Gestalt (forma, em alemao), que se empeohou em
responde-las. Muitas de suas explica;oes foram refutadas posterior-
mente, mas parece que .esta escola chegou a algumas conclusoes
basicas. Atualmeote, o quadro que temos a respeito da percep~ao e,
de maneira geral, o apresentado a seguir.
Parece haver uma tendeocia inata·do cerebra humano em agru-
par os estimulos provenieotes do meio, de forma que eles se articulem
ouma certa ordem, ou seja, de maoeira que eles adquiram algum
significado - significado aqui no sentido de organizar;ao, em oposi-
~ao a desordem, ao caos. Nossa discrimina;ao mais rudimentar de
brilho cor movimeoto e formas simples enquadram-se oeste caso. a.q
, ' ,
Tendemos sempre a compor, com os estimulos, uma forma, que e,
para a escola gestaltista, sempre a mais perfeita possivel. Quando
contemplamos as estrelas, por exemplo, nossa tendencia e estru-
tura-las em figuras articuladas - dai a origem das constela;oes.
Mesmo que as formas que nos cercam sejam realmente .ca6t!cas,
aioda assim o cerebro projeta oelas uma ordem. De uma m1scelanea
de pontes o olho (ou, para ser mais exato, o cerebro) escolhe aque-
les que se enquadram em alguma estrutura, ou os que poderiam ser
interpretados como uma forma humaoa ou animal. Quando contem-
plamos as ouvens que passam, a brasa de uma f?gueira que. se ex-
tingue, ou ainda urn peda;o de casca rugosa,A fa~ilmente p~~Jetamo~
nelas tais fantasias de forma. E, se a substaoc1a formal Ja possm
alguma ordem em si, o cerebra projetara eritao uma ordem ainda
melhor. u :a cJ.aro que, ao percebermos uma figura conc~eta :-
urn perfil humano numa mancha da parede, por exemplo ---:- mtervem
ai mecanismos mais complexos, que envolvem a aprendtzagem. 0
que estamos querendo ressaitar e que, a partir de funr;oes rudimen-
tares de organizar;ao dos estf.mulos, e que se desenvolve nossa per-
cep;ao mais acurada. Como diz Verno~: :15
 ••• a partir da inf~cia
tais fun~oes sao cada vez mais subordmadas a. processos cogmtlv~s
de ordem mais elevada. . . Portanto, a form~ Simples e a percep;ao
33. Cf. M .D. VERNON, Percep~iio e experiencia, p. 3.
34. Anton EHRENZWEIG, Psicanalise da percep~iio artistica, p. 64.
35. Op. cit., p. 3 (grifos nossos).
35
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do movimento sao integradas e suplementadas por processos de
identifica~iio, classifica~iio e codifica~iio atraves da opera~ao de es-
quemas perceptivos que, em grande parte, dependem de aprendiza-
gem, memoria, raciocinio e linguagem. Indiscutivelmente OS proces-
sos perceptivos simples continuam a atuar, e na realidade apresentam
dados sensoriais de que depende a opera~iio dos processos mais
complexos.
Pela ultima frase da cita~iio acima depreendemos que, apesar
de nossa percep~iio se desenvolver com a aprendizagem, aqueles
processos perceptivos simples continuam a atuar, servindo de alicer-
ce aos refinamentos que vamos obtendo. De certa forma, podemos
notar tambem ai, nesses rudimentos perceptivos, uma base estetica.
Agrupar e~timulos em formas simples, obtendo, por conseguinte,
sim~trias, . se~elhan~as e ritmos e, em si, projetar fundamentos este-
ticos ao mundo percebido. Sigamos a explicita~iio de Paul Guillau-
me, 86 que tambem fala a favor desta tese: Ha diversas maneiras
de perceber o mesmo conjunto. Um dos tipos mais freqlientes, e
talvez o mais primitivo, foi chamado de percepc,:iio sincretica ou
global. 0 objeto (que, algumas vezes, pode ser todo o campo senso-
rial) e um todo que nii.o se decompoe em partes distintas e indivi-
dualizadas. Este caso opoe-se aquele em que as partes sao, ao mesmo
tempo, distintas e solidarias, articuladas, organizadas: esta sintese
sup6e uma analise, enquanto a percepc,:iio sincretica e anterior a
qualquer amllise. 0 que o autor esta nos dizendo e justamente que
existe uma percepc,:iio global do mundo, anterior aos nossos proces-
sos de analise perceptiva (que sao dados basicamente pela lingua-
gem). Nossa tendencia e sempre niio atentar para esta percepc,:ao
primitiva, imersos que estamos em nossa linguagem conceitual e
classificat6ria. Mas deixemos que Guillaume complete seu pensa-
mento: A impressiio primeira, ou o sentimento que temos das coisas
e de suas relac;oes, outra coisa nao e seniio essa. percepc,:iio global: e
oeste sentido que o sentimento ea forma primitiva do conhecimento.
Desse sentimento existem infinitas variedades, todas qualificativa-
mente distintas, entre as quais ha semelhanc,:as niio resolvidas em
identidade e diferenc,:a de partes. Freqlientemente a percepc,:iio este-
tica respeita ou procura reencontrar essa~ · impressoes globais; a
analise a que somas levados pelas necessidades da pratica e da cien-
cia, ao contrario, faz desaparecer essas qualidades e as resolve em
elementos e retac,:Oes. 37
Vemos ai que nossas ideias a respeito do
36 . Manual de psicologia, p. 157.
37 . Ibid., p. 159. Anton EHRENZWEIG desenvolve, em seu A ordem
oculta da arte, uma teoria da percept;;iio sincretica, fundada no conceito psicanali-
tico do processo priinario (inconsciente). Para o autor, toda obra de arte envolve
um conflito entre a percept;;iio sincretica (processo primario/inconsciente) e a
perceps;iio gestaltica (processo secundario/consciente). ~eja-se tamb6m sua
outra obra, ja citada.
36
sentimento, ou do vivido, como base do conhecimento (simb6lico)
humano, se completam tambem pelo estudo da percepc,:ao. Nosso
sentimento primeiro do mundo advem-nos a partir dos processos
perceptivos basicos - da percepc,:iio sincretica, como a chama
Guillaume.
Haviamos dito, anteriormente, que nossa percepc,:iio e, em gran-
de parte, .fun~iio , de nossa linguagem, e agora estamos dizendo que
existem processos perceptivos basicos que independem da linguagem.
Haveria ai alguma contradic,:ao? Niio. 0 que ocorre e que nossa
percepc,:ao se refina e se sedimenta, pela linguagem, a partir desses
rudimentos inatos. A linguagem, permitindo-nos ordenar o mundo
em eventos e relac,:oes de eventos, imp6e-nos sua estrutura concei-
tual, fazendo com que nao nos apercebamos mais dessa primitiva
percepc,:ao. Ao aprender a desenhar, por exemplo, o indivfduo deve
renunciar a percepc,:iio cotidiana, aprendida, e tra~ar as coisas
da forma como elas realmente aparecem ao olho. Urn pires sabre
uma mesa, a alguma distancia, e.par n6s percebido como urn circulo;
atraves de nossa experiencia anterior aprendemos a ve-lo como tal.
Porem, o desenhista deve trac,:a-lo como uma elipse, que e a forma
com que ele realmente se apresenta ao olhar. 38
Assim, a percep~iio
humana depende sobremaneira da aprendizagem, e fundamef!.talmente
da aprendizagem de nossa Hngua, esse instrumento de ordenac,:iio
do mundo.
A linguagem utilizada par determinada comunidade humana,
como vimos, permite que as ac,:6es sejam conjugad~s , a partir da
interpretac,:ao comum do mundo que ela fomece. IndiVlduos de urn
mesmo grupo social possuem basicamente a mesma estrutura de
valores, dados atraves da lingua par eles empregada. Quando apren-
demos a nossa lingua, aprendemos com ela os modos de nosso grupo
social . perceber o mundo e de nele agir. 0 condicionamento
de nossa percepc,:ao pela linguagem e, realmente, o condicionamento
de nossa maneira de ver, ouvir e sentir pela sociedade. 3
~ Esta
conclusao a que chegamos pode ser encontrada em quase todos os
estudiosos da linguagem humana, e e importante sobretudo quando
se pensa na educac,:ao a partir de um contexto cultur~l. Como ~
estudioso do processo lingiiistico, atraves de perspectivas culturats,
temos B. L. Wharf, que afirma: 40 Dissecamos a natureza de acordo
38. Esta percept;;iio da forma do objeto (o circulo, no caso do pires)
independentemente de sua posit;;iio foi chamada de constoncia da forma, pelos
gestaltistas. Outras constancias sao ainda: a da cor e do taman/to.
39. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, foe. cit.,
p. 31.
.40. Apud N. POSTMAN  C. WEINGARTNER, Contesta~iio - nqva
f6rmula de ensino; p. 143.
37
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com as diretrizes trac;adas pela nossa linguagem nativa. As categorias
e tipos que isolamos do mundo dos fenomenos nao sao por nos
descobertos ali porque se coloquem diante dos olbos do observador;
pelo contnirio, o mundo e apresentado num fluxo calidoscopico de
impressoes que tern de ser organizadas e categorizadas pelas nossas
mentes - e isto significa, acima de tudo, pelo sistema lingtifstico
na mente de cada um de nos. Recortamos a natureza, organizamo-Ja
em conceitos e atribufmos-lhe significados da maneira que fazemos,
porque somos, principalmente, partes. de urn acordo para organi-
za-la dessa maneira - um acordo que se mantem em toda a nossa
comunidade de discurso e esta codificado nos padroes da riossa lin-
guagem. Recordemos o que ja foi dito antes: ·nossa categoria de
verdade brota dos valores da comunidade em que vivemos; como tais
valores sao determinados basicamente pela Iinguagem ali empregada,
nossas verdades sao, sobretudo, derivadas de nosso sistema lingiifs-
tico. Por isso Postman e Weingartner p;nderam: 41 Cada urn de
nos, quer seja oriundo da tribo americana, da tribo russa ou da tribo
hopi, nasce tanto num meio simb61ico como num meio ffsico. Habi-
tuamo-nos muito cedo a urn modo 'natural' de falar, e de nos falarem,
sobre a 'verdade'. Arbitrariamente, nossas percepc;oes sobre o que e
'verdadeiro' ou real sao modeladas pelos simbolos e pelas instituic;oes
manipuladoras de simbolos da tfibo a que pertencemos. De uma
forma poetica, o compositor (Pericles Cavalcanti) tambem demons-
tra que as verdades dadas pela linguagem sao modelos, sao f!guras
que construimos para significar o real:
0 sol nasceu, a Jua nasceu
0 dia nasceu, o som nasceu,
.£ tudo mentira. ·
£ tudo figura.
Quem nasceu fui eu.
Quem nasceu foi vo;e,
E a gente nlio sabe bem como
E nem sabe por que. ..
Temos que notar agora um aspecto importantissimo dessas
quest6es que viemos levantando. Inicialmente, baviamos dito que a
lingu;:tgem se constitui na ferramenta primordial do homem para a
construc;ao do mundo; atraves deJa o ser humano adquire poder
suficiente par:;t agir no meio, ordenando-o e compreend~ndo-o. Mas,
por outro lado, observamos que a Iinguagem molda nossa maneira
de pensar, sentir e agir; ao nascer numa dada cultura, aprendemos
a interpretar o muiido a partir dos valores por ela constituidos,
veiculados em sua lingua. Sao as duas faces ·da moeda humana: elas
constituem essa estranha dialetica que rege nosso processo de co-
41. N. POSTMAN  C. WEINGARTNER, op. cit., p. 29.
38
nhecimento. Podemos usar nossa linguagem para conhecer e dominar
o mundo somente ap6s termos sido por ela socializados. ~ a lin-
guagem de nossa comunidade que estrutura a maneira pela qual
compreendemos e pensamos. Deduz-se, entao, que os fundamentos da
nossa raziio encontram-se nos fundamentos de nossa linguagem.
lsto e: a logica do nosso pensar e subordinada e derivada da 16gica
do nosso falar. Ou, a 16gica do indivfduo deriva-se da 16gica da
sociedade em que ele se encontra. 42 Porque pensar significa jus-
tamente dinamizar e articular sfmbolos (palavras); significa relacionar
conceitos, que nos sao dados pela Iinguagem. Aquilo para o que nao
temos palavras, nao existe, nao podemos pensar. Nomear as coisas
efaze-las existir. E e precisamente oeste sentido que encontramos o
dizer bfblico: No prindpio foi a Palavra (Joao 1.1); ou ainda a
atitude do primeiro homem (Adao), ao dar nome as coisas do mundo.
Quando nomeio alguma coisa, eu a apreendo e, de certa forma,
adquiro poder sobre ela, ao encerni-la em minha mente atraves do
sfmbolo que a representa. Por isso, nos rituais de exorcismo e impor-
tante que se saiba o nome do demonio que se apossou do individtio:
atraves dele o exorcista adquire poder sobre a entidade. 48 No conto
de fada Rumpelstiltskin (dos Irmaos Grimm), a rainha deve des-
cobrir o nome do gnomo, para vence-lo e nao ter de lhe entregar o
filho. Portanto, nossa capacidade tacional, intelectiva, depende dos
simbolos que temos a mao·
. 0 meu mundo, 0 mundo sober 0 qual
posso pensar, conseqiientemente, depende da minha linguagem. Os .
limites de minha linguagem denotam os lirnites de meu mundo,
afirma Wittgenstein. 44 Na ditadura criada por George Orwell, em
seu 1984, a diminuic;iio gradual do vocabulario perrnitido ao povo
tinha por objetivo, justamente, diminuir a sua capacidade de racio-
cinio. E e interessante notar-se, tambem, que ao se instalar uma di-
tadm.:a em qualquer pais, suas primeiras medidas sao sempre res-
tringir a circulac;ao das palavras (censura), bern como reduzir a
qualidade da educac;ao, especialmente a primaria, onde os indivfduos
sao alfabetizados. Controlar a linguagem e controlar OS indivfduos
atraves de seu pensamento.
Estivemos, todo esse tempo, .referindo-nos a linguagem do
ponto de vista de sua jun~iio para o homem. Procuremos agora ana-
lisa-la a partir da sua estrutura, ou seja, tentando pensar no que ela
e. Nosso senso comum tende a considerar a linguagem como urn
42. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, foe. cit.,
p. 31. .
43. Diz Martin BUBER: Poder sobre o mau espirito se obtem ao cha-
ma-to pelo seu nome real. I and Thou, p. 58. (Edimburgo, T. T. Clark, 1955.)
(Optamos aqui pela verslio em ingles, da obra, por considerarmos .tal cita~lio
mais proxima a nossos prop6sitos do que na verslio· em portugues.)
44. Apud Rub:;m ALVES, Notas introdut6rias sobre a Jinguagem, foe.
cit., p. 3 i.
39
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c6oigo: um ·sistema de sfmbolos, convencionados pela . soCiedade,
para representar ao homem as coisas e as rela~oes entre elas. Por
meio da linguagem o homem pode comunicar a seu semelhante de-
terminados fatos ou objetos que nao se encontram presentes no
momenta. Ela, dessa forma, substitui as coisas (no sentido de repre-
senta-as). Este raciocinio leva-nos enUio a indagar do como a lin-
guagem e criada pelo homem. Sendo ela composta de sfmbolos re-
. presentativos das coisas, segundo o pensamento acima, a seguinte
ideia se nos apresenta: a mente humana e semelhante a um espelho
(uma tabula rasa, como diziam os empiristas britamcos). Ali se
refletem os objetos do mundo exterior, formando as imagens corres-
pondentes. Ou seja, a mente reduplica o mundo, e a linguagcm
representa esta reduplica~ao. Com este raciocinio chega-se a consi-
dera;ao da linguagem como uma lista, como um rol dos objetos que
existem no mundo. ~orem esta e uma conclusao falsa, que parte de
uma premissa tambem inverfdica. A mente humana Iiao possui a
. passividade de um espelho, nem a linguagem e uma mera rela;ao
de coisas. ~ mente do homem e uma das formas de sua atividade,
talvez a pnmordial. Com ela o homem busca organizar o meio 'fisico,
numa atividade de signific{lfao. E para tanto vale-se da linguagem.
A linguagem, assim, nao euma c6pia do real, mas antes uma orga-
niz(Jfao dJJ mesmo. Na realidade, para o homem, o real e aquila
que cle organiza. 46 0 real e aquila que tomamos significativo,
atraves do processo lingiiistico. Tanto a linguagem nao e uma sim-
ples listagem do mundo, que para aprender-se uma lingua estra.ngeira
nao basta que aprendamos apenas 0 seu vocabulano. ~ necessaria
que se venha a conhecer a sua.estrutura, o esplrito que rege a sua
articu la ~ao. E isto e derivado da maneira como o povo que a fala
interpreta e sente o mundo - e derivado dos valores da comuni-
dade. 46 0 ditado italiano traduttore, traditore (tradutor, traidor)
significa precisamente a impossibilidade de se verter litera/mente
uma lingua a outra. ~ sempre necessaria, nas tradu;oes, adaptar-se
o original ao sentimento da outra lingua. Portanto, atraves da lingua-
gem o homem nao reduplica, mas acrescenta alguma coisa ao mun-
do: ac..tescenta-lhe um sentido, uma ordem. Neste sentido, o ideal da
objetividade pura, buscada pela ciencia, e, em ultima analise, uma
utopia. Porque ao observarmos qualquer evento, este nao esta
apenas se refletindo em nosso espelho mental. 0 simples fato de
selecionarmos um evento e nao outro, para exercermos nossa obser-
va;ao, ja implica um ato de organiza~ao humana. E depois, a inter-
preta~ao do fato se derivara das verdades que construi'mos. Verda-
45. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, lqc. cit.,
p. 29.
46. Ibid.
I •
..
.... .
des que, como ja foi dito, sao produtos de nossos valores e de nossa
linguagem. Quando, em linguagem cientffica, se fala dos dados que
se obtem numa pesquisa, este ter~o, na realidade, e mal empregado.
Porque as coisas nao nos sao dadas, mas sim por n6s constituldas -
sao banhadas na foote de toda significa~ao: a linguagem. Como
observa Robert K. Merton, 47
••• a despeito da etimologia do termo
OS dados nao sao dados mas construfdos . ...
Ao Iongo desta nossa exposi~ao evitamos empregar.uma pala-
vra que, no entanto, se refere ao fenomeno que subjaz a estas consi-
dera~oes t.odas a respeito do homem. Trata-se da imagina~ao. Orde-
nar o mundo numa estrutura significativa, atraves da linguagem,
pressupoe-na. A propria linguagem - um sistema de si'mbolos -
se desenvolve em intima associa~ao com a imagina~ao. Como ja foi
dito, em primeiro Iugar nossa linguagem ordena a percep~ao que
temos do mundo exterior, fragmentando o que seria uma massa
ca6tica de estimulos', em unidades e grupos, eventos e cadeias de
eventos, coisas e rela;oes. Mas o processo de fragmentar nossa
experiencia sensoria dessa maneira, tornando a realidade concebivel,
memoravel, as vezes ate previsivel, e um processo da imagina~ao . A
concep~ao primitiva e imagina~ao. Linguagem e imagina~ao desen-
volvem-se conjuntamente num regime de tutelagem reciproca. 48
Quando temos consciencia, atraves da palavra (por exemplo, Chi-
na), de espa;os outros que nao aquele ao nosso redor, estamos
imaginando. Quando planejamos o nosso futuro - mesmo o mais
imediato, como: sair de casa, apanhar o onibus, descer na porta
do cinema, entrar e assistir a urn filme - n6s o fazemos atraves da
imagina~ao. Utilizando-nos de uma expressao de Sartre, podemos
dizer que imaginar e visar o mundo, ou certos objetos do mundo,
no modo da ausencia.49 0 tra;o fundamental, distintivo, do hornem
e do animal e, sem duvida, a imagina~ao. Enfrentando a materiali-
dade do mundo, por ela o homem cria as sig nifica~oes e projeta a
sua a~iio transformadora e construtora do real. Enquanto que, por
ser dela desprovido, o animal nao cria nada, simplesmente se adapta
ao meio ambiente. Antes de mais nada e preciso reconhecer que
a imagina~iio ea forma mais fundamental de opera~iio da consciencia
humana. Os animais nao tern imagina;ao. Por isto nunca produziram
arte, profetas ou valores. l$0
Precisarnos notar, no entanto, que a irnagina~ao, especiamente
ap6s o advento da ciencia, vern sendo negada enquanto opera~ao
basica da consciencia. Para a ciencia, em fun;ao do ideal da objeti-
47. Apud Rubem ALVES, Notas introdutQ[ias sobre a linguagem, loc.
cit., p. 31.
1
'
48. Susanne· K. LANGER, Ensaios fi/os6ficos, p. 88-89.
49. Andre DARTIGUES, 0 que e fenomenologia?, p. 103.
SO. Rubem ALVES, 0 enigma da religilio, p. 151 (grifos nossos).
. 41
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vidade, a mente-espelho e a forma mais segura do conhecimento.
A mente que reduplica o real, que o reflete sem nele acrescentar
nada, esta e a que produz o conhecimento objetivo. Ora, tomar tal
pressuposto, ao pe da letra, e incorrer no erro do objetivismo, como
dizia Husser!. Buscar um certo distanciamento dos fatos, para urn
melhor conhecimento deles, e licito e valido, nas constru~oes cientf-
ficas. Porem, a partir daf pressupor a mente humana ideal. como
um espelho, e negar ao homem sua caracteristica fundamental de
humanidade: a imagina~ao (e a sua concretiza~ao, no mundo,
atraves de uma praxis significante e transformadora). A propria
ciencia, com stias constru~oes normativas, entre as quais a busca da
objetividade, e produto da imagina~ao humana. Referindo-se a este
objetivismo de que falamos acima, diz Rubem Alves: 111 Ao ideal
epistemo16gico de objetividade, assim, corresponde a exigencia de
que a imaginac;ao seja eliminada, como origem das perturba96es no
processo de conhecer o mundo. Este mesmo ideal foi transplantado
para o campo da psicologia. Freud define o neur6tico como aquele
q~e troca a realidade pela imagina;ao. Mas a realidade, como
VIemOS demonstrando, e justamente aquila que a imagina~aO humana
constr6i, ao ordenar o mundo. Desta forma, no processo de conhecer
o mundo esta sempre implicita nossa imaginac;ao.
Estou sugerindo, como nosso ponto de partida, que nao po-
demos pressupor que a imagina~ao se oponha ao conhecimento do
real. Nao posso classifica-Ia nem como fonte de erros cognitiv9s e
nem como raiz de nossas neuroses. Fazer isto seria equivalente a admi-
.tir que a evoluc;ao cometeu urn erro fatal, na transi9ao do macaco nu
para 0 homem. - porque OS animais nao tern imagina~ao. Acei-
temos, portanto, a imagina~ao como urn dado primario da experien-
cia humana. :£ deste fato primordial, irredutivel, teimosamente em-
pfrico, que temos de partir. 112 Gendlin considera o indivfduo
criativo como aquele que observa seu experiencing (seu irrefletido,
sua corrente de sentimentos) e busca sfmbolos e conceitos para
expressa-lo. Ou seja: como aquele que procura criar significados
para as suas experiencias. Neste ato de criagao impoe-se a ima-
gina~ao. De maneira inversa, quando se nos apresentam novas
conceitos, novas significados, eles somente serao apreendidos e
aprendidos quando buscamos em nossas experiencias aquelas viven-
cias que eles visam representar. Novamente trata-se de uma opera~ao
da imagina~ao: criar pontos de ancoragem no experiencing para os
novas significados. Pensar e relacionar conceitos, relacionando, con-
seqiientemente, os sentimentos em que eles se ancoram. Pensando,
imaginamos novas rela~ .oes. Como ja cantou o compositor. (Lupi-
51. Rubem ALVES, 0 enigma da re/igiiio, p. 16.
52. Ibid., p. 18.
42
I
,..
,,
clnio Rodrigues): 0 pensamento parece uma coisa a-toa I Mas
como e que a gente voa I Quando come~a a pensar...  A imagi-
na!(ao e 0 voo humano, desde a facticidade bruta onde estao presos
os animais, ate a constru~ao de urn universo significativo. ,Portanto,
podemos concluir que o ato do conhecimento e da aprendizagem e,
em sua essencia, dirigido e orientado pela imagina~iio.
43
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--' ·
'
CAPlTULO II
CONCRETIZA{)AO E TRANSMISSAO DOS .
SIGNIFICADOS: CULTURA E EDUCAQAO
A musica que me faz iir ou chorar, o alimento que me apetece
ou me e indigesto, a caricia que alegra ou me ·entristece: tudo
isso esta relacionado as minhas pr6prias raizes culturais, as
minhas aspira~oes e aquelas formas especllicas de entender e
sentir a .vida, que sao peculiares a cultura a qual perten~o .
(Rubem Alves, Hijos del manana, p. 200.)
Se admitirmos· que compreender seja inventarl' ·ou re-
construir por inven~ao (Piaget), cre1o que nao podemos
aceitar sem mais que o educador se converta nesse perso-
nagem tendo por fun~ao adaptar o educando ao meio social
em .que ele vive. (Hilton Japiassu, 0 mito da naturalidade
cientlfica, p. 150.)
Voce ireqiientou a melhor escola, senhorita Solitaria,
Mas sabe que a unica coisa que Ia conseguiu
Foi a merenda . . .
(Bob Dylan.)
1. 0 Jogo da Cultura
Frente a vida o homem se pergunta acerca do wl,lor que as
coisas tern para StJa sobrevivencia. Tal valor e expresso e adquire
significa;ao basicamente atraves da linguagem que eli- emprega. A
linguagem organiza o mundo percebido numa estrutura significativa,
onde a Qfiio pode ser orientada de maneira eficaz. Como vimos, todo
organismo, por mais inferior, carece de uma certa orienta;ao em
suas a;6es, a fim de sobreviver. Comportamentos erniticos sao subs-
tituidos por comportamentos ordenados, adquiridos por terem se·
mostrado uteis a manuten;ao da vida. A ordena;ao do comporta-
mento animal advem primordialmente de seus instintos e de ·sua
45
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  • 1. Livro - FUNDAMENTOS ESTETICOS DA EDUCAÇÃO Química Universidade Federal de Roraima (UFRR) 67 pag. Document shared on www.docsity.com
  • 2. FUNDAMENTOS ESTETICOS DA EDUCAc;:AO JOAO- FRANCISCO DUARTE JR. COLE(AO EDUCA(AO COnTEmPORAnEA Fundamentos Esteticos da Educa~ao Joao-Francisco Duarte Junior Ultimamente a educa~o tern mereddo uma infinidade de textos, muitos dos quais apresentan- do determinadas formulas e tecnicas, com o in- tuito de torna-la mais "atraente", para o edu- cando, ou mais segura a sua aprendizagem. De certa forma tais eseritos se assemelham muito aos famosos "como fazer" ("how to make"} norte-americamos, e acabam pecando pela au- sencia de uma reflexao em torno dos fundamen- tos da educa.;ao; fundamentos esses de ordem fi- losofica e ate politica. Este, porem, nao e urn texto assim. Justamen- te o que nele niio cxiste sao as formulas e reeeitas para se melhorar o ensino. 0 autor procura situar-se nas premissas basicas do conhecimento humano, o sentir eo pensar, e em torno delas de- senvolvcr o seu tema: a importdneia da Arte na formacao do hornem. Procura, atraves de uma linguagem propositalmente simples, pensar a educa~ao e o processo do conhecimento - situa- dos em urn contexto cultural - , numa reflexao em que estao envolvidos elementos da Antropo- Jogia Filos6fica, da Psicologia, da Filosofia da .Educac;ao e da Arte. Aqui o que se pretende e, de certa rnaneira, ampliar os dominios da educa~ilo, que vern sendo sistematicamehte estreitados pela visao da escola como simples transmissora de co- nhecimentos "objetivos" e agencia formadora de mao·de-obra para o mundo tecnol6gico. A Arte nao leva a produ~ao de autom6veis mais velozes, nem de detergentes mais eficazes, e por isso ela erelegada a ser quase nada nos curri- culos de nossas escolas. Contudo. ela pode con- duzir a forma~ao de individuos mais sensiveis. Mais sensiveis asua condi~ao hu"ana e areati- dade asua volta, Jevando-os, conseqilcntemente, a pensarem de forma critica o contexto onde es- tao. Desta forma, a Arte possui tambem.elemen- tos pedag6gicos libercadores, que ajudam a que- brar as cadeias do pensamento pre-fixado e das abstracoes muitas vezes escamoteadoras da vida concretamente vivida. Como diz o proprio autor, nao esua i nten~ao "afirmar que sobre a arte re- pousam todas as solu~oes para os problemas criados por nossa cindida civilizacao e sua educa- cao impositiva". Ele apenas quer "crer que a ar- te eurn fator imponante na vida humana, name- dida em que permite o acesso a dimensoes nao re- veladas pela 1 6gica e pelo pensamento discursivo. Na medida em que, atraves dela, se opera a edu- Document shared on www.docsity.com
  • 3. ( G X F D a D R Joao-Francisco Duarte Junior Ultimamente a educa~ao tem merecido uma infrnidade de textos, muitos dos quais apresentan- do determinadas formulas e tecnicas, com o in- tuito de torna-ta mais atraente, para edu- cando, ou mais segura a sua aprendizagem. De certa forma tais escritos se assemelham muito aos famosos como fazer (how to make) norte-americamos, e acabam pecando pela au- sencia de uma reflexao em torno dos fundamen- tos da educa~ao; fundamentos esses de ordem fi- los6fica e ate politica. Este, porem, nao eum texto assim. Justamen- te o que nele nao existe sao as formulas e receitas para se melhorar o ensino. 0 autor procura situar-se nas premissas basicas do conhecimento humano, o sentlr eo pensar, e em torno delas de- senvolver o seu tema: a importlincia da Arte na forma~ao do homem. Procura, atraves de uma linguagem propositalmente simples, pensar a educa~ao eo processo do conhecimento - situa- dos em urn contexto cultural -, numa reflexao em que estao envolvidos elementos da Antropo- Jogia Filos6fica, da Psicologia, da Filosofia da .Educa~ao e da Arte. Aqui o que se pretende e, de certa maneira, ampliar os dominios da educacao, que vem sendo sistematicamente estreitados pela visao da escola como simples transmissora de co- nhecimentos objetivos e ag~ncia formadora de mao-de-obra para o mundo tecnologico. A Arte nao leva a produ~ao de autom6veis mais velozes, nem de detergentes mais eficazes, e por isso eta erelegada a ser quase nada nos curri- culos de nossas escolas. Contudo, eta pode con- duzir a formacao de indivlduos mais sensiveis. Mais sensiveis asua condicao hu'ana e areali- dade asua volta, levando-os, conseqUentemente, a pensarem de forma critica o contexte onde es- tao. Desta forma, a Arte possui tambern elemen- tos pedag6gicos libertadores, que ajudam a que- brar as cadeias do pensamento pre-fixado e das abstracoes muitas vezes escamoteadoras da vida concretamente vivida. Como diz o proprio autor, nao esua intencao afirmar que sobre a arte re- pousam todas as soluciies para os problemas criados por nossa cindida civilizacao e sua educa- cao impositiva. Ele apenas quer crer que a ar- te eum fator importante na vida humana, na me- dida em que permite o acesso a dimensOes nao re- veladas pela 16gica e pelo pensamento discursive. Na medida em que, atraves dela, se opera a edu- c._ ll'~i·l_irsru ·ad~ federal ce Pel I .Se.;So de Controle Patrlm Nu;~~- de .f.JJ,_83'-1 COLE(.RO EDUCA(.RO conTEmPOA-~J4~~~r~E'A~--- JOAO-FRANCISCO DUARTE JR. FUNDAMENTOS ESTETICOS DA EDUCAQAO Obra publicada com a· colabora!raO da Universidade Federal de Uberlfmdia Reitor: Prof. Ataulfo Marques Martins da Costa Pr6-Reitor Academico: Prof. Antonino Martins da Silva Jr. ~CORTEL $toiTORA ff' ·(.I) UNIVUSIDADE fEDERAl DE UIULANDIA AUTORES IQ ASSOCIADOS ~I Document shared on www.docsity.com
  • 4. Consellzo editorial Antonio Joaquim Severino, Casemiro dos Reis Filbo, Dermeval Savianl, Gilberta S. de Martino ~annuzzi, Joel Martins, Mauricio Tragtenberg, Moacir Gadotti, Miguel de La Puente, Milton de Miranda e Walter F. Garcia. Produfiio editorial: Helen Diniz Revisiio: Marlene Crespo CIP-Brasil. Cataloga~ll.o-na-Fonte Cllrnara Brasileira do Livro, SP Duarte Junior, Joll.o-Francisco. D875f Fundarnentos esteticos da educa~ll.o I Joll.o-Francisco 81-1131 Duarte Jr. - Silo Paulo : Cortez : Autores Associados ; [Uberlandia, MG) : Universidade de Uberlandia, 1981. (Col~ll.o educa~ll.o contemporanea) Bibliografia. I. Arte 2. Arte - Estudo e ensino 3. Educa~ll.o- File- sofia I. Titulo. CDD-370.1 -701 indices para catatogo sistematico: I. Arte e educa~ll.o : Filosofia da educa~ll.o 3.70.1 2. Educa~ll.o : Fundarnentos esteticos : Filosofia da educa~ll.o 370.1 3. Educacll.o artistica 707 4 Educacilo e arte : Filosofia da educacilo 370.1 Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem a autoriza~ao ·expressa do autor e dos editores. Copyright © do autor Direitos para esta edi~ao CORTEZ EDITORA/AUTORES ASSOCIADOS Rua Bartira, 387 - Tel. (011) 864-0111 05009 - Sao Paulo - SP 1981 Impresso no Brasil l I C lass. -----·-·----J.:lP....!.............................. .........:....-....~ ......J-...~.1. ....f.......................... ..-t X- d ·································-··················-······················ Reglstro ·-- -- -~--~/:n3. ...........~ ................... D a ta...:..J./L.J....i..0.....!......8.J....... Li vraria .J1a...Ll:JIY...9....f.~~Y.J..~ :c..r2. Cr$ .....3.6..{} ,;-.(2.0 ........................................ Ao RUBEM, que me ajudou a descobrir que a filosofia e, sobretudo, urn exercicio de beleza e Ao REGIS, amigo e incentivador constante. Document shared on www.docsity.com
  • 5. Lo que puede el sentimiento No lo ha podido el saber (Violeta Parra) Document shared on www.docsity.com
  • 6. . I SUMARIO A utilidade e o prazer: um conflito educacional 9 INTRODU;;::A.O . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Capitulo I - APRENDIZAGEM E CRIA;;::A.O DO SIGNI- FICADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 1. 0 processo do conhecimento: sentir e simboliza~ . . . . . . . . 19 2. A linguagem e a constru~ao do rear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 Capitulo II - CONCRETIZA;;::A.O E TRANSMISSA.O DOS SIGNIFICADOS: CULTURA E EDUCA;;::.AO : . . . . . . . . . 45 1. 0 jogo da cultura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 2. Educa~ao e rela~6es interculturais .·....... . ....·. . . . . . . 54 Capitulo III - NOS DOMlNIOS DO SENTIMENTO: ARTE E EXPERI:BNCIA ESttTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 1. Algumas rela~6es sentimerito-compreensao 2. A simboliza~ao .dos sentimentos: a arte 67 72 3. A experiencia estetica .................. . ..... . . . . : . ·82 .Capitulo IV- COMO A ARTE EDUCA? . . . . . . . . . . . . . . 87. 1. Algumas palavras sobre o ato .da cria~ao ....... .. . . . : . . . 87 2. A arte e o adulto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 3. A arte e a crian~a ........... . . . .. .. . . .. . .. : . . . . . . . 102 Capitulo V - BREVE VIS.AO DA ARTE NO ENSINO BRA- - SILEIRO . ..... .. . . · . · · · . .. . . .. .·. · · . . . . . 109 Bibliografia .. . .. . .......... . .. : . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . 126 Document shared on www.docsity.com
  • 7. ~-· · A UTILIDADE E 0 PRAZER: UM CONFLITO EDUCACIONAL Para que voce nao seja enganado ao come~ar a ler este livro, aqui vai a minha advertencia: ele defende uma causa altamente im- provtivel, possivelmente derrotada . .. E esta e, precisamente, a razao porque escrevo este prefacio. As solu~oes triunfantes me causam certo mal-estar. Talvez porque, historicamente, os vitoriosos tenham sempre arrastado consigo uma dose de crueldade. Pode ser, inclusive, que a verdade seja o oposto: niio que a vit6ria gere a crueldade, mas que a crueldade seja mais vocacionada para o triunfo que a mansidiio. A preserva~iio do Indio e suas culturas, a harmonia do homem com a natureza, a salva~iio das florestas, rios e mares, a recusa aviolencia, a op~iio pelo paci- fismo - todas estas sao causas derrotadas. Elas niio tem chance alguma frente ao poder economico e ao poder das armas. E aqui esta alguem que sugere que a educa~ao seja pensada a partir da beleza - 0 que equivale a ajirmar que 0 poeta e 0 musico sao mais importantes que o banqueiro e o fabricante de armas, o que sem duvida provocara sorrisos tanto nos vencedores quanto nos vencidos. Esta e, de forma sintetica, a linda proposta fraca que este trabalho oferece como tema para nossa medita~ao. Seria compreensivel e mesmo defensavel um apelo para que os valores esteticos fossem incluidos em nossos currlculos. Ninguem negaria que a beleza tenha sido deles banida de forma espantosa- mente radical. Por b'oas razoes, e claro. Afinal de contas a sensi- bilidade ar~istica parece niio oferecer contribui~ao algu,ma, seja ao desenvolvimento, seja a seguran~a do pais. . . Bem diz o ditado popular que beleza nao poe mesa. Claro que coisas uteis siio mais importantes que coisas belas. Mas mesmo o mais endurecido mate- rialista estaria disposto a concordar em que a arte, as vezes, tem certas utilidades. Por bem ou por mal o fato e que vivemos numa civiliza~iio que cultivou e cultiva a aprecia~iio de valores esteticos, niio sendo possivel ignorar que a arte e bom assunto para conver- 9 Document shared on www.docsity.com
  • 8. saroes a mesa, boa ideia para presentes, quando niio se constitui em diversiio terapeu~ica: a alienariio estetica produz sonos mais repousantes . .. . Niio haveria problema algum em se propor uma presenra mais sensivel da arte em nossas praticas educativas. Na verdade isto niio interferiria em coisa alguma. Niio provocaria confusoes institucionais ou politicos. Pelo contrario, propiciaria o desenvolvimento de uma funfiiO a mais. -/)Todo mundo sabe que a sociedade industrial, capitalista ou com_ unista, depende da divisiio do trabalho. As pessoas sao especia- lizadas. Fazem somente um coisa. Pilotos, ascensoristas, engenheiros nucleares, agronomos, meteorologistas, pedicuros, pediatras, e assim por diante. Mas acontece que ela niio separou simplesmente as pessoas em grupos que desempenham as mesmas funroes. Fez co- nosco o que um esquartejador faz com um corpo: desmembrou-nos, desmontou-nos numa serie de funfoes independentes e freq.Uente- mente contrat/.it6rias. Assim, nada impede que uma pessoa trabalhe numa fabrica de armas~ freq.Uente grupos de orariio, leve seus filhos ao parque de diversoes, jogue na balsa de valores, contribua para orfanatos, cultive o gosto pelo canto gregoriano, alem de fazer parte de uma sociedade ecol6gica cujos membros plantam legumes no fundo de seus quintals. Fragmentam-se as funroes, fragmentam-se . os olhos, fragmenta-se o pensamento: as pessoas se tomam incapazes de perceber sua condi9ii0 como totalidade. 0 desenvolvimento das funfoes esteticas estaria bern em harmonia com esta tendencia. Niio atrapalharia coisa alguma. Mas niio e isto que se propoe. . ---1_4..9 ~iio niio e in_£/uir a arteJJ,a_etj,UC(JfiiO. .(- )• ' A questiio e repensar a educafiiO sob a perspectiva da arte. Educariio como atividade estetica . . . E e entiio que as coisas se complicam. Porque educariio, como atividade e~tetica, colide com tudo o que esta. ai, solidificado como pratica, fincado como instituiriio,. batizado como politica. A come9ar pelo fato de que a atividade estetica niio pode nunca ser considerada .como meio. Ela e sempre um fim em si mesma. E nisto se parece muito com o brinquedo. Interessante que o ingles e o alemiio usem um mesmo verba para se referir ao brinquedo e ao ato de tocar um instrumento: to play, spielen . .. Que e que 0 brinquedo produz? Que objeto novo se encontra no fim da concentrada atividade dos musicos de uma orquestra? Tudo tiio diferente da linha de montagem. Aqui a atividade se justifica apenas em funriio daquilo que apa- rece no fim. No brinquedo e na arte niio aparece coisa alguma no 10 ,, fim. E pode-se entiio perguntar: Mas comq justificar estas atividades curiosas, inuteis, improdutivas? E que elas produzem prazer: ·ativi- dades que siio um fim em si mesmas. Niio existem em funfiiO de coisa alguma a niio ser elas mesmas e a alegria que faz'em nascer. E ao olhar para a educafiiO pela perspectiva da arte somas entiio forrados a nos perguntar se cada crian9a nao e urn fim em si mesmo, e se_cada momenta a ocasiiio de uma experiencia que deve ser avaliada pelo prazer que produz . . . Mas niio sera verdade que toda a nossa pratica educacional se assenta sobre o pressuposto de que a crianra e apenas um meio para se tornar adulto, e que cada corpo ip,fantil brincante deve ser reprimido para vir a ser um cidadiio economicamente produtivo? 0 prazer gratuito da experiencia estetica e ludica foi banido das nossas escolas. E se alguem duvida que olhe para os rostos amedrontados dos nossos mOfOS, assombrados pelo fantasma do vestibular, atormentados pela e~igencia da eficacia, fazendo coisas sem entender e sem rir. . . Dizer que a educariio e atividade irmii do brinquedo e da arte e denunciar. a repressiio, re- lembrar o paraiso·perdido, anunciar a possibilidade da alegria, rejeitar as experiencias fragmentadas, .buscar a experiencia perdida da cul- tura, dilacerada pela sistematica administrafiiO centralizada da vida que, em nome da eficacia, quer gerenciar todas as coisas. E o brinquedo tern que comerar agora. Porque, no espirito do Joiio-Francisco que o escreveu, e necessaria pegar o texto da mesma forma como se pega uma flauta, pra acordar o artista que dorme em nos, ou como quem pega uma pipa, fazendo voar os pensamentos. E sempre. assim com a arte e o brinqu'edo: o prazer s6 vern quando o corpo se poe a danrar. Rubem Alves 11 Document shared on www.docsity.com
  • 9. INTRODUQ.AO Ao se falar em educac;ao esta sempre implicita urna determinada teoria do conhecimento, isto e, uma teoria que fundamenta e explica a maneira e o processo pelos quais o homem vern a conhecer o mundo. 0 como o homem conhece, o como ele encontra um sentido para sua vida ~ no mundo, passa a ser a pedra angular de qualquer processo educativo. Se educar e levar a conhecer, e necessaria que se defina eotao como se da o ato de conhecimento, para que a educac;ao se fundarnente nesse processo. A capacidade humana de atribuir significac;6es - em outros termos, a consciencia do homem - decorre de sua dimensiio simb6lica. Por intermedio dos sfmbolos o homem transcende a simples esfera fisica e biol6gica, tomando o muodo e ·a si proprio como objetos de compreensao. Pela palavra, o universo adquire urn seotido, e o homem pode vir a conhece-lo, emprestaodo-lhe significac;6es. Portanto, na raiz de todo conhecimento subjazem a palavra e os demais processos simb6Iicos empregados pelo homem. A linguagem e o nosso mais profunda e, possivelmente, meoos visivel meio ambiente, afirmam Postman e Weingartner.1 '£ preciso que se compreenda o processo lingiifstico para que se entenda o que significa conhecer. 0 sentido da linguagem no mundo humano deve ser elucidado, a fim de que se possa perceber os mecanismos de significac;ao de que se vale o homem. Niio ha conhecimento sem sfmbolos. Esta e uma afirmac;ao basica, que norteara nossas conside- rac;6es ao Iongo das paginas seguintes. 0 esforc;o humano para compreender e o esforc;o para encontrar sfmbolos que representem e signifiquem o objeto conhecido. A conscieocia e a razao humanas, como se demonstrara, nascem com a linguagem e s6 se dao atraves deJa. Toda compreeosao 16gica e racional somente e possivel atraves da linguagem e de seus derivativos (como a 16gica formal e a linguagem matem~hica). I. Contesta~iio - nova formula de ensino. p. 123. 13 Document shared on www.docsity.com
  • 10. Porem, antes que o pensamento possa tomar qualquer experiencia c.omo _seu objeto, ocorre ja urn certo colo.car-se · e~ rela;:ao a Situa;:ao, que envolve aspectos para alem da consciencia simb6lica. Este experienciar compreende entao urn envolvimento mais abran- gente do homem com o mundo, em que se incluem percep;:6es e estados afetivos, anteriores as simboliza;:6es do pensamento. Para~ fraseando Merleau-Ponty, podemos dizer que o mundo nao e s6 o que pensamos, mas o que vivemos. Porque a dimensao vivida anterior a sirnboliza;:ao, nao se esgota jamais no pensamento. H~ sempre uma regiao que permanece fora do alcance do pensamento e da hnguagem. E esta regiao e o sentimento humano. Por sentimento, entenda-se, assim, a apreensao da situa;:ao em que nos encontramos, que precede qualquer Significa;:ao que OS sfmbolos dao. 0 sentir e anterior ao pensar, e compreende aspectos perceptivos (intemos e extemos) e_ aspectos emo~ionais. Por isso pode-se afirmar que, antes de ser razao, o homem e emo;:ao. 0 conhecimento do mundo advem, desta forma, de urn processo onde o sentir e o simbolizar se articulam e se completam. Contudo nao M linguagem que explicite e aclare totalmente os sentimento~ humanos. Nao se pode, nunca, descrever com palavras como e a dor de dente ou como e a temura que estamos sentindo. 0 conheci- m~~to _dos sen~imentos e a sua expressao so podem se dar pela . utihza;:ao de s1mbolos outros que nao os lingtiisticos; so podem se dar atraves de uma consciencia distinta da que se poe no pensa- mento ~acional. ,Uma yonte que nos leva a conhecer e a expressar os senhmentos e, entao, a arte, e a forma de nossa consciencia apreende-los e atraves da experiencia estetica. Na arte busca-se concr~tizar ?s sentimentos numa forma, que a consciencia capta de maneua ma1s global·e abrangente do que no pensamento rotineiro. Na arte sao-nos apresentados aspectos e maneiras de nos sentirmos no mundo, que a linguagem nao pode conceituar. · Este e, portanto, o nucleo de nossas considera;:6es: a arte como forma de conhecimento humano. Isto e: atraves da arte o homem encontra sentidos que nao podem se dar de outra maneira senao por ela propria. Em torno desta asser;:ao central pretendemos, pois, desenvolver nosso problema, qual seja: a .dimensao estetica da educa;:ao. Dit_o ~e _ : o~_tra maneira, e ~reciso que se verifique como a arte se conshtUI'num elemento educat1vo; como ela prove elementos para que o. hotnem desenvolv~ sua atividade _ significadora, ampliando seu conhecimento_ a r.egi6es que ? simb~Iismo conceitual nao alcan;:a. Contudo, nao 1remos aqUI focahzar nossa aten;:ao sobre o trabalho (B: pr_axis) do artista. ~ processo especffico de cria;:ao na arte necess1tana urn estudo particular, centrado na figura do criador e em suas rela;:6es com a sociedade. Ta.mpouco nos preocuparemos com as obras de arte enquanto objetos para uma reflexao de ordem 14 estetica; isto e, nao e nosso intuito discutir aquilo que faz com que uma obra seja boa ou rna, do ponto de vista estetico. Nossa posi;:ao sera muito mais a do espectador, do publico para quem se dirige o trabalho artfstico. Na pessoa do fruidor da arte e que buscaremos compreender seus efeitos educativos; no conhecimento que ela possibilita ao espectador e que iremos procurar sua dimensao educacional - com exce;:ao da arte infantil, na medida em que, para a crian;:a, a arte e uma atividade, urn fazer. · Isto envolve a conceitua;:ao da educa;:ao de uma perspectiva mais abrangente que a simples transmissao de conhecimentos. Envolve a considera;:ao 'da educa;:ao como urn processo formativo do humano, como urn processo pelo qual se auxilia o homem a desenvolver sentidos e significados que orientem a sua a;:ao no mundo. Neste sentido, o termo educafiio transcende os Iimites dos muros da escola, para se inserir no proprio contexto cultural onde se esta. A questao da educa;:ao gira sempre em tomo da cria;:ao e da criatividade: ao aprender, estamos criando um esquema de significados que permite interpretar nossa situa;:ao e desenvolver nossa a;:ao numa certa dire;:ao. E, como assinala Alain Beaudot: 2 ••• o ambiente cultural de urn pais deve influir largamente sobre o desen- volvimento - ou sufocamento - da criatividade dos indivfduos. A educa;:ao, dessa maneira, compreende tambem o ambiente cultural no qual o indivfduo vive, na medida em que !he possibilite ou lhe vete a constitui;:ao de urn sentido (o mais amplo possfvel) para sua existencia. .A circula;:ao de ideias, significados e sentidos, no interior de uma cultura, e o acesso a essa circula;:ao compreendem pois o contexto foirnativo (educacional) mais amplo no qual estamos inseridos. Os metodos pelos quais se permite ou se veta a participa;:ao dos indivfduos nos produtos culturais sao, em ultima analise, metodos educativos. Na afirma;:ao de Herbert Read: a A diferen;:a entre o ideal de cidadania em uma democracia livre e o ideal de servi;:o num estado totalitario e tao absoluta que desde a infancia ate a idade adulta implica uma completa divergencia em objetivos e meto- dos epucativos. A arte e sempre produto de uma cultura e de urn determinado periodo hist6rico. Nela se expressam os sentirnentos de urn povo com rela;:ao as quest6es humanas, como sao interpretadas e vividas em seu ambiente e em sua epoca. Atraves da arte temos acesso a essa dimensao da vida cultural nao explicitamente formulada nas demais constru;:6es racionais (ciencia, filosofia). Por outro lado, quando se pensa na dimensiio estetica da educafiio, esta expressao envolve urn sentido para alem dos dominios da propria arte. Porque 2. A criatividade na escola, p. 96. 3. Educaci6n por el arte, p. 223. 15 Document shared on www.docsity.com
  • 11. o termo estetica sup6e uma certa harmonia, urn certo equilibria Lie elementos. E, em nossa civilizac;ao, vern sendo sobremaneira dificil o encontro de ·urn equilibria entre os sentidos que damos a vida e anossa ac;ao concreta no cotidiano. Talvez se possa considerar que nas culturas ditas primitivas a vida seja mais esteticamente vivida, na medida em que cada ac;ao do indivfduo faz parte de urn universo de valores e sentidos, do qual ele tern uma visao abrangente. Enquanto que n6s, civilizados, estamos rnergulhados num oceano de significac;6es, entre as quais devemos eleger aquelas que pautem o nosso agir diario; e nem sempre e possfvel que este agir diario se co~d~ne com nosso esquema de valores e significados. Assim, a propna educac;ao possui uma dimensao estetica: levar o educando a criar os sentidos e valores que fundamentem sua ac;ao no seu ambiente cultural, de modo que haja coerencia, harmonia, entre o sentir, o pensar e o fazer. Caso contrario, estamos frente atendencia esquiz6ide de nossos tempos: a dicotomia entre o falar e o fazer, entre o pensar e o agir, entre o sentir e o atuar. Em resumo, nossa proposta aqui e buscar a importancia da arte no prooesso educativo, entendendo-o de maneira mais ampla que o simples ensino escolar. Devemos tentar estabelecer como a arte participa na formac;ao do homem: qual a sua significac;ao no processo de conhecimento humano. Portanto, foge a nossos prop6sitos o estabelecimento de uma pedagogia artfstica ou a demarcac;ao de metodos para a utilizac;ao da arte como veiculo educacional. Estas sao quest6es mais pertinentes aos artistas ou aos especialista~ em arte-educac;ao do que ao psic6logo ou ao fil6sofo educacional. Pretendemos somente articular o processo do conhecimento (e a apr~ndizagem) c;_om. a arte, inserindo-os num contexto cultural. Apenas a titulo de apend1ce, trac;amos algumas considerac;6es de como a arte foi e vern sendo encarada pelo ensino oficial brasileiro. Restrin- gimos tais reflex6es ao ensino oficial porque a considerac;ao da arte na cultura brasileira e tambem assunto por demais amplo, e mais af~it~ ao campo da hist6ria da arte. Enquanto que o acesso aos objetJvos e ao processo concreto de nosso ensino e mais facilmente evidenciavel, mesmo por fazer parte de nosso trabalho cotidiano. Ainda com relac;ao a expressiio artfstica deve-se trac;ar uma diferenciac;ao nem sempre aclarada: aquela entre os conceitos de comunicat;iio e expressiio. A comunicac;ao, como se vera, diz respeito a transmissiio de significados explicitos, atraves da linguagem. En- quanta a expressiio subentende a indicat;iio, o desvelamento de sentimentos, nao passfveis de significac;ao conceitual. Esta e uma distinc;ao importante, especialmente no ambito da psicologia. Laing e Cooper, os iniciadores da chamada antipsiquiatria, tern freqiiente- mente trac;ado uma critica a postura cientificista da psicologia e psiquiatria tradicionais, que tern a ver com es . diferenciac;ao. 16 Le-se em muitos textos sobre psicopatologia que o doente mental (especialmente o esquizofrenico) apresenta uma linguagem incongruente e incompreensivel. Contudo, dizem OS autores citados, ela apenas e incongruente do ponto de vista da linguagem conceitual com que o espirito cientificista desses senhores pretende compreender o paciente. Nao se pode pensar que as falas do esquizofrenico preten- dam comunicar significados conceituais. Antes, ele esta totalmente imerso na dimensao dos seus sentimentos, os quais procura expressar atraves de Simbolos lingiiisticos mais pr6ximos da poesia. 0 esquizo- frenico nao diz, mas exprime-,se por meio de Sfmbolos que devem ser compreendidos como se compreende a arte: sentindo-os, muito mais que interpretando-os apenas racionalmente. Por isso Cooper 4 chega a afirmar que . .. os esquizofrenicos sao os poetas estrangu- lados de nossa epoca. Procuramos entao, no decorrer de nossas argumentac;oes e considerac;6es, inserir no presente texto uma serie de versos e expres- s6es poeticas. Queremos crer que elas possam permitir uma com- preensao mais ampla de nossas reflex6es, por expressarem elementos para alem da simples comunicac;ao conceitual. 0 que confere tambem ao trabalho uma certa abertura, isto e, permite ao leitor a desco- berta e a criac;ao de sentidos outros que nao estejam conceitualmente colocados. Porque, no seio da reflexao sobre arte e criatividade, restringir a compreensao apenas ao ambito 16gico ou cientifico talvez seja empobrecer os sentidos encontrados. Segundo George F. Kneller, 5 as abordagens cientificas e intuitivas tern de comple- tar-se mutuamente, nao apenas agora, quando a ciencia da criatividade esta ainda na infancia, mas permanentemente. Proscrever uma delas sera dogmatismo alheio ao sadio espirito de ambas (... ). Alem disso, a psicologia encarregou-se de provar que ela e instrumento limitado para a explorac;ao do processo criador. Por umas tantas raz6es os psic6logos conseguiram s6 poucas conclus6es definitivas. Por fim, desejamos afirmar que uma preocupac;ao central ao elaborar este trabalho se referiu a linguagem nele empregada. Pro- curamos reduzir a urn mfnimo os termos tecnicos e demais express6es tao caras a urn sem-numero de cientistas e pensadores. Isso por ac:reditar que o conhecimento produzido .no interior de uma Universi- dade ou Instituto de Pesquisas pertence a comunidade, e nao e de uso exclusivo de uma serie de iniciados. Pode-se elaborar uma pesquisa e urn texto conclusivos numa linguagem objetivamente tecnica e hermetica. Todavia, . . .o conhecimento assim obtido ... 4. Psiquiatria e antipsiquiatria, p. 140. A esse respeito, vejam-se ainda as outras obras do autor: A morte da familia, Gramtitica da vida e A linguagem da loucura. Bern como Ronald D. LAING, 0 eu dividido, A politica da familia e A politica da experiencia e a ave do paraiso. . 5. Arte e ciencia da criatividade, p. 30 e 28. 17 Document shared on www.docsity.com
  • 12. e entregue nao aos homens sobre os quais se fala, mas a outros homens. Como se o cientista dissesse ao seu objeto: 'Eu te estudo. Mas o meu conhecimento a teu respeito, eu o ocultarei de ti, atraves do meu estilo'. 6 Especialmente no interior da filosofia e das ciencias humanas a linguagem empregada e de suma importancia. Meu pensamento sobre a natureza nao altera a natureza. Mas, o meu pensamento sobre a sociedade altera a sociedade. Por isto a linguagem, ela mesma, e uma ferramenta para interferencia direta num mundo social. Uma linguagem cientifica que nao se articula com a linguagem falada no cotidiano, portanto, corre o risco de ser semelhante a uma tecnica de laborat6rio que nao tern meios de interagir como objeto que esta sendo investigado. 7 Assim, queremos crer que esta preocupa;ao com a linguagem possa permitir o acesso as nossas reflex6es ao maior numero possivel de pessoas, que se interessem pela arte e pela educa;ao. Dois fenomenos profundamente humanos. E interpenetrantes. 6. Rubem ALVES, Pesquisa: para que?, Ref/exiio, I (1):39-40. 7. Ibid., p. 40. 18 CAP1TULO I APRENDIZAGEM E C~IAQA.O DO SIGNIFICADO 0 ideal pedag6gico do 16gico se ap6ia sobre a falsa sliposi!;iiO de que 0 pensamento 16gico produtivo opera devido as leis da 16gica e tei:n nelas sua base psicol6gica, pois opera de acordo com elas, e com elas concordam seus resultados. (Herbert Read, Educaci6n por el arte, p. 78.) Assim como a consciencia humana difere da ·dos animais, assim tambem, e claro, diferem o sentir e a emo91io hu- manos. Como o nosso meio ambiente e urn mundo, teritos sentimentos relativamente ao mundo - nao excita~es trimsit6rias mas uma atitude emocional permanente em rela~rao a urn universo permanente. (Susanne K. Langer, Ensaios fi/os6ficos, p. 136.) Por meu destino o cora~rao e quem responde .. . (Renato Teixeira) 1 . 0 Processo•do Conhecimento: Sentir e Simbolizar ·Ha alguns instailtes, ao perceber que havia alguem oeste comodo, o cachorro da casa empurrou a porta com o focinho e veio deitar-se sobre o tapete. Mas.olio sem antes fazer alguma festa, abanando a cauda, e depois dando varias voltas sobre o lugar onde se deitaria. Este,e urn comportamento que ele aprendeu rapidamflnte: empurrar a porta quando ouve rufdos ou ve as luzes acesas na biblioteca. Porem, as voltas sobre o local de . descanso, nlio podemos dizer propriamente que ele as tenha aprendido. Trata-se de ·uma atitude comum a todos os clies, em qualquer parte do mundo. Grosso modo, diriamos . que aqui estamos frente a urn instinto; a mesma especie de impulso que leva o passaro a tecer o seu ninho, ali na arvore em frente a janela. 0 que significam, contudo, tais comporta1Jlentos? Qual a fun;lio desses atos, comuns a todos os animais da mesma especie? Como .surgiram, e por que sao transmitidos, geneticamente, 19 Document shared on www.docsity.com
  • 13. de gerac;ao a gerac;ao? Sera que em algum momento da evoluc;ao eles tambem nao tiveram de ser aprendidos, e se fixaram no orga- nismo animal? Vamo~ tentar pensar nestas quest6es, comec;ando pela ultima. Antes, porem, p~ecisamos relembrar que a vida tende para a morte. Que cada ato VItal demanda uma certa quantidade de energia que deve ser reposta, a fim de que a vida se mantenha. Que em ultima a~alise, as ac;~es dos organismos visam sempre a man'utenc;ao da vtda: a sobrevzvencia. Assim, deve o anirilal organizar sua ac;ao de forma que ela se tome eficaz na satisfac;ao desse imperativo basico 9ue. e ~e manter vi~o. , Entao notamos que o chamado comportament~ mstmtJvo nada mats e que uma atividade que por ter se mostrado uti! n~ so?revivenc~a, foi ma~tida .ao Iongo d~ evoluc;ao da especie. Ou seja: ~ uma ac;ao aprendzda e mcorporada na memoria biol6gica dos orgarus~os. Especies que nao conseguiram desenvolver e preser- var mecamsmos de sobrevivencia se extinguiram. Portanto, em algum ponto de sua hist6ria evolutiva, a especie incorporou a si estes comportamentos que hoje chamamos instintivos, justamente por eles terem s.: ~ostrado uteis a s,ua sobrevivencia. Aprender: ~reservar a exper~enc1a testada, para usa-la no futuro. A aprendizagem e a transformac;ao de uma experiencia que se poderia perder no passado numa ferramenta para conquistar o futuro. 1 Aqui se depreende a func;ao da memoria: evitar que os comportamentos se ?,eem ~ .esmo; substi~ir o jogo de ensaio e erro por uma atividade Ja defintda como eficaz. Para o cao, as voltas sobre o Iugar de descanso sempre tiveram urn papel a cumprir: verificar se no local nao havia cobras ou outros predadores, e amassar a vegetac;ao para se deitar. Atividade milenar mantida ate hoje, atraves de sua memoria bio!6gica. Olhemos mais de perto esta expressao memoria biologica to- mada d~ emprestimo a Rubem ALVES.2 Ele pretende significar, ~qui, a ~r6pna programac;ao organfsmica do·animal. Isto e: em cada especie amm.al, aquelas respostas que se mostraram eficazes a manutenc;ao da vtda foram preservadas, sendo incorporadas a sua estrutura orga- nica. Cad.a especie tern suas ac;6es instintivas caracterfsticas, pr6prias daquele tJpo de organismo. 0 passaro constr6i seu ninho, o cao amassa a vegetac;ao e o peixe sobe o rio para desovar. Esta mem6ria biol6gica, de certa forma, fecha o comportamento do animal. Ele nasce praticamente programado, nao podendo alterar qualitativa- mente o seu comportamento, reorganizando sua ac;ao. Ao nascer, nesta.sua memoria biol6gica ja se encontram gravadas aquelas ac;6es 1. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, Re/lexiio, 4 (13):22. 2. Ibid., p. 22. 20 basicas que o habilitarao a se manter vivo. E dali nao podem ser removidas: nao ha esquecimento no caso dos instintos. Por isso Merleau-Ponty chama esta forma de comportamento de amovivel. 3 Comportamentos amovfveis sao, entao, aqueles comportamentos instintivos que se acham presentes no organismo desde seu nascimento, e que dali nao podem ser removidos. · Mas o cao que citamos no primeiro paragrafo nao comportou-se apenas instintivamente. Dissemos que ele aprendeu a empurrar a porta e entrar quando percebe pessoas no aposento. lsto nao e comum a todos os caes, mas caracterfstico deste, em particular. :E urn comportamento aprendido e retido nao pela especie, mas por este indivfduo. Tal fato significa que, apesar de programado, o animal possui uma pequena margem de ac;ao, que pode ser preenchida atraves do aprendizado de novos comportamentos. 0 cao pode aprender a abrir a porta e a apanh.ar uma bola, o elefante pode ser treinado pera plantar bananeiras e o urso para andar de bicicleta. Porem estas novas atividades adquiridas estao subordinadas sempre aquela programac;ao original. Jamais urn cao aprendera a construir urn ninho, nero urn peixe a andar de bicicleta. Insistimos: o compor- tamento animal e fechado, determinado biologicamente. Novos com- portamentos somente serao possfveis na medida em que nao divirjam de sua estrutura organfsmica e nela se ancorem. Os animais sao sempre treinados a partir dos impulsos basicos para comer e beber, satisfeitos pelo treinador ap6s cada resposta correta emitida. A estes comportamentos aprendidos, mas ancorados no determinismo da especie, Merleau-Ponty chama de sincreticos. 4 Voltando ao nosso cao, devemos notar uma coisa com relac;ao ao seu comportamento de abrir a porta: ele somente a empurra quando ve as luzes acesas, ouve rufdos ou fareja determinados odores, isto e, quando percebe que seus donos estao naquele comodo. lsto quer dizer que existe, por parte dele, uma ·certa interpretafiio do ambiente, que o leva a emitir ou nao aquele comportamento. Urn outro exemplo: a raposa faminta nao se aproxima do galinheiro quando ele esta guardado pelo cachorro do fazendeiro. 0 impulso instintivo para comer e sustado em func;ao da sobrevivencia - este valor maior da vida, que e manter-se. Portanto, a atividade animal, seja em formas amovfveis ou sincreticas, nao se cta a esmo: e necessaria uma interpretac;ao da situac;ao. Atraves do corpo do animal e informado se seu ambiente e propfcio ou ameac;ador, se ele deve avanc;ar ou fugir. Sem esta atividade interpretativa a ac;ao nao podera ser coordenada com eficacia. Generalizemos: para ser eficaz, a atividade tem de se dar em resposta a uma atividade inter- 3. Cf. A estrutura do comportamento. 4. Ibid. 21 Document shared on www.docsity.com
  • 14. pretativa que e, mesmo nos seus ntveis mais elementares uma forma de conhecimento. ' Assim, .o ·animal colhe no ambiente determinados sinais, que passam a onentar sua ac;ao. A estes sinais os .behavioristas chamam d~ ~st~mulos discriminativos: estfmulos que permitem ao orgatiismo dtscnm~ar qual comportamento deve ser emitido naquela situac;ao. Se antenormente haviamos chamado de memoria biol6gica a re- t~nc;ao. de respostas pela espckie, chamemos agora esta retenc;ao ~mcrettca_ de mem6~ia de sinais. Atraves dela o animal pode armazenar !nformac;o.es 9ue dtgam respeito a sua vida particular, a sua situac;ao enq~anto m~tvidu?·. Na mem?ri~ biol6gica armazenam-se informac;6es pert~nentes a e~pe?t; - os mstintos; na mem6ria de sinais aquelas pertmentes ao mdtvtduo - os condicionamentos. Observemos tam- hem que esta margem de condicionamentos cresce a medida que se so~e na e~ca l a das especies. Ou seja: quanta mais evoluido o antmal, mats comportamentos novos ele pode vir a adquirir. Dizendo de outra forma, quanta mais inferior a especie mais programado fechaqo, nasce o animal. A medida que ~e sobe nesta escala' maior tambem vai sendo ~ infancia do animal, isto e, aquele period~ ~ode ele depend~ dos cutdados da mlie; conseqtientemente, menos acabado. ele nasce. . Ca~e. ainda acrescentar aqui, com respeito aatividade interpreta- hva ,d~ ~al, que .o mecanismo ~asico pelo qual esta interpretac;ao se da ~ ... a capactdade do orgamsmo para sentir dor ou prazer. A sensac;ao !_e praze~ e um a~o de conhecimento que interpreta uma dada relac;ao orgamsmo-am b~n te como sendo favoravel ou asobrevi- vencia o~ a expressao do corpo. A sensac;ao de dor, ao contrario, faz ,o an~mal saber que s~a vida esta em perigo. A atividade se dara, entao, ou pela aproxtmac;lio do animal do objeto que lhe causa prazer, ou pela sua fuga daquele que lhe causa dor. o Saltemos agora do Ultimo degrau da escala evolutiva animal (ocupado pelos ·antrop6ides), para o homem. Este olio e urn salto somente quantitativa, mas qualitativo. 0 abismo cavado entre urn e ??tro nao pode ser vencido apenas atraves dos esquemas de analise ?ti hzad~s pa~a o COII~po~amento amovivel e o sincretico. :B preciso u.-se ~dtante. Em pnmeuo lugar, o homem olio nasce programado biOlogtcamente para a tarefa da sobrevivencia - inclusive sua infancia e a mais longa dentre as de todos OS Seres vivos. Nao ha nenhun;a relafao determinada entre seu organismo e sua atividade como no caso .1os animais. Um exemplo banal: o homem nao p~ssui asas, mas Ja se elevou aos ares. Assim, nao existe uma mera continuidade 5. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, Joe. cit., p. 23. 6. lbid. p. 23. .. 22 entre o organismo e o comportamento humanos. Outro aspecto dessa radical diferenc;a entre homem e animal diz respeito as relac;6es com o meio. Enquanto o animal procura adaptar-se, ajustar-se as condic;oes que lhe sao impostas pelo meio ambiente, o ser humano busca transforma-lo, adapta-lo as suas necessidades. 0 animal reage as mudanc;as do meio; o homem age, mudando o meio. E modifica o meio nlio apenas com o uso da tecnologia, por meio de mudanc;as fisicas, mas basica e fundamentalmente atraves da palavra, dos stmbolos que cria para interpretar o mundo. 0 proprio ato de organizar simbolicamente a natureza j.a e uma tecnica de que 0 homem lanc;ou mao para transformar o universo fisico de um continuo espacio-temporal indiferenciado, num cosmo, numa estrutura signifi- cativa dentro da qual ele pudesse orientar-se.1 Urn simbolo constitui urn determinado objeto ou sinal que representa alga; que permite o conhecimento de coisas e eventos nlio presentes ou, mesmo, inexis- tentes concretamente. Por intermedio dos simbolos o mundo pode ser apreendido como uma totalidade, ja que eles permitem a reuniao e o entrelac;amento de objetos e fatos ausentes (e mesmo dfspares), na consciencia humana. 0 homem e, portanto, urn ser de slmbolos. A palavra possibili- tou-lhe urn desprendimento de seu corpo, isto e, deu-lhe a capacidade de voltar-se sabre si proprio, numa atitude de reflexao. Nlio mais aderido e limitado a seu organismo, tornou-se urn objeto para si proprio, ou seja, pode ver-se de fora, pode buscar um significado, urn sentido para a sua vida. Com a palavra humana nasce a consciencia do homem. Com a consciencia, o homem se descobriu no mundo e no tempo. Nlio mais se pode falar em meio ambiente, como no caso do animal, limitado pelas dimens6es espaciais que seus sentidos lhe permitem; deve-se dizer mundo, ja que os simbolos possibilitam a consciencia de espac;os outros que nlio o existente ao seu redor. Quando digo China, por exemplo, a palavra traz-me a consciencia uma regiao totalmente inalcanc;avel pelos meus sentidos agora. E ainda, descobrindo-se no tempo, o qomem tornou-se hist6ri- co: seus sfmbolos permitem-lhe evocar o passado e planejar o futuro, enquanto que, ao nlio ter urn amanha nero urn hoje, por viver num presente esmagador, o animal~ a-hist6rico. 8 Por isso, na classificac;lio das formas de comportamento encetada por Merleau-Ponty, o humano e chamado de comportamento simb6lico. ° Comportamento que olio se da apenas em reac;ao a materialidade do presente, mas em funrao de urn universo significativo, construfdo pelos sfmbolos. Quando se 7. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, Joe. cit., p. 24. 8. Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 104. 9. Cf. A estrutura do comportamento. 23 Document shared on www.docsity.com
  • 15. fala, em linguagem filos6fica, da transcendencia do homem, e justarnente oeste sentido: da sua nao aderencia ao aqui e agora, de sua consciencia do ali e do depois (ou do antes). Desta forma, entre homem e natureza colocam-se os sfmbolos a palavra, a linguagem humana. E ·a vida (biologica) acrescenta-s~ urn sentfdo, tornando-a existencia. 0 homem nao vive, simplesmente, mas extste: busca mais e mais dar urn significado ao fato de se encontrar aqui, nascendo, construindo e morrendo. ·A historia do homem e a historia do sentido que ele procura irnprimir ao universo. Retornemos urn pouco ao comportamento animal. Ja dissemos que ele pode vir a adquirir alguns comportamentos novas com base na memoria de sinais, e por meio de condicionamentos.' Isto e o animal pode adquirir a capacidade de responder a alguns estim~Ios que lhe foram tornados relevantes. Porem sua resposta sera sempre a '!'esma, frente ao mesmo est.imulo. Exemplifiquemos. Urn cao tremado para sentar-se cada vez que se lhe apresenta urn circulo recortado em cartao, nao o fara se lhe apresentarrnos o mesmo circul_o desen~ado num~ f?~ha de papel. Isso porque ele reage a um smal, e nao a um szgmfzcado. Em ambos os casas o significado (o drculo) e o mesmo, inas nao o sinal. Fac;amos outra experiencia. 0 cao agora sera treinado para sentar-se quando acendermos uma lampada de 100 watts. Se, porem, uma lampada de 60 watts for ac~sa,. e yrovavel que ele venh_a a sentar-se. Isso pelo fato de os d01~ smats serem bastante parectdos, e ele nao conseguir discriminar a diferenc;a entre eles. Este fenomeno foi estudado pelos behavioris- tas, que lhe deram o nome de generaliza{:iio: a resposta frente a urn ~stimulo e general.izada para est.imulos similares. Montemos agora urn JOgo com uma cnanc;a: cada vez que lhe mostrarmos urn circulo ela devera bater palmas. Podemos apresentar-lhe diversos circulos: desenhados, recortados, brancos, coloridos, etc., que fatalmente ela aplau~ira. :E clara que, neste caso, a crianc;a deve saber o que e urn ctrcul~: dev~ ter o seu conceito, saber seu significado. Aqui esta a radtcal dtferenc;a entre os comportamentos sincreticos e os simb61icos. Nos sincreticos, o organismo reage mecanicamente a urn sinal, enquanto nos simb6licos a interpretac;ao se prende ao significado que os simbolos transmitem, independentemente de suas caracteristicas ffsicas. A crianc;a transfere o significado retido, de uma experiencia a .out~a, enquanto o animal apenas generaliza a sua resposta. No pnmetro caso temos uma mem6ria de significados, no segundo, nossa j~ conhecida memoria de sinais. . . ~a primeira citac;ao deste .!exto, Rubem Alves diz que aprender stgmft~a. a~azenar uma expene~;ia, comprovada como eficaz, para sua utl.hzac;ao futura. Pelo que Ja foi dito, a retenyao (ou seja, a aprend1zagem) a nfvel animal se cJ.a de maneira mecanica. :E preser- vada uma conexao estimulo-resposta, fixa e invariavel. A nivel 24 I . r humano, pot:em, a armazenagem se da em termos de significac;ao. Uma dada experiencia e transforrnada em simbolos - extrai-se dela 0 significado -, que sao guardados e incorporados aqueles ja existentes, provenientes de situac;oes passadas. Frente a uma nova situac;ao, a interpretac;ao do homem se dara, entao, a partir daqueles significados preexistentes. 0 ato de conhecer e, portanto, um ato de re-conhecer: a constatac;ao da concordancia entre dados sens6rios novas e as forrnas memorizadas. Conhec;o o novo, dou-lhe um nome. somente depois de reconhece-lo por compara-lo com urn modelo preexistente em minha mente e que organiza o processo pelo qual estruturo minha experienciaY1 Nesses termos, nao se pode realmente falar em aprendizagem animal, mas sim em adestramento. 0 adestramento supoe uma atividade adqtiirida a partir dos comporta- mentos amoviveis, e que e mantida de forma rigida, sempre identica, nao sofrendo aperfeic;oamentos par parte do animal. Utilizemos, daqui ern diante, o termo aprendizagem apenas para o comportamento humano, onde os simbolos retem o significado da situac;ao vivida, permitindo refinamentos e reinterpretac;6es. :E in- teressante notar que, nao atentando para o processo humano de simbolizac;ao e significac;ao, 0 behaviorismo ate hoje nao produziu mais que teorias do adestra- mento, e nao da aprendizagem, no sentido forte do termo. Ate aqui vinhamos dizendo que a ac;ao do organismo se cJ.a primordialmente em func;ao de urn interesse, ou motivo, qual seja, o de se manter vivo. A sobrevivencia e o motor das atividades organismicas em face do universo natural. Isso e totalmente verda- deiro quer se trate do comportamento animal, quer se trate do humano. Contudo, e necessaria que olhemos mais de perto o compor- tamento simb6lico em termos deste interesse, ja que ele eradicalmente distinto dos comportamentos sincreticos e amovfveis. Para o animal, a relac;ao de seu corpo com o. meio ambiente se estrutura de forma mecanica: ele se adapta as cbndic;oes fisicas atraves dos mecanismos regulatorios da dar e do prazer, da ameac;a e da promessa de vida. Para o homem, que busca mais do que a manutenc;ao da vida - busca urn sentido para ela -, este motivo vital adquire contornos mais especificos. Porque se trata agora de procurar nao apenas a equilibrac;ao biologica, mas tambem a coerencia simb6lica. Frente ao mundo o homem se pergunta acerca do valor que as coisas tern em relac;ao a sua vida, isto e, a respeito de sua significafiio. Assim, os mecanismos interpretativos da dar e do prazer se transformam num esquema de interpretafiiO de valores, no contexto bumano. Urn valor positivo e aquele que auxilia o homem na manuten~ao da vida e de seu significado (a existencia); urn negativo, ao contn1rio, diz respeito a destruic;ao da vida e de sua coerencia. Portanto, OS 10. Rubem ALYES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, loc. cit., p. 29. 25 Document shared on www.docsity.com
  • 16. valores sao filhos diretos da relac;ao homem-mundo, gerados pela necessidade de sobrevivencia e paridos pelo universo simb61ico que o homem construiu. Desta maneira, notamos que o ato de conhecer - de dar um significado as coisas e aos fatos - brota de uma atitude valorativa do homem. Este procura interpretar o mundo a partir do significado que ele adquire para sua sobrevivencia. Na raiz de todo conhecimento se encontra uma necessidade vital, a sobrevivencia - valor basico reinterpretado pelos sfmbolos humanos. Por isso, nao e correto separar o conhecimento objetivo das emoc;oes e dos valores. Ao contnirio. A relac;ao entre eles e dialetica. ( ...) 0 verdadeiro conhecimento objetivo brota de uma atitude valorativa e emotiva, e pretende ser uma ferramenta para que o hoJ?lem integre eficazmente o referido objeto no seu projeto de dominar o mundo.11 A atitude do homem frente ao mundo e basica e primordialmente emotiva, e os rudimentos dessa emoc;ao sao os mesmos encontrados no animal: o prazer e a dor (a vida e a morte). Atraves da significac;ao que o homem procura, estas emoc;6es basicas sao refinadas na usina simb6- lica da valorac;ao. Nao procuramos conhecer o mundo apenas por um prazer intelectual, como supunha Arist6teles, mas para transfer- ma-lo em func;ao de nossas carencias. Assim, a experiencia primaria que o homem tern do mundo nao e a de urn enigma intelectual a ser decifrado, mas de urn problema vital, de cuja solU;ao depende a sua sobrevivencia. 12 A vida humana e urn constante fluir emotivo, sobre. o qual advem as significac;oes que a palavra lhe da. 0 homem experiencia o mundo primordialmente de maneira direta, emocional, voltando-se entao sobre estas experiencias e conferindo-lhes urn sentido, atraves de simbolizac;oes adequadas. Qualqoer especie de conhecimento somente se da a partir deste fluxo vital, que se desenrola desde o nosso nascimento ate a nossa morte. Isso quer dizer, primeiramente, que as experiencias s6 se tornam significativas ap6s terem sido vividas, quando o pensamento pode toma-las como objeto e transfor- ma-las em simbolos. S6 do ponto de vista retrospective e que existem experiencias delimitadas. Somente o que ja foi vivenciado e significative, e nao aquila que esta sendo vivenciado. Pois o significado e meramente uma operac;ao da intencionalidade, a qual, no entanto, s6 se torna visfvel reflexivamente. Do ponto de vista da experiencia que esta se passando, a predicac;ao de significado e, necessariamente, trivial, ja que significado, aqui, s6 pode ser entendido como urn olhar atento dirigido nao a experiencia que esta passando, 11. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, loc cit., p. 34. 12. Ibid., p. 35. 26 mas a experiencia ja passada. 1 ~ A_ razao.huroana, a refl~xao, porta~ to: s6 se da a partir de urn fundo mdiferenctado de sensac;oes e .emo.c;~es, o pensamento significado~ A pr.ocura, d~sta forma, tomar mtehg1vel ao homem este alicerce dmamtco, nasctdo de seu encontro com o mundo. Esta corrente vital foi chamada por alguns fil6sofos (especia~­ mente os fenomen6logos) de vivido, ou de irreflet~do: 14 «: const- dera-se que ela seja sempre ma.ior .que ~~alquer s.tgmftcac;~o. Ou seja: a vida vivida nao se esgota Jama1s na v1da refletida; os stmbolos (a palavra) nao podem nunca pretender esgotar a foote de onde jorram. )';; das profundezas da vi~a que o precede e·o _envo~ve que vern o pensamento, estando entendtdo que suas ~onstruc;oes n~o con- seguirao, jamais, conquistar ·e esclarecer perfettamente aqmlo que constitui sua propria fonte.15 · • • _ Nossas palavras, nossas construc;oes mentat. s- 16gt~as ou.n.ao -, somente sao significativas por ~eferencia a .n~ss~ vtda vtvtda! a este fundo indeterminado que arqmteta nossa extstencta. Neste ~entid?, tornar significativa a vida (refletindo sobre ela), talvez nao se]a mais do que buscar esta harmonia co~ que ela. se ?esenvolve, ~ntes de ser reduzida ao pensamento. Os stmbolos cnstabzam ~ paralisam o ritmo continuo de nosso viver. Ritmo este que evolut ordenada- mente desde nosso impulso pela sobrevivencia, passan~o p~las sensa- c;oes e percep;Oes que temos do mundo. Po~to, nao ?a qua~9u~r coisa de estetico na apreensao deste pulsar vtta~? Ser~ que .nao poderemos denominar existencia uma certeza mrus lummosa, runda que tambem indefinfvel, cuja apreensao com toda clareza permanec:- ria de algum modo estetica, isto e, independente de toda formulac;ao conceptual?. 1a Nao podemos, oeste momento, alongar~o-nos nestas considerac;6es, que serao retomadas e aprofundadas ad1ant~. Basta, por ora, constatar que este ritmo vital se desenvolve harmorucamente, nao podendo ser integralmente recuperado pelo ~o.sso P.ensament~; Heidegger inclusive afirmava que o pensamento logico, calculante (como ele 0 chamava) e inferior ao pensamento meditante, em capacidade para exprimir o vivido. Portadora deste pensamento meditante era a linguagem dos fi16sofos gregos. Mas portadora dele , 1 d t 17 etambem essa outra palavra nascente que e a pa avra o. P?,e a .... Por isso, nada mais natural que ilustremos essa nossa 1de1a da ~Ida (irrefletida) como urn fluir constante, com os versos do poeta, rettra- dos do seu 0 rio que constr6i: lR • 13 . . Alfred SCHUTZ, Fet~omen~logia e ,;ela~oe~ soc!?is, ~; 6_3. . '· 14. Outros sinonimos senam, aJnda: o atematJzado , o pre-reflexwo , 0 antepredicativo ou o pre-predicativo. . 15. Andre DARTIGUES, 0 que e a fenomenolog,a?, p. 65. 16. Ibid., p. 92 (grifo nosso). 17. Ibid., p. 133. 1 c t 18. Regis de MORAIS, Queda de areia, p. 28. (Sao Pau o, or ez Moraes, 1976.) 27 Document shared on www.docsity.com
  • 17. 0 rio que constr6i os meus segredos as vezes quase seca e sinto medo as vezes se avoluma e eu fico muitos as vezes se desmente. Nao me escuto. 0 rio que sc cumpre no meu peito as vezes cala e apenas se entrega as vezes mlo faz nada e me confunde ou me faz enfrentar o que serei. .Antes de seguir adiante, recapitulemos alguns conceitos basicos. Ja. ?I~semos que apre~der significa yreservar uma experiencia, para utJhza-la no futuro. D1ssemos tambem que somente ha aprendizagem n? ~~so ~umano, onde as experiencias sao preservadas a partir da Slgn!/lCafao .~~e. o ,ho~e~ lhes atribui. A experiencia, que ocorre a ~1vel d? VIVldo , e sunboliz~da e armazenada pelo homem por me10 da h~gua~em. Desta m~ne1ra, pode ele transferir os significados de urn~ s1tua9ao a outra, ~1ferentemente dos animais, qQe apenas generall~m respostas. Ass1m, os mecanismos basicos ·da aprendi- zagem sao: a) 0 i~te r esse, ~ou__ motivo) - somente se aprende aquilo que se cons1dera utll a tarefa da sobrevivencia. No caso humano a sobrevivencia e interpretada a partir dos valores que 0 ho~em atribui ao mundo. ' b) A mem6ria- permite a reten~ao dos significados (valores) at· ribui- dos a experiencia. . c) A transferencia - que consiste em interpretar e agir em novas situa0es com base nos significados retidos de experiencias antenores. Dentre os te6ricos da psicologia da aprendizagem, talvez seja Gen~lin quem tenha ido mais a fundo no problema, justamente por cons1derar estas duas dimensoes humanas: o vivido (que ele chama de experiencing - a experiencia) e a sua simboliza~ao. Explicando a teoria deste autor, diz M. de La Puente: 19 0 que Gendlin se prop6e e redefinir a no~ao de significado, que esclarece ipso facto o que e aprendizagem significativa. Gendlin distingue no significado duas dimensoes: a dimensao experiencial e a dimensao simb6lica e o define como a relafiio funcional existente entre simbolos ; e~pe~iencias': . ~- ainda: 0 conhecimento tern uma dimensao expe- nencial. 0 sigmficado pode ser abordado nao apenas como significado simb?lic~ acerca das coisas, ou como apenas uma estrutura 16gica, mas 1mphcando a experiencia (experiencing). 0 significado eabordado como o resultado de uma intera~ao entre o experiencing e os I9. 0 ensino centrado no estudante, p. 31. 28 slmbolos. 20 A aquisi~ao de urn novo significado (ou aprendizagem significativa)·deve mobilizar, entao, tanto nossos conceitos como as experiencias a que eles se referem. 0 significado possui assim uma dimensao sentida (vivida) e uma simbolizada (refletida). Esta dimensao sentida do significado e facilmente demonstrada atraves de urn exemplo: quando procuramos lembrar uma palavra e nao o consegui- mos, ficamos como que a sentindo, enquanto ela nao nos vern a consciencia; alguem sugere algumas outras que, no entanto, por nao se encaixarem neste sentimento, sao logo refutadas, ate que encontre- mos o termo exato. Estes fatos tern conseqiiencias importantes para qualquer educa- dor. A mais fundamental e que ninguem ·adquire novos conceitos se estes niio se referirem as suas experiencias de vida. Novos significados somente serao incorporados a estrutura cognitiva do indivfduo se constituirem simboliza96es de experiencias ja vividas. David Ausubel, outro te6rico da aprendizagem, discorda dessa tese. Diz ele que novos conceitos podem ser aprendidos sem a sua dimensao experien- cial, bastando que sejam ancorados naqueles ja existentes no repert6rio do individuo. lsto e fato. Porem, o de que Ausubel se esquece, e que, em ultima analise, OS. Simbolos ja presentes no repert6rio do individuo s6 o estao porque surgiram a partir de suas vivencias. Novos significados, quando adquiridos desta maneira, sao filtrados por aqueles ja presentes, oriundos de experiencias vitais. 21 Nosso universo simb6lico, nossa .visao de mundo, esta intimamente relacionada com nossa existencia concreta. Aquilo que nao perce- bemos como importante nao e retido - e-nos insignificante. Em psicologia existe uma serie de experimentos a respeito da memoriza~ao de sflabas e palavras sem sentido. Em todos se demonstrou que este material, ap6s decorado, e rapidamente esquecido. Isso e uma demonstra~ao experimental de que nossa memoria e uma memoria de significados, que retem apenas aquilo que fale diretamente anossa vida. Por isso, urn sistema de ensino calcado sobre a memorizac;ao mecanica tende a nao produzir aprendizagem alguma. Gendlin tambem nos demonstra que a experiencia basica que temos do mundo e emocional, ou seja, e sentida, antes de ser compreendida. As rela~oes 16gicas ocorrem somente depois dos significados sentidos. Tomemos .uma metafora, ou urn verso, para exemplificar. Quando o poeta (Ledo Ivo) diz ...o dia e urn cao 1 que se deita para morrer ... , em termos 16gicos, esta relac;ao nao diz nada. Urn dia nao e urn cao, muito menos que se deita para morrer. Porem, a partir da experiencia que temos de urn dia e de urn cao a mort~, atraves do sentimento que OS dois elementos 20. 0 ensino centrado no estudante, p. 28. 21. Ibid., p. 43. 29 Document shared on www.docsity.com
  • 18. evocam, podemos chegar a compreender a rela;ao. A metcifora nao se baseia mi semelhan;a, mas a semelhan;a se baseia na metafora... Uma vez encontrado o novo significado, descobre-se depois a seme- lhan;a, como rela;ao l6gica. .Nao existe semelhan;a antes da cria;ao do significado a partir da experiencia de alguem. 22 0 que se fez aqui foi aproximar dois significados sentidos, dois sentimentos, simbolizados por palavras (dia e cao amorte) que, logicamente, nao estao relacionados entre si. A expressao popular chove canivetes e outro .exemplo, talvez mais claro ainda. Nossa experiencia de chuva e de canivete (como algo afiado e penetrante) estabelece, num nfvel infral6gico, a rela;ao, que entao se torna compreensfvel. Para Gendlin, e importante que se de aten;ao a dimensao experiencial do conhecimento. Focalizando sua aten;ao sobre o que sente (significado sentido), o individuo pode encontrar novos signifi- cados, ligando, a estas experiencias, simbolos novos que as tornem significativas. Criar e olhar diretamente para a Corrente experiencial (...) e prestar aten;ao ao que se esta sentindo, de modo a produzir novos significados atraves de novos simbolos em intera;ao com as ·experiencias . . . Pensar nao e eliminar conceitos, mas dinamiza-los experiencialmente. ( ... ) Talvez, explica-se Gendlin, a diferen;a entre pessoas criativas e nao criativas resida precisamente no fato de que as primeiras, diferentemente das segundas, dao aten;ao a dimensao experiencial do conhecimento... 2a Assim, estar aberto a expe- riencia e condi;ao fundamental na aquisi;ao e cria;ao de novos significados. Simbolos e conceitos que nao possam ser referidos a experiencia sao vazios de significa;ao. Podemos explicar a urn serin- gueiro amazonense, nascido e criado na selva, o que seja a polui;ao das grandes cidades, porem sua compreensao do fenomeno sera incompleta; faltar-lhe-a sempre uma dimensao basica da compreensao: a vivencia da polui;ao. Da mesma forma, quando alguem nos descreve urna cidade que nao conhecemos, ficamos com urna·impressao urn tanto quanto abstrata de como ela e realmente. So iremos preencher este vazio e conhece-la de maneira mais completa quando pudermos andar por suas ruas e permanecer nela urn certo tempo. E af pode · ser, inclusive, que consideremos falsa a descri;ao que tinhamos: tal descri;ao havia brotado da maneira como nosso interlocutor sentira a cidade, que e diferente 9a maneira como a sentimos agora. Lowenfeld e Brittain, 24 dois autores voltados a educa;ao infantil, assim descrevem esta questao: 0 processo de crescimento mental tende, ,pois, a ser uma fun;ao abstrata, na medida em que esses sfmbolos·adquirem sign_ifi- 22. Miguel de La PUENTE, op. cit., p. 43. 23. Ibid., p. 50. 24. Desenvolvimento. e capacidade criadora, p. 16. 30 cados diferentes e cada .vez mais complicados. Contudo, nao e o conhecimento desses simbolos ou a habilidade para redistribui-los que ptomove o crescimento mental, mas, tambem, o que eles represen- tam. Estar capacitado para reunir determinadas letras na seqUencia adequada para que se leia coelho nao constitui uma compreensao do que seja urn coelho. Para conhecer realmente urn coelho a crianc;a deve poder toca-lo, sentir o contato de sua pele, observar como mexe o focinho, alimenta-lo e aprender os seus Mbitos. :£ a intera;ao dos simbolos, do eu e do ambiente que fornece os elementos necessarios aos processos intelectuais abstratos. Finalme~te, para refor;ar essa tese sobre a importancia do vivido no processo de conhecimento, citemos Merleau-Ponty: 25 Tudo o que sei do mundo, mesmo devido aciencia, o sei a partir de minha visao pessoal ou de um'a experiencia do mundo sem a qual os simbolos da ciencia nada significariam. Todo o universo da ciencia econstruido sobre o mundo vivido, e se quisermos pensar na propria ciencia com rigor, apreciar exatamente o seu sentido, e seu alcance, convem despertarmos primeiramente esta experiencia do mundo da qual ela e expressao segunda. ( . . .) Retornar as coisas mesmas e retornar a este mundo antes do conhecimento cujo conhecimento fala sempre, e com respeito ao qual toda determina;ao cientffica e abstrata, representativ,.a e dependente, como a geografia com relac;ao a paisagem onde aprendemos primeiramente 0 que·e uma floresta, urn campo, urn rio. Encerrando este primeiro item gostariamos de enfatizar uma afirmagao que fizem;s alguns paragrafos atras. Haviamos dito, ali, que o fluir harmonica de nossa experiencia;ao guarda em si algo de estetjco. Ou seja: que nosso processo de sentir o mundo consiste numa apreensao direta, de certa forma equilibrada e harmonizada, dos fenomenos ao nosso rector. lsto se tornara mais claro quando abordarmos a questao da percep;ao humana. Basta agora conside- rarmos o seguinte exemplo, que fala a favor desta afirmac;ao. :£ comum ouvir-se, especialmente entre os profissionais da medicina e da psicologia, a seguinte assertiva: Estou atendendo (ou tratando de) urn caso muito bonito. Ora, sera que a beleza a que se refere o profissional se encontra em u~ corpo (ou mente) ~nfermo? Nao. A beleza, ai, reside na rela;ao que ele mantem com urn fenomeno que deve ser decifrado. Ela consiste no prazer experimentado por ele ao veneer urn desafio imposto pela doen;a: compreende-la e atuar sobre ela de forma correta. Sob todo o seu equipamento e raciocinio 16gico e cientffico, subjaz urn sentimento da situa;ao que 25. .Fenomenologia da percep~iiq , p. 6-7. 31 Document shared on www.docsity.com
  • 19. ele interpreta como bela. 26 • Herbert Read, 27 neste ·sentido, assimila: ... sustento que a vida mesma, em suas fontes mais secretas e essenciais, e estetica. E ainda o mesmo autor, a respeito da memoria humana, tece as seguintes considera(,:6es: De passagem digamos ·que tampouco a memoria e independente dos fatores esteticos. Numa ocasiao, assisti a uma demonstra~ao extraordimiria de memoria, na qual o sujeito se mostrou capaz de reproduzir as cifras decimais de 'T1' em qualquer quantidade; depois de anotar varias centep.as de 'lugares', podia continuar a serie em qualquer ponto dado, saltando os lugares que se lhe pedia. Ao interroga-lo, o sujeito confessou que recordava as cifras mediante certo 'ritmo'. 28 Alias, e comum o procedimento empregado pelos estudantes, de memorizar determinadas passagens ou classi ,fica~6es mediante sua transforma~ao em versos ou seqtiencias ritmicas - processo mnemonico apoiado sabre fatores esteticos, como a rima e o ritmo. Portanto, essa considera~ao da existencia humana, em si, como urn fato estetico, parece ser mais do que simples suposi~ao literaria. Como tambem ja dizia Goethe, tudo ria vida e ritmo. 2. A Linguagem e a Constru~ao do Real Ate aqui concentramos nossas aten~6es sabre o processo humano de conhecer o mundo. Porem, de certa maneira, vendo-o como ocorrente·num individuo isolado. Por quest6es didaticas deixamos de considerar este individuo como inserido numa comunidade, num meio social. Ao proceder assim, aspectos fundamentais da aprendiza- gem deixaram de ser examinados. E nosso intuito agora ampliar este quadro referencjal, a fim de que obtenhamos uma visao mais completa dos mecanismos do conhecimento. Afirmamos, por exemplo, que frente ao mundo o homem se pergunta acerca do valor (do significado) que as coisas tern em rela~ao a sua vida. E dissemos que aqueles mecanismos rudimentares de interpreta~ao do mundo atraves da dor ·e do prazer, encontrados nos animais, se refinam no homeni ao serem traduzidos em termos de valor. Esses valores e 'sigp.ificados, contudo, nao surgem do nada, nem ao menos da atividade isolada de urn unico individuo, mesmo porque niio existem seres humanos. 26. Poder-se-ia argumentar, aqui, que a beleza nao nasce desta rela~ao · curativa, mas que e percebida na enfermidade -mesmo, na medida em que ela se aproxime de modelos ideais. Ou seja: que existem determinados paradigmas definidores dos tipos de doen~a, e que urn caso e sentido (talvez morbida- mente) como belo, quando se aproximar de tais paradigmas. Contudo, isso nao invalida nossa tese do sentimento subjacente a compreensao 16gica. 27. Educaci6n por el arte, p. 56. 28 . Ibid., p. 56. 32 is?l~dos. ·C? q~e · existem sao comunidades h'umanas~ .Se 0 valor b~s170 da VIda e manter-se, os organismos desenvolvem determinadas . tecm~as que l~e.s · ~ermitelll: ~gir. so~r~ a. natureza, a fim de repor _ a energm necessana a ~o~reviVen.cta. Tecmcas sao extens6es do corpo. S_?b.este P?nto de VIsta. . a soctedade pode ser entendida como uma tecmca, P?IS que as neces~idades h~~anas de sobrevivencia so podem ser res~lvtdas por mecamsmos socials. Assim como as tecnicas sao expansoes do corpo, tambem 0 e a sociedade. 29 . Os valores humanos, desta maneira, surgem da atividade do grupo social. Se o corpo do animal interpreta, atraves da dor e do pra~er, as. suas rela~6es com o meio, no caso humano, e·seu corpo ~oczal que?! transform~ estes mecanismos elementares num esquema mterpr~tattvo d~ valores. ~ essa transforma~ao se da, como ja vimos, po~ me10 dos Slillbolos cnados pelo homem - pela linguagem. 0 anlillal, ~uar?a em sua .n;te~no~ia biologica e de sinais as informa~6es necessanas a sua sobrevtvencia, enquarrto o homem, pela linguagem, ence~ra-as na sua memoria de significados. A linguagem ea memoria coletlva da sociedade. E ela que prove as categorias fundamentais para ~ue certo grupo social interprete o mundo, ou seja, para · que ele dtga ~omo ele e. 3{) Atraves da linguagem, as experiencias bem-sucedidas na luta pela sobrevivencia podem ser socializadas, armazenadas e transmitidas. Nossas experiencias sao, assim valoradas (tomam-se signific~ti~as). pela linguagem, o que nos faz pensar que os val?r:s ~e a propna lmguagem) nascem de exigencias praticas de sobrevtvencia. Mesmo as concep~6es e ideias mais abstratas nasceram desses problemas praticos com que se defrontam os grupos humanos. ( ~~ribui~ao de valores, pelo homem, e uma resposta aquestao ?o slgm/lcad~ da~ .coisas para sua vida. Ou seja, e uma resposta aquela questao basica: prazer ou dar?; vida ou morte? 0 valor, portanto, subentende uma relariio: a da vida (do homem) com o mundo. A atitude valorativa, situando-se primordialmente na esfera do sentir, e anterior a raziio. Hessen aponta tres caracteristicas b.a.sicas da valora~ao: a) sua imediatidade; b) sua intuitividade, ou Seja, ~Ua f~rma nao elaborada, anterior aconceitua~ao logica, e C) sua emocwnalldade, no ~entido de ela se subordinar a esfera dos senti- mentos. 31 Portanto, a razao humana e uma opera~ao posterior a valorariio; pela razao o homem dinamiza e relaciona os significados oriundos de sua atividade valorativa. Por isso, como ja dissemos antes~ frente a vida a postura humana nunca e objetiva, no sentido de conhecimento desinteressado. E por peiceber alga como impor- 29. Rubem ALVES, Notas introdut6rias s~bre a linguagem, Zoe. cit., p. 25. 30. Ibid., p. 29. 31. Apud J. F. Regis de MORAIS, Escolas: a liberta~ao do novo Reflexao, 4 (14):23-, · ' 33 Document shared on www.docsity.com
  • 20. tante para sua vida (como.urn valor) que o homem se atira a tarefa de conhece-lo. Deixemos que fale Rubem Alves: 32 A experiencia que 0 homem tern do seu mundo e primordialmente emocional. 'Bern', poderia o cientista objetivo retorquir, 'isto e assim porque o homem ainda nao se treinou para o conhecimento verdadeiro, puro e desinteressado.' Nao, as coisas sao assim porque. o homem, ao se relacionar com o seu ambiente, se encontra sempre face a face. com o imperativo da sobrevivencia. E porque ele deseja viver, o ambiente nunca e percebido como algo neutro. 0 ambiente promete vida e morte, prazer e dor - e, portanto, qualquer pessoa que se encontre realmente em meio a !uta pela sobrevivencia e for~ada a perceber o mundo emocionalmente. E e esta experiencia imediata - emotiva, e na maioria dos casos nao verbalizada e olio verbalizavel - ,que determina a nossa maneira de ser no mundo. Esta e a matriz emociooal que estrutura o mundo em que vivemos. Mas voltemos a Iinguagem. Como ja foi dito, ela e o instru- mento que possibilita a um grupo humano a coexistencia, ou seja, o compartilhar de uma mesma estrutura de valores. Utilizando-a, uma comunidade interpreta o mundo e tra~ as diretrizes para. sua sobrevivencia. A linguagem, tornando significativos os valores, pbssi- bilita ao homem um esquema interpretative do mundo, de maoeira que este possa orientar sua a~ao. Ela surge, portaoto, das necessi- dades praticas e concretas da vida; surge como uma forma de coor- denar as ar;oes em grupo, com fins de sobrevivencia. Isso pos faz pensar que a categoria verdade nada mais e do que uma maneira sim- b6lica de nos referirmos aquilo que e pratico e funcional. Conside- ramos uma ideia verdadeira na medida em que ela nos permite interpretar o muodo e oele agir de maoeira eficaz. Nossas verdades nao sao etemas e imutaveis; novas descobertas, novas formas de. atuar-se sobre .a realidad~, freqtientemente destronam aqueles mo- delos que ate entao tinhamos como verdadeiros. Foi assim, por exemplo, com o modelo heliocentrico de · astronomia, criado por Copernico; ou ainda com a teoria evolutiva de Darwin; ou mesmo com a psicanalise de Freud, ao propor o conceito de inconsciente. A linguagem permite entao que comunidades humanas coordeoem suas atividades, a partir de uma certa interpreta;ao da realidade, que e compartilhada por todos os seus membros. 0 homem nao apenas reage aos estimulos provenientes do meio, como o .animal, mas procura organiza-los de uma forma significa- tiva, dando-lhes urn seotido, isto e, construindo o mundo. Portaoto, entre o homem e seu meio ffsico interpoe-se a tela da linguagem. E assim, a organiza~ao do mundo numa atitude compreensivel tor- . na-se possivel gra;as a linguagem. Os estlmulos provenientes do meio 32. 0 enigma da religiiio, p. 130-131. 34 sao filtrados e organizados por ela, .e isto equivale a dizer que nossa percepr;ao, de certa forma, e fun~ao de nossa linguagem. Dete- nhamo-nos urn pouco oa questao da percep;ao humana. Esta euma questao que, desde os prim6rdios da fisiologia e da psicologia, vern ocupando os cientistas, sem que se tenha ainda chegado a conclu- soes definitivas (o que, e claro, nao e possivel em campo algum). Como e que percebemos o mundo? Como e que as diversas formas de energia (sonora, luminosa, etc.), ap6s penetrarem em nossos 6rgaos dos sentidos, sao organizadas pelo cerebra num esquema significative? Tais interroga~oes foram particularmente propostas pela psicologia da forma, ou da Gestalt (forma, em alemao), que se empeohou em responde-las. Muitas de suas explica;oes foram refutadas posterior- mente, mas parece que .esta escola chegou a algumas conclusoes basicas. Atualmeote, o quadro que temos a respeito da percep~ao e, de maneira geral, o apresentado a seguir. Parece haver uma tendeocia inata·do cerebra humano em agru- par os estimulos provenieotes do meio, de forma que eles se articulem ouma certa ordem, ou seja, de maoeira que eles adquiram algum significado - significado aqui no sentido de organizar;ao, em oposi- ~ao a desordem, ao caos. Nossa discrimina;ao mais rudimentar de brilho cor movimeoto e formas simples enquadram-se oeste caso. a.q , ' , Tendemos sempre a compor, com os estimulos, uma forma, que e, para a escola gestaltista, sempre a mais perfeita possivel. Quando contemplamos as estrelas, por exemplo, nossa tendencia e estru- tura-las em figuras articuladas - dai a origem das constela;oes. Mesmo que as formas que nos cercam sejam realmente .ca6t!cas, aioda assim o cerebro projeta oelas uma ordem. De uma m1scelanea de pontes o olho (ou, para ser mais exato, o cerebro) escolhe aque- les que se enquadram em alguma estrutura, ou os que poderiam ser interpretados como uma forma humaoa ou animal. Quando contem- plamos as ouvens que passam, a brasa de uma f?gueira que. se ex- tingue, ou ainda urn peda;o de casca rugosa,A fa~ilmente p~~Jetamo~ nelas tais fantasias de forma. E, se a substaoc1a formal Ja possm alguma ordem em si, o cerebra projetara eritao uma ordem ainda melhor. u :a cJ.aro que, ao percebermos uma figura conc~eta :- urn perfil humano numa mancha da parede, por exemplo ---:- mtervem ai mecanismos mais complexos, que envolvem a aprendtzagem. 0 que estamos querendo ressaitar e que, a partir de funr;oes rudimen- tares de organizar;ao dos estf.mulos, e que se desenvolve nossa per- cep;ao mais acurada. Como diz Verno~: :15 ••• a partir da inf~cia tais fun~oes sao cada vez mais subordmadas a. processos cogmtlv~s de ordem mais elevada. . . Portanto, a form~ Simples e a percep;ao 33. Cf. M .D. VERNON, Percep~iio e experiencia, p. 3. 34. Anton EHRENZWEIG, Psicanalise da percep~iio artistica, p. 64. 35. Op. cit., p. 3 (grifos nossos). 35 Document shared on www.docsity.com
  • 21. do movimento sao integradas e suplementadas por processos de identifica~iio, classifica~iio e codifica~iio atraves da opera~ao de es- quemas perceptivos que, em grande parte, dependem de aprendiza- gem, memoria, raciocinio e linguagem. Indiscutivelmente OS proces- sos perceptivos simples continuam a atuar, e na realidade apresentam dados sensoriais de que depende a opera~iio dos processos mais complexos. Pela ultima frase da cita~iio acima depreendemos que, apesar de nossa percep~iio se desenvolver com a aprendizagem, aqueles processos perceptivos simples continuam a atuar, servindo de alicer- ce aos refinamentos que vamos obtendo. De certa forma, podemos notar tambem ai, nesses rudimentos perceptivos, uma base estetica. Agrupar e~timulos em formas simples, obtendo, por conseguinte, sim~trias, . se~elhan~as e ritmos e, em si, projetar fundamentos este- ticos ao mundo percebido. Sigamos a explicita~iio de Paul Guillau- me, 86 que tambem fala a favor desta tese: Ha diversas maneiras de perceber o mesmo conjunto. Um dos tipos mais freqlientes, e talvez o mais primitivo, foi chamado de percepc,:iio sincretica ou global. 0 objeto (que, algumas vezes, pode ser todo o campo senso- rial) e um todo que nii.o se decompoe em partes distintas e indivi- dualizadas. Este caso opoe-se aquele em que as partes sao, ao mesmo tempo, distintas e solidarias, articuladas, organizadas: esta sintese sup6e uma analise, enquanto a percepc,:iio sincretica e anterior a qualquer amllise. 0 que o autor esta nos dizendo e justamente que existe uma percepc,:iio global do mundo, anterior aos nossos proces- sos de analise perceptiva (que sao dados basicamente pela lingua- gem). Nossa tendencia e sempre niio atentar para esta percepc,:ao primitiva, imersos que estamos em nossa linguagem conceitual e classificat6ria. Mas deixemos que Guillaume complete seu pensa- mento: A impressiio primeira, ou o sentimento que temos das coisas e de suas relac;oes, outra coisa nao e seniio essa. percepc,:iio global: e oeste sentido que o sentimento ea forma primitiva do conhecimento. Desse sentimento existem infinitas variedades, todas qualificativa- mente distintas, entre as quais ha semelhanc,:as niio resolvidas em identidade e diferenc,:a de partes. Freqlientemente a percepc,:iio este- tica respeita ou procura reencontrar essa~ · impressoes globais; a analise a que somas levados pelas necessidades da pratica e da cien- cia, ao contrario, faz desaparecer essas qualidades e as resolve em elementos e retac,:Oes. 37 Vemos ai que nossas ideias a respeito do 36 . Manual de psicologia, p. 157. 37 . Ibid., p. 159. Anton EHRENZWEIG desenvolve, em seu A ordem oculta da arte, uma teoria da percept;;iio sincretica, fundada no conceito psicanali- tico do processo priinario (inconsciente). Para o autor, toda obra de arte envolve um conflito entre a percept;;iio sincretica (processo primario/inconsciente) e a perceps;iio gestaltica (processo secundario/consciente). ~eja-se tamb6m sua outra obra, ja citada. 36 sentimento, ou do vivido, como base do conhecimento (simb6lico) humano, se completam tambem pelo estudo da percepc,:ao. Nosso sentimento primeiro do mundo advem-nos a partir dos processos perceptivos basicos - da percepc,:iio sincretica, como a chama Guillaume. Haviamos dito, anteriormente, que nossa percepc,:iio e, em gran- de parte, .fun~iio , de nossa linguagem, e agora estamos dizendo que existem processos perceptivos basicos que independem da linguagem. Haveria ai alguma contradic,:ao? Niio. 0 que ocorre e que nossa percepc,:ao se refina e se sedimenta, pela linguagem, a partir desses rudimentos inatos. A linguagem, permitindo-nos ordenar o mundo em eventos e relac,:oes de eventos, imp6e-nos sua estrutura concei- tual, fazendo com que nao nos apercebamos mais dessa primitiva percepc,:ao. Ao aprender a desenhar, por exemplo, o indivfduo deve renunciar a percepc,:iio cotidiana, aprendida, e tra~ar as coisas da forma como elas realmente aparecem ao olho. Urn pires sabre uma mesa, a alguma distancia, e.par n6s percebido como urn circulo; atraves de nossa experiencia anterior aprendemos a ve-lo como tal. Porem, o desenhista deve trac,:a-lo como uma elipse, que e a forma com que ele realmente se apresenta ao olhar. 38 Assim, a percep~iio humana depende sobremaneira da aprendizagem, e fundamef!.talmente da aprendizagem de nossa Hngua, esse instrumento de ordenac,:iio do mundo. A linguagem utilizada par determinada comunidade humana, como vimos, permite que as ac,:6es sejam conjugad~s , a partir da interpretac,:ao comum do mundo que ela fomece. IndiVlduos de urn mesmo grupo social possuem basicamente a mesma estrutura de valores, dados atraves da lingua par eles empregada. Quando apren- demos a nossa lingua, aprendemos com ela os modos de nosso grupo social . perceber o mundo e de nele agir. 0 condicionamento de nossa percepc,:ao pela linguagem e, realmente, o condicionamento de nossa maneira de ver, ouvir e sentir pela sociedade. 3 ~ Esta conclusao a que chegamos pode ser encontrada em quase todos os estudiosos da linguagem humana, e e importante sobretudo quando se pensa na educac,:ao a partir de um contexto cultur~l. Como ~ estudioso do processo lingiiistico, atraves de perspectivas culturats, temos B. L. Wharf, que afirma: 40 Dissecamos a natureza de acordo 38. Esta percept;;iio da forma do objeto (o circulo, no caso do pires) independentemente de sua posit;;iio foi chamada de constoncia da forma, pelos gestaltistas. Outras constancias sao ainda: a da cor e do taman/to. 39. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, foe. cit., p. 31. .40. Apud N. POSTMAN C. WEINGARTNER, Contesta~iio - nqva f6rmula de ensino; p. 143. 37 Document shared on www.docsity.com
  • 22. com as diretrizes trac;adas pela nossa linguagem nativa. As categorias e tipos que isolamos do mundo dos fenomenos nao sao por nos descobertos ali porque se coloquem diante dos olbos do observador; pelo contnirio, o mundo e apresentado num fluxo calidoscopico de impressoes que tern de ser organizadas e categorizadas pelas nossas mentes - e isto significa, acima de tudo, pelo sistema lingtifstico na mente de cada um de nos. Recortamos a natureza, organizamo-Ja em conceitos e atribufmos-lhe significados da maneira que fazemos, porque somos, principalmente, partes. de urn acordo para organi- za-la dessa maneira - um acordo que se mantem em toda a nossa comunidade de discurso e esta codificado nos padroes da riossa lin- guagem. Recordemos o que ja foi dito antes: ·nossa categoria de verdade brota dos valores da comunidade em que vivemos; como tais valores sao determinados basicamente pela Iinguagem ali empregada, nossas verdades sao, sobretudo, derivadas de nosso sistema lingiifs- tico. Por isso Postman e Weingartner p;nderam: 41 Cada urn de nos, quer seja oriundo da tribo americana, da tribo russa ou da tribo hopi, nasce tanto num meio simb61ico como num meio ffsico. Habi- tuamo-nos muito cedo a urn modo 'natural' de falar, e de nos falarem, sobre a 'verdade'. Arbitrariamente, nossas percepc;oes sobre o que e 'verdadeiro' ou real sao modeladas pelos simbolos e pelas instituic;oes manipuladoras de simbolos da tfibo a que pertencemos. De uma forma poetica, o compositor (Pericles Cavalcanti) tambem demons- tra que as verdades dadas pela linguagem sao modelos, sao f!guras que construimos para significar o real: 0 sol nasceu, a Jua nasceu 0 dia nasceu, o som nasceu, .£ tudo mentira. · £ tudo figura. Quem nasceu fui eu. Quem nasceu foi vo;e, E a gente nlio sabe bem como E nem sabe por que. .. Temos que notar agora um aspecto importantissimo dessas quest6es que viemos levantando. Inicialmente, baviamos dito que a lingu;:tgem se constitui na ferramenta primordial do homem para a construc;ao do mundo; atraves deJa o ser humano adquire poder suficiente par:;t agir no meio, ordenando-o e compreend~ndo-o. Mas, por outro lado, observamos que a Iinguagem molda nossa maneira de pensar, sentir e agir; ao nascer numa dada cultura, aprendemos a interpretar o muiido a partir dos valores por ela constituidos, veiculados em sua lingua. Sao as duas faces ·da moeda humana: elas constituem essa estranha dialetica que rege nosso processo de co- 41. N. POSTMAN C. WEINGARTNER, op. cit., p. 29. 38 nhecimento. Podemos usar nossa linguagem para conhecer e dominar o mundo somente ap6s termos sido por ela socializados. ~ a lin- guagem de nossa comunidade que estrutura a maneira pela qual compreendemos e pensamos. Deduz-se, entao, que os fundamentos da nossa raziio encontram-se nos fundamentos de nossa linguagem. lsto e: a logica do nosso pensar e subordinada e derivada da 16gica do nosso falar. Ou, a 16gica do indivfduo deriva-se da 16gica da sociedade em que ele se encontra. 42 Porque pensar significa jus- tamente dinamizar e articular sfmbolos (palavras); significa relacionar conceitos, que nos sao dados pela Iinguagem. Aquilo para o que nao temos palavras, nao existe, nao podemos pensar. Nomear as coisas efaze-las existir. E e precisamente oeste sentido que encontramos o dizer bfblico: No prindpio foi a Palavra (Joao 1.1); ou ainda a atitude do primeiro homem (Adao), ao dar nome as coisas do mundo. Quando nomeio alguma coisa, eu a apreendo e, de certa forma, adquiro poder sobre ela, ao encerni-la em minha mente atraves do sfmbolo que a representa. Por isso, nos rituais de exorcismo e impor- tante que se saiba o nome do demonio que se apossou do individtio: atraves dele o exorcista adquire poder sobre a entidade. 48 No conto de fada Rumpelstiltskin (dos Irmaos Grimm), a rainha deve des- cobrir o nome do gnomo, para vence-lo e nao ter de lhe entregar o filho. Portanto, nossa capacidade tacional, intelectiva, depende dos simbolos que temos a mao· . 0 meu mundo, 0 mundo sober 0 qual posso pensar, conseqiientemente, depende da minha linguagem. Os . limites de minha linguagem denotam os lirnites de meu mundo, afirma Wittgenstein. 44 Na ditadura criada por George Orwell, em seu 1984, a diminuic;iio gradual do vocabulario perrnitido ao povo tinha por objetivo, justamente, diminuir a sua capacidade de racio- cinio. E e interessante notar-se, tambem, que ao se instalar uma di- tadm.:a em qualquer pais, suas primeiras medidas sao sempre res- tringir a circulac;ao das palavras (censura), bern como reduzir a qualidade da educac;ao, especialmente a primaria, onde os indivfduos sao alfabetizados. Controlar a linguagem e controlar OS indivfduos atraves de seu pensamento. Estivemos, todo esse tempo, .referindo-nos a linguagem do ponto de vista de sua jun~iio para o homem. Procuremos agora ana- lisa-la a partir da sua estrutura, ou seja, tentando pensar no que ela e. Nosso senso comum tende a considerar a linguagem como urn 42. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, foe. cit., p. 31. . 43. Diz Martin BUBER: Poder sobre o mau espirito se obtem ao cha- ma-to pelo seu nome real. I and Thou, p. 58. (Edimburgo, T. T. Clark, 1955.) (Optamos aqui pela verslio em ingles, da obra, por considerarmos .tal cita~lio mais proxima a nossos prop6sitos do que na verslio· em portugues.) 44. Apud Rub:;m ALVES, Notas introdut6rias sobre a Jinguagem, foe. cit., p. 3 i. 39 Document shared on www.docsity.com
  • 23. c6oigo: um ·sistema de sfmbolos, convencionados pela . soCiedade, para representar ao homem as coisas e as rela~oes entre elas. Por meio da linguagem o homem pode comunicar a seu semelhante de- terminados fatos ou objetos que nao se encontram presentes no momenta. Ela, dessa forma, substitui as coisas (no sentido de repre- senta-as). Este raciocinio leva-nos enUio a indagar do como a lin- guagem e criada pelo homem. Sendo ela composta de sfmbolos re- . presentativos das coisas, segundo o pensamento acima, a seguinte ideia se nos apresenta: a mente humana e semelhante a um espelho (uma tabula rasa, como diziam os empiristas britamcos). Ali se refletem os objetos do mundo exterior, formando as imagens corres- pondentes. Ou seja, a mente reduplica o mundo, e a linguagcm representa esta reduplica~ao. Com este raciocinio chega-se a consi- dera;ao da linguagem como uma lista, como um rol dos objetos que existem no mundo. ~orem esta e uma conclusao falsa, que parte de uma premissa tambem inverfdica. A mente humana Iiao possui a . passividade de um espelho, nem a linguagem e uma mera rela;ao de coisas. ~ mente do homem e uma das formas de sua atividade, talvez a pnmordial. Com ela o homem busca organizar o meio 'fisico, numa atividade de signific{lfao. E para tanto vale-se da linguagem. A linguagem, assim, nao euma c6pia do real, mas antes uma orga- niz(Jfao dJJ mesmo. Na realidade, para o homem, o real e aquila que cle organiza. 46 0 real e aquila que tomamos significativo, atraves do processo lingiiistico. Tanto a linguagem nao e uma sim- ples listagem do mundo, que para aprender-se uma lingua estra.ngeira nao basta que aprendamos apenas 0 seu vocabulano. ~ necessaria que se venha a conhecer a sua.estrutura, o esplrito que rege a sua articu la ~ao. E isto e derivado da maneira como o povo que a fala interpreta e sente o mundo - e derivado dos valores da comuni- dade. 46 0 ditado italiano traduttore, traditore (tradutor, traidor) significa precisamente a impossibilidade de se verter litera/mente uma lingua a outra. ~ sempre necessaria, nas tradu;oes, adaptar-se o original ao sentimento da outra lingua. Portanto, atraves da lingua- gem o homem nao reduplica, mas acrescenta alguma coisa ao mun- do: ac..tescenta-lhe um sentido, uma ordem. Neste sentido, o ideal da objetividade pura, buscada pela ciencia, e, em ultima analise, uma utopia. Porque ao observarmos qualquer evento, este nao esta apenas se refletindo em nosso espelho mental. 0 simples fato de selecionarmos um evento e nao outro, para exercermos nossa obser- va;ao, ja implica um ato de organiza~ao humana. E depois, a inter- preta~ao do fato se derivara das verdades que construi'mos. Verda- 45. Rubem ALVES, Notas introdut6rias sobre a linguagem, lqc. cit., p. 29. 46. Ibid. I • .. .... . des que, como ja foi dito, sao produtos de nossos valores e de nossa linguagem. Quando, em linguagem cientffica, se fala dos dados que se obtem numa pesquisa, este ter~o, na realidade, e mal empregado. Porque as coisas nao nos sao dadas, mas sim por n6s constituldas - sao banhadas na foote de toda significa~ao: a linguagem. Como observa Robert K. Merton, 47 ••• a despeito da etimologia do termo OS dados nao sao dados mas construfdos . ... Ao Iongo desta nossa exposi~ao evitamos empregar.uma pala- vra que, no entanto, se refere ao fenomeno que subjaz a estas consi- dera~oes t.odas a respeito do homem. Trata-se da imagina~ao. Orde- nar o mundo numa estrutura significativa, atraves da linguagem, pressupoe-na. A propria linguagem - um sistema de si'mbolos - se desenvolve em intima associa~ao com a imagina~ao. Como ja foi dito, em primeiro Iugar nossa linguagem ordena a percep~ao que temos do mundo exterior, fragmentando o que seria uma massa ca6tica de estimulos', em unidades e grupos, eventos e cadeias de eventos, coisas e rela;oes. Mas o processo de fragmentar nossa experiencia sensoria dessa maneira, tornando a realidade concebivel, memoravel, as vezes ate previsivel, e um processo da imagina~ao . A concep~ao primitiva e imagina~ao. Linguagem e imagina~ao desen- volvem-se conjuntamente num regime de tutelagem reciproca. 48 Quando temos consciencia, atraves da palavra (por exemplo, Chi- na), de espa;os outros que nao aquele ao nosso redor, estamos imaginando. Quando planejamos o nosso futuro - mesmo o mais imediato, como: sair de casa, apanhar o onibus, descer na porta do cinema, entrar e assistir a urn filme - n6s o fazemos atraves da imagina~ao. Utilizando-nos de uma expressao de Sartre, podemos dizer que imaginar e visar o mundo, ou certos objetos do mundo, no modo da ausencia.49 0 tra;o fundamental, distintivo, do hornem e do animal e, sem duvida, a imagina~ao. Enfrentando a materiali- dade do mundo, por ela o homem cria as sig nifica~oes e projeta a sua a~iio transformadora e construtora do real. Enquanto que, por ser dela desprovido, o animal nao cria nada, simplesmente se adapta ao meio ambiente. Antes de mais nada e preciso reconhecer que a imagina~iio ea forma mais fundamental de opera~iio da consciencia humana. Os animais nao tern imagina;ao. Por isto nunca produziram arte, profetas ou valores. l$0 Precisarnos notar, no entanto, que a irnagina~ao, especiamente ap6s o advento da ciencia, vern sendo negada enquanto opera~ao basica da consciencia. Para a ciencia, em fun;ao do ideal da objeti- 47. Apud Rubem ALVES, Notas introdutQ[ias sobre a linguagem, loc. cit., p. 31. 1 ' 48. Susanne· K. LANGER, Ensaios fi/os6ficos, p. 88-89. 49. Andre DARTIGUES, 0 que e fenomenologia?, p. 103. SO. Rubem ALVES, 0 enigma da religilio, p. 151 (grifos nossos). . 41 Document shared on www.docsity.com
  • 24. vidade, a mente-espelho e a forma mais segura do conhecimento. A mente que reduplica o real, que o reflete sem nele acrescentar nada, esta e a que produz o conhecimento objetivo. Ora, tomar tal pressuposto, ao pe da letra, e incorrer no erro do objetivismo, como dizia Husser!. Buscar um certo distanciamento dos fatos, para urn melhor conhecimento deles, e licito e valido, nas constru~oes cientf- ficas. Porem, a partir daf pressupor a mente humana ideal. como um espelho, e negar ao homem sua caracteristica fundamental de humanidade: a imagina~ao (e a sua concretiza~ao, no mundo, atraves de uma praxis significante e transformadora). A propria ciencia, com stias constru~oes normativas, entre as quais a busca da objetividade, e produto da imagina~ao humana. Referindo-se a este objetivismo de que falamos acima, diz Rubem Alves: 111 Ao ideal epistemo16gico de objetividade, assim, corresponde a exigencia de que a imaginac;ao seja eliminada, como origem das perturba96es no processo de conhecer o mundo. Este mesmo ideal foi transplantado para o campo da psicologia. Freud define o neur6tico como aquele q~e troca a realidade pela imagina;ao. Mas a realidade, como VIemOS demonstrando, e justamente aquila que a imagina~aO humana constr6i, ao ordenar o mundo. Desta forma, no processo de conhecer o mundo esta sempre implicita nossa imaginac;ao. Estou sugerindo, como nosso ponto de partida, que nao po- demos pressupor que a imagina~ao se oponha ao conhecimento do real. Nao posso classifica-Ia nem como fonte de erros cognitiv9s e nem como raiz de nossas neuroses. Fazer isto seria equivalente a admi- .tir que a evoluc;ao cometeu urn erro fatal, na transi9ao do macaco nu para 0 homem. - porque OS animais nao tern imagina~ao. Acei- temos, portanto, a imagina~ao como urn dado primario da experien- cia humana. :£ deste fato primordial, irredutivel, teimosamente em- pfrico, que temos de partir. 112 Gendlin considera o indivfduo criativo como aquele que observa seu experiencing (seu irrefletido, sua corrente de sentimentos) e busca sfmbolos e conceitos para expressa-lo. Ou seja: como aquele que procura criar significados para as suas experiencias. Neste ato de criagao impoe-se a ima- gina~ao. De maneira inversa, quando se nos apresentam novas conceitos, novas significados, eles somente serao apreendidos e aprendidos quando buscamos em nossas experiencias aquelas viven- cias que eles visam representar. Novamente trata-se de uma opera~ao da imagina~ao: criar pontos de ancoragem no experiencing para os novas significados. Pensar e relacionar conceitos, relacionando, con- seqiientemente, os sentimentos em que eles se ancoram. Pensando, imaginamos novas rela~ .oes. Como ja cantou o compositor. (Lupi- 51. Rubem ALVES, 0 enigma da re/igiiio, p. 16. 52. Ibid., p. 18. 42 I ,.. ,, clnio Rodrigues): 0 pensamento parece uma coisa a-toa I Mas como e que a gente voa I Quando come~a a pensar... A imagi- na!(ao e 0 voo humano, desde a facticidade bruta onde estao presos os animais, ate a constru~ao de urn universo significativo. ,Portanto, podemos concluir que o ato do conhecimento e da aprendizagem e, em sua essencia, dirigido e orientado pela imagina~iio. 43 Document shared on www.docsity.com
  • 25. --' · ' CAPlTULO II CONCRETIZA{)AO E TRANSMISSAO DOS . SIGNIFICADOS: CULTURA E EDUCAQAO A musica que me faz iir ou chorar, o alimento que me apetece ou me e indigesto, a caricia que alegra ou me ·entristece: tudo isso esta relacionado as minhas pr6prias raizes culturais, as minhas aspira~oes e aquelas formas especllicas de entender e sentir a .vida, que sao peculiares a cultura a qual perten~o . (Rubem Alves, Hijos del manana, p. 200.) Se admitirmos· que compreender seja inventarl' ·ou re- construir por inven~ao (Piaget), cre1o que nao podemos aceitar sem mais que o educador se converta nesse perso- nagem tendo por fun~ao adaptar o educando ao meio social em .que ele vive. (Hilton Japiassu, 0 mito da naturalidade cientlfica, p. 150.) Voce ireqiientou a melhor escola, senhorita Solitaria, Mas sabe que a unica coisa que Ia conseguiu Foi a merenda . . . (Bob Dylan.) 1. 0 Jogo da Cultura Frente a vida o homem se pergunta acerca do wl,lor que as coisas tern para StJa sobrevivencia. Tal valor e expresso e adquire significa;ao basicamente atraves da linguagem que eli- emprega. A linguagem organiza o mundo percebido numa estrutura significativa, onde a Qfiio pode ser orientada de maneira eficaz. Como vimos, todo organismo, por mais inferior, carece de uma certa orienta;ao em suas a;6es, a fim de sobreviver. Comportamentos erniticos sao subs- tituidos por comportamentos ordenados, adquiridos por terem se· mostrado uteis a manuten;ao da vida. A ordena;ao do comporta- mento animal advem primordialmente de seus instintos e de ·sua 45 Document shared on www.docsity.com