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Para que caminhar?
(Luiz Lyrio)
- Mestre, - perguntou o astuto e curioso discípulo - quantos corpos celestes existem no
universo?
- Ora, meu pupilo, - respondeu prontamenteo Mestre - para saberes a resposta a esta
pergunta, basta que pegues o número que expressa o tamanho do universo, o eleves à
576a potência, subtraias do resultado 1 675 897 567, dividas o resultado que obtiver por
2 456 789 654 567, somes mais um e tires a raiz cúbica do resultado.
- Mas Mestre, sinto-me plenamente preparado para fazer estes cálculos. Porém falta-me
um dado semo qual não chegarei a lugar nenhum: Qual é o número que expressa o
tamanho do universo?
- Ora, meu discípulo, - respondeu irritado o Mestre - assim não é possível!Queres tudo
mastigado!... Vai, mede o universo, faz os cálculos e terás a resposta que procuras!...
- Mestre, - Resolveu mudar de assunto o discípulo - Devido ao formato da Terra, seeu
caminhar sempre na mesma direção, acabarei retornando ao mesmo lugar onde iniciei
minha jornada...
- Sim, meu querido discípulo. - Interrompeu o Mestre.
- Então, respeitado Mestre, para que caminhar?
O Mestrerefletiu um pouco e respondeu:
- Meu jovemaluno, já há muitos anos, sou Mestre de aprendizes e creio que, de tanto
responder apenas a perguntas medíocres feitas por meus pupilos, desacostumei-mede
pensar em grandes questões como esta que me colocas. Assim sendo, aconselho-te a
buscar resposta para esta dúvida importantíssima com o Mestredos Mestres, senhor já
acostumado a conviver somente com Mestres, portanto, mais preparado para responder
satisfatoriamenteao teu questionamento..
O discípulo foi, então, procurar o Mestre dos Mestres. Encontrando-o, colocou sua
dúvida para ele, e o Mestre dos Mestres respondeu-lhe, após meditar um pouco:
- Meu caro discípulo, acostumado que estou em discutir questões menores com Mestres
que convivemdiariamente com aprendizes medíocres, também não me sinto preparado
para responder questão de tal importância. Assim, aconselho-tea procurar o Mestre dos
Mestres dos Mestres, este simcom o pensamento voltado para resolver as grandes
questões que preocupama humanidade, como essa que tu me colocas.
O pupilo, então, foi procurar o Mestredos Mestres dos Mestres. Ao chegar ao imponente
castelo do Senhor dos Senhores da Sabedoria, bateu numa enorme porta de cedro e
abriu-a um velho de barbas longas que iam até à altura do seu púbis. O velho olhou o
aprendiz, reconheceu suas vestes e o inquiriu comseveridade:
- O que um reles aluno vem fazer em minha humilde casa? Por acaso, não sabes que só
atendo e converso comos Mestres dos Mestres?
- Mas senhor, - falou quasesussurrando o discípulo - foi um Mestre dos Mestres que aqui
me mandou para que eu expusessepara o senhor a minha dúvida...
- Estes Mestres dos Mestres!... - resmungou o velho, depois voltando ao seu tom normal
de voz - Então, fale logo! Não tenho tempo a perder!
- É o seguinte, meu senhor, se eu caminhar sempre na mesma direção, devido à forma da
Terra, um dia, acabarei voltando ao mesmo lugar em que comecei minha jornada...
- Claro... - confirmou o velho.
- Então, Senhor Mestre dos Mestres dos Mestres, para que caminhar?
O velho pensou um pouco, levantou a extremidade da barba, coçou-se, e voltou à sua
habitual irritação:
- Ora, rapaz!Comquem pensas queestás falando? Sou o Mestre dos Mestres dos
Mestres!Não posso me ocupar com questiúnculas de menor importância! Qualquer um
pode responder a uma questão tão simples!...
- Mas senhor...- Tentou insistir o pupilo.
- Faz o caminho de volta! Vai até o Mestre dos Mestres e diz o que te falei. Tenho certeza
que ele terá resposta satisfatória para a tua dúvida.
O aprendiz procurou, então, de novo, o Mestre dos Mestres e lhe relatou a conversa que
tivera com o seu superior. O Mestredos Mestres pediu, então, ao pupilo, que lhe
recolocassea questão e o discípulo assim o fez. Ao final da fala do jovem, o Mestre dos
Mestres respondeu:
- O Senhor dos Senhores da Sabedoria tem razão!Acho que não prestei atenção, quando
me colocaste a questão pela primeira vez. Esta, realmente, é uma questiúncula de menor
importância. Sou um Mestre dos Mestres!Minha função é atender e preparar os Mestres
para o trabalho com seus pupilos e não ficar respondendo questões menores colocadas
por alunos. Se queres uma resposta quete satisfaça, vaiprocurar teu mestre!
A contragosto, porémobediente, o pupilo foi novamenteprocurar seu Mestre e lhe
relatou o resultado de suas conversas com o Mestre dos Mestres e com o Mestredos
Mestres dos Mestres. Após ouvi-lo atentamente, o Mestre disseao seu aluno:
- Meus superiores têmrazão. Acho que não escutei com atenção a dúvida que me
colocaste. Pensando bem, esta é uma questiúncula que não oferece o mínimo de
dificuldade para ser respondida. Não é coisa da qual um Mestre deva se ocupar.
Qualquer aluno tem resposta para esta questão. Não vou perder tempo com isso!
Pergunta a qualquer um de seus iguais e ele mesmo responderá a esta tua duvidazinha
insignificante!...
O aprendiz sentiu dentro de si fortedose de impaciência e irritação, Porém não deixou
transparecer estes sentimentos para seu Mestre e foi procurar seus colegas. Quando
esteve com seus iguais, todos lhe deram a mesma resposta:
- Ora, nosso Mestre, o Mestredos Mestres e o Mestre dos Mestres dos Mestres têm toda
a razão!Você não precisa nem da nossa ajuda para encontrar solução para esta dúvida
insignificante. Procurevocêmesmo e encontrará sua resposta!
Bastante aborrecido, o aprendiz arrancou suas vestes, sentou-seem uma pedra e jurou
para si mesmo nunca mais abrir a boca para secomunicar comoutro ser humano.
Prometeu também jamais dar um passo sequer em qualquer direção.
Daí a alguns dias, um escultor passou pelo pupilo, achou interessanteaquele jovemnu
sentado naquela pedra e resolveu usá-lo como modelo. Após dias de trabalho em que
tentou falar com aquele jovemsem obter nenhuma resposta, o artista concluiu que
estava diante de uma pessoa que só pensava e nada mais fazia. Assim, o escultor
resolveu colocar em sua obra a denominação "O Pensador".
Passado algumtempo, o artista voltou ao local onde se encontrava sua obra para
transportá-la numa carroçaaté seu atelier e não encontrou mais aquele homem que
usara como modelo. No chão, no meio do pó que deixara cair durante seu trabalho, o
escultor encontrou uma inscrição: "Agora seipara que caminhar...".
O artista não entendeu bulhufas daquela estranha declaração e resolveu não dar mínima
importância a ela.
O discípulo saiu andando pelo mundo, não tendo nunca retornado ao seu ponto de
partida porquedescobriu que deveria, de vez em quando, para não acabar retornando ao
ponto de início de sua jornada, mudar a direção de sua caminhada.

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Para que caminhar

  • 1. Para que caminhar? (Luiz Lyrio) - Mestre, - perguntou o astuto e curioso discípulo - quantos corpos celestes existem no universo? - Ora, meu pupilo, - respondeu prontamenteo Mestre - para saberes a resposta a esta pergunta, basta que pegues o número que expressa o tamanho do universo, o eleves à 576a potência, subtraias do resultado 1 675 897 567, dividas o resultado que obtiver por 2 456 789 654 567, somes mais um e tires a raiz cúbica do resultado. - Mas Mestre, sinto-me plenamente preparado para fazer estes cálculos. Porém falta-me um dado semo qual não chegarei a lugar nenhum: Qual é o número que expressa o tamanho do universo? - Ora, meu discípulo, - respondeu irritado o Mestre - assim não é possível!Queres tudo mastigado!... Vai, mede o universo, faz os cálculos e terás a resposta que procuras!... - Mestre, - Resolveu mudar de assunto o discípulo - Devido ao formato da Terra, seeu caminhar sempre na mesma direção, acabarei retornando ao mesmo lugar onde iniciei minha jornada... - Sim, meu querido discípulo. - Interrompeu o Mestre. - Então, respeitado Mestre, para que caminhar? O Mestrerefletiu um pouco e respondeu: - Meu jovemaluno, já há muitos anos, sou Mestre de aprendizes e creio que, de tanto responder apenas a perguntas medíocres feitas por meus pupilos, desacostumei-mede pensar em grandes questões como esta que me colocas. Assim sendo, aconselho-te a buscar resposta para esta dúvida importantíssima com o Mestredos Mestres, senhor já acostumado a conviver somente com Mestres, portanto, mais preparado para responder satisfatoriamenteao teu questionamento.. O discípulo foi, então, procurar o Mestre dos Mestres. Encontrando-o, colocou sua dúvida para ele, e o Mestre dos Mestres respondeu-lhe, após meditar um pouco: - Meu caro discípulo, acostumado que estou em discutir questões menores com Mestres que convivemdiariamente com aprendizes medíocres, também não me sinto preparado para responder questão de tal importância. Assim, aconselho-tea procurar o Mestre dos
  • 2. Mestres dos Mestres, este simcom o pensamento voltado para resolver as grandes questões que preocupama humanidade, como essa que tu me colocas. O pupilo, então, foi procurar o Mestredos Mestres dos Mestres. Ao chegar ao imponente castelo do Senhor dos Senhores da Sabedoria, bateu numa enorme porta de cedro e abriu-a um velho de barbas longas que iam até à altura do seu púbis. O velho olhou o aprendiz, reconheceu suas vestes e o inquiriu comseveridade: - O que um reles aluno vem fazer em minha humilde casa? Por acaso, não sabes que só atendo e converso comos Mestres dos Mestres? - Mas senhor, - falou quasesussurrando o discípulo - foi um Mestre dos Mestres que aqui me mandou para que eu expusessepara o senhor a minha dúvida... - Estes Mestres dos Mestres!... - resmungou o velho, depois voltando ao seu tom normal de voz - Então, fale logo! Não tenho tempo a perder! - É o seguinte, meu senhor, se eu caminhar sempre na mesma direção, devido à forma da Terra, um dia, acabarei voltando ao mesmo lugar em que comecei minha jornada... - Claro... - confirmou o velho. - Então, Senhor Mestre dos Mestres dos Mestres, para que caminhar? O velho pensou um pouco, levantou a extremidade da barba, coçou-se, e voltou à sua habitual irritação: - Ora, rapaz!Comquem pensas queestás falando? Sou o Mestre dos Mestres dos Mestres!Não posso me ocupar com questiúnculas de menor importância! Qualquer um pode responder a uma questão tão simples!... - Mas senhor...- Tentou insistir o pupilo. - Faz o caminho de volta! Vai até o Mestre dos Mestres e diz o que te falei. Tenho certeza que ele terá resposta satisfatória para a tua dúvida. O aprendiz procurou, então, de novo, o Mestre dos Mestres e lhe relatou a conversa que tivera com o seu superior. O Mestredos Mestres pediu, então, ao pupilo, que lhe recolocassea questão e o discípulo assim o fez. Ao final da fala do jovem, o Mestre dos Mestres respondeu: - O Senhor dos Senhores da Sabedoria tem razão!Acho que não prestei atenção, quando me colocaste a questão pela primeira vez. Esta, realmente, é uma questiúncula de menor
  • 3. importância. Sou um Mestre dos Mestres!Minha função é atender e preparar os Mestres para o trabalho com seus pupilos e não ficar respondendo questões menores colocadas por alunos. Se queres uma resposta quete satisfaça, vaiprocurar teu mestre! A contragosto, porémobediente, o pupilo foi novamenteprocurar seu Mestre e lhe relatou o resultado de suas conversas com o Mestre dos Mestres e com o Mestredos Mestres dos Mestres. Após ouvi-lo atentamente, o Mestre disseao seu aluno: - Meus superiores têmrazão. Acho que não escutei com atenção a dúvida que me colocaste. Pensando bem, esta é uma questiúncula que não oferece o mínimo de dificuldade para ser respondida. Não é coisa da qual um Mestre deva se ocupar. Qualquer aluno tem resposta para esta questão. Não vou perder tempo com isso! Pergunta a qualquer um de seus iguais e ele mesmo responderá a esta tua duvidazinha insignificante!... O aprendiz sentiu dentro de si fortedose de impaciência e irritação, Porém não deixou transparecer estes sentimentos para seu Mestre e foi procurar seus colegas. Quando esteve com seus iguais, todos lhe deram a mesma resposta: - Ora, nosso Mestre, o Mestredos Mestres e o Mestre dos Mestres dos Mestres têm toda a razão!Você não precisa nem da nossa ajuda para encontrar solução para esta dúvida insignificante. Procurevocêmesmo e encontrará sua resposta! Bastante aborrecido, o aprendiz arrancou suas vestes, sentou-seem uma pedra e jurou para si mesmo nunca mais abrir a boca para secomunicar comoutro ser humano. Prometeu também jamais dar um passo sequer em qualquer direção. Daí a alguns dias, um escultor passou pelo pupilo, achou interessanteaquele jovemnu sentado naquela pedra e resolveu usá-lo como modelo. Após dias de trabalho em que tentou falar com aquele jovemsem obter nenhuma resposta, o artista concluiu que estava diante de uma pessoa que só pensava e nada mais fazia. Assim, o escultor resolveu colocar em sua obra a denominação "O Pensador". Passado algumtempo, o artista voltou ao local onde se encontrava sua obra para transportá-la numa carroçaaté seu atelier e não encontrou mais aquele homem que usara como modelo. No chão, no meio do pó que deixara cair durante seu trabalho, o escultor encontrou uma inscrição: "Agora seipara que caminhar...".
  • 4. O artista não entendeu bulhufas daquela estranha declaração e resolveu não dar mínima importância a ela. O discípulo saiu andando pelo mundo, não tendo nunca retornado ao seu ponto de partida porquedescobriu que deveria, de vez em quando, para não acabar retornando ao ponto de início de sua jornada, mudar a direção de sua caminhada.