João Garcia tem como objectivo escalar até 2010 todas as 14 montanhas do mundo com mais de 8000 metros. Em 2007 escalou o K2, somando o seu nono "oito mil". Pretende ainda conquistar o Makalu, Manaslu, Annapurna, Broad Peak e Nanga Parbat para completar o projecto "À Conquista dos Picos do Mundo".
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Cho Oyu (8201m), Dhaulagiri (8167m), Evereste (8848m), Gasherbrum II Gasherbrum I
1993 1994 1999 (8035m), 2001 (8068m), 2004
Foi uma estreia em grande. O Novamente com polacos O povo costuma dizer que à Um pé à frente do outro. Meses Três anos depois, o regresso
Cho Oyu é considerado o mais por companhia, João Garcia terceira é de vez e o aforismo de agonia no hospital, um lento ao Paquistão, novamente com
fácil dos “oito mil” e muitos avança para um dos “oito mil” confirmou-se para João Garcia processo de recuperação e companheiros belgas, para
alpinistas arriscam nesta tecnicamente mais exigentes. no Evereste. Mas a que preço... adaptação às limitações físicas. o GI, que partilha o campo-
montanha nepalesa os seus O único em território nepalês Após duas expedições (em 1997 Mas boas notícias, apesar de base com o GII. O teste a oito
primeiros passos na zona que não fica sobre a fronteira, e 1998) sem atingir o cume, o tudo. Pirenéus, Alpes, Andes, o mil metros correra bem ali ao
da morte. Mas João Garcia, começou muito cedo a ser português avança agora como corpo respondia bem, João Garcia lado, mas entre 2001 e 2004
integrado numa expedição explorado pelos ocidentais, mas organizador, aliado ao seu amigo percebeu que podia continuar João dispersou-se por vários
polaca liderada pelo mítico foi o penúltimo dos 14 gigantes a e parceiro de escalada belga a fazer aquilo de que realmente objectivos: pensou escalar os
Krzysztof Wielicky, escalou a ser escalado (o Shisha Pangma, Pascal Debrouwer. A 18 de Maio gostava: escalar montanhas. Mas cumes mais altos de cada um dos
montanha por uma via inédita, no Tibete, foi o último, porque os de 1999 os dois pisam o tecto do para encontrar os limites era sete continentes (incluindo uma
diferente da normal. Durante a chineses o “reservaram”). Após mundo. Garcia chegou primeiro preciso voltar aos 8000 metros. viagem à Antárctida), dedicou-
expedição foi-lhe detectado um uma escalada sem incidentes de e esperou, muito, por Pascal. Integrado numa expedição belga, se a organizar expedições
quisto com infecção num dente. maior, Garcia e Piotr Pustelnik Toda esta demora fá-los pagar Garcia reencontra a motivação e portuguesas a picos dos
Aconselharam-lhe o regresso alcançam o cume. No seu livro um preço terrível. Apanhados as qualidades que o colocam na Himalaias. A 28 de Julho, outra
a casa, mas ele sentia que A Mais Alta Solidão o alpinista pela noite longe da tenda, João e elite mundial dos himalaístas. vez com Jean-Luc Fohal, sempre
aquela era uma oportunidade português recorda que foi nas Pascal perdem-se um do outro. Chega ao cume no dia 4 de Julho, sem oxigénio nem carregadores
única na vida e tinha contado vertentes do Dhaulagiri que, O belga morre ao cair num com o belga Jean-Luc Fohal. de altitude, João Garcia conquista
os tostões para poder ir. Pegou por causa de um desfalecimento precipício, o português salva-se Mas a tragédia volta a espreitar: o seu quinto “oito mil”. Começava
num canivete suíço com alicate, momentâneo, percebeu pela à justa, mas com queimaduras de dias antes, um dos elementos da um ciclo de expedições bem
encharcou-se em barbitúricos primeira vez a importância de gelo que lhe custam amputações expedição sofrera uma queda sucedidas que ainda não teve
e pediu ao médico de uma fazer uma boa aclimatação antes nos dedos das mãos e cicatrizes fatal. interrupção.
expedição italiana que lhe de avançar para as altitudes na cara.
arrancasse o dente. Doeu, mas extremas.
resultou.
João Garcia Viver a vi
O objectivo está definido: escalar, até 2010, todas as 14 montanhas do mundo com mais
de 8000 metros. João Garcia deu o primeiro passo em 1993 e acelerou nos últimos anos.
Na semana passada pisou o cume do K2 e somou o seu nono “oito mil”.
Para ele, a vida vive-se na zona da morte. Por Luís Francisco
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Lhotse (8516m), Kangchenjunga Shisha Pangma K2 (8611m), O que falta
2005 (8586m), 2006 (8013m), 2006 2007 O projecto À Conquista dos
Picos do Mundo estende-se até
Foi a primeira expedição Dois portugueses (com Garcia Depois da escalada do Lhotse, a O Evereste pode ser o mais 2010, com expedições ao Makalu
portuguesa a um “oito mil”, mas viaja desta vez Tó Zé Coelho) carreira de João Garcia acelera, alto, mas o K2 é a montanha (8463m), na próxima Primavera;
só com dois alpinistas: João partilham a licença de escalada graças à parceria estabelecida dos alpinistas. O segundo pico Manaslu (8163m), Outono de
Garcia e Hélder Santos. Em anos no mais remoto dos “oito mil” com o Millenium BCP. Assume do planeta é tecnicamente 2008; Annapurna (8091m),
anteriores, o Pumori (7120m) e com uma expedição de pesos- que o seu objectivo é escalar muito complicado e tem uma Primavera de 2009; Broad Peak
o Ama Dablam (6812m) tinham pesados. Mas as coisas correm todas as 14 montanhas no mundo meteorologia caprichosa. Com (8047m), Verão de 2009; e Nanga
criado um núcleo duro made mal de início: acometido de uma com mais de 8000 metros. No uma equipa formada à sua Parbat (8125m), Verão de 2010.
in Portugal, mas as exigências apendicite quando se encontrava Outono, aproveitando a segunda volta, João Garcia parte para Com os quatro cumes mais altos
financeira e de tempo para uma a mais de 6000m, Tó Zé Coelho época de escalada no Tibete, uma o Paquistão. Mas o sherpa já vencidos, o alpinista lisboeta
tentativa a oito mil metros são tem de ser retirado da montanha. expedição portuguesa lança-se Nuru, o filho mais velho da está lançado para se juntar ao
bem diferentes... Escalando Depois de uma descida em à conquista do mais baixo pico “família adoptiva” de Garcia por enquanto restrito número de
sozinho (Hélder ficou para sofrimento, um helicóptero deste restrito “clube”. No dia em Pangboche e que seria o homens (não há mulheres) que
trás com problemas de saúde) transporta os dois portugueses 31 de Outubro, João Garcia, Rui mais directo colaborador na escalaram todos os “oito mil”
e em condições difíceis, João até Katmandu, onde Tó Zé é Rosado e Bruno Carvalho chegam subida, não pode ir, por ter sido – apesar de haver vários prestes
atinge o cume a 21 de Maio. Ali operado. Garcia volta à escalada, ao cume do Shisha Pangma, atropelado (fracturou uma perna) a concluir a tarefa, por enquanto
ao lado, à luz dos relâmpagos, mas, com a aclimatação atrasada, Bruno (que se atrasara) morre em Katmandu. Face à dificuldade a lista inclui apenas 14 nomes.
a silhueta do Evereste recorda- não consegue acompanhar os na descida. O pai do alpinista da ascensão, estabelece-se A missão é tudo menos fácil.
lhe a tragédia de 1999. É uma parceiros de expedição no dia de reage mal, diz que o filho foi uma notável colaboração entre Cada uma destas montanhas
jornada emocional, que inspira cume. A 22 de Maio, no entanto, abandonado. Os outros membros todas as expedições presentes representa um desafio extremo
João Garcia a escrever um novo alia-se ao equatoriano Ivan da expedição refutam as na via de escalada do esporão e algumas das que ainda faltam
livro, Mais Além, onde relata o seu Vallejo e os dois pisam o terceiro acusações. É o fim do dream team Abruzzi. A 20 de Julho, na única são ossos bem duros de roer. O
trajecto depois do hospital e das pico mais alto do mundo. luso na alta montanha. janela de bom tempo permitida Annapurna, por exemplo, exibe
amputações. pela montanha, um grupo de 17 a taxa de mortalidade mais
alpinistas alcança o cume. arrepiante entre os “oito mil”: a
relação entre os que chegam ao
cume e os que morrem ultrapassa
os 40 por cento...
da na zona da morte
a No princípio, era o desafio. na sua preparação física. Muita veículo publicitário, garante
Depois, tornou-se uma paixão. actividade em montanha e treino retorno aos patrocinadores. Ele,
Agora é mesmo uma missão. Para diário de triatlo (natação, bicicleta que não cultivava propriamente
João Garcia, lisboeta, 40 anos, e corrida) são as vertentes a notoriedade, assume que esse
enfrentar o frio e vertentes que fundamentais desse trabalho. será o preço a pagar no futuro
se empinam até perder de vista Maior disponibilidade e cada para garantir os financiamentos
em altitudes onde quase não se vez mais experiência. Mas o de que precisa para se tornar um
consegue respirar não é matéria caminho foi difícil. O jovem verdadeiro profissional da alta
de pesadelo. É o seu sonho. Ele entusiasta do início dos anos 1990 montanha.
nasceu para escalar montanhas. transformou-se num improvável Escreve outro livro, onde relata
Quaisquer dúvidas que tivesse herói nacional após a conquista o trajecto da cama de hospital
sobre isso já as perdeu ao longo do Evereste, em 1999, quando após o Evereste até ao regresso
de uma carreira que o levou ao escapou à morte mas sofreu aos 8000 metros. Continua a
objectivo supremo: juntar-se ao lesões irreversíveis. Muitas portas vender bem. Por esta altura, até
restrito número de alpinistas abriram-se-lhe nessa altura. já campanhas de publicidade
que escalaram todos os 14 picos Por ironia, numa fase em que o faz na televisão. É uma figura
do planeta com mais de 8000 próprio Garcia se viu forçado a pública. Que reforça o seu
metros. encarar a possibilidade de ter de carisma a cada nova proeza nos
A parceria que estabeleceu, deixar de escalar. cumes das maiores montanhas do
em 2005, com o Millenium BCP Não foi assim. Com amputações mundo, onde se respira apenas
permitiu-lhe assumir a tarefa em todos os dedos das duas mãos um terço do oxigénio disponível
com a segurança de quem já e cicatrizes no rosto, regressa à ao nível do mar e o frio, o vento,
não precisa de se preocupar montanha e percebe que, nas suas o cansaço e os perigos da
com as questões de orçamento. palavras, “o jogo era o mesmo, escalada esbatem as fronteiras
Para ele, habituado a ginásticas só as regras tinham mudado”. da vida. Nesta paragens,
complicadas para financiar as Relata em livro a sua odisseia no a sobrevivência humana
suas expedições à alta montanha, Evereste, vende mais de 30.000 cronometra-se ao minuto. Mas
isso representou a possibilidade exemplares. Dá entrevistas, é aí, na zona da morte, que João
de se concentrar a cem por aparece em programas de Garcia encontra as suas mais
cento nas questões logísticas e televisão, torna-se um bom fortes razões para existir.