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Personalidade
NormalePatológica
Prezado Leitor
Este livro traz algumas páginas impressas em fundo vermelho. Tal artifício visa a evitar a xerografia criminosa
que, além de atentar contra os direitos do autor, inibe toda iniciativa editorial, trazendo como consequência o
prejuízo do próprio leitor, cujo acesso a novas obras ficará, assim, cada vez mais restrito.
Nosso procedimento conta com a aprovação da ABEAS (Asso- ciação Brasileira dos Editores na Área da
Saúde), que, desde a sua fundação, tem chamado a atenção para a situação alarmante aque nos conduziu esse
tipodeatividade,cadavez maissistemática.
Esperamos contar com a sua compreensão diante desse incon- veniente, que contraria nossos padrões
editoriais; porém enfatizamos que foi a única solução encontrada para podermos continuar servindo à ciência e à
cultura deste País.
EDITORA ARTES MÉDICAS SUL LTDA.
8496p Bergeret,Jean
A personalidade normal e patológica I Jean
Bergeret; trad.Alceu Edir Fillmann- Porto Alegre: Artes Médicas,1988.
291p.
CDU: 159.97
Índices para o catálogo sistemático:
Psicopatologia 159:97
Fichacatalográficaelaborada pela bibl.Carla P.de M.PiresCRB10/753
JEAN BERGERET
Personalidade
Normal ePatológica
Tradução:
ALCEU EDIR FILLMANN
Psicólogo eMédico
2ª EDIÇÃO
PORTO ALEGRE / 1991
Obra originalmente publicada em francês sob o titulo
La personalité normale et pathologique
© Premiére édition BORDAS, Paris, 1974.
Capa:
Mário Rõnhelt
Supervisáo editorial:
Rua13de Maio, 468- Fone: (054) 222.6223
95080- Caxias do Sul- RS
Reservados todos os direitos de publicação à
EDITORA ARTES MÉDICAS SUL LTDA
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Sumário
Introdução ...........................................................................................................................................................................9
Primeira Parte
HIPÓTESES SOBRE AS ESTRUTURAS DA PERSONALIDADE
Histórico .....................................................................................................................................................................15
1. ESTRUTURASENORMALIDADE
1. A noção de normalidade........................................................................................................................................19
2. Patologia e normalidade ........................................................................................................................................24
3. A normalidade patológica ......................................................................................................................................30
4. "Normalidade" e padronização ......................................................................................................................................36
5. Édipo e "normalidade" .................................................................................................................................................39
2. A NOÇÃO DE ESTRUTURA DA PERSONALIDADE 45
1. O sentido dos termos 45
A)Sintoma............................................................................................................................................................45
B) Defesa ..........................................................................................................................................................46
C) Significação histórica do episódio ........................................................................................................................47
D) Doença mental.......................................................................................................................................................49
E) Estrutura da personalidade.................................................................................................................................49
2. O conceito de estrutura da personalidade .• 50
A) Definição e situação . .••.. 50
B) O ponto de vista freudiano .. 51
a) Primeira posição freudiana 53
b) Segunda posição de Freud 53
c) Terceira posição freudiana 54
d) Quarta posição freudiana . 54
C) Gênese da estrutura de base • 55
a) Primeira etapa 55
b) Segunda etapa •.••••. 55
c) Terceira etapa .•••• ••••. •••.• 56
D) Consideraçõesacercadasestruturasnotocanteàinfância,latênciaeadoles·
cência . • . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . • • . . . . . . . . . . . . . . . • . . 57
3. AS GRANDES ESTRUTURAS DE BASE
1. Alinhagemestruturalpsicótica ..
A) Aestruturaesquizofrênica ••.
B) A estrutura paranóica •
C) A estruturamelancólica .••••.
D) Reflexões diferenciais .... • •.
2. A linhagem estrutural neurótica
A) A estrutura obsessiva ........
B) A estrutura histérica . . . ......
a) A estrutura histérica de angústia
b) A estrutura histérica de conversão
C) Reflexões diferenciai s
D) As falsas "neuroses"
65
68
75
77
81
84
99
103
107
109
111
115
118
4. AS ANESTRUTURAÇÕES •.
1. Situação nosológica • ••.
2. O tronco comum dos estados limltrofes
3. A organização limltrofe •••••••.
A) O ego anaclltico •••••• •• ..
B) A relação de objeto anaclltica • •
C) A angústiadepressiva •.•••.•
D) As instâncias ideais .• •••.••
E) Osmecanismosdedefesa ••••
4. Evoluções agudas •••.•.•••.• •
A) Descompensação da senescência •
B) Rompimento do tronco comum .
5. Ordenamentosespontâneos •••••
A) Oordenamentoperverso ...
B) Os ordenamentos caracteriais
a) "Neurose" decaráter ...
b) As "psicoses" de caráter .
c) As "perversões" de caráter
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129
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132
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153
154
154
155
rico 159
5. O CARÁTER 167
1. Os caracteres neuróticos • • • • • • • • ••••••••••. 169
B) O caráter histerofóbico ••.. • •••••.••••••••. 174
C) O caráter obsessivo •.•.•• 178
2. Os caracteres psicóticos •••••• 186
A) O caráter esquizofrênico 187
B) O caráter paranóico . 191
3. Os caracteres narcisistas . 197
A) O caráter abandônico . 198
B) O caráter de destinado 199
C) O caráter fóbico-narcisista 199
D) O caráterfálico ..•••.•••.•• 200
E) O caráterdepressivo •.• 201
F) O caráter hipocondr!aco • 201
G) Ocaráterpsicastênico .. 202
H) O caráter psicopático . . 202
I) O caráter hipomaniaco . 203
Segunda parte
HIPÓTESE SOBRE OS PROBLEMAS DO CARÁTER
A) O caráter histérico de conversão ••••••••••••..•. 170
4. Os caracteres psicossomáticos . . . . . . • • . . • • • • • . . . . . . . • . • • • . . • 204 5. O caráter perverso • • • . . . • • • . . • . . • •
• • • • • • • • • • • . . • • • . • • • . 209
6. Observações acerca dos problemas do caráter da criança • . • • • • • • • • • • 211
7. Existe um "caráter epilético"? • • • . • • • • • . • • . • . . . • • • • • • • . . • . 213
6. OS TRAÇOS DO CARÁTER .. 216
1. Traços de caráter estruturais 220
A) Os traços de caráter neuróticos . • • • • • • • • 220
a) Os traços de caráter histéricos . . • • • • . • • . • . • • • • • • • . • . • • 221
b) Os traços de caráter obsessivos • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • • . 221
B) Os traços de caráter psicóticos • • • • • • • • • • • • • . . • • • • • • • • 221
a) Os traços de caráter esquizofrênicos • • . • . • • • • . • . • • • • • • . 221
b) Os traços de caráter paranóicos • • • . . • • • • • • • • • • • • • • • • . • . . 222
C) Os traços de caráter narcisistas • • • • • • • . . • • . . • • • • • • • • . • • • • • 222
2. Traços de caráter pulsionais • • • • • • • • • • • • • • • • • • . . . • . • • • . • • . • 223
A) Traços de caráter libidinais • • • • • • • • • . • . • . • . • • . • . • • . 224
a) Traços de caráter orais • • . . • • • . • • • • • • • • • • • • • • • • 224
b) Traços de caráter anais . • • • • • . . • • • • . . 226
c) Traços de caráter uretrais
d) Traços de caráter fálicos
e) Traços de caráter genitais
B) Traços de caráter agressivos
a) Traços de caráter sádicos
b) Traços de caráter masoquistas
c) Traços de caráter autopunitivos
C) Traços de caráter dependentes das pulsões do ego .
228
228
229
231
231
233
234
235
7. A PATOLOGIA DO CARÁTER • •• • • • o • o •••• •• •• ••• • o ••• •••••• o 236
1o A "neurose" de caráter o ••••• • • • o o ••••••• o •• o o o o o o o • • • • • • 240
2. A "psicose" de caráter .. o ••••• o •••••••• o o o • o o o o • o o o • o o o • 245 3. A "perversão" de caráter o ••• • • ••
••••••• • • o o •••• o o o • o • • • • • 252
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
257
263
ÍNDICE DAS FIGURAS o o o o o o o o o o o o o o o o o o o . o o o o o o o . o o o o o o o o o 283
ÍNDICE DAS OBSERVAÇÕES o o o • o o • o o o • o o o o o o o o o o o o o • o o o .. o . . 285 ÍNDICE REMISSIVO o o o . o o o o o o o o o
o o o o o o o o o o o o o o o o o o . o o o . o . o 287
Introdução
A presente obra constitui a síntese e o desenvolvimento das pesquisas que tenho empreendido desde 1963 acerca
da articulação dos fenômenos manifestos, ao nível do caráter ou dos sintomas, com os elementos metapsicológicos,
mais estáveis e profundos, situados sobre o plano menos visível e latente da estrutura da personalidade.
Muitos autores interessaram-se por aspectos fragmentários desta tr ilogia: estrutura- caráter- síntomatología.
Pareceu-me oportuno tentar uma síntese que se apoiasse sobre tão numerosos pontos de vista, e emitir hipóteses
novas, apropriadas a fazer renascer o debate sobre os problemas, um tanto negligen- ciados atualmente, da abordagem
caracterológica.
A caracterologia poderia, com efeito, ser pretensiosamente considerada como uma ciência destinada a precisar
os entrecruzamentos metapsicológicos visíveis entre as múltiplas manifestações relacionais possíveis que amenam desta
ou daquela estrutura de base. Cada tipo de estrutura profunda da perso- nalidade poderia, assim, dar origem a
diferentes modelos relacionais, uns per- manecendo no domínio caracterial, outros mergulhando mais ou menos radi-
calmente no registro patológico.
Penso ser necessário, atualmente, introduzir uma concepção sistemática que leve em conta a dinãmica e a genética
freudianas.
Muitas personalidades, com efeito, correspondem a tentativas de estrutu- ração imperfeitas ou inacabadas; encontram-
se, pois, em um bom número de casos e durante muito tempo, possibilidades, quer de mudar ainda o curso das coisas
na via estrutural, quer de deter a evolução estrutural por um período muito variável de um sujeito para outro, sobre a
base de uma simples pausa la- tencial que em si nada teria de definitivo. Podemos também observar fixações
9
sobre o modo de um frágil arranjo defensivo, muito custoso do ponto de vista econômico, porém conservando todo
tipo de capacidades evolutivas em dire- ções mais estáveis e mais sólidas.
Em suma, as personalidades nitidamente estruturada s, c orrespondendo a funcionamentos econômicos ao
mesmo tempo estáv eis e bem integrados (condições essenciais ao rótulo de "normalidade", no seio de uma
linhagem estrutural definitivamente fixada) mostram-se mais raras do que até aqui se po- deria ter pensado.
Tais personalidades somente poderiam originar-se em um contexto onto-
genético limitado, e unicamente em momentos precisos desta ontogênese. Tais condições podem, sem dúvida, encontrar-
se notavelmente esc larec idas pelas in- vestigações clínicas, cuja síntese é apresentada neste trabalho. Estas investiga- ções
devem permitir-nos a localização de critérios ao mesmo tempo muito pro- fundos e essencialmente polivalentes.
Sem dúvida, torna-se possível, assim, situar melhor muitos casos particu-
lares de personalidades ou caracteres que os antigos sistemas tipológicos, de- masiado rígidos, não permit ia m ligar
mui claramente aos principais modelos estruturais bem definidos . Par eceu-me um obj etivo a ser visado não mais
falar dos muito fáceis "tipos mist os" ( dos quais se desconhece a natureza e os níveis da "mistura"), sem compr o
missos nem concessões.
A distinção que estabeleci entre "caracteres" e "estruturas" poderá parecer
bastante artificial para alguns , uma v ez que,segundo a terminologia filosófica ou psicológica, a denominação "estrutu
ra" mais comumente recobre todo e qual- quer modo de organiza ção, seja qual for o nível: personalidade, caráter,
tipo, etc. Trata-se de um termo bast ante geral, que dificilmente poderá opor-se a outro termo que defina uma catego
ria particular dependente do mesmo conjunto.
Em psicopatologia, ao contrário, o vocábul o "estr utura" assume um senti-
do mais preciso, limitado aos elementos de base da per sona lidade, ao modo pelo qual esta personalidade é or
ganizada no plano profundo e fundamental; os psicopatologistas podem, pois, opor livremente a noção de estrutura de
base, ou estrutura da personalidade (em geral se diz simplesmente "estrutura"), tanto aos "sintomas" quanto aos
"caracteres " (o que os filósofos talvez prefeririam chamar de "estruturas dos sintomas " ou "estruturas de caráter") . Os
psicopatologistas, com efeito, ocupando-se essencia lmente do aspecto funcional destes sintomas ou caracteres,
consideram-nos como dependentes, em primeiro lugar, em sua gênese, sua originalidade e limitaç ões, da natureza
e varied ade da estrutura de base da personalidade sobre a qual repousam.
A estrutura da personalidade (ha bitualmente denominada simplesmente de "estrutura" em psicopatologia) é
concebida, pois, por u m lado, como a ba- se ideal de ordenamento estável dos ele me ntos met a ps icológicos
constantes e essenciais em um sujeito, ao passo que o c a ráter, por outr o lado, aparece como o nível de
funcionamento manifesto e não mórbido da estrutura, tal como acaba de ser definida.
Em uma ótica como esta, a sintomatologia torna -se simplesmente o modo
de funcionamento mórbido de uma estrutura quando esta se descompensa, isto
10
é, desde que os fatores internos ou externos de conflitualização não se encon- trem mais equilibrados por um jogo
eficaz (e não perturbador em si) dos varia- dos mecanismos de defesa e adaptação.
Se não desenvolvi especificamente, nem em capítulos originais,o ponto de vista sintomatológico, é porque somente
reteve minha atenção, no presente es- tudo, o lugar económico dos sintomas no conjunto de tal personalidade dada.
O exame fenomenológico dos sintomas encontra-se copiosamente condu- zido nos tratados de psiquiatria das
diversas tendências. Meu obj etivo aqui limi- ta-se a ressituar a função do sintoma em relação a estrutura de base, por um
la- do, e ao funcionamento caracterial, por outro.
É evidente que tal concepção de conjunto, essencialmente dinâmica, ape-
nas pode ser desenvolvida no contexto de uma posição e reflexão autêntica e claramente psicanalítica. Com efeito,
seguindo FREUD e os trabalhos psicanalíti- cos contemporâneos, torna-se possível compreender a estrutura, tal como
se encontra definida acima, como elemento organizador de base da personalidade, em situação ativa e relaciona I.
Escapa-se, assim, aos habituais e inevitáveis aca- valamentos entre "estruturas de personalidade", "estruturas de caráter"
e "es- truturas nosológicas", a todas as hesitações (ou mesmo contradições) encontra- das nos antigos procedimentos.
Minha pesquisa levou-me inevitavelmente a repensar, sobre estas novas bases conceptuais, o problema da normalidade.
Do ponto de vista metodológico, esforce1-me por esclarecer o debate (com os riscos certos da "sistematização")
com máximo de pranchas ou esquemas; também ative-me a inserir, nos momentos mais "teóricos" de meu texto, obser-
vações clínicas tão expressivas e vivas quanto possível, destinadas (com o risco de por vezes beirar a caricatura) a bem
definir o traço motor principal de minha pesquisa.
Minha ambição será a de que o clínico pouco propenso às reflexões teóri- cas, ou simplesmente o leitor apressado,
possam encontrar, pelo menos em um primeiro tempo, nestas observações que escolhi e desenvolvi com especial cui-
dado, o essencial do fio condutor de meu propósito.
Por falta de lugar, e para não tornar este trabalho pesado demais, nem sempre pude agrupar, sistematizar e
desenvolver, tanto quanto teria desejado, as minhas fontes de documentação e minhas reflexões críticas a este
respeito, particularmente nos parágrafos "históricos".
Não teria como exprimir todo o reconhecimento aos pesquisadores e clíni- cos que me trouxeram tantos elementos
de elaboração, em particular D. AN- ZIEU, M. BENASSY, M. FAIN, A. GREEN, R. GREENSON, B. GRUNBERGER, J.
GUILLAUMIN, O. KERNBERG, R. KNIGHT e P. C. RACAMIER.
Df.· SeJO v ivamente que minha contribuição, apesar de suas numerosas im- perfeições, possa movimentar um pouco os
quadros demasiado rígidos ou im- precisos das antigas posições estruturais ou caracterológicas, e que incite os autores
contemporâneos a ampliar ainda mais o debate, a retomar e desenvol- ver poster iores estudos fecundos nestes níveis.
11
Primeira parte
HIPÓTESES SOBRE AS ESTRUTURAS DA
PERSONALIDADE
Histórico
O termo estrutura é marcado de significações muito diversas, conforme se refira à teoria da Gestalt, às teorias
jacksonianas ou ao estruturalismo. É igual- mente, por vezes, empregado no sentido de "estrutura de conjunto",
aproxi- mando-se então do emprego do substantivo inglês "pattern".
Entretanto, na linguagem usual, a estrutura continua sendo uma noção que implica uma disposição complexa,
porém estável e precisa das partes que a compõem, é a maneira mesma pela qual um todo é composto e as partes
deste todo são arranjadas entre si.
No decorrer de minha introdução, estendi-me suficientemente quanto ao
sentido dado em psicopatologia ao termo "estrutura", para não precisar de novo justific ar aqui os limites desta
utilização ao nível da estrutura de base da perso- nalidade.
Considerarei que "constituição" e "estrutura" da personalidade represen-
tam, grosso modo, um conceito idêntico, do modo de organização permanente mais profundo do individuo, aquele a
partir do qual desenrolam-se os ordena- mentos funcionais ditos "normais", bem como os avatares da morbidade.
Afora casos em que é empregado no sentido de "temperamento" ou "ca-
ráter", o termo "tipo" refere-se habitualmente à estrutura de base, e parece não necessitar detratamento especial.
Didier ANZIEU (1965) situa no primeiro quartil do século XX o desenvol- vimento da idéia de "estrutura" e pensa
que esta noção recobre uma tomada em consideração dos sintomas segundo o método associacionista. Ora, para D.
AN- ZIEU os sintomas apenas têm sentido se ligados uns aos outros, ou em sua rela- ção com o caráter; o que fica de
especifico não é sua simples presença1, mas seu
1 Existem, por exemplo, obsessivos sem qualquer "obsessão" vis!vel exteriormente.
15
modo de disposição entre si. Ademais, é preciso ter em conta tanto sintomas "negativos", correspondentes aos déficits
registrados nos pacientes, quanto sintomas "positivos", correspondentes às reações específicas do paciente diante da
alteração de sua personalidade.
Entretanto, desde as descrições poéticas ou filosóficas que remontam à antigüidade, a vertente patológica das
estruturas sempre viu-se mais facilmente desenvolvida. Encontramos, contudo, em HOMERO, na BÍBLIA, DEMÓCRITO,
ESCULÁPIO ou PLATÃO, referências a tipos estruturais não-mórbidos. Os au- tores da Idade Média, depois
SHAKESPEARE, o classicismo literário e tantos autores mais modernos, destacaram-se na análise não apenas do
caráter, mas da estrutura de alguns de seus personagens, chegando mesmo a mostrar como podia efetuar-se a passagem
entre a esfera psicológica ainda adaptada e esfera patológica já descompensada, no seio da mesma organização mental.
A partir do século XVIII, foram os psiquiatras os que mais desenvolveram
seu ponto de vista no terreno estrutural. PINEL (1801), ESQUIROL (1838) RÉGIS (1880), na França, TUKE (1892),
MAUDSLAY (1867), JACKSON (1931), na Grã-
Bretanha, RUSH (1812) e A. MEYER (1910) nos Estados Unidos, GRIESINGER (1865), MEYNERT (1890), W ERNICKE
(1900) e KRAEPELIN (1913), em língua
alemã, foram os primeiros a referirem-se à continuidade entre o normal e a pa- tologia no seio de uma estrutura
profunda da personalidade. Sua atitude geral fundamentalmente "humanitária" embasa-se nesta convicção, mesmo que
esta nem sempre se encontre claramente expressa. Os perfodos ditos "social", depois "comunitário", da psiquiatria, não se
apresentam, no fundo, mais do que como seqüência lógica do andamento anterior: sejam quais forem os fatores desenca-
deantes ou curativos mais especificamente privilegiados por esta ou aquela es-
cola, o andamento profundo de cada uma conduziu aos poucos em direção à
idéia da não-especificidade da natureza mórbida de tal ou qual estrutura, da la- bilidade e curatividade de toda estrutura
em si. A antipsiquiatria em quase nada pôde ir além das tendências sociais ou comunitárias precedentes no plano de um
liberalismo que, voluntariamente ou não, permaneceu racional; ela nos propõe simplesmente o "salto" para fora da
lógica, mas não reverte nada de novo e na- da traz de novo, sobretudo, quanto ao problema do continuum estrutural do
qual não pode nem ouvir falar, tanto parece haver ai ficado presa ao registro da angústia.
Embora a classificação dos dados profundos tenha-se revelado uma ne-
cessidade, é preciso reconhecer que, na falta dos meios metapsicológicos que atualmente possufmos com a
contribuição de FREUD e dos pós-freudianos, as simples descrições não poderiam ser suficientes em tal domínio;
também não é de espantar a constatação de que encontramos, no domínio estrutural, muito menos hipóteses a passar
em revista do que no capítulo consagrado às caracte- rologias.
Podemos considerar, com Henry EY (1955), que a "variação mental pato- lógica" pode ser encarada segundo quatro
modelos teóricos: como alienação ra- dical, como produto dos centros cerebrais, como variação da adaptação ao meio, ou
ainda como efeito de um processo regressivo na organização psíquica. Qual-
16
_,. seja a resposta escolhida, convém compreender a condição mental,
'sódio mórbido, em uma estrutura profunda original e formal, conser-
• ce a mente, sua significação existencial e antropológica.
o que diz respeito ao ponto de vista estrutural na criança, Colette CHI-
- :::> ( 971) resumiu a opinião de muitos psiquiatras infantis contemporâneos,
ndo a particular complexidade da noção de estrutura na idade em que tu-
·
ooa não parece haver-se desenrolado, na medida em que as fases de equi-
. e descompensações podem suceder-se, sem que uma significação profun-
G3 seja sempre evidente.
A estrutura, para Colette CHILAND (1967), permanece inspirada na opinião e LÉVI-STRAUSS (1961 ), interessada
nos modelos, levando em consideração ão só os termos em si, mas as relações entre os termos. Para C. CHILAND,
trata-se de procurar a explicação estrutural, não exclusivamente ao nível do sis- t ema de relação, mas ao nível das
regras de transformação, que permitem pas- sar de um sistema a outro, tomando em consideração os sistemas reais,
tanto
quanto os sistemas simplesmente possíveis.
C. CHILAND refere-se à opinião de A. FREUD (1965) para ligar a estru- tura ao nível da segunda tópica, em
relação às pulsões, com o ego e o superego, e para fundar um eventual diagnóstico estrutural no estudo da relação de
objeto e dos mecanismos de defesa.
Antes da contribuição freudiana, havia-se visto inicialmente a proposição de classificações sintomatológicas, com
KAHLBAUM (1863), MORE L (1851), HEC- KER (1871 e 1874) e, certamente, Émile KRAEPELIN, cujas hipóteses foram re-
tomadas na classificação centrada na noção de psicose, proposta pela Associa- ção Americana de Psiquiatria . Estas
classificações que tendem a ligar o sintoma ao "distúrbio fundamental" subjacente limitam-se a descrições clínicas que, em
todos os tempos, seduziram os psiquiatras. Certas modificações foram trazidas por E. BLEULER em 1911, no sentido de
um afinamento da semiologia, mas ainda em dependência muito grande dos sintomas.
Na mesma época, vemos aparecer tentativas de classificação org nicas
com JACOBI (1830), MOREL (1860), SKAE (1897), CLOUSTON (1904), TUKE
(1892). Estes pontos de vista são retomados na classificação proposta há alguns anos pela Associação Médico-Psicológica
Real da Grã-Bretanha. Haveria uma íntima ligação obrigatória entre o distúrbio psíquico e uma suposta lesão orgâni- ca.
Reencontramos, no mesmo caminho, o ponto de vista organo-dinamista de Pierre JANET (1927), repousando em grande
parte na noção de evolução, os trabalhos de H. JACKSON (1931 ), de MONAKOW e MOUR-GUE (1928) e, final- mente,
as concepções de H. EY (1958), inspiradas em JACKSON. J. ROUART buscou precisar, em BONNEVAL (1946), o
possível papel de toda organicidade em um tal sistema de classificação.
As classificações fisiológicas foram sustentadas por MEYNERT (1884), TU-
KE (1892), WERNICKE (1900), A. MEYER (1910), CONNOLY (1939), LAYCOCK
(1945), D. HENDERSON e R. D. GILLESPIE (1950). Elas tentam estabelecer as relações entre o funcionamento mental
observado e localizações neurológicas diversas, que corresponderiam a centros reguladores do funcionamento mental
sobre tal ou qual registro particular.
17
As classificações psicológicas correspondem a uma preocupação em bus- c ar , no domínio do funcionament o
mental do "homem normal", categorias nas quais se tentará, a seguir, fazer com que entrem os distúrbios
psicopatológicos . Um certo número de autores trabalhou neste sentido, tais como LINNE (1763), ARNOLD (1782),
CRICHTON (1798), PRICHARD (1835), BUCKNILL e HAKE-TU-
KE (1870), ZIEHEN (1892), HEINROTH (1890).
O ponto de vista freudiano, ao contrário, interessa-se por alguns marcos fundamentais que permitam diferenciar ou
aproximar as estruturas, tais como o sentido latente do sintoma (símbolo e compromisso no interior do conflito psí- quico),
o grau atingido pelo desenvolvimento libidinal, o grau de desenvolvi- mento do ego e do superego, e a natureza, a
diversidade, sutileza e eficácia dos mecanismos de defesa.
Os pós-freudianos prosseguiram nas pesquisas sobre estas bases: K. ABRAHAM (1924), F. ALEXANDER (1928), E.
GLOVER (1932 e 1958), K.
MENNINGER (1938 e 1963), J. FROSCH (1957), D. W. WINNICOTT (1959), W.
SCOTT (1962).
M. BOUVET distingue, em 1950, os modos de estruturação genital e pré- genital. L. RANGELL (1960 e 1965) coloca-
se em uma perspectiva de conjunto das diferentes funções do ego . A. GREEN (1962 e 1963) procurou apoiar-se nas
noções de perda e restituição do objeto, de fantasmatização, de identificação e desfusão, de castração, de fragmentação, de
sublimação e recalcamento, para dar conta não só das grandes entidades nosológicas clássicas, mas também da diversidade
das pequenas entidades "intermediárias", tão comumente esqueci- das ou descuidadas por um bom número de autores. J.
H.THIEL (1966), por seu turno, levanta-se contra a exclusividade neurótica, tanto tempo manifestada pela pesquisa
psicanalítica e estima que se deva distinguir entre uma teoria do dis-
túrbio mental, uma certa filosofia da natureza, das causas e funções da doença e, por outro lado, enfim, um sistema de
classificação das desordens entre si.
18
.-----111
r--------------------------------------------
Estruturas e normalidade
1. A noção de "normalidade"
O emprego da noção de "normalidade" certamente apresenta incontestá- veis perigos nas mãos dos que detêm a
autoridade médica, polftica, social, cul- tural, econômica, filosófica, moral, jurfdica ou estética e, por que não, intelec- tual?
A história antiga ou contemporânea das comunidades, bem como das ideologias, grandes ou pequenas, serve-nos para
isto de cruéis exemplos, cada qual apenas conservando em sua memória representações muito seletivas, em função de
suas opções pessoais.
Se a "normalidade" se refere a uma porcentagem majoritária de compor- tamentos ou pontos de vista, azar
daqueles que ficam na minoria. Se, de outra parte, a "normalidade" torna-se função de um ideal coletivo, muito se conhece
os riscos corridos, mesmo pelas maiorias, desde que se encontrem reduzidas ao silêncio por aqueles que se crêem ou se
adjudicam a vocação de defender dito ideal pela força; entendem limitar o desenvolvimento afetivo dos outros, depois de
se haverem também visto, eles mesmos, acidentalmente bloqueados, e de- pois elaborado secundariamente sutis
justificações defensivas.
De fato, a "normalidade" é mais comumente encarada em relação aos ou-
tros, ao ideal ou à regra. Buscando permanecer ou tornar-se "normal", a criança identifica-se com os "grandes" e o ansioso
os imita. Em ambos os casos, enun- cia-se a questão manifesta: "Como fazem os outros?" e subentende-se: "Como fazem
os grandes?"
Ora, o verdadeiro problema colocado pelo eventual reconhecimento de
uma "normalidade" talvez não se situe a este nivel, entre estes dois falsos as- pectos objetivos: os outros ou o ideal.
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- érlaa atômica levou o mundo às catástro>es oue C0'1hecemos; nem
=:; trata-se, mesmo entre os mais pacifistas, de "ega·a existência do áto-
;:,or que então experimentaríamos a necessidade de '"' ar toda e qualquer
;mção de "nor malidade"?
Se ao invés de formu lar (ou temer), a todo momento, ,u gamentos deva- lor em relação aos outros quanto a uma
eventua l"normalidade", f""' ui freq üente e desastrosamente neste sentido, enfatizarmos em primeiro lugar a constatação de bom
funcionamento interior que pode comportar esta noção,tel"ôo em conta dados particulares a cada indivíduo (foi ele muito
limitado em suas possibilida- des pessoais, de modo ocasional ou duradouro), parece-me que poderíamos en- carar as coisas de
modo completamente diferente do que com simples defesas projetivas, ou então proselitismos invasores e inquietantes.
Contudo parece não ser fácil encontrar interlocutores que aceitem discutir
um aspecto subjetivo eminentemente nuançado e variável de "normalidade" em função das realidades profundas de cada um.
Por um lado, a tentação sádica leva-nos logo em direção às estatlsticas e
ideais; por outro lado, a tentação masoquista e "pauperista" desencadeia uma alergia horripilante e imediata diante de todos
os compostos da palavra "nor- ma"1.
No primeiro caso encontramo-nos prisioneiros de um imperialismo que se apodera da noção para tentar salvar os
privilégios que esta tão comumente re- cobriu e, no segundo, defrontamo-nos com uma recusa do termo, em razão de todas as
recordações opressivas e dolorosas que este desperta.
Nossa posição de pesquisa complica -se ainda mais ao constatarmos que
muitos daqueles que não se encontram ofic ialmente engajados em uma nem outra destas duas posições defensivas precedentes
muitas vezes hesitam suces - sivamente entre um arroubo sádico pelo lado das normas "autoritárias" ou uma piscadela
demagógica para as suscetibilidades "contestatórias". Tal movimento pendular de sucessivas anulações corre o risco não só de
emudecer estas pes- soas, mas sobretudo de fazer com que percam toda a coragem cientlfica ou qualquer poder de
investigação.
Entretanto, a noção de "normalidade" está tão ligada à vida quanto o nas-
cimento ou a morte, utilizando o potencial do primeiro buscando retardar as restrições da segunda, na medida em que toda
normalidade apenas pode coor- denar as necessidades pulsionais com as defesas e adaptações, os dados inter- nos hereditários
e adquiridos com as realidades externas, as possibilidades ca- racteriaiseestruturaiscomasnecessidadesrelacionais.
1 Em latim o termo norma corresponde, em seu sentido próprio, ao instrum ento de arqui· tetura chamado em português de esquadro; apenas em
seu emprego secundãrio e figurado encontram os o term o utilizado mais ta rdiamente por Clcero, Horácio ou Pllnio o Jovem, com o sentido de
regra, m odelo ou exem plo. O prim eiro significado determina somente o ângulo funcionalmente m ais vantajoso para articular dois planos em um a
construção, e não uma posição ideal fixa da casa em relação ao solo. O ediflcio pode encontrar-se "a- prumado" (isto é, em equillbrio interno}
mesm o em um solo de sério declive, graças ao esquadro que haverá justamente retificado os perigos que a primitiva inclinação do terreno poderia
representar para a solidez do conjunto do ediflcio.
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O principal perigo atual parece bem menos ser o risco, bastante conhecido, de usurpação da noção teórica de
normalidade em beneffcio dos poderosos ou dos sonhadores, do que da denegação pelos pessimistas, sutilmente a serviço
do instinto de morte, do conjunto dos elementos reguladores internos que permi- tem aos humanos (sempre limitados)
arranjar-se interiormente para buscar, não a ilusão de onipotência ou felicidade, mas pelo menos zonas bastante constantes
de eficiência e bem-estar, em meio às suas obrigatórias imperfeições e seus não menos obrigatórios conflitos interiores.
Chegarfamos assim a uma opinião, em suma, bastante próxima daquela do homem da rua que estima, mui
sabiamente, sem dúvida, que qualquer ser humano encontra-se em um "estado normal", quaisquer que sejam seus
pro- blemas pessoais profundos, quando chega a se arranjar com isto e adaptar-se a si mesmo e aos outros, sem
paralisar-se interiormente em uma prisão narcfsica, nem fazer-se rejeitar pelos demais (prisão-hospital-asilo), apesar das
inevitáveis divergências incorridas nas relações com eles.
Minha atual tentativa de definição da noção de "normalidade" longe está de satisfazer-me inteiramente, ainda
que mais não fosse, pelo seu tamanho; contudo pareceu-me difícil, até aí, reduzir o número de seus parâmetros.
Tentativa de definição:
O verdadeiro "sadion não é simplesmente alguém que se declare como tal, nem sobretudo um doente que se ignora, mas
um sujeito que conserve em si tantas fixa- ções conflituais como tantas outras pessoas, e que não tenha encontrado em seu
caminho dificuldades internas ou externas superiores a seu equipamento afetivo he- reditário ou adquirido, s suas faculdades
pessoais defensivas ou adaptativas, e que se permitia um jogo suficientemente flexfvel de suas necessidades pulsionais, de seus
processos primário e secundário nos planos tanto pessoal, quanto sociais, ten- do em justa conta a realidade, e reservando-se o
direito de comportar-se de modo aparentemente aberrante em circunst ncias excepcionalmente "anormais".
Será, pois, necessário insistir na independência da noção de "normalida- de" em relação à noção de estrutura.Foi
amplamente demonstrado, com efeito, pela observação cotidiana, que uma personalidade reputada como "normal" po- de,
a qualquer momento de sua existência, entrar na patologia mental, inclusive na psicose, e que, inversamente, um doente
mental, mesmo psicótico, bem e precocemente tratado, conserva todas as chances de retornar a uma situação de
"normalidade", de forma que atualmente não mais se ousa opor, de maneira demasiado simplista, as pessoas
"normais" aos "doentes mentais", ao se consi- derar a estrutura profunda. Não mais nos deixamos ludibriar por
manifestações exteriores, por mais ruidosas que sejam, correspondentes ao estado (momentâ- neo ou prolongado) em
que se encontra uma verdadeira estrutura,e não a urna mudança real desta estrutura em si.
Para, pelo menos em um primeiro tempo, apenas nos referirmos ao q...e chamo, em minhas hipóteses pessoais, de
estruturas estAveis (ou se;a, osicóticas ou neuróticas), parece evidente existirem tantos termos de passage...-, 110 se·
o de
uma linhagem estrutural psicótica, entre "psicose" e um certa fo,...,a de · norna-
lidade" adaptada à estruturação de tipo psicótico, quanto no seio de uma linha-
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gem estrutural neurótica, entre "neurose" e uma certa forma de "normalidade" adaptada à estruturação do tipo neurótico.
Um exemplo, sem dúvida, poderá ilustrar o meu propósito de modo muito
mais preciso:
Obs. n!! 1
Ren tem 38 anos. Não conhece nenhum passado médico digno de nota. Alto, magro, não parece muito forte
fisicamente, nem muito cuida- doso com sua pessoa, nem muito atento ao que se passa ao seu redor. Re- nê é o único
filho de um pai bastante idoso e taciturno, notário em uma ci- dade pequena, e de uma mãe muito mais jovem, aut-
oritária e bastante agressiva.
Ele cresceu principalmente entre esta mãe, sua tia (irmã da mãe) e a avó
materna, junto à qual morou durante os seus estudos secundários e no iní- cio da universidade.
Seus estudos foram excelentes, sendo Renê dotado de muito bom 0.1., mas estes se eternizaram, pois Renê não
chegou a decidir-se por uma via definitiva nem uma carreira precisa. Rapidamente recebido na Escola Normal
Superior no ramo literário, nem por isto deixou de perseguir certi- ficados de licença em todos os sentidos,
principalmente certificados "cien- tfficos", pelos quais passava facilmente, chegando a haver um momento de voltar-
se para o lado do Direito.Tendo passado no concurso da Agre- gação de Letras, aceitou finalmente um posto em
um grande liceu pari- siense e depois, ao final de alguns anos, continuando ainda a lecionar nas classes
preparatórias, foi nomeado para um posto importante na adminis- tração central.
Também seguiu fazendo algumas pesquisas matemáticas, e escreveu
alguns poemas. Manifestava um grande ecletismo, mas muito poucos elementos passionais; proporcionava-se
poucas distrações,sem contudo enfastiar-se.
A maioria dos seus colegas, casados e pais de famnia, reputados "nor·
mais" por passarem suas noitadas em coquetéis ou espetáculos da moda, seus domingos nas ruas dos subúrbios, ter
ça-feira gorda em Val-d' lsêre, Páscoa com a sogra, e os meses de agosto na Espanha, consideravam ele um "original"
simpático, mas um tanto inquietan!e. Diante dele, com efei- to, sem que, bem entendido, isto fosse muito consciente,
todo mundo sen- tia-se mais ou menos questionado, e cada qual mui rapidamente aprovei- tava para projetar sobre
Renê a inquietante estranheza que este originava no outro, no sistema ideal coletivo bastante frágil adotado pelos
membros do grupo tido como "normal" por simples razões estatfsticas ou ideais.
Re.né conhecia desejos sexuais reais, porém mais comumente arranja- va-se de modo a colocar, entre a mulher e
ele, tranqüilizadoras distâncias e apaziguadoras dificuldades.
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Após muitas hesitações, acabou finalmente casando-se com uma j ovem viúva, inteligente, ativa e simpática, mas a quem
as pessoas reputadas "normais", na época, recriminavam por não sacrificar-se mais aos gostos do dia.
Renê teve um início conjugal difícil: sua mãe não era lá muito favorável ao casamento; os sogros, por seu turno,
"apoiavam" um pouco exagera- damente o casal; enfim, Renê em alguns meses passou a sentir uma espé- cie de "bola" que
subia e descia, trancava ao nível da laringe. "O pomo de Adão", sem dúvida, diziam-lhe rindo aqueles dentre seus amigos
que ha- viam lido tratados de vulgarização psicanalítica . A gozação parecia, com efeito, plenamente cablvel, em virtude
das circunst â ncias matrimonia is di- fíceis.
Depois o casal criou para si uma vida independente, pouco original em relação ao que os outros chamam de
"originalidade", mas bastante origi- nal, contudo, quando nos referimos ao que a maioria normalmente deno-
mina,demasiado rapidamente, de "normalidade" .
Nasceram três filhos, criados de um modo "curioso", isto é, os viz inhos, parentes e amigos declaravam-se
enlouquecidos pelas liberdades de que gozavam. Estas crianças, contudo, de modo algum encontravam- se aban- donadas
por seus pais e não pareciam, absolutamente, sofrer em meio às atitudes "boêmias" desta famllia, que continuou a ter
apenas uma habita- ção antiga (em um bairro pouco estimado ), um automóvel curioso (de marca estrangeira pouco
conhecida), uma casa de férias sem conforto em um lugar do interior, bonito mas sem renome, uma situação financeira
sempre apertada, apesar de um bom salário e alguns adicionais, etc.
Renê e sua esposa muitas vezes são convidados para visitarem seus colegas ou casais encontrados em viagens ou
atividades culturais diversas, não porque experimentem a necessidade de brilhar ou distrair a socieda-
de, mas porque sobretudo Renê, graças à sua grande cultura e seu espírito
aberto, mostra-se interessado nas zonas de investimento narcisista, as mais diversas, encontradas em seus hóspedes.
Por seu turno, Renê e sua esposa recebem facilmente, e sem particular necessidade demonstrativa, as pessoas que
simplesmente têm vontade de ver, sem sentirem-se, todavia, particularmente agressivos quando devem, por necessidade
prática, misturar aí um superior ou um colega menos simpático, mas bem situado.
Renê é "normal", ou não?
Sem dúvida alguma, trata-se de uma estrutura edipiana com uma fixação materna bastante importante, havendo fixado
os investimentos afetivos entre certos limites dificilmente transponíveis. Mas, isto posto, podemos inicialmente constatar que
não se produziu qualquer descompensação nítida e, a seguir,que não há qualquer ameaça de descompensação a temer, pois o
conjunto dos me- canismos de defesa e adaptação parece funcionar com evidente flexibilidade e incontestável eficácia,
certamente levando em conta o real exterior, bem como,
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em primeiro lugar, as realidades internas do sujeito, seus talentos e seus setores eventualmente ameaçados.
Considerarei, pois, o caso de Renê como sendo ao mesmo tempo uma es- trutura neurótica edipiana e genital (o que,
certamente, não é uma doença em si, mas uma categoria fundamental de funcionamento psíquico) e como um caso bem
adaptado no interior deste grupo de estruturas.
2. Patologia e normalidade
No decorrer destas últimas décadas, diferentes autores debruçaram-se so- bre a dialética normalidade-patologia.
E. MINKOWSKI (1938) chama a atenção para a subjetividade da noção de "norman, que contudo parece comumente ir por
si só, como simples acordo entre as necessidades e realidades da existência. A ênfase é colocada na relação com
os outros, embora a principal caracterfstica do estudo permaneça em uma ótica
mais especialmente fenomenológica.
E. GOLDSTEIN (1951) parte de saída em uma direção bastante perigosa, ao referir-se às noções de "ordem" e
"desordem", preparando toda uma suces- são de jufzos de valores a qual sempre se torna desagradável formular ou mes- mo
simplesmente solicitar no domfnio da psicopatologia; com efeito, a unidade de medida corre automaticamente o risco de ser
considerada mais em referência às escalas do grupo de observadores do que a uma escala estabelecida em fun- ção dos dados
interiores do sujeito observado.
G.CANGUILHEM (1966) refere-se a diversos trabalhos de anos passados:
A. COMTE (1842), que se apóia no princfpio de BROUSSAIS, apresenta a doença como excesso ou falta em relação ao estado
"normal"; C. BERNARD (1865), para quem toda doença nada mais é do que a expressão perturbada de uma função "normal";
LERICHE (1953), para quem não existe limiar previsível entre fisioló- gico e patológico, podendo resumir-se a saúde como
estado de silêncio dos ór- gãos; JACKSON, finalmente, para quem a doença está constituída por uma pro- vação e um
remanejamento, ligados a uma dissolução e regressão, idéias reto- madas por H. EY ao precisar a ordem de dissolução, na
doença, das funções mentais, de infcio a partir do que foi mais recentemente adquirido na maturação ontogenética do sujeito. G.
CANGUILHEM define a doença como redução da margem de tolerância em relação às infidelidades do meio. "Normalidade"
seria também sinônimo de adaptaçáo, e esta idéia comporta nuances que permitiriam a G. CANGUILHEM considerar como
permanecendo nos limites do "normal" certos estados tidos por outros como patológicos, na medida em que estes esta- dos
podem exprimir uma relação de "normatividade" com a vida particular do sujeito.
M. KLEIN (1952) propõe-nos, em toda evolução psicogenética da criança, uma posição persecutória primitiva, seguida de
uma posição depressiva mais ou
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menos edipiana. A primeira posição, sobretudo, procederia obrigatoriamente mediante mecanismos econômicos do tipo
psicótico, e toda patologia ulterior só poderia ter em conta fixações arcaicas a estas fases obrigatórias a todos. Embora seja
oportuno não mais considerar a estrutura "normal" como tendo seguido uma evolução infantil de todo privilegiada, da
mesma forma é diffcil considerar, em se tratando de neuróticos ou de estados limítrofes, que todo indivíduo tenha
conhecido um perfodo no qual seu Ego teria inicialmente se constituído sobre um modo psicótico, no sentido bastante
preciso que continuaremos dando a este termo, isto é, em uma economia de autêntica fragmentação, verdadeira or-
ganização estrutural e não somente etapa, lacuna ou imperfeição evolutiva.
A. FREUD (1968) pensou poder definir a normalidade na criança a partir da
maneira pela qual aos poucos se estabelecem os aspectos tópicos e dinâmicos da personalidade, e do modo pelo qual
se engajam e se resolvem os conflitos pulsionais.
C.G. JUNG (1913) procurou apresentar as faces complementares dos per- sonagens míticos Prometeu (aquele que
pensa antes) e Epimeteu (aquele que pensa depois), ou seja, introvertido e extrovertido, reportando-se às obras de
Car l SPITTELER e de W. GOETHE. A "normalidade" estaria ligada à união des- tas duas atitudes, que C.G.JUNG
compara à concepção bramânica do símbolo de união. De outra parte, o autor compara as noções de adaptação
(submeter-se ao meio), inserção (ligada unicamente à noção de meio) e "normalidade", que corresponderia a uma
inserção sem fricções, destinada simplesmente a preen- cher condições objetivamente fixadas. A patologia surgiria
desde que o indiví- duo saísse do contexto de submissão ao meio, correspondente à "inserção" re- servada unicamente
a este circulo. Isto parece-nos aproximar-se daquilo que descreverei alhures a propósito do movimento de depressão
anaclítica do estado limite, desde que ele se arrisque a deixar o círculo, constrangedor mas assegu- rador, do familiar
fálico.
J. BOUTONIER (1945) mostrou a passagem da angústia à liberdade no in- dividuo que se tornou "normal", ao passo
que a maturação afetiva, fundamento de toda "normalidade" autêntica, é definida por D. ANZIEU (1959) como uma
atitude sem ansiedade diante do inconsciente, tanto no trabalho quanto no lazer, uma aptidão a enfrentar as inevitáveis
manifestações deste inconsciente em to-
das as circunstâncias em que a vida possa colocar o individuo.
R. DIATKINE (1967) propôs um marco de anormalidade no fato do pa- ciente "não se sentir bem" ou "não ser
feliz", e insiste, de outra parte, na im- portância dos fatores dinâmicos e econômicos internos no decorrer do desen-
volvimento da criança, nas possibilidades de adaptação e recuperação, na ten- dência à limitação ou extensão da
atividade mental, e nas dificuldades encontra- das na elaboração dos fantasmas edipianos. R. DIATKINE alerta-nos contra
a tão freqüente confusão entre os diagnósticos de estrutura mental e de normali- dade psicopatológica. Esta precaução
parece-nos extremamente motivada. Com efeito, um diagnóstico de estrutura psíquica estável, no sentido em que a defini
ao longo de todo o presente estudo, pode ser colocado fora de toda e qualquer referência à patologia, ao passo que o
diagnóstico de "normalidade" implica, ao
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contrário, um exame do modo pelo qual o sujeito se arranja com sua própria
estrutura psíquica.
Para R. DIATKINE não se encontra, no adulto, qualquer estrutura dita "normal". Toda situação nova para o indivíduo
recoloca em questão o seu equi- líbrio psíquico, e o autor estuda sucessivamente as dificuldades que podem ex- pressar este
sofrimento na criança, conforme as idades e os estág ios maturati- vos. Procura determinar o leque de prognósticos relacionais
posteriores, dis- pondo ao lado dos elementos prejudiciais todas as restrições às novas atividades e operações mentais, em
particular os sistemas sistematicamente repetitivos mais ou menos irreversíveis.
C. CHILAND (1966) retomou um ponto de vista paralelo, ao mostrar que as
crianças, cuj o poder normativo é mais extenso, nem por isto estão isentas de certos sinais da linhagem neurótica ou fóbica .É a
flexibiiÍdade da passagem de um bom funcionamento situado ao nível do real a um bom funcionamento si- tuado ao nível
fantasmático que serviria de critério de normalidade, e não tanto um simples diagnóstico de estrutura, e este ponto de vista parece
muito produti- vo no plano de reflexão, quando o comparamos com as conclusões a que che- garam, na patologia escolar africana,
LEHMANN (1972), LE GUÉRINEI (1970) ou MERTENS DE WILMARS (1968) diante de crianças que, esbarrando na ambi- güidade
causada por dois modelos culturais muito diferentes propostos pela realidade, experimentavam justamente reais dificuldades par a
fazer a passagem entre uma boa integração do real e uma boa elaboraç o fantasmática; os distúr- bios psicopatológicos
constatados vão completamente no sentido das hipóteses de C.CHILAND, queestabelece (1965):
"Nossoobjetivo náo é necessariamente tornar a criança conforme oqueseu
meio,a famOia, a escola ouasociedade esperam dela,mas simtorn /acapazdeas- ceder,comomenornúmerodelimitaçõespossfveis,
sua autonomia efelicidade.n
P. BOURDIER (1972), enfim, opôs o que se poderia esperar logicamente como diferença entre as "normas" de uma mulher
e de um homem, por exem- plo, ou de crianças de idades diferentes. Uma criança de quatro anos poderia comportar-se como
um "louco" e ser absolutamente "normal", ao passo que no período de latência os mesmos sinais desencadeariam uma mui viva
inquietude no psiquiatra. De outra parte, diante da morte da mãe, uma criança "normal" de quatro meses nem mesmo s e
aperceberia se se encontrasse interposto um substituto válido, ao passo que uma criança "normal" de quinze meses ficaria
bastante perturbada por não poder agredir e ao mesmo tempo ver a mesma mãe intacta um instante após; quanto a uma
criança "normal" de seis anos, ela se contentaria com o sofrimento incluído no trabalho de luto.
A. HAYNAL (1971) mostra a dificuldade de aplicar ao domínio psíquico os
habituais critérios de "normalidade", referindo-se à adaptação, à facilidade, ao desenvolvimento, etc., e à importância da
relatividade sociológica da noção de "normalidade", tanto no homem quanto nas sociedades animais, onde em maior conta se
deve ter as condições ecológicas, como a densidade territorial da coletividade em questão.
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Por outro lado, comportamentos raros nem por isto são anormais . Como observa J. de AJURIAGUERRA (1971) a
propósito de um texto de KUBIE:A saúdeéumestadoestatisticamenteraro,masnemporistoanormal.
Contudo, parece-me bom voltar agora um pouco para trâs, para os dados freudianos concernentes à noção de
"normalidade", aos quais, em nosso enten- der, demasiado raramente se dâ atenção.
Neste domfnio, como em tantos outros domfnios relativos à psicopatologia "normal" e "patológica", S. FREUD marcou uma
importante virada no modo de
pensar dos psicopatologistas .Antes e depois de seus relatos teóricos e clfnicos, as concepções mudaram radicalmente; o que
certamente não quer dizer, con- forme veremos, que antes de FREUD ninguém tenha escrito sobre estes assun- tos, nem que S.
FREUD tenha tido possibilidade e tempo para esgotar tal estu- do.
Podemos reter três postulados de seus Três ensaios sobre a teoria da se-
xualidade (1905), da Formulaçlío de dois princfpios do funcionamento mental (1911) e de suas Cinco psican lises (1905 a 1918):
1. Toda a psicologia do adulto origina-se das dificuldades experimentadas ao nfvel de desenvolvimento da sexualidade
infantil.
2. São as pulsões recalcadas, sexuais e agressivas, que criam os sintomas.
3. O modo como é vivida a etapa organiz;,dora da personalidade (isto é, o Édipo) depende essencialmente das condições tle
ambiente.
As delimitações trazidas por S. FREUD em outros lugares, em textos me-
nos conhecidos, em nada desmentem estes três postulados: em seus Psychopa- thic characters on the stage (1906), mostra que no
caráter não-patológico o recal- camento deve ser exitoso, e que este resultado faz falta no caráter patológico; mas "patológico"
encontra-se aqui limitado unicamente ao sentido neurótico. Em seus Alguns tipos de caroter destacados pela psican lise (1915) é
ainda unica- mente com referência à economia edipiana, superegóica, genital e castradora,
logo à linhagem neurótica, que são estudadas as exceções, aqueles que falham
diante do sucesso e os criminosos, pelo sentimento de culpa.No Declfnio do di- po, S. FREUD (1923 c)chegarâ a declarar que o
que distingue normal ou patoló- gico situa-se no desaparecimento ou não do complexo de Édipo, dito de outra forma, ele recusa
o estatuto de "normalidade" a toda estruturação não neurótica e mesmo, parece, a uma estrutura neurótica na qual o
recalcamento do Édipo teria ocorrido só de modo parcial. Ele exige o desaparecimento completo do complexo. Em seus Tipos-
libidinais, enfim (1931 a), procura "preencher a lacuna que se supõe existir entre o normal e o patológico", pela distinção de três
tipos básicos: erótico, narcísico e obsessivo, que mais habitualmente se combinariam em subtipos: erótico-obsessivo,
erótico-narcísico e narcísico-obsessivo; o tipo teórico erótico-obsessivo-narcfsico representaria, ao final das contas, diz
FREUD,"aabsolutanormalidade,aharmoniaideal".MasFREUDparecedeixar-se apanhar na armadilha da universalidade das
apelações "neuróticas", pois se as suas pertinentes descrições do obsessivo e do narcísico-obsessivo bemcor- respondem a
economias de neurose obsessiva e o tipo erótico a economias neu- róticas histéricas, parece que FREUD mais descreve estados
limftrofes do que
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;-.e roses sob a cobertura do tipo erótico narcísico, caracteriais exitosos sob a cooertura do tipo narcfsico e, finalmente,
pré- psicóticos sob a cobertura do tipo erótico obsessivo (a ênfase aqui está colocada nas defesas antipsicóticas, mais
:::o que sobre as incertezas do ego).
Neste último artigo, mais tardio em sua obra e mais arrojado na pesquisa cos elementos dialéticos entre
normalidade e patologia, S. FREUD tenta ir o mais longe possível no reconhecimento de fenômenos não-patológicos
que contudo implicam particulares inflexões no modo de investimento da libido em cada tipo descrito. Mas FRE UD acha-
se prisioneiro de sua grande descoberta:a economia genital edipiana e neurótica. Reúne ar, por certo com alguma insatisfa-
ção, a maior parte de suas outras descrições clinicas.
Com efeito, antes de FRE UD, dividia-se habitualmente os humanos em duas grandes categorias psíquicas: os
"normais" e os doentes mentais (nos quais se dispunham em bloco neuróticos e psicóticos). O grande mérito de FREUD
foi o de haver mostrado, através de seus trabalhos revolucionários sobre a economia neurótica, que não existia qualquer
solução de continuidade entre certos funcionamentos mentais tidos como "normais" e o funcionamento men- tal tido
como "neurótico". Existem todos os graus e, no geral, os mecanismos permanecem os mesmos; somente a adequação
e a flexibilidade do jogo destes mecanismos diferem mais ou menos. Infelizmente, S. FREUD não se aventura muito
para além do domínio neurótico. Um incontestável estado limítrofe como o "homem dos lobos" (1918) é descrito como
uma neurose, e se conheceo pou- co gosto que tinha pela abordagem dos psicóticos, suas hesitações na discussão dos
dados nosológicos concernentes ao Presidente SCHREBER (1911c).
Embora tenha escrito, ao final de sua vida, no Esboço da Psicanálise (1940 a), que era "impossfvel estabelecer
cientificamente uma linha de demarcaçáo entre estados normais e anormais': S. FREUD foi por muito tempo levado a
pensar, as- sim como aqueles que, claramente ou não, permaneceram fixados somente às posições de sua época, que
o fosso não mais se situava entre normais de um la- do e doentes (neuróticos ou psicóticos reunidos) do outro, mas de
um lado neuróticos e normais (correspondendo aos mesmos mecanismos conflituais e defensivos), do outro lado o
grupo dos "não-normais", englobando todo ores- to; este "resto" quer se encontrava imprecisamente denominado de
psicóticos e pré-psicóticos diversos, quer então diversificado em psicoses, por certo, mas também em estados limítrof§
caracteriais, perversos, etc.
Meu propósito conserva a ambição de ir ainda mais longe: parte do ponto
, de vista de que cabe distinguir, de um lado, as estruturas autênticas, sólidas, fi- xas e definitivas (psicóticas ou
neuróticas) e do outro, as organizações interme- diárias ( dos limítrofes), menos especificadas de maneira durável e
podendo dar origem a arranjos mais estáveis (doenças caracteriais ou perversões).
No que diz respeito ao primeiro grupo, podemos considerar que existem tantos termos de passagem entre
"normalidade" e psicose descompensada no seio da linhagem estrutural psicótica fixa, quanto entre "normalidade" e
neurose descom pensada, no seio da linhagem estrutural neurótica fixa. Em contraparti- da, no que concerne ao
segundo grupo, definido como intermediário, de ime-
28
diato veremos que não é fácil considerar uma real "normalidade': devido aos enormes e permanentes contra-investimentos
rgéticos idepressivos pos- tos em jogo (em virtude da precane aae justamente da adaptação às realidades internas e
externas) e à instabilidade, no final das contas, de tais organizações não realmente estruturadas no sentido definitivo e pleno do
termo.
A noção de "normalidade" estaria, assim, reservada a um estado de ade- quação funcional feliz, unicamente no seio de
uma estrutura fixa, sej a esta neu- rótica ou psicótica, sendo que a patologia corresponderia a uma ruptura do equilíbrio
dentro de uma mesma linhagem estrutural.
Um exemplo clfnico poderá ser útil à nossa reflexão:
Obs. n!! 2
Georges tem 42 anos e é diretor de um colégio. Ele sabe poucas coisas de sua primeira infância, pois não deseja falar
e declara lembrar-se dela muito mal. Foi órfão de mãe, depois de pai, bastante cedo, adotado por uma família amiga de
seus pais, com uma mulher autoritária, rígida e pou- co afetiva.
Muito bem educado no plano funcional, fez muito bons estudos . Reve- lou-se um adolescente bastante precoce no
plàno intelectual, um estu- dante meticuloso, depois professor atencioso e muito racional. As qua lida- des de precisão,
ordem, raciocínio teórico, seu senso de autoridade, de di- reito, de método, valeram-lhe uma rápida promoção
administrativa, ape- sar de algumas dificuldades nas relações com seus alunos e colegas.
Casou-se aos 25 anos com uma mulher da mesma idade, também pro- fessora, igualmente autoritária e bastante
rígida. Tiveram dois filhos que parecem ter boa saúde, mas muito cedo foram colocados em um internato bastante longe
"para seu bem" aparente e racional.
O casal evoluiu em grupos de pesquisa profissional e mesmo filosófica bastante ousados (mas permanecendo
especificamente burgueses), fre- qüentemente ocupando suas noites, domingos e dias de folga sob pretex- tos de reuniões
ou estágios diversos, orientados para técnicas, posições ou idéias cuidadosamente escolhidas para encontrarem-se sempre
em oposi- ção ao pensamento comum dos colegas do mesmo estabelecimento.
Poder-se-á ver em Georges um exemplo de sujeito "original", por cer- to, mas de aparência normal, bem adaptado às
suas realidades internas e externas. Os principais mecanismos de defesa até aí empregados podem ser considerados como
sendodotipo_pbsessLvo.
Mas eis que, no decorrer de uma sessão de "dinâmica de grupo" orga-
nizada por sua Academia, Georges é o suj eito mais velho e mais graduado no grupo em que participa. O animador,
conhecido por sua ambivalência em relação à Universidade, em parte o julga capaz de defender-se e, em parte, sem
dúvida, não está muito descontente tampouco de vê-lo vacilar um tanto em suas bases. O moderador, muito mais cáustico
ainda em rela-
29
ção à autoridade e cuidadoso em não desagradar aos agressivos, abstém - se de intervir. Também Georges recebe sem
especial precaução (nem pre- paração, bem entendido) toda a descarga agressiva do grupo. Sente-se prontamente
presa de um mal-estar interior, não mais sabendo muito bem quem é, onde está, o que faz . Foge desta assistência e,
muito excitado, percorre a pequena cidade onde se desenrola a sessão acreditando-se per- seguido por qualquer um que
use uniforme.
No momento em que se chama um médico, intervém um amigo que mora nas redondezas; ele leva Georges
consigo e o confia a um psiquiatra de seus amigos, que coloca o paciente em repouso e o trata, inicialmente com
medicamentos e sedativos, encaminhando-o depois a um psicanalis- ta.
Georges atualmente vai bem. Retomou todas as suas atividades profis- sionais, mas suas relações sociais
melhoraram e seus aspectos reivindica- tórios emendaram -se.
Entretanto, sem dúvida, trata-se de uma estrutura psicótica; o tratamento analítico o demonstrou, com uma transferência
fusional, uma angústia de frag- mentação, importantes negações da realidade. Esta estrutura, até então não des- compensada e
que havia permanecido nos limites de uma incontestável "nor- malidade", repentinamente "rompeu-se" sob o golpe de uma
agressão externa demasiado forte para as defesas habituais do suj eito. Foi isto que deu origem à despersonalização e ao
delfrio. Georges passou do estado "normal" ao estado "patológico", sem contudo mudar de estrutura profunda. As defesas de
modo obsessivo cederam momentaneamente diante da intensidade da agressão pelo real; foi preciso negar este último, pois
as anulações obsessivas das representa- ções pulsionais não mais podiam dar conta. Foi assim que Georges ficou "doente"
sem mudar de forma estrutural do ego. E foi sempre sem variar de estado profundo do ego, logo de linhagem estrutu ral, que
depois "curou- se", graças a um tratamento que permitiu o restabelecimento de defesas melhores sem modificar, contudo, seu
modo de organização mental subjacente.
3. A "normalidade" patológica
Acabamos de ver como seria possível considerar, por um lado, uma certa "normalidade" e, por outro, manifestações
patológicas, em função de um modo de estruturação fixa e precisa.
Porém a coisa parece complicar-se um pouco ao sermos levados a descre- ver, ao contrário, personalidades ditas
"pseudonormais" e que não correspon- dem, justamente, a uma estrutura estável nem definitiva, conforme considera- mos no
caso das estruturas das linhagens neurótica ou psicótica. No interior destas linhagens bem definidas em sua evolução, os
sujeitos defendem-se con-
30
tra a descompensa ção mediante uma adaptação à sua economia própria, bem como aos seus diferentes fatores de
originalidade, o que, conforme veremos adiante, atiza seus comportamentos relacionais de elementos singulares que
constituem simples "traços de caráter''. Em contrapartida, as personalidades "pseudonormais" não se encontram tão bem
estruturadas no sentido neurótico ou psicótico; constituem-se, por vezes, de modo bastante durável, mas sempre precário,
segundo arranjos diversos nem tão originais que forçam estes sujeitos a "fazerem-se de gente normal", muitas vezes até mais
"hipernormal" do que original, para não descompensar na depressão . Há, de qualquer modo, uma ne- cessidade protetora, de
hipomania permanente. Voltarei a falar nisto com res- peito aos estados limítrofes e neuroses de caráter em particular. Mas o bom
sen- so facilmente detecta, após um certo período de fraude bem- sucedida e em cir- cunstâncias sociológicas diversas, estes
líderes de reduzidos meios construtivos aos quais tantas outras pessoas narcisisticamente frustradas agarram-se por um período
mais ou menos longo de ilusão. Estes personagens lutam, com fuga, em nome de um ideal ou interesse qualquer, mais ou
menos idealizado, simples - mente contra sua imaturidade estrutural e frustrações e contra a depressão, cuj o perigo j amais se acha
de todo afastado. Chegam a ser, por vezes, verdadeiros "geniozinhos" para sua família, bairro ou cidade, ou ainda seu meio de
vida ou de trabalho, e a tal ponto sua hipomania pode corresponder às necessidades narcisistas do contexto social. Contudo,
resistem mal a uma prova durável de confrontação com os outros ou com o real.
Terei ocasião de novamente precisar, quanto ã noção de "estrutura", que
em psicopatologia não se pode confundir os diversos modos de funcionamento mental atendo-se apenas aos seus aspect os
manifestos fenomenológicos e su- perficiais. Cabe opor as verdadeiras estruturas (neuróticas ou psicóticas com ou sem status
psicopatológico) às simples organizaç6es, menos sólidas e que lutam contra a depressão, graças a artifícios caracteriais ou
psicopáticos diversos, ul- trapassando o contexto daquilo que anteriormente definimos como correspon- dendo aos parâmetros
de "normalidade", isto é, de adaptação econômica inter- na à realidade Intima do sujeito.
As verdadeiras estruturas não dão origem a personalidades "pseudonor- mais", mas, conforme permaneçam ou não fora
de rupturas patológicas, podem alternadamente levar ao que, juntamente com CANGUILHEM (1966), definimos como estados
sucessivos deadaptação,desadaptação,readaptação,etc.
As simples organizações, em contrapartida, comportam-se de modo muito
diferente: em caso de trauma afetivo mais ou menos agudo, estas organizações podem, por vezes, (mais habitualmente)
mergulhar na depressão, ou evoluir para uma estruturação mais sólida e mais definitiva, do tipo neurótico ou psicó- tico. Mas
agora tais acidentes afetivos, seu estado corrente não pode ser chama- do de "normal" sem restrições, pois parece corresponder a
uma defesa energé- tica psíquica demas iado importante e custosa no plano dos contra-investimentos exigidos para assegurar o
narcisismo.
Com efeito, este gênero de organizações não se beneficia nem do estatuto
neurótico dos conflitos entre superego e pulsões, com todos os compromissos
31
estáveis possíveis, nem, como na linhagem psicótica, de uma operação de cliva- gem do ego, também levando a uma
relativa estabilidade. Em nossas organiza - ções "limítrofes", constatamos uma luta incessante para manter em um
anacli- tismo obsedante, uma segurança narcísica que cubra os permanentes riscos de- pressivos. Tais exigênc ias
narcísicas forçam o estado limítrofe, os caracteriais di- versos, ou o perverso, a manter a religião de um ideal de ego
que induz a ritos comportamentais bem abaixo dos meios libidinais e objeta is realmente disponí - veis ao nível da
realidade do ego. É o que leva o sujeito a imitar os personagens ideais protótipos de "normalidade" no plano seletivo
e, ao mesmo tempo, a imitar os personagens que representem a percentagem quantitativamente mais elevada de
casos semelhantes entre si no grupo sócio-cultura lvisado.
Encontramo-nos, pois, mui próximos do modo de funcionamento mental
que D. W. WlNNICOTT (1969) designa sob as denominações de "seif artificial" ou "falso self", descritas por ele como
organizações mais exitosas dasdefesas contra a depressão. Encontramo-nos muito próximos também daquilo que,se-
guindo a filosofia alemã do "Ais Ob" (juntamente com E. VAIHINGER), H. DEUTSCH (1934) definiu sob o termo
personalidades "asif".Estasdescrições de um caráter "simili" ou "como se" obtiveram certa celebridade, pois
correspon- dem a uma realidade clínica freqüente pouco assinalada até então, mas igual- mente, cabe reconhecer que
parte do seu sucesso provém da falta de referência mais precisa a uma organização econômica distinta da economia
estritamente neurótica, o que não inquieta muito os espfritos analfticos defensivamente liga- dos à ortocoxia do dogma
(atribuído a S. FREUD) da infalibilidade organizadora do Édipo.
O estudo apresentado por H. DEUTSCH não se reveste de menor interesse no plano descritivo: hiperatividade
reacional, apego aos objetos externos, aos pensamentos do grupo, com dependência afetiva, sem contudo permitir
um de- sinvestimento objetai sério, grande labilidade nos conflitos exteriores, pobreza afetiva e pouca originalidade,
dada a mobilidade dos investimentos e seu nível superficial.
C. DAVID (1927) descreveu formas clínicas variadas no seio de tais atitu- des, enfatizando a tendência à
somatização, os elementos car'acteriais, a super- valorização da ação, o aspecto patológico inaparente do narcisismo
(superego formalista, ideal de ego sádico, necessidade de êxito a qualquer preço), a neces- sidade de hiperadaptação à
realidade (encoraj ada pela sociedade), o lado na rea- lidade carencial da adaptação (a um objetivo apenas), a abrasão
das pulsões, o desespero subjacente e o lado artificial das aparentes sublimações. Em resumo,
C. DAVID pensa que os dois fundamentos principais destes "pseudonormais" são constituídos pela falha narcísica e
pelofracassonadistribuiçãoentreinves-timentosnarcísicoseobjetais.
Uma observação clfnica parece-me corresponder particularmente a este
gênero de descrição:
32
Obs. n3
Na ocasião em que conhec1 o caso de Ju/ien, este acabava de completar 50 anos. Filho de um artesão modesto e apagado, e
de uma mãe estúpida, pretensiosa e mquietante, Julien foi criado no ódio aos ricos, medo e de- voção em relação às pessoas
bem situadas, na admiração ao tio cônego "que se tornou alguém" e ao irmão ma1s velho, que se casou com a filha do padeiro,
de quem era aprendiz. Como este irmão mais velho e as duas irmãs, Julien muito cedo é colocado' no trabalho" junto a um
comerciante da região. Mesmo assim dá um jeito , sob os conselhos de um colega de mais idade, de seguir os cursos noturnos
e conseguir um diploma de con- tabilidade que lhe possibilita, por recomendação do pai deste colega, en- trar em um banco.
Como é jovem, solteiro, descomprometido, idealista e agressivo e não gosta de ficar só à noite, torna -se rapidamente o "delega-
do" de seus colegas para todas as tarefas paraprofissionais às quais os demais empregados não pretendem consagrar seus
momentos de lazer. Milita habilmente em um meio smdicalista, tão violento verbalmente quanto conservador em suas opções
latentes, o que lhe serve para estabe- lecer relações simpáticas e asseguradoras de diversos lados e reunir facil- mente os votos
de seus colegas,tanto quanto a cumplicidade tácita de seus diretores.
Incessantemente, em ação, em luta (verbal),em discurso,viagens, con- ferências ou negociações, recolhe a admiração de toda
a sua família, inclu- sive do irmão mais velho e do tio invejados. Chega aos poucos a fazer no- me nos jornais locais, ajudado
além disto por algumas libações bem locali- zadas nos cafés situados diante das salas de redação e abertos, por isto, até bem tarde
à noite.
À medida que se torna conselheiro disto, delegado daquilo, entra na
municipalidade, depois no conselho geral, finalmente, favorecido por uma eleição que oscila entre um candidato muito marcado
quanto à sua pessoa e um adversário muito marcado quanto às suas idéias, Julien consegue colocar-se em uma posição
tranqüilizadora que lhe dá vantagem no pri- meiro turno e lhe assegura uma confortável maioria no segundo.
Ei-lo deputado de um distrito obscuro, mas onde organiza tão bem a
suu propaganda pessoal que nenhum partido importante ousa inquietá-lo.
É o "feudo" de Julien,se diz. Compõe-se com ele, não opõe-se a ele...
Ele não pára mais em casa. A mulher que havia desposado, por acaso, no decorrer de sua ascensão social, numa breve
parada em uma das eta- pas (da qual nem se lembra mais), continua a criar modestamente seus três filhos e a dividir seu
tempo entre a família, os toques do telefone ("Não, o Sr. Julien não está em casa, ligue no sábado para a prefeitura") e o café
tomado na cozinha com os vizinhos bajuladores.
Julien vive em Paris com sua "secretária", viúva de um amigo seu,
antigo militante dos primeiros tempos, trazida, no rastro de Julien, de volta aos restaurantes luxuosos, aos teatros do Boulevard
e aos vestidos da moda.
33
Que homem seria mais feliz que Julien? Quem seria mais "normal" e bem sucedido?
Ora, eis que uma mudança na direção dos ventos da política, de raízes
mais profundas, varre todos aqueles que não souberam engajar-se com suficiente antecedência em um sentido ou
outro. Julien não é reeleito, apesar de seus esforços de última hora e das tímidas promessas de seus amigos, cada vez
menos calorosos. Perde, com o mesmo golpe, a sua amante, que agora encontra -se no "secretariado" de um dos seus
antigos colegas,tendo a tempo deslocado assuasopções efriamente reeleito sob a nova etiquetadamoda.
Ele tem de voltar à sua região de origem, para junto de sua eclipsada
esposa, retomar um emprego. Qual? As pessoas olham-no com penosa
ironia. Mesmo seus filhos agridem-no com um desprezo que mal suporta.
Julien desmorona. Angustia-se, desgosta-se consigo mesmo, não come mais e emagrece. O sono se altera, o pulso se
acelera. Não se encontra nele nada de medicamente objetivâvel, mas mesmo assim faz - se com que interne em uma
clínica, sem sucesso. A depressão aumenta. Uma noite, recebe-se a notícia de que se suicidou em seu automóvel. As
testemunhas concordam: Julien praticamente jogou-se contra uma ârvore, ao voltar para casa depois da recusa de um
amigo a associar-se a ele em um em- preendimento comercial, graças ao qual esperava retomar (sob a proteção dest e
amigo) uma nova ascenção social.
Tudo evidencia que Julien não era um psicótico. Tampouco jamais atingiu uma verdadeira estrutura neurótica, edipiana ou
genital. Permaneceu bloqueado entre estas duas linhagens, em um estado bastante instável. Tinha necessidade de ocultar sua
imaturidade afetiva sob o disfarce de um sucesso social brilhante e incessantemente renovado. Dissimulava, ao mesmo tempo,
seu frâgil potencial genital sob agressividades verbais compensatórias. O episódio com a amante constituía mais um aspect o
exterior de êxito social e de pseudo-sexualidade do que um verdadeiro investimento genital adulto.
Se não houvesse repentinamente encontrado uma inesperada ferida narci- sista, diante da qual achava-se demasiado
desprotegido, Julien teria cons eguido permanecer adaptado por um longo período de tempo. Caiu doente quando sua decoração
nar c isista cedeu e quando a pobreza de suas trocas afetivas não mais pôde ser dissimulada pelos mecanismos até então
empregados.
Neste momento crucial, Julien não mais soube encontrar outros meios de
mudar, tampouco conseguiu, sozinho, fazer a passagem que o teria levado a uma maior sinceridade em relação a si próprio.
Se os seus médicos, que em vão o encaminharam na busca de uma doença orgânica, tivessem descoberto o imens o
desamparo afetivo oculto por detrâs de seu enlouquecimento corporal e o tivessem tomado ou encaminhado a uma psi-
coterapia, Julien não teria tido necessidade alguma de desaparecer . Teria,sem dúvida alguma, graças às suas grandes
qualidades e energia, conseguido en- contrar, por si só, caminhos novos e mais estáveis de realização de suas reais
34
necessidades afetivas, as quais nada tinham de repreensfvel, nada de particular- mente assustador.
Contudo permanece a questão: por ocasião de seus sucessos, isto é, do êxito dos seus custosos contra-investimentos
narcísicos e antidepressivos (e não de uma adaptação a uma estrutura estável), podia-se considerar Julien afastado da
"normalidade"? O preço que pagava, no plano energético, pela necessidade de sentir - se reconhecido como "normal" aos olhos de
suas instâncias ideais, aos olhos do maior número de seus semelhantes, este preço, muito elevado no plano dos contra-
investimentos, pode ainda ser colocado nos limites de custos "nor- mais"? A pobreza de seus investimentos objetais, a
precariedade do potencial adaptativo de suas defesas, bem como as inibições tocantes às suas satisfações libidinais, permitem
elas permanecer no registro do "normal"? Em algum mo- mento de sua vida, Julien realizou uma organização afetiva centrada
em suas originalidades e necessidades próprias, ao invés de considerar apenas a imagem que fornecia à maioria dos demais e
que dava a si próprio no plano das exigên- cias ideais, sufocando seus desej os e suas necessidades econômicas profundas?
A necessidade, sentida como narcisicamente essencial,de conformar-se a
um ideal ou a uma maioria do "grupo-que-assegura2", será garantia de "nor-
malidade"?
Nos grupos, D. ANZIEU (1969) pensa ser possível determinar a inércia inerente à natureza de cada indivíduo, a seus
comportamentos adaptativos, ou não, diante de uma transformação dos hábitos, conhecimentos ou métodos até então
empregados. A ansiedade engendrada comumente opõe-se à adaptação. A auto-regulação interna necessária diante dos
movimentos do grupo não pode ser obtida, senão graças às possibilidades adaptativas pessoais de cada um dos membros, tendo
em conta atitudes e motivações individuais como modo de co- municação de seu potencial de mobilidade.
Na criança, C. CHILAND (1971) confirma não encontrar estrutura "nor-
mal", que as crianças que "vão melhor" comumente têm uma estrutura profun-
da do tipo neurótico.
Conforme lembrava C. DAVID (1972). convém recordar-se do conselho de Henri MICHAUX: "Não te precipites na adaptação,
guarda sempre de reserva algu- ma inadaptação".
Entretanto, não se pode conceber uma "normalidade" referindo-se a cri térios mais autênticos no plano das realidades
íntimas e, ao mesmo tempo, a relações mais diversificadas e menos angustiadas com a realidade externa? A "normalidade" não
é, em suma, inquietar-se acima de tudo com o "como fazem os outros?", mas simplesmente buscar, ao longo de toda a existência,
sem de-
2 Segura mente o valor subjacente permanece ligado ao registro familiar, mas a exigência social pode muito bem destacar-se da "maioria" de um
conjunto maior, para assegurar -se na "maioria" de um grupo menor, particularmente se este último grupo situa-se em posi· ção "anti" em relação
ao conjunto. Pode-se assim satisfaz er (ao menos em parte) ao mes- mo tempo a defesa, isto é, a necessidade de segurança no grupo escolhido
(mesmo me- nor), imagem da famflia ideal, e a tendéncia, isto é, vontade de agredir o grande grupo, imagem da famllia opressora.
35
masiada angústia ou vergonha, o modo de melhor arranjar-se com os conflitos dos outros e os próprios conflitos pessoais, sem
contudo alienar seu potencial criador ou suas necessidades íntimas.
4. "Normalidade" e padronização
Estamos no direito de perguntar -nos como se pode estabelecer a patoge- nia de comportamentos "pseudo normais",
demasiado centrados em um ideal e uma maioria.
Podemos igualmente colocar-nos uma segunda questão que, apesar das
aparências, encontra -se estreitamente ligada à primeira: não teria o indivíduo, em função de diversos fatores atuais, tendência a
visar, hoje em dia, mais o "pa- drão" do que o "normal"?
Com efeito, no momento em que o mercado comercial aos poucos substi- tui os antigos produtos artesanais, por vezes
excelentes e por vezes muito in- constantes, por artigos industriais padronizados (alimentação, artigos domésti- cos, móveis,
construção, etc.),dos quais se pode dizer que certamente seu nível está abaixo do refinamento, contudo em geral acima da
med
iocridade, não ser ia espantoso ver, paralelamente, o ser humano sacrificar - se à mesma necessidade de segurança,
conformidade, de polivalência mal diferenciada em sua própria utilização de si mesmo.
Creio que um livro recente de B. BETTELHEIM (1971), Les enfants du rêve ("Os filhos do sonho") parece perfeitament e
indicado para nos fornecer ele- mentos de resposta a estas duas questões. Seremos igualmente convidados a uma reflexão
acerca das conseqüências de uma evolução que muito corre o risco de produzir-se também entre nós, e que tende a reduzir
sensivelmente os limites inferiores e superiores do leque de possibilidades de maturação afetiva das indi- vidualidades em um grupo
educativo padronizado.
A obra de B. BETTELHEIM surge como um verdadeiro estudo ex peri-
mental da gênese da "pseudonormalidade" em um meio contemporâneo natu- ral, embora criado em todas as suas peças a
partir de dados artificiais (tanto doutrinais quanto conjunturais), certamente não se originando do puro acaso,e o qual não temos
a intenção de julgar. Podemos aí discernir uma antecipação ou uma simples caricatura daquilo que começa a ser encontrado em
alguns dos nossos novos conjuntos suburbanos,3
A experiência desenrola-se nos kibutzim de Israel. Trata-se de pais trans- plantados, mas que em pleno gozo de sua
liberdade desejaram tentar a expe- riência de um novo modo de vida. O kibutz, enquanto organização comunitária,
3 Infelizmente as coisas apresentam-se entre nós, no plano ex perimental, de modo muito menos asséptico, em virtude da persistência, ao lado
das novas condições, de infra-estru- turas sócio-culturais antigas que pertu rbam os dados do estudo das conseqüências dos fatores e aquisição
mais recente.
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exerce um controle total sobre a vida de seus membros, desde o seu nascimen- to. Em troca, assegura-lhes proteção e
cuidados completos. A educação desen- volve-se sob uma forma comunitária absoluta, tirando aos pais toda e qualquer
iniciativa, mas evitando-lhes também qualquer erro4, toda fonte de frustração ou conflito familiar. Separados de suas mães
desde o quinto dia, desmamados aos dez meses, os filhos do kibutz atingem a adolescência em um ambiente onde seus
companheiros se revestem de muito maior importância para seu desenvol - vimento afetivo do que qualquer adulto. Os grupos
são mistos: meninos e meni- nas vivem inteiramente juntos, tanto nos dormitór ios quanto nos banheiros, mas toda e qualquer
manifestação sexual permanece-lhes completamente proibida até a sua saída do kibutz, com a idade de 18 anos, início do
serviço militar em ambos os sexos.
Os testemunhos, dos quais não temos motivo algum de suspeitar, concor- dam em constatar que tal sistema não enge
ndra drogados nem delinqüente s, e muito poucas crianças caracteriais ou precocemente perturbadas afetivame nte em grau
sério.
As conclusões de uma pesquisa efetuada em escala nacional em Israel, re- ferente ao nível escolar dos filhos dos
kibutzim, revelam resultados de todo "médios", com tão poucos resultados superiores quanto fracos. B. BETTE-
LHEIM (1971lpensa que a influência igualizadora do kibutz parece haver manti-
do em um nível médio honorável aqueles alunos (podemos deduzi-/o pelo alto de- sempenho geral) com suficiente potencial
para fazerem parte dos melhores. Do mesmo modo, operou um nivelamento para cima, dos menos dotados. Mais uma
vez, mostra-se que o sistema de educação favorece os resultados médios, dito de outra forma, o grupo.
No plano genital, o kibutz assume uma posição bastante puritana, não ao comandar a sexualidade em si e por
princípio, mas mostrando incessantemente ao jovem que uma realização dos seus desejos de modo demasiado precoce neste
plano por natureza, prejudica energética ou afet1vamente o grupo, e B. BETTELHEIM reconhece que a mensagem recebida
pelo jovem não deixa de ser que é "mau" ter relações sexuais. Os filhos do kibutz conhecem uma liberdade muito maior que
as outras crianças de sua idade em numerosos domínios, em particular na educação do asseio, mas B. BETTELHEIM estima
que são submeti- dos a um recalcamento muito maior, sobretudo no que diz respeito à sexualida- de.
Cabe observar, aliás, que a vergonha (linhagem narcisista) em relação ao grupo desempenha um papel maior , nas
descrições que nos são propostas, do que a culpa (linhagem edipiana e genital) em relação aos pais ou seus substitu- tos.
Um último ponto, enfim, merece ser notado, no que diz respeito ao com - portamento militar dos kibutzniks: B. BE TTE
LHEIM pensa que "juntos, tudo conseguem sentir, tudo fazer, tudo ser; deixados por sua própria conta, mos - tram-se
muito pouco capazes". Durante os períodos de guerra, bateram-se de
4 Pelo menos o erro não pode ser imputado tardiamente (aprês coup) aos pais.
37
.::lOOO muito coraj oso, disto não há dúvida; entretanto a percentagem anormal- """''!!"'te grande de perdas em suas fileiras atraiu a
atenção do estado - maior is- '"a nse. que achou que lhes faltava julgamento e flexibilidade, capacidade de adaptação às
situações imprevistas e cambiantes, em comparação aos seus ca- maradas de outras origens.
Tudo o que pudemos tirar deste notável estudo permite-nos facilmente
refutar temores de patologia coletiva ou sistematicamente individual no interior do kibutz. Mas não podemos deixar de
comparar, em numerosos domínios, o funcionamento mental do kibutznik à organização psíquica do tipo anaclítico não
descompensado, que descrevemos longamente ao longo de outros capftulos do presente trabalho. Conforme atesta 8.
8ETTELHEIM, não se encontra, entre os filhos do kibutz, a elevada percentagem de processos psicóticos mais ou menos
precoces que invade nossos consultórios ou serviços hospitalares de psiquiatria infantil. Certamente, bem devem encontrar-se,
entre as crianças em questão,al- guns sub-equipamentos afetivos ou sensório-motores notáveis, mas podemos supor que
mesmo nestes casos (com mais fortes motivos ainda diante de me- lhores dados hereditários) a ausência dos pais, da mãe em
particular, sua poste- rior substituição por uma metapelet5 neutra, competente e "padrão",não per- mite a constituição, em torno
da jovem criança, do indispensável tripé prévio ao
estabelecimento precoce de uma estrutura psicótica: déficit pessoal + frustra-
ções muitoprecoces+toxicidadematernaimportanteeprolongada.Faltando automaticamenteosdoisúltimosfatores,nãonos
surpreende que o pequeno ki-
butznik tenha poucas chances de tornar-se psicótico.
Entretanto a situação de apoio absoluto no seio do grupo que a situa,bem mais cedo que as outras crianças, em uma
aparente "normal idade" irá, no terre- no da posterior evolução edipiana, jogar co ntra ela para mantê-la em uma rela- ção de
objeto de modo anaclítico bastante estreito, dificultando a entrada em uma dialética triangular genital. Foi o que constatou e
descreveu 8. 8ETTE- LHEIM (1971), e é isto que encontramos em nossas organizações "limítrofes".
A "normalidade" de tais sujeitos corresponde, no plano da organização afetiva interna, à necessidade de restabelecer
incessantemente, mediante apoio no outro, um narcisismo vivido como podendo falhar a qualq uer momento se o outro subtrair -se
enquanto sustento, se tender a tornar-se quer objeto sexual, quer um concorrente edipiano.
D.ANZIEU (1971) mostrou o quanto a situação grupal podia acarretar uma ameaça de perda de identidade do sujeito.
Inversamente, podemos considerar que o grupo opera dificuldade de identificação, porém às custas da renúncia a certos
aspectos originais, bem como à solidez dos resultados de processos iden- tiiicatórios individuais, tais como habitual mente
desenvolvem-se no sujeito ca- paz de aceitar a responsabilidade de uma certa independência.
Parece-me que aqui situa-se todo o problema econômico do "pseudo- normal": ter evitado perturbações importantes da
infância, mas não obter acesso a um estatuto de adulto bastante sólido estruturalmente para torná-lo indepen-
5 Preceptora coletiva.
38
dente no plano de suas necessidades libidinais e de suas relações objetais; a con- seqüência tópica desta carência econômica
manifesta-se no superinvestimento de um Ideal de Ego pueril, e a consaqüência dinâmica, na orientação mais ou menos
exclusivamente narcisista oferecida aos investimentos pulsionais; de ou- tra parte, J.- 8. PONTALIS (1968) acha que o grupo poderia
chegar a substituir o objeto libidinal, tornando-se ele mesmo objeto libidinal no sentido psicanalítico
do termo, o que,em nosso entender, é bem menos inquietante para o narcisis-
mo individual, mas lamentavelmente encoraja o suj eito a não mais buscar au- tênticos obj etos libidinais fora do círculo demasiado
restrito do grupo.
Não mais se favorece a originalidade e, sem respeitar a originalidade, po- demos ainda falar de "normalidade" no sentido
pleno do termo?
5. Édipo e "normalidade"
As reflexões precedentes levam-nos inevitavelmente a colocar uma ques- tão bastante embaraçosa, a qual arriscamo-nos a
talvez nos acharmos incapazes de responder sem apelar, conscientemente ou não, a jufzos de valores ou opções ideais.
Se tomarmos como hipótese de trabalho o risco de definir a "normalida-
de" como uma adaptação pelo menos bastante perceptível aos dados estruturais internos estáveis e exteriores móveis, somos
levados a considerar como "nor- mais" os comportamentos mais ou menos originais de todas as estruturas, neurótica ou mesmo
psicótica, não descompensadas. Ora, se aceitamos a "nor- malidade" de estruturas psicóticas bem adaptadas, guardaremos ainda
a possi- bilidade de recusar o rótulo de "normalidade" a todo este grupo de organiza- ções antidepressivas, anacliticas e
essencialmente narcisistas, cuja fraude nas defesas acabamos de descrever como "pseudonormalidade", "falso self", "per-
sonalidades como se" e anaclíticas diversas, que não conseguem viver bem fora do grupo? Agora qualquer episódio mórbido, uma
organização do tipo "estado limite" seria menos "normal" do que uma estrutura psicótica? Menos sólida, o fato parece certo para
os clfnicos, mas menos "normal"?
Os resultados de pesquisas das mais honestas levam a pensar que existem, grosso modo, nas populações de nossas cidades.
um terço de estruturas neu- róticas, um terço de estruturas psicóticas, e um terço de organizações mais ou menos anaclíticas (cf.C.
CHILAND, 1971 a, p. 180-183).
Outras estimativas concordam na cifra de psicóticos. mas variam para me-
nos na cifra de neuróticos (em torno de 20% apenas), e para mais na cifra das organizações intermediárias (em torno de 50%).
Seríamos, pois, levados a eliminar do campo da "normalidade" certa- mente mais de um terço de nossos contemporâneos?
E mais: dado que, fora mesmo de qualquer opção sócio-política clara e deliberada, as gerações por vir conhecerão, em função da
inevitável evolução sócio-econômica "grupal", à ima-
39
uo tioutz, menos riscos de evolução psicótica, porém mais dificuldades no a-esse a UI'Tl Édipo organizador, veremos sem
dúvida aumentar a cada ano, a ""=:"Ce"'tagem de arranj os anac líticos em uma população média. Em conseqüên - a.,averia cada
vez menos pessoas "norma1s"?
O aspecto irônico da questão contudo nada recobre de leviano: em reali-
::oade, é toda a função "normativa" da orgamzaçáo pelo t:dipo que se encontra posta em questão, e não simplesmente, por
certo, o conhecimento ou reconhe- cimento de uma vivência edipiana no inconsciente mas a estruturaçáo da perso- l"'alidade por
ocasião da passagem pela posição triangular com um objeto e um ri- val sexuais plenamente investidos como tais, e as
irreversíveis conseqüências estruturais daí decorrentes.
A ssim definida em seu rigor, será que a organização pelo Édipo é indis- pensável? Pode-se encorajar, em plena consciênc
ia e clareza, sistemas educati- vos, polít icos, econômicos, sociais, até filosófic os,que certamente limitam os ris- cos de psicotizaç ão
precoce, mas tornam aleatório o acesso a um estatuto edi- piano autêntico?
Será que a organização pelo Édipo se mostra necessária para viver feliz?
O dilema parece insolúvel: será que podemos contentar-nos com um "bem" para o maior número, estabelecido a partir
de um mínimo múltiplo co- mum situado abaixo das possibilidades de muitos, ou será preciso,ao contrário, tender para um
"melhor", ficando perfeitamente conscie ntes de que (como no ditado) o "melhor" pode ser inimigo do "bem" e reservado a
uns poucos, os únicos que saberão e poderão atingi-lo, enquanto se sacrificarão os mais mo- destos no plano da organização
psíquica de base7
Apenas levantei a questão em termos muito pragmáticos, contudo dema - siado severos par'a serem propostos às pressões
mal defi nidas das paixões pú- blicas, e eis que, sob uma forma aparentemente teórica, desenvolve-se agora um feroz
movimento de massas que corre ao assalto da fortaleza edipiana, fan- tasiada (tal como a imagem negativamente idealizada da
Bastilha em 1789) co- mo repleta de tesouros secretos inestimáveis do Poder, inumeráveis vítimas da Injustiça, e os mais ardentes
defensores do Capitalismo (aqui analft1co).
Seria por demasiado fácil declarar , sem trazer a demonstração ,que o "an- ti-édipo", depois da "antipsiquiatria", limita -se,
como novidade essencial, ao seu modo muito violento de apresentar a hábil mistura, por um lado, de críticas jus- tifica das já
muito antigas e, por outro, de erros científicos não menos antigos, mas trazidos agora para o plano sócio-político, logo mais
difícil de denunciar pelos não-especialistas.
Procurarei situa r-me em outro nível e permanecer fixado ao domínio es- tr-to deste estudo,considerando as reflex ões que
sugerem,diante do conceito de "normalidade", as posições de G. DELEUZE e F. GUATTARI (1972) em seu Anti- Eápo.
É evidente que aqueles dentre os psicanalistas que pretendiam ser os freu-
c .anos mais fiéis há muito limitaram-se ao estudo e tratame nto dos "neuróti-
!DS • w'as talvez também descrevessem ou tratassem sob este vocábulo, por ve-
zes be'TI outra coisa do que estruturas autenticamente neuróticas? Entretanto,
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A personalidade normal e patológica

  • 1.
  • 3. Prezado Leitor Este livro traz algumas páginas impressas em fundo vermelho. Tal artifício visa a evitar a xerografia criminosa que, além de atentar contra os direitos do autor, inibe toda iniciativa editorial, trazendo como consequência o prejuízo do próprio leitor, cujo acesso a novas obras ficará, assim, cada vez mais restrito. Nosso procedimento conta com a aprovação da ABEAS (Asso- ciação Brasileira dos Editores na Área da Saúde), que, desde a sua fundação, tem chamado a atenção para a situação alarmante aque nos conduziu esse tipodeatividade,cadavez maissistemática. Esperamos contar com a sua compreensão diante desse incon- veniente, que contraria nossos padrões editoriais; porém enfatizamos que foi a única solução encontrada para podermos continuar servindo à ciência e à cultura deste País. EDITORA ARTES MÉDICAS SUL LTDA. 8496p Bergeret,Jean A personalidade normal e patológica I Jean Bergeret; trad.Alceu Edir Fillmann- Porto Alegre: Artes Médicas,1988. 291p. CDU: 159.97 Índices para o catálogo sistemático: Psicopatologia 159:97 Fichacatalográficaelaborada pela bibl.Carla P.de M.PiresCRB10/753
  • 4. JEAN BERGERET Personalidade Normal ePatológica Tradução: ALCEU EDIR FILLMANN Psicólogo eMédico 2ª EDIÇÃO PORTO ALEGRE / 1991
  • 5. Obra originalmente publicada em francês sob o titulo La personalité normale et pathologique © Premiére édition BORDAS, Paris, 1974. Capa: Mário Rõnhelt Supervisáo editorial: Rua13de Maio, 468- Fone: (054) 222.6223 95080- Caxias do Sul- RS Reservados todos os direitos de publicação à EDITORA ARTES MÉDICAS SUL LTDA Av.Jerônimo de Orneias, 670- Fones: 30.3444 e 30.2378 90040- Porto Alegre- RS - Brasil LOJA-CENTRO Rua General Vitorino, 277- Fones: 25.8143 e 28.7834 90020- Porto Alegre- RS- Brasil IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL
  • 6. Sumário Introdução ...........................................................................................................................................................................9 Primeira Parte HIPÓTESES SOBRE AS ESTRUTURAS DA PERSONALIDADE Histórico .....................................................................................................................................................................15 1. ESTRUTURASENORMALIDADE 1. A noção de normalidade........................................................................................................................................19 2. Patologia e normalidade ........................................................................................................................................24 3. A normalidade patológica ......................................................................................................................................30 4. "Normalidade" e padronização ......................................................................................................................................36 5. Édipo e "normalidade" .................................................................................................................................................39 2. A NOÇÃO DE ESTRUTURA DA PERSONALIDADE 45 1. O sentido dos termos 45 A)Sintoma............................................................................................................................................................45 B) Defesa ..........................................................................................................................................................46 C) Significação histórica do episódio ........................................................................................................................47 D) Doença mental.......................................................................................................................................................49 E) Estrutura da personalidade.................................................................................................................................49
  • 7. 2. O conceito de estrutura da personalidade .• 50 A) Definição e situação . .••.. 50 B) O ponto de vista freudiano .. 51 a) Primeira posição freudiana 53 b) Segunda posição de Freud 53 c) Terceira posição freudiana 54 d) Quarta posição freudiana . 54 C) Gênese da estrutura de base • 55 a) Primeira etapa 55 b) Segunda etapa •.••••. 55 c) Terceira etapa .•••• ••••. •••.• 56 D) Consideraçõesacercadasestruturasnotocanteàinfância,latênciaeadoles· cência . • . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . • • . . . . . . . . . . . . . . . • . . 57 3. AS GRANDES ESTRUTURAS DE BASE 1. Alinhagemestruturalpsicótica .. A) Aestruturaesquizofrênica ••. B) A estrutura paranóica • C) A estruturamelancólica .••••. D) Reflexões diferenciais .... • •. 2. A linhagem estrutural neurótica A) A estrutura obsessiva ........ B) A estrutura histérica . . . ...... a) A estrutura histérica de angústia b) A estrutura histérica de conversão C) Reflexões diferenciai s D) As falsas "neuroses" 65 68 75 77 81 84 99 103 107 109 111 115 118 4. AS ANESTRUTURAÇÕES •. 1. Situação nosológica • ••. 2. O tronco comum dos estados limltrofes 3. A organização limltrofe •••••••. A) O ego anaclltico •••••• •• .. B) A relação de objeto anaclltica • • C) A angústiadepressiva •.•••.• D) As instâncias ideais .• •••.•• E) Osmecanismosdedefesa •••• 4. Evoluções agudas •••.•.•••.• • A) Descompensação da senescência • B) Rompimento do tronco comum . 5. Ordenamentosespontâneos ••••• A) Oordenamentoperverso ... B) Os ordenamentos caracteriais a) "Neurose" decaráter ... b) As "psicoses" de caráter . c) As "perversões" de caráter 126 126 129 131 131 132 136 137 139 141 141 143 147 147 153 154 154 155
  • 8. rico 159 5. O CARÁTER 167 1. Os caracteres neuróticos • • • • • • • • ••••••••••. 169 B) O caráter histerofóbico ••.. • •••••.••••••••. 174 C) O caráter obsessivo •.•.•• 178 2. Os caracteres psicóticos •••••• 186 A) O caráter esquizofrênico 187 B) O caráter paranóico . 191 3. Os caracteres narcisistas . 197 A) O caráter abandônico . 198 B) O caráter de destinado 199 C) O caráter fóbico-narcisista 199 D) O caráterfálico ..•••.•••.•• 200 E) O caráterdepressivo •.• 201 F) O caráter hipocondr!aco • 201 G) Ocaráterpsicastênico .. 202 H) O caráter psicopático . . 202 I) O caráter hipomaniaco . 203 Segunda parte HIPÓTESE SOBRE OS PROBLEMAS DO CARÁTER A) O caráter histérico de conversão ••••••••••••..•. 170 4. Os caracteres psicossomáticos . . . . . . • • . . • • • • • . . . . . . . • . • • • . . • 204 5. O caráter perverso • • • . . . • • • . . • . . • • • • • • • • • • • • • . . • • • . • • • . 209 6. Observações acerca dos problemas do caráter da criança • . • • • • • • • • • • 211 7. Existe um "caráter epilético"? • • • . • • • • • . • • . • . . . • • • • • • • . . • . 213 6. OS TRAÇOS DO CARÁTER .. 216 1. Traços de caráter estruturais 220 A) Os traços de caráter neuróticos . • • • • • • • • 220 a) Os traços de caráter histéricos . . • • • • . • • . • . • • • • • • • . • . • • 221 b) Os traços de caráter obsessivos • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • • . 221 B) Os traços de caráter psicóticos • • • • • • • • • • • • • . . • • • • • • • • 221 a) Os traços de caráter esquizofrênicos • • . • . • • • • . • . • • • • • • . 221 b) Os traços de caráter paranóicos • • • . . • • • • • • • • • • • • • • • • . • . . 222 C) Os traços de caráter narcisistas • • • • • • • . . • • . . • • • • • • • • . • • • • • 222 2. Traços de caráter pulsionais • • • • • • • • • • • • • • • • • • . . . • . • • • . • • . • 223 A) Traços de caráter libidinais • • • • • • • • • . • . • . • . • • . • . • • . 224 a) Traços de caráter orais • • . . • • • . • • • • • • • • • • • • • • • • 224 b) Traços de caráter anais . • • • • • . . • • • • . . 226 c) Traços de caráter uretrais d) Traços de caráter fálicos e) Traços de caráter genitais B) Traços de caráter agressivos a) Traços de caráter sádicos b) Traços de caráter masoquistas c) Traços de caráter autopunitivos C) Traços de caráter dependentes das pulsões do ego . 228 228 229 231 231 233 234 235
  • 9. 7. A PATOLOGIA DO CARÁTER • •• • • • o • o •••• •• •• ••• • o ••• •••••• o 236 1o A "neurose" de caráter o ••••• • • • o o ••••••• o •• o o o o o o o • • • • • • 240 2. A "psicose" de caráter .. o ••••• o •••••••• o o o • o o o o • o o o • o o o • 245 3. A "perversão" de caráter o ••• • • •• ••••••• • • o o •••• o o o • o • • • • • 252 CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA 257 263 ÍNDICE DAS FIGURAS o o o o o o o o o o o o o o o o o o o . o o o o o o o . o o o o o o o o o 283 ÍNDICE DAS OBSERVAÇÕES o o o • o o • o o o • o o o o o o o o o o o o o • o o o .. o . . 285 ÍNDICE REMISSIVO o o o . o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o . o o o . o . o 287
  • 10. Introdução A presente obra constitui a síntese e o desenvolvimento das pesquisas que tenho empreendido desde 1963 acerca da articulação dos fenômenos manifestos, ao nível do caráter ou dos sintomas, com os elementos metapsicológicos, mais estáveis e profundos, situados sobre o plano menos visível e latente da estrutura da personalidade. Muitos autores interessaram-se por aspectos fragmentários desta tr ilogia: estrutura- caráter- síntomatología. Pareceu-me oportuno tentar uma síntese que se apoiasse sobre tão numerosos pontos de vista, e emitir hipóteses novas, apropriadas a fazer renascer o debate sobre os problemas, um tanto negligen- ciados atualmente, da abordagem caracterológica. A caracterologia poderia, com efeito, ser pretensiosamente considerada como uma ciência destinada a precisar os entrecruzamentos metapsicológicos visíveis entre as múltiplas manifestações relacionais possíveis que amenam desta ou daquela estrutura de base. Cada tipo de estrutura profunda da perso- nalidade poderia, assim, dar origem a diferentes modelos relacionais, uns per- manecendo no domínio caracterial, outros mergulhando mais ou menos radi- calmente no registro patológico. Penso ser necessário, atualmente, introduzir uma concepção sistemática que leve em conta a dinãmica e a genética freudianas. Muitas personalidades, com efeito, correspondem a tentativas de estrutu- ração imperfeitas ou inacabadas; encontram- se, pois, em um bom número de casos e durante muito tempo, possibilidades, quer de mudar ainda o curso das coisas na via estrutural, quer de deter a evolução estrutural por um período muito variável de um sujeito para outro, sobre a base de uma simples pausa la- tencial que em si nada teria de definitivo. Podemos também observar fixações 9
  • 11. sobre o modo de um frágil arranjo defensivo, muito custoso do ponto de vista econômico, porém conservando todo tipo de capacidades evolutivas em dire- ções mais estáveis e mais sólidas. Em suma, as personalidades nitidamente estruturada s, c orrespondendo a funcionamentos econômicos ao mesmo tempo estáv eis e bem integrados (condições essenciais ao rótulo de "normalidade", no seio de uma linhagem estrutural definitivamente fixada) mostram-se mais raras do que até aqui se po- deria ter pensado. Tais personalidades somente poderiam originar-se em um contexto onto- genético limitado, e unicamente em momentos precisos desta ontogênese. Tais condições podem, sem dúvida, encontrar- se notavelmente esc larec idas pelas in- vestigações clínicas, cuja síntese é apresentada neste trabalho. Estas investiga- ções devem permitir-nos a localização de critérios ao mesmo tempo muito pro- fundos e essencialmente polivalentes. Sem dúvida, torna-se possível, assim, situar melhor muitos casos particu- lares de personalidades ou caracteres que os antigos sistemas tipológicos, de- masiado rígidos, não permit ia m ligar mui claramente aos principais modelos estruturais bem definidos . Par eceu-me um obj etivo a ser visado não mais falar dos muito fáceis "tipos mist os" ( dos quais se desconhece a natureza e os níveis da "mistura"), sem compr o missos nem concessões. A distinção que estabeleci entre "caracteres" e "estruturas" poderá parecer bastante artificial para alguns , uma v ez que,segundo a terminologia filosófica ou psicológica, a denominação "estrutu ra" mais comumente recobre todo e qual- quer modo de organiza ção, seja qual for o nível: personalidade, caráter, tipo, etc. Trata-se de um termo bast ante geral, que dificilmente poderá opor-se a outro termo que defina uma catego ria particular dependente do mesmo conjunto. Em psicopatologia, ao contrário, o vocábul o "estr utura" assume um senti- do mais preciso, limitado aos elementos de base da per sona lidade, ao modo pelo qual esta personalidade é or ganizada no plano profundo e fundamental; os psicopatologistas podem, pois, opor livremente a noção de estrutura de base, ou estrutura da personalidade (em geral se diz simplesmente "estrutura"), tanto aos "sintomas" quanto aos "caracteres " (o que os filósofos talvez prefeririam chamar de "estruturas dos sintomas " ou "estruturas de caráter") . Os psicopatologistas, com efeito, ocupando-se essencia lmente do aspecto funcional destes sintomas ou caracteres, consideram-nos como dependentes, em primeiro lugar, em sua gênese, sua originalidade e limitaç ões, da natureza e varied ade da estrutura de base da personalidade sobre a qual repousam. A estrutura da personalidade (ha bitualmente denominada simplesmente de "estrutura" em psicopatologia) é concebida, pois, por u m lado, como a ba- se ideal de ordenamento estável dos ele me ntos met a ps icológicos constantes e essenciais em um sujeito, ao passo que o c a ráter, por outr o lado, aparece como o nível de funcionamento manifesto e não mórbido da estrutura, tal como acaba de ser definida. Em uma ótica como esta, a sintomatologia torna -se simplesmente o modo de funcionamento mórbido de uma estrutura quando esta se descompensa, isto 10
  • 12. é, desde que os fatores internos ou externos de conflitualização não se encon- trem mais equilibrados por um jogo eficaz (e não perturbador em si) dos varia- dos mecanismos de defesa e adaptação. Se não desenvolvi especificamente, nem em capítulos originais,o ponto de vista sintomatológico, é porque somente reteve minha atenção, no presente es- tudo, o lugar económico dos sintomas no conjunto de tal personalidade dada. O exame fenomenológico dos sintomas encontra-se copiosamente condu- zido nos tratados de psiquiatria das diversas tendências. Meu obj etivo aqui limi- ta-se a ressituar a função do sintoma em relação a estrutura de base, por um la- do, e ao funcionamento caracterial, por outro. É evidente que tal concepção de conjunto, essencialmente dinâmica, ape- nas pode ser desenvolvida no contexto de uma posição e reflexão autêntica e claramente psicanalítica. Com efeito, seguindo FREUD e os trabalhos psicanalíti- cos contemporâneos, torna-se possível compreender a estrutura, tal como se encontra definida acima, como elemento organizador de base da personalidade, em situação ativa e relaciona I. Escapa-se, assim, aos habituais e inevitáveis aca- valamentos entre "estruturas de personalidade", "estruturas de caráter" e "es- truturas nosológicas", a todas as hesitações (ou mesmo contradições) encontra- das nos antigos procedimentos. Minha pesquisa levou-me inevitavelmente a repensar, sobre estas novas bases conceptuais, o problema da normalidade. Do ponto de vista metodológico, esforce1-me por esclarecer o debate (com os riscos certos da "sistematização") com máximo de pranchas ou esquemas; também ative-me a inserir, nos momentos mais "teóricos" de meu texto, obser- vações clínicas tão expressivas e vivas quanto possível, destinadas (com o risco de por vezes beirar a caricatura) a bem definir o traço motor principal de minha pesquisa. Minha ambição será a de que o clínico pouco propenso às reflexões teóri- cas, ou simplesmente o leitor apressado, possam encontrar, pelo menos em um primeiro tempo, nestas observações que escolhi e desenvolvi com especial cui- dado, o essencial do fio condutor de meu propósito. Por falta de lugar, e para não tornar este trabalho pesado demais, nem sempre pude agrupar, sistematizar e desenvolver, tanto quanto teria desejado, as minhas fontes de documentação e minhas reflexões críticas a este respeito, particularmente nos parágrafos "históricos". Não teria como exprimir todo o reconhecimento aos pesquisadores e clíni- cos que me trouxeram tantos elementos de elaboração, em particular D. AN- ZIEU, M. BENASSY, M. FAIN, A. GREEN, R. GREENSON, B. GRUNBERGER, J. GUILLAUMIN, O. KERNBERG, R. KNIGHT e P. C. RACAMIER. Df.· SeJO v ivamente que minha contribuição, apesar de suas numerosas im- perfeições, possa movimentar um pouco os quadros demasiado rígidos ou im- precisos das antigas posições estruturais ou caracterológicas, e que incite os autores contemporâneos a ampliar ainda mais o debate, a retomar e desenvol- ver poster iores estudos fecundos nestes níveis. 11
  • 13. Primeira parte HIPÓTESES SOBRE AS ESTRUTURAS DA PERSONALIDADE
  • 14. Histórico O termo estrutura é marcado de significações muito diversas, conforme se refira à teoria da Gestalt, às teorias jacksonianas ou ao estruturalismo. É igual- mente, por vezes, empregado no sentido de "estrutura de conjunto", aproxi- mando-se então do emprego do substantivo inglês "pattern". Entretanto, na linguagem usual, a estrutura continua sendo uma noção que implica uma disposição complexa, porém estável e precisa das partes que a compõem, é a maneira mesma pela qual um todo é composto e as partes deste todo são arranjadas entre si. No decorrer de minha introdução, estendi-me suficientemente quanto ao sentido dado em psicopatologia ao termo "estrutura", para não precisar de novo justific ar aqui os limites desta utilização ao nível da estrutura de base da perso- nalidade. Considerarei que "constituição" e "estrutura" da personalidade represen- tam, grosso modo, um conceito idêntico, do modo de organização permanente mais profundo do individuo, aquele a partir do qual desenrolam-se os ordena- mentos funcionais ditos "normais", bem como os avatares da morbidade. Afora casos em que é empregado no sentido de "temperamento" ou "ca- ráter", o termo "tipo" refere-se habitualmente à estrutura de base, e parece não necessitar detratamento especial. Didier ANZIEU (1965) situa no primeiro quartil do século XX o desenvol- vimento da idéia de "estrutura" e pensa que esta noção recobre uma tomada em consideração dos sintomas segundo o método associacionista. Ora, para D. AN- ZIEU os sintomas apenas têm sentido se ligados uns aos outros, ou em sua rela- ção com o caráter; o que fica de especifico não é sua simples presença1, mas seu 1 Existem, por exemplo, obsessivos sem qualquer "obsessão" vis!vel exteriormente. 15
  • 15. modo de disposição entre si. Ademais, é preciso ter em conta tanto sintomas "negativos", correspondentes aos déficits registrados nos pacientes, quanto sintomas "positivos", correspondentes às reações específicas do paciente diante da alteração de sua personalidade. Entretanto, desde as descrições poéticas ou filosóficas que remontam à antigüidade, a vertente patológica das estruturas sempre viu-se mais facilmente desenvolvida. Encontramos, contudo, em HOMERO, na BÍBLIA, DEMÓCRITO, ESCULÁPIO ou PLATÃO, referências a tipos estruturais não-mórbidos. Os au- tores da Idade Média, depois SHAKESPEARE, o classicismo literário e tantos autores mais modernos, destacaram-se na análise não apenas do caráter, mas da estrutura de alguns de seus personagens, chegando mesmo a mostrar como podia efetuar-se a passagem entre a esfera psicológica ainda adaptada e esfera patológica já descompensada, no seio da mesma organização mental. A partir do século XVIII, foram os psiquiatras os que mais desenvolveram seu ponto de vista no terreno estrutural. PINEL (1801), ESQUIROL (1838) RÉGIS (1880), na França, TUKE (1892), MAUDSLAY (1867), JACKSON (1931), na Grã- Bretanha, RUSH (1812) e A. MEYER (1910) nos Estados Unidos, GRIESINGER (1865), MEYNERT (1890), W ERNICKE (1900) e KRAEPELIN (1913), em língua alemã, foram os primeiros a referirem-se à continuidade entre o normal e a pa- tologia no seio de uma estrutura profunda da personalidade. Sua atitude geral fundamentalmente "humanitária" embasa-se nesta convicção, mesmo que esta nem sempre se encontre claramente expressa. Os perfodos ditos "social", depois "comunitário", da psiquiatria, não se apresentam, no fundo, mais do que como seqüência lógica do andamento anterior: sejam quais forem os fatores desenca- deantes ou curativos mais especificamente privilegiados por esta ou aquela es- cola, o andamento profundo de cada uma conduziu aos poucos em direção à idéia da não-especificidade da natureza mórbida de tal ou qual estrutura, da la- bilidade e curatividade de toda estrutura em si. A antipsiquiatria em quase nada pôde ir além das tendências sociais ou comunitárias precedentes no plano de um liberalismo que, voluntariamente ou não, permaneceu racional; ela nos propõe simplesmente o "salto" para fora da lógica, mas não reverte nada de novo e na- da traz de novo, sobretudo, quanto ao problema do continuum estrutural do qual não pode nem ouvir falar, tanto parece haver ai ficado presa ao registro da angústia. Embora a classificação dos dados profundos tenha-se revelado uma ne- cessidade, é preciso reconhecer que, na falta dos meios metapsicológicos que atualmente possufmos com a contribuição de FREUD e dos pós-freudianos, as simples descrições não poderiam ser suficientes em tal domínio; também não é de espantar a constatação de que encontramos, no domínio estrutural, muito menos hipóteses a passar em revista do que no capítulo consagrado às caracte- rologias. Podemos considerar, com Henry EY (1955), que a "variação mental pato- lógica" pode ser encarada segundo quatro modelos teóricos: como alienação ra- dical, como produto dos centros cerebrais, como variação da adaptação ao meio, ou ainda como efeito de um processo regressivo na organização psíquica. Qual- 16
  • 16. _,. seja a resposta escolhida, convém compreender a condição mental, 'sódio mórbido, em uma estrutura profunda original e formal, conser- • ce a mente, sua significação existencial e antropológica. o que diz respeito ao ponto de vista estrutural na criança, Colette CHI- - :::> ( 971) resumiu a opinião de muitos psiquiatras infantis contemporâneos, ndo a particular complexidade da noção de estrutura na idade em que tu- · ooa não parece haver-se desenrolado, na medida em que as fases de equi- . e descompensações podem suceder-se, sem que uma significação profun- G3 seja sempre evidente. A estrutura, para Colette CHILAND (1967), permanece inspirada na opinião e LÉVI-STRAUSS (1961 ), interessada nos modelos, levando em consideração ão só os termos em si, mas as relações entre os termos. Para C. CHILAND, trata-se de procurar a explicação estrutural, não exclusivamente ao nível do sis- t ema de relação, mas ao nível das regras de transformação, que permitem pas- sar de um sistema a outro, tomando em consideração os sistemas reais, tanto quanto os sistemas simplesmente possíveis. C. CHILAND refere-se à opinião de A. FREUD (1965) para ligar a estru- tura ao nível da segunda tópica, em relação às pulsões, com o ego e o superego, e para fundar um eventual diagnóstico estrutural no estudo da relação de objeto e dos mecanismos de defesa. Antes da contribuição freudiana, havia-se visto inicialmente a proposição de classificações sintomatológicas, com KAHLBAUM (1863), MORE L (1851), HEC- KER (1871 e 1874) e, certamente, Émile KRAEPELIN, cujas hipóteses foram re- tomadas na classificação centrada na noção de psicose, proposta pela Associa- ção Americana de Psiquiatria . Estas classificações que tendem a ligar o sintoma ao "distúrbio fundamental" subjacente limitam-se a descrições clínicas que, em todos os tempos, seduziram os psiquiatras. Certas modificações foram trazidas por E. BLEULER em 1911, no sentido de um afinamento da semiologia, mas ainda em dependência muito grande dos sintomas. Na mesma época, vemos aparecer tentativas de classificação org nicas com JACOBI (1830), MOREL (1860), SKAE (1897), CLOUSTON (1904), TUKE (1892). Estes pontos de vista são retomados na classificação proposta há alguns anos pela Associação Médico-Psicológica Real da Grã-Bretanha. Haveria uma íntima ligação obrigatória entre o distúrbio psíquico e uma suposta lesão orgâni- ca. Reencontramos, no mesmo caminho, o ponto de vista organo-dinamista de Pierre JANET (1927), repousando em grande parte na noção de evolução, os trabalhos de H. JACKSON (1931 ), de MONAKOW e MOUR-GUE (1928) e, final- mente, as concepções de H. EY (1958), inspiradas em JACKSON. J. ROUART buscou precisar, em BONNEVAL (1946), o possível papel de toda organicidade em um tal sistema de classificação. As classificações fisiológicas foram sustentadas por MEYNERT (1884), TU- KE (1892), WERNICKE (1900), A. MEYER (1910), CONNOLY (1939), LAYCOCK (1945), D. HENDERSON e R. D. GILLESPIE (1950). Elas tentam estabelecer as relações entre o funcionamento mental observado e localizações neurológicas diversas, que corresponderiam a centros reguladores do funcionamento mental sobre tal ou qual registro particular. 17
  • 17. As classificações psicológicas correspondem a uma preocupação em bus- c ar , no domínio do funcionament o mental do "homem normal", categorias nas quais se tentará, a seguir, fazer com que entrem os distúrbios psicopatológicos . Um certo número de autores trabalhou neste sentido, tais como LINNE (1763), ARNOLD (1782), CRICHTON (1798), PRICHARD (1835), BUCKNILL e HAKE-TU- KE (1870), ZIEHEN (1892), HEINROTH (1890). O ponto de vista freudiano, ao contrário, interessa-se por alguns marcos fundamentais que permitam diferenciar ou aproximar as estruturas, tais como o sentido latente do sintoma (símbolo e compromisso no interior do conflito psí- quico), o grau atingido pelo desenvolvimento libidinal, o grau de desenvolvi- mento do ego e do superego, e a natureza, a diversidade, sutileza e eficácia dos mecanismos de defesa. Os pós-freudianos prosseguiram nas pesquisas sobre estas bases: K. ABRAHAM (1924), F. ALEXANDER (1928), E. GLOVER (1932 e 1958), K. MENNINGER (1938 e 1963), J. FROSCH (1957), D. W. WINNICOTT (1959), W. SCOTT (1962). M. BOUVET distingue, em 1950, os modos de estruturação genital e pré- genital. L. RANGELL (1960 e 1965) coloca- se em uma perspectiva de conjunto das diferentes funções do ego . A. GREEN (1962 e 1963) procurou apoiar-se nas noções de perda e restituição do objeto, de fantasmatização, de identificação e desfusão, de castração, de fragmentação, de sublimação e recalcamento, para dar conta não só das grandes entidades nosológicas clássicas, mas também da diversidade das pequenas entidades "intermediárias", tão comumente esqueci- das ou descuidadas por um bom número de autores. J. H.THIEL (1966), por seu turno, levanta-se contra a exclusividade neurótica, tanto tempo manifestada pela pesquisa psicanalítica e estima que se deva distinguir entre uma teoria do dis- túrbio mental, uma certa filosofia da natureza, das causas e funções da doença e, por outro lado, enfim, um sistema de classificação das desordens entre si. 18
  • 18. .-----111 r-------------------------------------------- Estruturas e normalidade 1. A noção de "normalidade" O emprego da noção de "normalidade" certamente apresenta incontestá- veis perigos nas mãos dos que detêm a autoridade médica, polftica, social, cul- tural, econômica, filosófica, moral, jurfdica ou estética e, por que não, intelec- tual? A história antiga ou contemporânea das comunidades, bem como das ideologias, grandes ou pequenas, serve-nos para isto de cruéis exemplos, cada qual apenas conservando em sua memória representações muito seletivas, em função de suas opções pessoais. Se a "normalidade" se refere a uma porcentagem majoritária de compor- tamentos ou pontos de vista, azar daqueles que ficam na minoria. Se, de outra parte, a "normalidade" torna-se função de um ideal coletivo, muito se conhece os riscos corridos, mesmo pelas maiorias, desde que se encontrem reduzidas ao silêncio por aqueles que se crêem ou se adjudicam a vocação de defender dito ideal pela força; entendem limitar o desenvolvimento afetivo dos outros, depois de se haverem também visto, eles mesmos, acidentalmente bloqueados, e de- pois elaborado secundariamente sutis justificações defensivas. De fato, a "normalidade" é mais comumente encarada em relação aos ou- tros, ao ideal ou à regra. Buscando permanecer ou tornar-se "normal", a criança identifica-se com os "grandes" e o ansioso os imita. Em ambos os casos, enun- cia-se a questão manifesta: "Como fazem os outros?" e subentende-se: "Como fazem os grandes?" Ora, o verdadeiro problema colocado pelo eventual reconhecimento de uma "normalidade" talvez não se situe a este nivel, entre estes dois falsos as- pectos objetivos: os outros ou o ideal. 19
  • 19. - érlaa atômica levou o mundo às catástro>es oue C0'1hecemos; nem =:; trata-se, mesmo entre os mais pacifistas, de "ega·a existência do áto- ;:,or que então experimentaríamos a necessidade de '"' ar toda e qualquer ;mção de "nor malidade"? Se ao invés de formu lar (ou temer), a todo momento, ,u gamentos deva- lor em relação aos outros quanto a uma eventua l"normalidade", f""' ui freq üente e desastrosamente neste sentido, enfatizarmos em primeiro lugar a constatação de bom funcionamento interior que pode comportar esta noção,tel"ôo em conta dados particulares a cada indivíduo (foi ele muito limitado em suas possibilida- des pessoais, de modo ocasional ou duradouro), parece-me que poderíamos en- carar as coisas de modo completamente diferente do que com simples defesas projetivas, ou então proselitismos invasores e inquietantes. Contudo parece não ser fácil encontrar interlocutores que aceitem discutir um aspecto subjetivo eminentemente nuançado e variável de "normalidade" em função das realidades profundas de cada um. Por um lado, a tentação sádica leva-nos logo em direção às estatlsticas e ideais; por outro lado, a tentação masoquista e "pauperista" desencadeia uma alergia horripilante e imediata diante de todos os compostos da palavra "nor- ma"1. No primeiro caso encontramo-nos prisioneiros de um imperialismo que se apodera da noção para tentar salvar os privilégios que esta tão comumente re- cobriu e, no segundo, defrontamo-nos com uma recusa do termo, em razão de todas as recordações opressivas e dolorosas que este desperta. Nossa posição de pesquisa complica -se ainda mais ao constatarmos que muitos daqueles que não se encontram ofic ialmente engajados em uma nem outra destas duas posições defensivas precedentes muitas vezes hesitam suces - sivamente entre um arroubo sádico pelo lado das normas "autoritárias" ou uma piscadela demagógica para as suscetibilidades "contestatórias". Tal movimento pendular de sucessivas anulações corre o risco não só de emudecer estas pes- soas, mas sobretudo de fazer com que percam toda a coragem cientlfica ou qualquer poder de investigação. Entretanto, a noção de "normalidade" está tão ligada à vida quanto o nas- cimento ou a morte, utilizando o potencial do primeiro buscando retardar as restrições da segunda, na medida em que toda normalidade apenas pode coor- denar as necessidades pulsionais com as defesas e adaptações, os dados inter- nos hereditários e adquiridos com as realidades externas, as possibilidades ca- racteriaiseestruturaiscomasnecessidadesrelacionais. 1 Em latim o termo norma corresponde, em seu sentido próprio, ao instrum ento de arqui· tetura chamado em português de esquadro; apenas em seu emprego secundãrio e figurado encontram os o term o utilizado mais ta rdiamente por Clcero, Horácio ou Pllnio o Jovem, com o sentido de regra, m odelo ou exem plo. O prim eiro significado determina somente o ângulo funcionalmente m ais vantajoso para articular dois planos em um a construção, e não uma posição ideal fixa da casa em relação ao solo. O ediflcio pode encontrar-se "a- prumado" (isto é, em equillbrio interno} mesm o em um solo de sério declive, graças ao esquadro que haverá justamente retificado os perigos que a primitiva inclinação do terreno poderia representar para a solidez do conjunto do ediflcio. 20
  • 20. O principal perigo atual parece bem menos ser o risco, bastante conhecido, de usurpação da noção teórica de normalidade em beneffcio dos poderosos ou dos sonhadores, do que da denegação pelos pessimistas, sutilmente a serviço do instinto de morte, do conjunto dos elementos reguladores internos que permi- tem aos humanos (sempre limitados) arranjar-se interiormente para buscar, não a ilusão de onipotência ou felicidade, mas pelo menos zonas bastante constantes de eficiência e bem-estar, em meio às suas obrigatórias imperfeições e seus não menos obrigatórios conflitos interiores. Chegarfamos assim a uma opinião, em suma, bastante próxima daquela do homem da rua que estima, mui sabiamente, sem dúvida, que qualquer ser humano encontra-se em um "estado normal", quaisquer que sejam seus pro- blemas pessoais profundos, quando chega a se arranjar com isto e adaptar-se a si mesmo e aos outros, sem paralisar-se interiormente em uma prisão narcfsica, nem fazer-se rejeitar pelos demais (prisão-hospital-asilo), apesar das inevitáveis divergências incorridas nas relações com eles. Minha atual tentativa de definição da noção de "normalidade" longe está de satisfazer-me inteiramente, ainda que mais não fosse, pelo seu tamanho; contudo pareceu-me difícil, até aí, reduzir o número de seus parâmetros. Tentativa de definição: O verdadeiro "sadion não é simplesmente alguém que se declare como tal, nem sobretudo um doente que se ignora, mas um sujeito que conserve em si tantas fixa- ções conflituais como tantas outras pessoas, e que não tenha encontrado em seu caminho dificuldades internas ou externas superiores a seu equipamento afetivo he- reditário ou adquirido, s suas faculdades pessoais defensivas ou adaptativas, e que se permitia um jogo suficientemente flexfvel de suas necessidades pulsionais, de seus processos primário e secundário nos planos tanto pessoal, quanto sociais, ten- do em justa conta a realidade, e reservando-se o direito de comportar-se de modo aparentemente aberrante em circunst ncias excepcionalmente "anormais". Será, pois, necessário insistir na independência da noção de "normalida- de" em relação à noção de estrutura.Foi amplamente demonstrado, com efeito, pela observação cotidiana, que uma personalidade reputada como "normal" po- de, a qualquer momento de sua existência, entrar na patologia mental, inclusive na psicose, e que, inversamente, um doente mental, mesmo psicótico, bem e precocemente tratado, conserva todas as chances de retornar a uma situação de "normalidade", de forma que atualmente não mais se ousa opor, de maneira demasiado simplista, as pessoas "normais" aos "doentes mentais", ao se consi- derar a estrutura profunda. Não mais nos deixamos ludibriar por manifestações exteriores, por mais ruidosas que sejam, correspondentes ao estado (momentâ- neo ou prolongado) em que se encontra uma verdadeira estrutura,e não a urna mudança real desta estrutura em si. Para, pelo menos em um primeiro tempo, apenas nos referirmos ao q...e chamo, em minhas hipóteses pessoais, de estruturas estAveis (ou se;a, osicóticas ou neuróticas), parece evidente existirem tantos termos de passage...-, 110 se· o de uma linhagem estrutural psicótica, entre "psicose" e um certa fo,...,a de · norna- lidade" adaptada à estruturação de tipo psicótico, quanto no seio de uma linha- 21
  • 21. gem estrutural neurótica, entre "neurose" e uma certa forma de "normalidade" adaptada à estruturação do tipo neurótico. Um exemplo, sem dúvida, poderá ilustrar o meu propósito de modo muito mais preciso: Obs. n!! 1 Ren tem 38 anos. Não conhece nenhum passado médico digno de nota. Alto, magro, não parece muito forte fisicamente, nem muito cuida- doso com sua pessoa, nem muito atento ao que se passa ao seu redor. Re- nê é o único filho de um pai bastante idoso e taciturno, notário em uma ci- dade pequena, e de uma mãe muito mais jovem, aut- oritária e bastante agressiva. Ele cresceu principalmente entre esta mãe, sua tia (irmã da mãe) e a avó materna, junto à qual morou durante os seus estudos secundários e no iní- cio da universidade. Seus estudos foram excelentes, sendo Renê dotado de muito bom 0.1., mas estes se eternizaram, pois Renê não chegou a decidir-se por uma via definitiva nem uma carreira precisa. Rapidamente recebido na Escola Normal Superior no ramo literário, nem por isto deixou de perseguir certi- ficados de licença em todos os sentidos, principalmente certificados "cien- tfficos", pelos quais passava facilmente, chegando a haver um momento de voltar- se para o lado do Direito.Tendo passado no concurso da Agre- gação de Letras, aceitou finalmente um posto em um grande liceu pari- siense e depois, ao final de alguns anos, continuando ainda a lecionar nas classes preparatórias, foi nomeado para um posto importante na adminis- tração central. Também seguiu fazendo algumas pesquisas matemáticas, e escreveu alguns poemas. Manifestava um grande ecletismo, mas muito poucos elementos passionais; proporcionava-se poucas distrações,sem contudo enfastiar-se. A maioria dos seus colegas, casados e pais de famnia, reputados "nor· mais" por passarem suas noitadas em coquetéis ou espetáculos da moda, seus domingos nas ruas dos subúrbios, ter ça-feira gorda em Val-d' lsêre, Páscoa com a sogra, e os meses de agosto na Espanha, consideravam ele um "original" simpático, mas um tanto inquietan!e. Diante dele, com efei- to, sem que, bem entendido, isto fosse muito consciente, todo mundo sen- tia-se mais ou menos questionado, e cada qual mui rapidamente aprovei- tava para projetar sobre Renê a inquietante estranheza que este originava no outro, no sistema ideal coletivo bastante frágil adotado pelos membros do grupo tido como "normal" por simples razões estatfsticas ou ideais. Re.né conhecia desejos sexuais reais, porém mais comumente arranja- va-se de modo a colocar, entre a mulher e ele, tranqüilizadoras distâncias e apaziguadoras dificuldades. 22
  • 22. Após muitas hesitações, acabou finalmente casando-se com uma j ovem viúva, inteligente, ativa e simpática, mas a quem as pessoas reputadas "normais", na época, recriminavam por não sacrificar-se mais aos gostos do dia. Renê teve um início conjugal difícil: sua mãe não era lá muito favorável ao casamento; os sogros, por seu turno, "apoiavam" um pouco exagera- damente o casal; enfim, Renê em alguns meses passou a sentir uma espé- cie de "bola" que subia e descia, trancava ao nível da laringe. "O pomo de Adão", sem dúvida, diziam-lhe rindo aqueles dentre seus amigos que ha- viam lido tratados de vulgarização psicanalítica . A gozação parecia, com efeito, plenamente cablvel, em virtude das circunst â ncias matrimonia is di- fíceis. Depois o casal criou para si uma vida independente, pouco original em relação ao que os outros chamam de "originalidade", mas bastante origi- nal, contudo, quando nos referimos ao que a maioria normalmente deno- mina,demasiado rapidamente, de "normalidade" . Nasceram três filhos, criados de um modo "curioso", isto é, os viz inhos, parentes e amigos declaravam-se enlouquecidos pelas liberdades de que gozavam. Estas crianças, contudo, de modo algum encontravam- se aban- donadas por seus pais e não pareciam, absolutamente, sofrer em meio às atitudes "boêmias" desta famllia, que continuou a ter apenas uma habita- ção antiga (em um bairro pouco estimado ), um automóvel curioso (de marca estrangeira pouco conhecida), uma casa de férias sem conforto em um lugar do interior, bonito mas sem renome, uma situação financeira sempre apertada, apesar de um bom salário e alguns adicionais, etc. Renê e sua esposa muitas vezes são convidados para visitarem seus colegas ou casais encontrados em viagens ou atividades culturais diversas, não porque experimentem a necessidade de brilhar ou distrair a socieda- de, mas porque sobretudo Renê, graças à sua grande cultura e seu espírito aberto, mostra-se interessado nas zonas de investimento narcisista, as mais diversas, encontradas em seus hóspedes. Por seu turno, Renê e sua esposa recebem facilmente, e sem particular necessidade demonstrativa, as pessoas que simplesmente têm vontade de ver, sem sentirem-se, todavia, particularmente agressivos quando devem, por necessidade prática, misturar aí um superior ou um colega menos simpático, mas bem situado. Renê é "normal", ou não? Sem dúvida alguma, trata-se de uma estrutura edipiana com uma fixação materna bastante importante, havendo fixado os investimentos afetivos entre certos limites dificilmente transponíveis. Mas, isto posto, podemos inicialmente constatar que não se produziu qualquer descompensação nítida e, a seguir,que não há qualquer ameaça de descompensação a temer, pois o conjunto dos me- canismos de defesa e adaptação parece funcionar com evidente flexibilidade e incontestável eficácia, certamente levando em conta o real exterior, bem como, 23
  • 23. em primeiro lugar, as realidades internas do sujeito, seus talentos e seus setores eventualmente ameaçados. Considerarei, pois, o caso de Renê como sendo ao mesmo tempo uma es- trutura neurótica edipiana e genital (o que, certamente, não é uma doença em si, mas uma categoria fundamental de funcionamento psíquico) e como um caso bem adaptado no interior deste grupo de estruturas. 2. Patologia e normalidade No decorrer destas últimas décadas, diferentes autores debruçaram-se so- bre a dialética normalidade-patologia. E. MINKOWSKI (1938) chama a atenção para a subjetividade da noção de "norman, que contudo parece comumente ir por si só, como simples acordo entre as necessidades e realidades da existência. A ênfase é colocada na relação com os outros, embora a principal caracterfstica do estudo permaneça em uma ótica mais especialmente fenomenológica. E. GOLDSTEIN (1951) parte de saída em uma direção bastante perigosa, ao referir-se às noções de "ordem" e "desordem", preparando toda uma suces- são de jufzos de valores a qual sempre se torna desagradável formular ou mes- mo simplesmente solicitar no domfnio da psicopatologia; com efeito, a unidade de medida corre automaticamente o risco de ser considerada mais em referência às escalas do grupo de observadores do que a uma escala estabelecida em fun- ção dos dados interiores do sujeito observado. G.CANGUILHEM (1966) refere-se a diversos trabalhos de anos passados: A. COMTE (1842), que se apóia no princfpio de BROUSSAIS, apresenta a doença como excesso ou falta em relação ao estado "normal"; C. BERNARD (1865), para quem toda doença nada mais é do que a expressão perturbada de uma função "normal"; LERICHE (1953), para quem não existe limiar previsível entre fisioló- gico e patológico, podendo resumir-se a saúde como estado de silêncio dos ór- gãos; JACKSON, finalmente, para quem a doença está constituída por uma pro- vação e um remanejamento, ligados a uma dissolução e regressão, idéias reto- madas por H. EY ao precisar a ordem de dissolução, na doença, das funções mentais, de infcio a partir do que foi mais recentemente adquirido na maturação ontogenética do sujeito. G. CANGUILHEM define a doença como redução da margem de tolerância em relação às infidelidades do meio. "Normalidade" seria também sinônimo de adaptaçáo, e esta idéia comporta nuances que permitiriam a G. CANGUILHEM considerar como permanecendo nos limites do "normal" certos estados tidos por outros como patológicos, na medida em que estes esta- dos podem exprimir uma relação de "normatividade" com a vida particular do sujeito. M. KLEIN (1952) propõe-nos, em toda evolução psicogenética da criança, uma posição persecutória primitiva, seguida de uma posição depressiva mais ou 24
  • 24. menos edipiana. A primeira posição, sobretudo, procederia obrigatoriamente mediante mecanismos econômicos do tipo psicótico, e toda patologia ulterior só poderia ter em conta fixações arcaicas a estas fases obrigatórias a todos. Embora seja oportuno não mais considerar a estrutura "normal" como tendo seguido uma evolução infantil de todo privilegiada, da mesma forma é diffcil considerar, em se tratando de neuróticos ou de estados limítrofes, que todo indivíduo tenha conhecido um perfodo no qual seu Ego teria inicialmente se constituído sobre um modo psicótico, no sentido bastante preciso que continuaremos dando a este termo, isto é, em uma economia de autêntica fragmentação, verdadeira or- ganização estrutural e não somente etapa, lacuna ou imperfeição evolutiva. A. FREUD (1968) pensou poder definir a normalidade na criança a partir da maneira pela qual aos poucos se estabelecem os aspectos tópicos e dinâmicos da personalidade, e do modo pelo qual se engajam e se resolvem os conflitos pulsionais. C.G. JUNG (1913) procurou apresentar as faces complementares dos per- sonagens míticos Prometeu (aquele que pensa antes) e Epimeteu (aquele que pensa depois), ou seja, introvertido e extrovertido, reportando-se às obras de Car l SPITTELER e de W. GOETHE. A "normalidade" estaria ligada à união des- tas duas atitudes, que C.G.JUNG compara à concepção bramânica do símbolo de união. De outra parte, o autor compara as noções de adaptação (submeter-se ao meio), inserção (ligada unicamente à noção de meio) e "normalidade", que corresponderia a uma inserção sem fricções, destinada simplesmente a preen- cher condições objetivamente fixadas. A patologia surgiria desde que o indiví- duo saísse do contexto de submissão ao meio, correspondente à "inserção" re- servada unicamente a este circulo. Isto parece-nos aproximar-se daquilo que descreverei alhures a propósito do movimento de depressão anaclítica do estado limite, desde que ele se arrisque a deixar o círculo, constrangedor mas assegu- rador, do familiar fálico. J. BOUTONIER (1945) mostrou a passagem da angústia à liberdade no in- dividuo que se tornou "normal", ao passo que a maturação afetiva, fundamento de toda "normalidade" autêntica, é definida por D. ANZIEU (1959) como uma atitude sem ansiedade diante do inconsciente, tanto no trabalho quanto no lazer, uma aptidão a enfrentar as inevitáveis manifestações deste inconsciente em to- das as circunstâncias em que a vida possa colocar o individuo. R. DIATKINE (1967) propôs um marco de anormalidade no fato do pa- ciente "não se sentir bem" ou "não ser feliz", e insiste, de outra parte, na im- portância dos fatores dinâmicos e econômicos internos no decorrer do desen- volvimento da criança, nas possibilidades de adaptação e recuperação, na ten- dência à limitação ou extensão da atividade mental, e nas dificuldades encontra- das na elaboração dos fantasmas edipianos. R. DIATKINE alerta-nos contra a tão freqüente confusão entre os diagnósticos de estrutura mental e de normali- dade psicopatológica. Esta precaução parece-nos extremamente motivada. Com efeito, um diagnóstico de estrutura psíquica estável, no sentido em que a defini ao longo de todo o presente estudo, pode ser colocado fora de toda e qualquer referência à patologia, ao passo que o diagnóstico de "normalidade" implica, ao 25
  • 25. contrário, um exame do modo pelo qual o sujeito se arranja com sua própria estrutura psíquica. Para R. DIATKINE não se encontra, no adulto, qualquer estrutura dita "normal". Toda situação nova para o indivíduo recoloca em questão o seu equi- líbrio psíquico, e o autor estuda sucessivamente as dificuldades que podem ex- pressar este sofrimento na criança, conforme as idades e os estág ios maturati- vos. Procura determinar o leque de prognósticos relacionais posteriores, dis- pondo ao lado dos elementos prejudiciais todas as restrições às novas atividades e operações mentais, em particular os sistemas sistematicamente repetitivos mais ou menos irreversíveis. C. CHILAND (1966) retomou um ponto de vista paralelo, ao mostrar que as crianças, cuj o poder normativo é mais extenso, nem por isto estão isentas de certos sinais da linhagem neurótica ou fóbica .É a flexibiiÍdade da passagem de um bom funcionamento situado ao nível do real a um bom funcionamento si- tuado ao nível fantasmático que serviria de critério de normalidade, e não tanto um simples diagnóstico de estrutura, e este ponto de vista parece muito produti- vo no plano de reflexão, quando o comparamos com as conclusões a que che- garam, na patologia escolar africana, LEHMANN (1972), LE GUÉRINEI (1970) ou MERTENS DE WILMARS (1968) diante de crianças que, esbarrando na ambi- güidade causada por dois modelos culturais muito diferentes propostos pela realidade, experimentavam justamente reais dificuldades par a fazer a passagem entre uma boa integração do real e uma boa elaboraç o fantasmática; os distúr- bios psicopatológicos constatados vão completamente no sentido das hipóteses de C.CHILAND, queestabelece (1965): "Nossoobjetivo náo é necessariamente tornar a criança conforme oqueseu meio,a famOia, a escola ouasociedade esperam dela,mas simtorn /acapazdeas- ceder,comomenornúmerodelimitaçõespossfveis, sua autonomia efelicidade.n P. BOURDIER (1972), enfim, opôs o que se poderia esperar logicamente como diferença entre as "normas" de uma mulher e de um homem, por exem- plo, ou de crianças de idades diferentes. Uma criança de quatro anos poderia comportar-se como um "louco" e ser absolutamente "normal", ao passo que no período de latência os mesmos sinais desencadeariam uma mui viva inquietude no psiquiatra. De outra parte, diante da morte da mãe, uma criança "normal" de quatro meses nem mesmo s e aperceberia se se encontrasse interposto um substituto válido, ao passo que uma criança "normal" de quinze meses ficaria bastante perturbada por não poder agredir e ao mesmo tempo ver a mesma mãe intacta um instante após; quanto a uma criança "normal" de seis anos, ela se contentaria com o sofrimento incluído no trabalho de luto. A. HAYNAL (1971) mostra a dificuldade de aplicar ao domínio psíquico os habituais critérios de "normalidade", referindo-se à adaptação, à facilidade, ao desenvolvimento, etc., e à importância da relatividade sociológica da noção de "normalidade", tanto no homem quanto nas sociedades animais, onde em maior conta se deve ter as condições ecológicas, como a densidade territorial da coletividade em questão. 26
  • 26. Por outro lado, comportamentos raros nem por isto são anormais . Como observa J. de AJURIAGUERRA (1971) a propósito de um texto de KUBIE:A saúdeéumestadoestatisticamenteraro,masnemporistoanormal. Contudo, parece-me bom voltar agora um pouco para trâs, para os dados freudianos concernentes à noção de "normalidade", aos quais, em nosso enten- der, demasiado raramente se dâ atenção. Neste domfnio, como em tantos outros domfnios relativos à psicopatologia "normal" e "patológica", S. FREUD marcou uma importante virada no modo de pensar dos psicopatologistas .Antes e depois de seus relatos teóricos e clfnicos, as concepções mudaram radicalmente; o que certamente não quer dizer, con- forme veremos, que antes de FREUD ninguém tenha escrito sobre estes assun- tos, nem que S. FREUD tenha tido possibilidade e tempo para esgotar tal estu- do. Podemos reter três postulados de seus Três ensaios sobre a teoria da se- xualidade (1905), da Formulaçlío de dois princfpios do funcionamento mental (1911) e de suas Cinco psican lises (1905 a 1918): 1. Toda a psicologia do adulto origina-se das dificuldades experimentadas ao nfvel de desenvolvimento da sexualidade infantil. 2. São as pulsões recalcadas, sexuais e agressivas, que criam os sintomas. 3. O modo como é vivida a etapa organiz;,dora da personalidade (isto é, o Édipo) depende essencialmente das condições tle ambiente. As delimitações trazidas por S. FREUD em outros lugares, em textos me- nos conhecidos, em nada desmentem estes três postulados: em seus Psychopa- thic characters on the stage (1906), mostra que no caráter não-patológico o recal- camento deve ser exitoso, e que este resultado faz falta no caráter patológico; mas "patológico" encontra-se aqui limitado unicamente ao sentido neurótico. Em seus Alguns tipos de caroter destacados pela psican lise (1915) é ainda unica- mente com referência à economia edipiana, superegóica, genital e castradora, logo à linhagem neurótica, que são estudadas as exceções, aqueles que falham diante do sucesso e os criminosos, pelo sentimento de culpa.No Declfnio do di- po, S. FREUD (1923 c)chegarâ a declarar que o que distingue normal ou patoló- gico situa-se no desaparecimento ou não do complexo de Édipo, dito de outra forma, ele recusa o estatuto de "normalidade" a toda estruturação não neurótica e mesmo, parece, a uma estrutura neurótica na qual o recalcamento do Édipo teria ocorrido só de modo parcial. Ele exige o desaparecimento completo do complexo. Em seus Tipos- libidinais, enfim (1931 a), procura "preencher a lacuna que se supõe existir entre o normal e o patológico", pela distinção de três tipos básicos: erótico, narcísico e obsessivo, que mais habitualmente se combinariam em subtipos: erótico-obsessivo, erótico-narcísico e narcísico-obsessivo; o tipo teórico erótico-obsessivo-narcfsico representaria, ao final das contas, diz FREUD,"aabsolutanormalidade,aharmoniaideal".MasFREUDparecedeixar-se apanhar na armadilha da universalidade das apelações "neuróticas", pois se as suas pertinentes descrições do obsessivo e do narcísico-obsessivo bemcor- respondem a economias de neurose obsessiva e o tipo erótico a economias neu- róticas histéricas, parece que FREUD mais descreve estados limftrofes do que 27
  • 27. ;-.e roses sob a cobertura do tipo erótico narcísico, caracteriais exitosos sob a cooertura do tipo narcfsico e, finalmente, pré- psicóticos sob a cobertura do tipo erótico obsessivo (a ênfase aqui está colocada nas defesas antipsicóticas, mais :::o que sobre as incertezas do ego). Neste último artigo, mais tardio em sua obra e mais arrojado na pesquisa cos elementos dialéticos entre normalidade e patologia, S. FREUD tenta ir o mais longe possível no reconhecimento de fenômenos não-patológicos que contudo implicam particulares inflexões no modo de investimento da libido em cada tipo descrito. Mas FRE UD acha- se prisioneiro de sua grande descoberta:a economia genital edipiana e neurótica. Reúne ar, por certo com alguma insatisfa- ção, a maior parte de suas outras descrições clinicas. Com efeito, antes de FRE UD, dividia-se habitualmente os humanos em duas grandes categorias psíquicas: os "normais" e os doentes mentais (nos quais se dispunham em bloco neuróticos e psicóticos). O grande mérito de FREUD foi o de haver mostrado, através de seus trabalhos revolucionários sobre a economia neurótica, que não existia qualquer solução de continuidade entre certos funcionamentos mentais tidos como "normais" e o funcionamento men- tal tido como "neurótico". Existem todos os graus e, no geral, os mecanismos permanecem os mesmos; somente a adequação e a flexibilidade do jogo destes mecanismos diferem mais ou menos. Infelizmente, S. FREUD não se aventura muito para além do domínio neurótico. Um incontestável estado limítrofe como o "homem dos lobos" (1918) é descrito como uma neurose, e se conheceo pou- co gosto que tinha pela abordagem dos psicóticos, suas hesitações na discussão dos dados nosológicos concernentes ao Presidente SCHREBER (1911c). Embora tenha escrito, ao final de sua vida, no Esboço da Psicanálise (1940 a), que era "impossfvel estabelecer cientificamente uma linha de demarcaçáo entre estados normais e anormais': S. FREUD foi por muito tempo levado a pensar, as- sim como aqueles que, claramente ou não, permaneceram fixados somente às posições de sua época, que o fosso não mais se situava entre normais de um la- do e doentes (neuróticos ou psicóticos reunidos) do outro, mas de um lado neuróticos e normais (correspondendo aos mesmos mecanismos conflituais e defensivos), do outro lado o grupo dos "não-normais", englobando todo ores- to; este "resto" quer se encontrava imprecisamente denominado de psicóticos e pré-psicóticos diversos, quer então diversificado em psicoses, por certo, mas também em estados limítrof§ caracteriais, perversos, etc. Meu propósito conserva a ambição de ir ainda mais longe: parte do ponto , de vista de que cabe distinguir, de um lado, as estruturas autênticas, sólidas, fi- xas e definitivas (psicóticas ou neuróticas) e do outro, as organizações interme- diárias ( dos limítrofes), menos especificadas de maneira durável e podendo dar origem a arranjos mais estáveis (doenças caracteriais ou perversões). No que diz respeito ao primeiro grupo, podemos considerar que existem tantos termos de passagem entre "normalidade" e psicose descompensada no seio da linhagem estrutural psicótica fixa, quanto entre "normalidade" e neurose descom pensada, no seio da linhagem estrutural neurótica fixa. Em contraparti- da, no que concerne ao segundo grupo, definido como intermediário, de ime- 28
  • 28. diato veremos que não é fácil considerar uma real "normalidade': devido aos enormes e permanentes contra-investimentos rgéticos idepressivos pos- tos em jogo (em virtude da precane aae justamente da adaptação às realidades internas e externas) e à instabilidade, no final das contas, de tais organizações não realmente estruturadas no sentido definitivo e pleno do termo. A noção de "normalidade" estaria, assim, reservada a um estado de ade- quação funcional feliz, unicamente no seio de uma estrutura fixa, sej a esta neu- rótica ou psicótica, sendo que a patologia corresponderia a uma ruptura do equilíbrio dentro de uma mesma linhagem estrutural. Um exemplo clfnico poderá ser útil à nossa reflexão: Obs. n!! 2 Georges tem 42 anos e é diretor de um colégio. Ele sabe poucas coisas de sua primeira infância, pois não deseja falar e declara lembrar-se dela muito mal. Foi órfão de mãe, depois de pai, bastante cedo, adotado por uma família amiga de seus pais, com uma mulher autoritária, rígida e pou- co afetiva. Muito bem educado no plano funcional, fez muito bons estudos . Reve- lou-se um adolescente bastante precoce no plàno intelectual, um estu- dante meticuloso, depois professor atencioso e muito racional. As qua lida- des de precisão, ordem, raciocínio teórico, seu senso de autoridade, de di- reito, de método, valeram-lhe uma rápida promoção administrativa, ape- sar de algumas dificuldades nas relações com seus alunos e colegas. Casou-se aos 25 anos com uma mulher da mesma idade, também pro- fessora, igualmente autoritária e bastante rígida. Tiveram dois filhos que parecem ter boa saúde, mas muito cedo foram colocados em um internato bastante longe "para seu bem" aparente e racional. O casal evoluiu em grupos de pesquisa profissional e mesmo filosófica bastante ousados (mas permanecendo especificamente burgueses), fre- qüentemente ocupando suas noites, domingos e dias de folga sob pretex- tos de reuniões ou estágios diversos, orientados para técnicas, posições ou idéias cuidadosamente escolhidas para encontrarem-se sempre em oposi- ção ao pensamento comum dos colegas do mesmo estabelecimento. Poder-se-á ver em Georges um exemplo de sujeito "original", por cer- to, mas de aparência normal, bem adaptado às suas realidades internas e externas. Os principais mecanismos de defesa até aí empregados podem ser considerados como sendodotipo_pbsessLvo. Mas eis que, no decorrer de uma sessão de "dinâmica de grupo" orga- nizada por sua Academia, Georges é o suj eito mais velho e mais graduado no grupo em que participa. O animador, conhecido por sua ambivalência em relação à Universidade, em parte o julga capaz de defender-se e, em parte, sem dúvida, não está muito descontente tampouco de vê-lo vacilar um tanto em suas bases. O moderador, muito mais cáustico ainda em rela- 29
  • 29. ção à autoridade e cuidadoso em não desagradar aos agressivos, abstém - se de intervir. Também Georges recebe sem especial precaução (nem pre- paração, bem entendido) toda a descarga agressiva do grupo. Sente-se prontamente presa de um mal-estar interior, não mais sabendo muito bem quem é, onde está, o que faz . Foge desta assistência e, muito excitado, percorre a pequena cidade onde se desenrola a sessão acreditando-se per- seguido por qualquer um que use uniforme. No momento em que se chama um médico, intervém um amigo que mora nas redondezas; ele leva Georges consigo e o confia a um psiquiatra de seus amigos, que coloca o paciente em repouso e o trata, inicialmente com medicamentos e sedativos, encaminhando-o depois a um psicanalis- ta. Georges atualmente vai bem. Retomou todas as suas atividades profis- sionais, mas suas relações sociais melhoraram e seus aspectos reivindica- tórios emendaram -se. Entretanto, sem dúvida, trata-se de uma estrutura psicótica; o tratamento analítico o demonstrou, com uma transferência fusional, uma angústia de frag- mentação, importantes negações da realidade. Esta estrutura, até então não des- compensada e que havia permanecido nos limites de uma incontestável "nor- malidade", repentinamente "rompeu-se" sob o golpe de uma agressão externa demasiado forte para as defesas habituais do suj eito. Foi isto que deu origem à despersonalização e ao delfrio. Georges passou do estado "normal" ao estado "patológico", sem contudo mudar de estrutura profunda. As defesas de modo obsessivo cederam momentaneamente diante da intensidade da agressão pelo real; foi preciso negar este último, pois as anulações obsessivas das representa- ções pulsionais não mais podiam dar conta. Foi assim que Georges ficou "doente" sem mudar de forma estrutural do ego. E foi sempre sem variar de estado profundo do ego, logo de linhagem estrutu ral, que depois "curou- se", graças a um tratamento que permitiu o restabelecimento de defesas melhores sem modificar, contudo, seu modo de organização mental subjacente. 3. A "normalidade" patológica Acabamos de ver como seria possível considerar, por um lado, uma certa "normalidade" e, por outro, manifestações patológicas, em função de um modo de estruturação fixa e precisa. Porém a coisa parece complicar-se um pouco ao sermos levados a descre- ver, ao contrário, personalidades ditas "pseudonormais" e que não correspon- dem, justamente, a uma estrutura estável nem definitiva, conforme considera- mos no caso das estruturas das linhagens neurótica ou psicótica. No interior destas linhagens bem definidas em sua evolução, os sujeitos defendem-se con- 30
  • 30. tra a descompensa ção mediante uma adaptação à sua economia própria, bem como aos seus diferentes fatores de originalidade, o que, conforme veremos adiante, atiza seus comportamentos relacionais de elementos singulares que constituem simples "traços de caráter''. Em contrapartida, as personalidades "pseudonormais" não se encontram tão bem estruturadas no sentido neurótico ou psicótico; constituem-se, por vezes, de modo bastante durável, mas sempre precário, segundo arranjos diversos nem tão originais que forçam estes sujeitos a "fazerem-se de gente normal", muitas vezes até mais "hipernormal" do que original, para não descompensar na depressão . Há, de qualquer modo, uma ne- cessidade protetora, de hipomania permanente. Voltarei a falar nisto com res- peito aos estados limítrofes e neuroses de caráter em particular. Mas o bom sen- so facilmente detecta, após um certo período de fraude bem- sucedida e em cir- cunstâncias sociológicas diversas, estes líderes de reduzidos meios construtivos aos quais tantas outras pessoas narcisisticamente frustradas agarram-se por um período mais ou menos longo de ilusão. Estes personagens lutam, com fuga, em nome de um ideal ou interesse qualquer, mais ou menos idealizado, simples - mente contra sua imaturidade estrutural e frustrações e contra a depressão, cuj o perigo j amais se acha de todo afastado. Chegam a ser, por vezes, verdadeiros "geniozinhos" para sua família, bairro ou cidade, ou ainda seu meio de vida ou de trabalho, e a tal ponto sua hipomania pode corresponder às necessidades narcisistas do contexto social. Contudo, resistem mal a uma prova durável de confrontação com os outros ou com o real. Terei ocasião de novamente precisar, quanto ã noção de "estrutura", que em psicopatologia não se pode confundir os diversos modos de funcionamento mental atendo-se apenas aos seus aspect os manifestos fenomenológicos e su- perficiais. Cabe opor as verdadeiras estruturas (neuróticas ou psicóticas com ou sem status psicopatológico) às simples organizaç6es, menos sólidas e que lutam contra a depressão, graças a artifícios caracteriais ou psicopáticos diversos, ul- trapassando o contexto daquilo que anteriormente definimos como correspon- dendo aos parâmetros de "normalidade", isto é, de adaptação econômica inter- na à realidade Intima do sujeito. As verdadeiras estruturas não dão origem a personalidades "pseudonor- mais", mas, conforme permaneçam ou não fora de rupturas patológicas, podem alternadamente levar ao que, juntamente com CANGUILHEM (1966), definimos como estados sucessivos deadaptação,desadaptação,readaptação,etc. As simples organizações, em contrapartida, comportam-se de modo muito diferente: em caso de trauma afetivo mais ou menos agudo, estas organizações podem, por vezes, (mais habitualmente) mergulhar na depressão, ou evoluir para uma estruturação mais sólida e mais definitiva, do tipo neurótico ou psicó- tico. Mas agora tais acidentes afetivos, seu estado corrente não pode ser chama- do de "normal" sem restrições, pois parece corresponder a uma defesa energé- tica psíquica demas iado importante e custosa no plano dos contra-investimentos exigidos para assegurar o narcisismo. Com efeito, este gênero de organizações não se beneficia nem do estatuto neurótico dos conflitos entre superego e pulsões, com todos os compromissos 31
  • 31. estáveis possíveis, nem, como na linhagem psicótica, de uma operação de cliva- gem do ego, também levando a uma relativa estabilidade. Em nossas organiza - ções "limítrofes", constatamos uma luta incessante para manter em um anacli- tismo obsedante, uma segurança narcísica que cubra os permanentes riscos de- pressivos. Tais exigênc ias narcísicas forçam o estado limítrofe, os caracteriais di- versos, ou o perverso, a manter a religião de um ideal de ego que induz a ritos comportamentais bem abaixo dos meios libidinais e objeta is realmente disponí - veis ao nível da realidade do ego. É o que leva o sujeito a imitar os personagens ideais protótipos de "normalidade" no plano seletivo e, ao mesmo tempo, a imitar os personagens que representem a percentagem quantitativamente mais elevada de casos semelhantes entre si no grupo sócio-cultura lvisado. Encontramo-nos, pois, mui próximos do modo de funcionamento mental que D. W. WlNNICOTT (1969) designa sob as denominações de "seif artificial" ou "falso self", descritas por ele como organizações mais exitosas dasdefesas contra a depressão. Encontramo-nos muito próximos também daquilo que,se- guindo a filosofia alemã do "Ais Ob" (juntamente com E. VAIHINGER), H. DEUTSCH (1934) definiu sob o termo personalidades "asif".Estasdescrições de um caráter "simili" ou "como se" obtiveram certa celebridade, pois correspon- dem a uma realidade clínica freqüente pouco assinalada até então, mas igual- mente, cabe reconhecer que parte do seu sucesso provém da falta de referência mais precisa a uma organização econômica distinta da economia estritamente neurótica, o que não inquieta muito os espfritos analfticos defensivamente liga- dos à ortocoxia do dogma (atribuído a S. FREUD) da infalibilidade organizadora do Édipo. O estudo apresentado por H. DEUTSCH não se reveste de menor interesse no plano descritivo: hiperatividade reacional, apego aos objetos externos, aos pensamentos do grupo, com dependência afetiva, sem contudo permitir um de- sinvestimento objetai sério, grande labilidade nos conflitos exteriores, pobreza afetiva e pouca originalidade, dada a mobilidade dos investimentos e seu nível superficial. C. DAVID (1927) descreveu formas clínicas variadas no seio de tais atitu- des, enfatizando a tendência à somatização, os elementos car'acteriais, a super- valorização da ação, o aspecto patológico inaparente do narcisismo (superego formalista, ideal de ego sádico, necessidade de êxito a qualquer preço), a neces- sidade de hiperadaptação à realidade (encoraj ada pela sociedade), o lado na rea- lidade carencial da adaptação (a um objetivo apenas), a abrasão das pulsões, o desespero subjacente e o lado artificial das aparentes sublimações. Em resumo, C. DAVID pensa que os dois fundamentos principais destes "pseudonormais" são constituídos pela falha narcísica e pelofracassonadistribuiçãoentreinves-timentosnarcísicoseobjetais. Uma observação clfnica parece-me corresponder particularmente a este gênero de descrição: 32
  • 32. Obs. n3 Na ocasião em que conhec1 o caso de Ju/ien, este acabava de completar 50 anos. Filho de um artesão modesto e apagado, e de uma mãe estúpida, pretensiosa e mquietante, Julien foi criado no ódio aos ricos, medo e de- voção em relação às pessoas bem situadas, na admiração ao tio cônego "que se tornou alguém" e ao irmão ma1s velho, que se casou com a filha do padeiro, de quem era aprendiz. Como este irmão mais velho e as duas irmãs, Julien muito cedo é colocado' no trabalho" junto a um comerciante da região. Mesmo assim dá um jeito , sob os conselhos de um colega de mais idade, de seguir os cursos noturnos e conseguir um diploma de con- tabilidade que lhe possibilita, por recomendação do pai deste colega, en- trar em um banco. Como é jovem, solteiro, descomprometido, idealista e agressivo e não gosta de ficar só à noite, torna -se rapidamente o "delega- do" de seus colegas para todas as tarefas paraprofissionais às quais os demais empregados não pretendem consagrar seus momentos de lazer. Milita habilmente em um meio smdicalista, tão violento verbalmente quanto conservador em suas opções latentes, o que lhe serve para estabe- lecer relações simpáticas e asseguradoras de diversos lados e reunir facil- mente os votos de seus colegas,tanto quanto a cumplicidade tácita de seus diretores. Incessantemente, em ação, em luta (verbal),em discurso,viagens, con- ferências ou negociações, recolhe a admiração de toda a sua família, inclu- sive do irmão mais velho e do tio invejados. Chega aos poucos a fazer no- me nos jornais locais, ajudado além disto por algumas libações bem locali- zadas nos cafés situados diante das salas de redação e abertos, por isto, até bem tarde à noite. À medida que se torna conselheiro disto, delegado daquilo, entra na municipalidade, depois no conselho geral, finalmente, favorecido por uma eleição que oscila entre um candidato muito marcado quanto à sua pessoa e um adversário muito marcado quanto às suas idéias, Julien consegue colocar-se em uma posição tranqüilizadora que lhe dá vantagem no pri- meiro turno e lhe assegura uma confortável maioria no segundo. Ei-lo deputado de um distrito obscuro, mas onde organiza tão bem a suu propaganda pessoal que nenhum partido importante ousa inquietá-lo. É o "feudo" de Julien,se diz. Compõe-se com ele, não opõe-se a ele... Ele não pára mais em casa. A mulher que havia desposado, por acaso, no decorrer de sua ascensão social, numa breve parada em uma das eta- pas (da qual nem se lembra mais), continua a criar modestamente seus três filhos e a dividir seu tempo entre a família, os toques do telefone ("Não, o Sr. Julien não está em casa, ligue no sábado para a prefeitura") e o café tomado na cozinha com os vizinhos bajuladores. Julien vive em Paris com sua "secretária", viúva de um amigo seu, antigo militante dos primeiros tempos, trazida, no rastro de Julien, de volta aos restaurantes luxuosos, aos teatros do Boulevard e aos vestidos da moda. 33
  • 33. Que homem seria mais feliz que Julien? Quem seria mais "normal" e bem sucedido? Ora, eis que uma mudança na direção dos ventos da política, de raízes mais profundas, varre todos aqueles que não souberam engajar-se com suficiente antecedência em um sentido ou outro. Julien não é reeleito, apesar de seus esforços de última hora e das tímidas promessas de seus amigos, cada vez menos calorosos. Perde, com o mesmo golpe, a sua amante, que agora encontra -se no "secretariado" de um dos seus antigos colegas,tendo a tempo deslocado assuasopções efriamente reeleito sob a nova etiquetadamoda. Ele tem de voltar à sua região de origem, para junto de sua eclipsada esposa, retomar um emprego. Qual? As pessoas olham-no com penosa ironia. Mesmo seus filhos agridem-no com um desprezo que mal suporta. Julien desmorona. Angustia-se, desgosta-se consigo mesmo, não come mais e emagrece. O sono se altera, o pulso se acelera. Não se encontra nele nada de medicamente objetivâvel, mas mesmo assim faz - se com que interne em uma clínica, sem sucesso. A depressão aumenta. Uma noite, recebe-se a notícia de que se suicidou em seu automóvel. As testemunhas concordam: Julien praticamente jogou-se contra uma ârvore, ao voltar para casa depois da recusa de um amigo a associar-se a ele em um em- preendimento comercial, graças ao qual esperava retomar (sob a proteção dest e amigo) uma nova ascenção social. Tudo evidencia que Julien não era um psicótico. Tampouco jamais atingiu uma verdadeira estrutura neurótica, edipiana ou genital. Permaneceu bloqueado entre estas duas linhagens, em um estado bastante instável. Tinha necessidade de ocultar sua imaturidade afetiva sob o disfarce de um sucesso social brilhante e incessantemente renovado. Dissimulava, ao mesmo tempo, seu frâgil potencial genital sob agressividades verbais compensatórias. O episódio com a amante constituía mais um aspect o exterior de êxito social e de pseudo-sexualidade do que um verdadeiro investimento genital adulto. Se não houvesse repentinamente encontrado uma inesperada ferida narci- sista, diante da qual achava-se demasiado desprotegido, Julien teria cons eguido permanecer adaptado por um longo período de tempo. Caiu doente quando sua decoração nar c isista cedeu e quando a pobreza de suas trocas afetivas não mais pôde ser dissimulada pelos mecanismos até então empregados. Neste momento crucial, Julien não mais soube encontrar outros meios de mudar, tampouco conseguiu, sozinho, fazer a passagem que o teria levado a uma maior sinceridade em relação a si próprio. Se os seus médicos, que em vão o encaminharam na busca de uma doença orgânica, tivessem descoberto o imens o desamparo afetivo oculto por detrâs de seu enlouquecimento corporal e o tivessem tomado ou encaminhado a uma psi- coterapia, Julien não teria tido necessidade alguma de desaparecer . Teria,sem dúvida alguma, graças às suas grandes qualidades e energia, conseguido en- contrar, por si só, caminhos novos e mais estáveis de realização de suas reais 34
  • 34. necessidades afetivas, as quais nada tinham de repreensfvel, nada de particular- mente assustador. Contudo permanece a questão: por ocasião de seus sucessos, isto é, do êxito dos seus custosos contra-investimentos narcísicos e antidepressivos (e não de uma adaptação a uma estrutura estável), podia-se considerar Julien afastado da "normalidade"? O preço que pagava, no plano energético, pela necessidade de sentir - se reconhecido como "normal" aos olhos de suas instâncias ideais, aos olhos do maior número de seus semelhantes, este preço, muito elevado no plano dos contra- investimentos, pode ainda ser colocado nos limites de custos "nor- mais"? A pobreza de seus investimentos objetais, a precariedade do potencial adaptativo de suas defesas, bem como as inibições tocantes às suas satisfações libidinais, permitem elas permanecer no registro do "normal"? Em algum mo- mento de sua vida, Julien realizou uma organização afetiva centrada em suas originalidades e necessidades próprias, ao invés de considerar apenas a imagem que fornecia à maioria dos demais e que dava a si próprio no plano das exigên- cias ideais, sufocando seus desej os e suas necessidades econômicas profundas? A necessidade, sentida como narcisicamente essencial,de conformar-se a um ideal ou a uma maioria do "grupo-que-assegura2", será garantia de "nor- malidade"? Nos grupos, D. ANZIEU (1969) pensa ser possível determinar a inércia inerente à natureza de cada indivíduo, a seus comportamentos adaptativos, ou não, diante de uma transformação dos hábitos, conhecimentos ou métodos até então empregados. A ansiedade engendrada comumente opõe-se à adaptação. A auto-regulação interna necessária diante dos movimentos do grupo não pode ser obtida, senão graças às possibilidades adaptativas pessoais de cada um dos membros, tendo em conta atitudes e motivações individuais como modo de co- municação de seu potencial de mobilidade. Na criança, C. CHILAND (1971) confirma não encontrar estrutura "nor- mal", que as crianças que "vão melhor" comumente têm uma estrutura profun- da do tipo neurótico. Conforme lembrava C. DAVID (1972). convém recordar-se do conselho de Henri MICHAUX: "Não te precipites na adaptação, guarda sempre de reserva algu- ma inadaptação". Entretanto, não se pode conceber uma "normalidade" referindo-se a cri térios mais autênticos no plano das realidades íntimas e, ao mesmo tempo, a relações mais diversificadas e menos angustiadas com a realidade externa? A "normalidade" não é, em suma, inquietar-se acima de tudo com o "como fazem os outros?", mas simplesmente buscar, ao longo de toda a existência, sem de- 2 Segura mente o valor subjacente permanece ligado ao registro familiar, mas a exigência social pode muito bem destacar-se da "maioria" de um conjunto maior, para assegurar -se na "maioria" de um grupo menor, particularmente se este último grupo situa-se em posi· ção "anti" em relação ao conjunto. Pode-se assim satisfaz er (ao menos em parte) ao mes- mo tempo a defesa, isto é, a necessidade de segurança no grupo escolhido (mesmo me- nor), imagem da famflia ideal, e a tendéncia, isto é, vontade de agredir o grande grupo, imagem da famllia opressora. 35
  • 35. masiada angústia ou vergonha, o modo de melhor arranjar-se com os conflitos dos outros e os próprios conflitos pessoais, sem contudo alienar seu potencial criador ou suas necessidades íntimas. 4. "Normalidade" e padronização Estamos no direito de perguntar -nos como se pode estabelecer a patoge- nia de comportamentos "pseudo normais", demasiado centrados em um ideal e uma maioria. Podemos igualmente colocar-nos uma segunda questão que, apesar das aparências, encontra -se estreitamente ligada à primeira: não teria o indivíduo, em função de diversos fatores atuais, tendência a visar, hoje em dia, mais o "pa- drão" do que o "normal"? Com efeito, no momento em que o mercado comercial aos poucos substi- tui os antigos produtos artesanais, por vezes excelentes e por vezes muito in- constantes, por artigos industriais padronizados (alimentação, artigos domésti- cos, móveis, construção, etc.),dos quais se pode dizer que certamente seu nível está abaixo do refinamento, contudo em geral acima da med iocridade, não ser ia espantoso ver, paralelamente, o ser humano sacrificar - se à mesma necessidade de segurança, conformidade, de polivalência mal diferenciada em sua própria utilização de si mesmo. Creio que um livro recente de B. BETTELHEIM (1971), Les enfants du rêve ("Os filhos do sonho") parece perfeitament e indicado para nos fornecer ele- mentos de resposta a estas duas questões. Seremos igualmente convidados a uma reflexão acerca das conseqüências de uma evolução que muito corre o risco de produzir-se também entre nós, e que tende a reduzir sensivelmente os limites inferiores e superiores do leque de possibilidades de maturação afetiva das indi- vidualidades em um grupo educativo padronizado. A obra de B. BETTELHEIM surge como um verdadeiro estudo ex peri- mental da gênese da "pseudonormalidade" em um meio contemporâneo natu- ral, embora criado em todas as suas peças a partir de dados artificiais (tanto doutrinais quanto conjunturais), certamente não se originando do puro acaso,e o qual não temos a intenção de julgar. Podemos aí discernir uma antecipação ou uma simples caricatura daquilo que começa a ser encontrado em alguns dos nossos novos conjuntos suburbanos,3 A experiência desenrola-se nos kibutzim de Israel. Trata-se de pais trans- plantados, mas que em pleno gozo de sua liberdade desejaram tentar a expe- riência de um novo modo de vida. O kibutz, enquanto organização comunitária, 3 Infelizmente as coisas apresentam-se entre nós, no plano ex perimental, de modo muito menos asséptico, em virtude da persistência, ao lado das novas condições, de infra-estru- turas sócio-culturais antigas que pertu rbam os dados do estudo das conseqüências dos fatores e aquisição mais recente. 36
  • 36. exerce um controle total sobre a vida de seus membros, desde o seu nascimen- to. Em troca, assegura-lhes proteção e cuidados completos. A educação desen- volve-se sob uma forma comunitária absoluta, tirando aos pais toda e qualquer iniciativa, mas evitando-lhes também qualquer erro4, toda fonte de frustração ou conflito familiar. Separados de suas mães desde o quinto dia, desmamados aos dez meses, os filhos do kibutz atingem a adolescência em um ambiente onde seus companheiros se revestem de muito maior importância para seu desenvol - vimento afetivo do que qualquer adulto. Os grupos são mistos: meninos e meni- nas vivem inteiramente juntos, tanto nos dormitór ios quanto nos banheiros, mas toda e qualquer manifestação sexual permanece-lhes completamente proibida até a sua saída do kibutz, com a idade de 18 anos, início do serviço militar em ambos os sexos. Os testemunhos, dos quais não temos motivo algum de suspeitar, concor- dam em constatar que tal sistema não enge ndra drogados nem delinqüente s, e muito poucas crianças caracteriais ou precocemente perturbadas afetivame nte em grau sério. As conclusões de uma pesquisa efetuada em escala nacional em Israel, re- ferente ao nível escolar dos filhos dos kibutzim, revelam resultados de todo "médios", com tão poucos resultados superiores quanto fracos. B. BETTE- LHEIM (1971lpensa que a influência igualizadora do kibutz parece haver manti- do em um nível médio honorável aqueles alunos (podemos deduzi-/o pelo alto de- sempenho geral) com suficiente potencial para fazerem parte dos melhores. Do mesmo modo, operou um nivelamento para cima, dos menos dotados. Mais uma vez, mostra-se que o sistema de educação favorece os resultados médios, dito de outra forma, o grupo. No plano genital, o kibutz assume uma posição bastante puritana, não ao comandar a sexualidade em si e por princípio, mas mostrando incessantemente ao jovem que uma realização dos seus desejos de modo demasiado precoce neste plano por natureza, prejudica energética ou afet1vamente o grupo, e B. BETTELHEIM reconhece que a mensagem recebida pelo jovem não deixa de ser que é "mau" ter relações sexuais. Os filhos do kibutz conhecem uma liberdade muito maior que as outras crianças de sua idade em numerosos domínios, em particular na educação do asseio, mas B. BETTELHEIM estima que são submeti- dos a um recalcamento muito maior, sobretudo no que diz respeito à sexualida- de. Cabe observar, aliás, que a vergonha (linhagem narcisista) em relação ao grupo desempenha um papel maior , nas descrições que nos são propostas, do que a culpa (linhagem edipiana e genital) em relação aos pais ou seus substitu- tos. Um último ponto, enfim, merece ser notado, no que diz respeito ao com - portamento militar dos kibutzniks: B. BE TTE LHEIM pensa que "juntos, tudo conseguem sentir, tudo fazer, tudo ser; deixados por sua própria conta, mos - tram-se muito pouco capazes". Durante os períodos de guerra, bateram-se de 4 Pelo menos o erro não pode ser imputado tardiamente (aprês coup) aos pais. 37
  • 37. .::lOOO muito coraj oso, disto não há dúvida; entretanto a percentagem anormal- """''!!"'te grande de perdas em suas fileiras atraiu a atenção do estado - maior is- '"a nse. que achou que lhes faltava julgamento e flexibilidade, capacidade de adaptação às situações imprevistas e cambiantes, em comparação aos seus ca- maradas de outras origens. Tudo o que pudemos tirar deste notável estudo permite-nos facilmente refutar temores de patologia coletiva ou sistematicamente individual no interior do kibutz. Mas não podemos deixar de comparar, em numerosos domínios, o funcionamento mental do kibutznik à organização psíquica do tipo anaclítico não descompensado, que descrevemos longamente ao longo de outros capftulos do presente trabalho. Conforme atesta 8. 8ETTELHEIM, não se encontra, entre os filhos do kibutz, a elevada percentagem de processos psicóticos mais ou menos precoces que invade nossos consultórios ou serviços hospitalares de psiquiatria infantil. Certamente, bem devem encontrar-se, entre as crianças em questão,al- guns sub-equipamentos afetivos ou sensório-motores notáveis, mas podemos supor que mesmo nestes casos (com mais fortes motivos ainda diante de me- lhores dados hereditários) a ausência dos pais, da mãe em particular, sua poste- rior substituição por uma metapelet5 neutra, competente e "padrão",não per- mite a constituição, em torno da jovem criança, do indispensável tripé prévio ao estabelecimento precoce de uma estrutura psicótica: déficit pessoal + frustra- ções muitoprecoces+toxicidadematernaimportanteeprolongada.Faltando automaticamenteosdoisúltimosfatores,nãonos surpreende que o pequeno ki- butznik tenha poucas chances de tornar-se psicótico. Entretanto a situação de apoio absoluto no seio do grupo que a situa,bem mais cedo que as outras crianças, em uma aparente "normal idade" irá, no terre- no da posterior evolução edipiana, jogar co ntra ela para mantê-la em uma rela- ção de objeto de modo anaclítico bastante estreito, dificultando a entrada em uma dialética triangular genital. Foi o que constatou e descreveu 8. 8ETTE- LHEIM (1971), e é isto que encontramos em nossas organizações "limítrofes". A "normalidade" de tais sujeitos corresponde, no plano da organização afetiva interna, à necessidade de restabelecer incessantemente, mediante apoio no outro, um narcisismo vivido como podendo falhar a qualq uer momento se o outro subtrair -se enquanto sustento, se tender a tornar-se quer objeto sexual, quer um concorrente edipiano. D.ANZIEU (1971) mostrou o quanto a situação grupal podia acarretar uma ameaça de perda de identidade do sujeito. Inversamente, podemos considerar que o grupo opera dificuldade de identificação, porém às custas da renúncia a certos aspectos originais, bem como à solidez dos resultados de processos iden- tiiicatórios individuais, tais como habitual mente desenvolvem-se no sujeito ca- paz de aceitar a responsabilidade de uma certa independência. Parece-me que aqui situa-se todo o problema econômico do "pseudo- normal": ter evitado perturbações importantes da infância, mas não obter acesso a um estatuto de adulto bastante sólido estruturalmente para torná-lo indepen- 5 Preceptora coletiva. 38
  • 38. dente no plano de suas necessidades libidinais e de suas relações objetais; a con- seqüência tópica desta carência econômica manifesta-se no superinvestimento de um Ideal de Ego pueril, e a consaqüência dinâmica, na orientação mais ou menos exclusivamente narcisista oferecida aos investimentos pulsionais; de ou- tra parte, J.- 8. PONTALIS (1968) acha que o grupo poderia chegar a substituir o objeto libidinal, tornando-se ele mesmo objeto libidinal no sentido psicanalítico do termo, o que,em nosso entender, é bem menos inquietante para o narcisis- mo individual, mas lamentavelmente encoraja o suj eito a não mais buscar au- tênticos obj etos libidinais fora do círculo demasiado restrito do grupo. Não mais se favorece a originalidade e, sem respeitar a originalidade, po- demos ainda falar de "normalidade" no sentido pleno do termo? 5. Édipo e "normalidade" As reflexões precedentes levam-nos inevitavelmente a colocar uma ques- tão bastante embaraçosa, a qual arriscamo-nos a talvez nos acharmos incapazes de responder sem apelar, conscientemente ou não, a jufzos de valores ou opções ideais. Se tomarmos como hipótese de trabalho o risco de definir a "normalida- de" como uma adaptação pelo menos bastante perceptível aos dados estruturais internos estáveis e exteriores móveis, somos levados a considerar como "nor- mais" os comportamentos mais ou menos originais de todas as estruturas, neurótica ou mesmo psicótica, não descompensadas. Ora, se aceitamos a "nor- malidade" de estruturas psicóticas bem adaptadas, guardaremos ainda a possi- bilidade de recusar o rótulo de "normalidade" a todo este grupo de organiza- ções antidepressivas, anacliticas e essencialmente narcisistas, cuja fraude nas defesas acabamos de descrever como "pseudonormalidade", "falso self", "per- sonalidades como se" e anaclíticas diversas, que não conseguem viver bem fora do grupo? Agora qualquer episódio mórbido, uma organização do tipo "estado limite" seria menos "normal" do que uma estrutura psicótica? Menos sólida, o fato parece certo para os clfnicos, mas menos "normal"? Os resultados de pesquisas das mais honestas levam a pensar que existem, grosso modo, nas populações de nossas cidades. um terço de estruturas neu- róticas, um terço de estruturas psicóticas, e um terço de organizações mais ou menos anaclíticas (cf.C. CHILAND, 1971 a, p. 180-183). Outras estimativas concordam na cifra de psicóticos. mas variam para me- nos na cifra de neuróticos (em torno de 20% apenas), e para mais na cifra das organizações intermediárias (em torno de 50%). Seríamos, pois, levados a eliminar do campo da "normalidade" certa- mente mais de um terço de nossos contemporâneos? E mais: dado que, fora mesmo de qualquer opção sócio-política clara e deliberada, as gerações por vir conhecerão, em função da inevitável evolução sócio-econômica "grupal", à ima- 39
  • 39. uo tioutz, menos riscos de evolução psicótica, porém mais dificuldades no a-esse a UI'Tl Édipo organizador, veremos sem dúvida aumentar a cada ano, a ""=:"Ce"'tagem de arranj os anac líticos em uma população média. Em conseqüên - a.,averia cada vez menos pessoas "norma1s"? O aspecto irônico da questão contudo nada recobre de leviano: em reali- ::oade, é toda a função "normativa" da orgamzaçáo pelo t:dipo que se encontra posta em questão, e não simplesmente, por certo, o conhecimento ou reconhe- cimento de uma vivência edipiana no inconsciente mas a estruturaçáo da perso- l"'alidade por ocasião da passagem pela posição triangular com um objeto e um ri- val sexuais plenamente investidos como tais, e as irreversíveis conseqüências estruturais daí decorrentes. A ssim definida em seu rigor, será que a organização pelo Édipo é indis- pensável? Pode-se encorajar, em plena consciênc ia e clareza, sistemas educati- vos, polít icos, econômicos, sociais, até filosófic os,que certamente limitam os ris- cos de psicotizaç ão precoce, mas tornam aleatório o acesso a um estatuto edi- piano autêntico? Será que a organização pelo Édipo se mostra necessária para viver feliz? O dilema parece insolúvel: será que podemos contentar-nos com um "bem" para o maior número, estabelecido a partir de um mínimo múltiplo co- mum situado abaixo das possibilidades de muitos, ou será preciso,ao contrário, tender para um "melhor", ficando perfeitamente conscie ntes de que (como no ditado) o "melhor" pode ser inimigo do "bem" e reservado a uns poucos, os únicos que saberão e poderão atingi-lo, enquanto se sacrificarão os mais mo- destos no plano da organização psíquica de base7 Apenas levantei a questão em termos muito pragmáticos, contudo dema - siado severos par'a serem propostos às pressões mal defi nidas das paixões pú- blicas, e eis que, sob uma forma aparentemente teórica, desenvolve-se agora um feroz movimento de massas que corre ao assalto da fortaleza edipiana, fan- tasiada (tal como a imagem negativamente idealizada da Bastilha em 1789) co- mo repleta de tesouros secretos inestimáveis do Poder, inumeráveis vítimas da Injustiça, e os mais ardentes defensores do Capitalismo (aqui analft1co). Seria por demasiado fácil declarar , sem trazer a demonstração ,que o "an- ti-édipo", depois da "antipsiquiatria", limita -se, como novidade essencial, ao seu modo muito violento de apresentar a hábil mistura, por um lado, de críticas jus- tifica das já muito antigas e, por outro, de erros científicos não menos antigos, mas trazidos agora para o plano sócio-político, logo mais difícil de denunciar pelos não-especialistas. Procurarei situa r-me em outro nível e permanecer fixado ao domínio es- tr-to deste estudo,considerando as reflex ões que sugerem,diante do conceito de "normalidade", as posições de G. DELEUZE e F. GUATTARI (1972) em seu Anti- Eápo. É evidente que aqueles dentre os psicanalistas que pretendiam ser os freu- c .anos mais fiéis há muito limitaram-se ao estudo e tratame nto dos "neuróti- !DS • w'as talvez também descrevessem ou tratassem sob este vocábulo, por ve- zes be'TI outra coisa do que estruturas autenticamente neuróticas? Entretanto,