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OS
 ANJOS-DA-GUARDA
  Um vagabundo resolveu arranjar casa.
   – Chega de dormir ao relento e de andar por aí, a vadiar,
sem eira nem beira – disse o vagabundo. – Vou fazer uma
casa só para mim.
   Escolheu um sítio recatado, numa terra de ninguém, e
lançou-se ao trabalho. No primeiro dia, desbastou o terreno
e alisou-o. Depois, foi à vida.
   Este vagabundo chamava-se Joanete.
   Por coincidência, outro vagabundo também pensou que
já estava em tempo de ter uma casa. Para poder levar a sua
avante, tinha de procurar onde construí-la. Deu com o
terreno, alisado pelo vagabundo Joanete, e disse:
   – Aqui é que me calha. Está limpo e pronto para a
construção. Agora é só cavar as fundações e arranjar uns
troncos grossos, que segurem as paredes.

                             1
– Foi o que fez. Depois, foi à vida.
   – Este vagabundo chamava-se Pé-leve.
   Quando o primeiro vagabundo, o Joanete, regressou ao
trabalho e viu os buracos feitos e os troncos alinhados,
ficou, como é de imaginar, muito contente.
   – Anda um anjo a ajudar-me – pensou.
   Aplicou os troncos e foi cortar madeira para as paredes.
Depois, como não tinha pregos para pregá-las, foi
comprá-los.
   O Pé-leve, quando chegou e viu os troncos enterrados
nos buracos e a madeira empilhada, pensou:
   – Tenho um anjo ao meu serviço.
   E foi comprar pregos.
   Entretanto, regressou o Joanete. Pregou a madeira e
levantou as paredes.
   O telhado deixou para depois. Foi dar um passeio.
   Quando o Pé-leve voltou e viu as paredes prontas, disse:
   – Tenho de ajudar o meu anjo da guarda.
   E levantou o telhado. Depois foi procurar de comer.
   O Joanete, acabado o passeio, vendo o telhado pronto,
disse:
   – O meu anjo é um portento. Só falta o soalho e uns
móveis.
   Foi no que se aplicou. Assoalhada a casa e mobilada, no
seu essencial, só faltava habitá-la. Estava uma lindeza.
Uma porta, duas janelas, uma chaminé. Que mais queria?
   E o vagabundo Joanete, encantado com a sua obra,
ajoelhou-se e, de mãos postas, agradeceu a mãozinha
ajudadeira do seu anjo da guarda.
   Mas uma voz indignada interrompeu-lhe a oração:


                            2
– Que pouca vergonha é esta? Quem o mandou entrar na
minha casa?
  Era o Pé-leve.
  Levantou-se o Joanete e fez-lhe frente:
  – A sua casa? Com que direito? Ainda agora a assoalhei
e mobilei.
  – Então e eu que levantei o telhado? – repontou o
Pé-leve.
  – Então e eu que levantei as paredes? – retorquiu o
Joanete.
  – E eu que cavei as fundações?
  – E eu que alisei o terreno?
  Pararam de altercar. Olharam um para o outro, ambos de
boca aberta.
  – Tu é que eras o meu anjo da guarda? – apontou o
Joanete para o Pé-leve.
  – O meu anjo da guarda eras tu? – apontou o Pé-leve
para o Joanete.
  Caíram nos braços um do outro.
  E ficaram a viver juntos.

  FIM




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  • 1. OS ANJOS-DA-GUARDA Um vagabundo resolveu arranjar casa. – Chega de dormir ao relento e de andar por aí, a vadiar, sem eira nem beira – disse o vagabundo. – Vou fazer uma casa só para mim. Escolheu um sítio recatado, numa terra de ninguém, e lançou-se ao trabalho. No primeiro dia, desbastou o terreno e alisou-o. Depois, foi à vida. Este vagabundo chamava-se Joanete. Por coincidência, outro vagabundo também pensou que já estava em tempo de ter uma casa. Para poder levar a sua avante, tinha de procurar onde construí-la. Deu com o terreno, alisado pelo vagabundo Joanete, e disse: – Aqui é que me calha. Está limpo e pronto para a construção. Agora é só cavar as fundações e arranjar uns troncos grossos, que segurem as paredes. 1
  • 2. – Foi o que fez. Depois, foi à vida. – Este vagabundo chamava-se Pé-leve. Quando o primeiro vagabundo, o Joanete, regressou ao trabalho e viu os buracos feitos e os troncos alinhados, ficou, como é de imaginar, muito contente. – Anda um anjo a ajudar-me – pensou. Aplicou os troncos e foi cortar madeira para as paredes. Depois, como não tinha pregos para pregá-las, foi comprá-los. O Pé-leve, quando chegou e viu os troncos enterrados nos buracos e a madeira empilhada, pensou: – Tenho um anjo ao meu serviço. E foi comprar pregos. Entretanto, regressou o Joanete. Pregou a madeira e levantou as paredes. O telhado deixou para depois. Foi dar um passeio. Quando o Pé-leve voltou e viu as paredes prontas, disse: – Tenho de ajudar o meu anjo da guarda. E levantou o telhado. Depois foi procurar de comer. O Joanete, acabado o passeio, vendo o telhado pronto, disse: – O meu anjo é um portento. Só falta o soalho e uns móveis. Foi no que se aplicou. Assoalhada a casa e mobilada, no seu essencial, só faltava habitá-la. Estava uma lindeza. Uma porta, duas janelas, uma chaminé. Que mais queria? E o vagabundo Joanete, encantado com a sua obra, ajoelhou-se e, de mãos postas, agradeceu a mãozinha ajudadeira do seu anjo da guarda. Mas uma voz indignada interrompeu-lhe a oração: 2
  • 3. – Que pouca vergonha é esta? Quem o mandou entrar na minha casa? Era o Pé-leve. Levantou-se o Joanete e fez-lhe frente: – A sua casa? Com que direito? Ainda agora a assoalhei e mobilei. – Então e eu que levantei o telhado? – repontou o Pé-leve. – Então e eu que levantei as paredes? – retorquiu o Joanete. – E eu que cavei as fundações? – E eu que alisei o terreno? Pararam de altercar. Olharam um para o outro, ambos de boca aberta. – Tu é que eras o meu anjo da guarda? – apontou o Joanete para o Pé-leve. – O meu anjo da guarda eras tu? – apontou o Pé-leve para o Joanete. Caíram nos braços um do outro. E ficaram a viver juntos. FIM 3