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LÁGRIMAS




   E ra     uma vez uma lágrima, uma lágrima de
constipação. Sabem como é: o pingo no nariz, os olhos a
arder, um espirro, outro espirro, e uma lágrima que se solta
pelo cantinho do olho e escorrega, bochecha abaixo…
   Era uma vez uma lágrima, uma lágrima de riso. Sabem
do que falo: de tanto rir, tudo estala em nós e as lágrimas
saltam dos olhos como fogo-de-artifício, foguetes de
lágrimas…
   Eram, pois, duas lágrimas.
   Encontraram-se, no mesmo lenço.
   – Ouvi dizer que também há lágrimas de tristeza –
contou uma.
   – Custa-me a acreditar – disse a outra.
   Era a do riso quem assim falava.

                              1
Mas uma terceira lágrima chegou ao lenço. Tão de água,
tão salgada como as outras. E da fonte dos mesmos olhos.
Mas esta era diferente.
   – Sou uma lágrima de dor – apresentou-se ela.
   Seria verdade? Às outras duas parecia impossível. Quem
a soltara, constipado que estava, ainda há pouco rira até às
lágrimas. Como é que se pode passar, assim tão de repente,
da alegria à mágoa?
   – O que aconteceu, entretanto? – quiseram saber as duas
lágrimas mais antigas.
   – Foi um entalão – explicou a recém-chegada. – Quem
me soltou tinha ido buscar um lenço dobrado à gaveta e,
entretido a rir, ao fechar, entalou um dedo.
   – Há desgraças piores – comentou a lágrima da
constipação.
   – Prefiro nem saber – suspirou a lágrima do riso.
   O resto da conversa já não acompanhei, porque eu, o
dono das três lágrimas, desfiz-me do lenço molhado para
dentro da roupa suja. Lenços não me faltam, brancos ou às
cores e para todas as ocasiões da vida.


  FIM




                             2

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  • 1. LÁGRIMAS E ra uma vez uma lágrima, uma lágrima de constipação. Sabem como é: o pingo no nariz, os olhos a arder, um espirro, outro espirro, e uma lágrima que se solta pelo cantinho do olho e escorrega, bochecha abaixo… Era uma vez uma lágrima, uma lágrima de riso. Sabem do que falo: de tanto rir, tudo estala em nós e as lágrimas saltam dos olhos como fogo-de-artifício, foguetes de lágrimas… Eram, pois, duas lágrimas. Encontraram-se, no mesmo lenço. – Ouvi dizer que também há lágrimas de tristeza – contou uma. – Custa-me a acreditar – disse a outra. Era a do riso quem assim falava. 1
  • 2. Mas uma terceira lágrima chegou ao lenço. Tão de água, tão salgada como as outras. E da fonte dos mesmos olhos. Mas esta era diferente. – Sou uma lágrima de dor – apresentou-se ela. Seria verdade? Às outras duas parecia impossível. Quem a soltara, constipado que estava, ainda há pouco rira até às lágrimas. Como é que se pode passar, assim tão de repente, da alegria à mágoa? – O que aconteceu, entretanto? – quiseram saber as duas lágrimas mais antigas. – Foi um entalão – explicou a recém-chegada. – Quem me soltou tinha ido buscar um lenço dobrado à gaveta e, entretido a rir, ao fechar, entalou um dedo. – Há desgraças piores – comentou a lágrima da constipação. – Prefiro nem saber – suspirou a lágrima do riso. O resto da conversa já não acompanhei, porque eu, o dono das três lágrimas, desfiz-me do lenço molhado para dentro da roupa suja. Lenços não me faltam, brancos ou às cores e para todas as ocasiões da vida. FIM 2