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O discurso do "combate às drogas" e suas ideologias

    The discourse of the "fight against drugs" and its ideologies

Richard Bucher*, Sandra R.M. Oliveira**
          BUCHER, R. & OLIVEIRA, S.R.M. O discurso do "combate às drogas''e suas ideologias. Rev. Saúde
          Pública, 28: 137-45, 1994. À luz de considerações científicas sobre o abuso de drogas, discute-se
          a ideologia dos textos sobre drogas que seguem uma orientação moralista e repressora, a despeito
          das condições sócio-históricas do consumo. Colocam-se em foco os sentidos não-literais para situar
          tais discursos no contexto da sua produção e para detectar neles formas de manutenção de poder
          presentes nas relações sociais. Utiliza-se a teoria da análise do discurso como a metodologia
          apropriada para se desvendar os indicadores da ideologia que impõe aos textos sobre drogas uma
          determinada modalidade. Os resultados revelam um discurso com propósitos claramente
          persuasivos, direcionando e manipulando modos de ser e de ver na sociedade, deixando-se
          interpretar como parte interessada em um pesado sistema de conformismo social. Conclui-se que
          a questão das drogas não é tratada em si, mas enquanto mito construído, usado para combater
          série de desvios da ordem social vigente.

          Descritores: Abuso de substâncias, prevenção. Linguagem. Autoritarismo.


Considerações sobre o discurso do                                em muitos países, entre os quais o Brasil, são
"combate às drogas"                                              precisamente as substâncias lícitas as mais con-
                                                                 sumidas e as mais fortes geradoras de abusos e
      Entre as diversas abordagens da "questão                   dependências. Trata-se aí de um fato epidemio-
das drogas", nas sociedades modernas, destaca-                   lógico inconteste, a ser levado a sério diante da
se aquela que enfatiza o "combate às drogas",                    distorção do fenômeno introduzida pela prega-
apresentando-o como a única maneira capaz de                     ção tantas vezes piegas do "combate às drogas".
enfrentar e erradicar o "grave flagelo". De ex-                        Opor-se a esta visão reducionista não signi-
pressão rigorosamente condenatória, caracteri-                   fica, no entanto, entregar-se à apologia do con-
za-se pela veemência de uma argumentação                         sumo de substâncias psicoativas, mas tão so-
mais emotiva e alarmista do que serena e obje-                   mente defender uma análise objetiva e contex-
tiva, mais sensacionalista do que científica, mais               tualizada da situação das drogas em uma deter-
moralista do que isenta de juízos valorativos.                   minada sociedade. Não se trata, pois, da defesa
Desta forma, incita a uma "cruzada anti-drogas",                 de uma posição extremista de "liberação de
cuja beligerância encobre série de fatores que,                  todas as drogas" para um consumo indiscrimina-
de certo, contribuem decisivamente para a ex-                    do, mas do respeito por uma experiência huma-
pansão do fenômeno.                                              na milenar, a ser examinada numa linha históri-
      Portanto, ao invés de analisar o consumo de                co-antropológica para que se torne possível
drogas em seus múltiplos determinantes para                      apreender suas significações modernas.
chegar a propostas preventivas pertinentes e                          Constata-se, de fato, que a cegueira da po-
prometedoras de eficácia, tal abordagem limita-                  sição repressiva radical traz mais estragos do
se a preconizar uma repressão implacável, res-                   que benefícios, por fazer prevalecer uma visão
tringindo-se, desta forma, às drogas ilícitas. Ora,              unidimensional, inapropriada para o trato do
                                                                 fenômeno em toda sua complexidade. As nume-
                                                                 rosas implicações ideológicas daquela visão não
*     Departamento de Psicologia Clínica da Universidade
      de Brasília - Brasília, DF - Brasil
                                                                 encontram o necessário contra-peso através de
**    Bolsista junto ao Departamento de Psicologia Clínica       análises sociais profundas, pertinentes e abran-
      da Universidade de Brasília - Brasília, DF - Brasil        gentes (Carlini - Cotrim & Pinski3, 1989).
Separata/Reprints: R. Bucher - PCL-UnB - 70910-900 - Brasília,        Abordar a "questão das drogas" no enfoque
                    DF - Brasil                                  combativo citado significa, ainda, não tratá-la
como realidade a ser investigada, mas sim, trans-   em pauta, incluindo aí as repercussões no cam-
formá-la em mito fabricado para cumprir deter-      po da saúde pública.
minadas funções sociais. Espalhada no bojo da            A aproximação dá-se através do conceito
"cruzada anti-drogas", lhe é imputada nitida-       de ideologia, enfatizada enquanto categoria ex-
mente a função de "bode expiatório", fazendo-a      plicativa do funcionamento dos discursos so-
aparecer como responsável por grande parte          ciais. Em face deste termo controverso e plurí-
dos revezes sociais; produz-se então uma misti-     voco, lançou-se mão do discernimento de pola-
ficação, erigindo-se uma cortina de fumaça ao       ridades positiva e negativa para incluir seus
redor do pretendido "flagelo", o que impede seu     inúmeros significados em dois registros: o des-
dimensionamento correto e averigüável, im-          critivo e o crítico. O primeiro enfoque refere-se
prescindível para se ultrapassar o nível de pre-    a sistemas de pensamentos, crenças, valores ou
conceitos, prejulgamentos e visões preconcebi-      "cosmovisão"; por sua vez, o sentido crítico
das, ou ainda, aquele de interpretações unidire-    aponta as idéias e atitudes postas ao serviço da
cionais ou tendenciosas (Bucher 2 , 1992).          sustentação das relações assimétricas de poder,
     Qualquer discurso que enfoca questões so-      da injustiça social e da distribuição desigual de
ciais pode, conforme os seus efeitos de sentido,    direitos e rendas.
transformar ou manipular as representações co-           Exploram-se, assim, as relações entre ideo-
letivas com a finalidade de manter certas estru-    logia e linguagem, ultrapassando a noção de
turas de poder; da mesma forma, pode modifi-        linguagem como sistema de comunicação para
cá-las, visando à superação dessas mesmas es-       correlacioná-la com os fenômenos conflitantes
truturas. Assim, adquirem identidade particu-       da estruturação social da qual ela própria faz
lar, aparecendo como formações que se defi-         parte. Dessa maneira concebida, a linguagem
nem pelos sentidos ideológicos que reiteram e       passa a ser definida como discurso, ou seja,
que vão direcionar a sua função enunciativa.        como ato social ou ação que visa a produzir
Desencadeadas a partir da interação de opiniões     efeitos (Fiorin5, 1990).
diferentes sobre questões de interesse comum,            Se e verdade que nenhum discurso escapa
tais formações apresentam regularidades em          do envolvimento com a dimensão ideológica,
seu funcionamento que permitem interpretá-las       discernir os dois enfoques citados propicia uma
como parte de uma matriz ideológica específi-       avaliação contingente dos efeitos de sentido
ca, constituindo o que se denomina, em Análise      dominantes, permitindo compreender o alcan-
do Discurso, de formação discursiva.                ce de determinado fenômeno social, no caso, o
     Aplicando esta concepção à discussão so-       consumo de drogas. Assim, uma contextualiza-
bre drogas, pode-se formular a hipótese segun-      ção desse consumo como fenômeno histórico
do a qual determinados textos, ainda que pro-       e antropologicamente situado permite apreen-
duzidos em setores diferentes, constituem uma       der descritivamente seus sistemas de valores,
mesma formação discursiva, promovendo a cir-        crenças e representações populares, enquanto
culação de uma série de sentidos específicos.       que uma análise crítica das produções sobre
Estes, no seu conjunto, incorporam toda uma         drogas, proferidas por certas instâncias de po-
ideologia anti-drogas, plataforma para se divul-    der ou de autoridade, permite detectar tendên-
garem e implantarem medidas de controle da-         cias, esforços e manipulações para proteger
queles fenômenos de consumo considerados,           determinadas relações econômicas e políticas
no referido prisma ideológico, como socialmen-      vigentes.
te indesejáveis e portanto, exigindo repressão           É com este intuito de avaliação crítica que
(Oliveira10 , 1992).                                textos representativos do discurso repressivo
     A partir dessas considerações, propõe-se       sobre drogas foram analisados no presente tra-
um recorte no extenso campo de produção             balho. Ao visar as coerções institucionais que
sobre drogas, submetendo à análise a forma-         marcam tal produção discursiva, levantaram-se
ção discursiva do "combate", buscando com-          questões vinculadas ao poder institucional, às
preender os seus processos de significação e        práticas repressivas, punitivas e assistenciais
a forma como influem na construção do senso         em saúde mental, aos jogos de interesses políti-
comum do brasileiro a respeito da temática          cos e econômicos no comércio de drogas lícitas
(além das ilícitas), ao papel do profissional nas   curso (Foucault8 , 1971) expressam-se determi-
áreas de saúde, educação, ação social, justiça e    nadas condições sócio-históricas que impreg-
pesquisa científica.                                nam as formações discursivas, enquanto con-
     Dentre as numerosas contradições possí-        junto de regras limitadas no tempo e no espaço
veis de se apontar na formação discursiva da        e que definem as condições de exercício da
"cruzada anti-droga" destacaram-se certos           função enunciativa. Os discursos que reiteram
pressupostos inerentes à sua vinculação com         processos socialmente cristalizados podem ser
as estruturas sociais e de poder que as engen-      apreendidos como partes de uma mesma ma-
dram e que asseguram sua divulgação - pres-         triz, determinando regularidades definidas pela
supostos esses detentoras de configurações          relação que mantém com a ideologia.
ideológicas, cujos contornos mais precisos                Tais idéias chaves servem para a compreen-
tentou-se apreender.                                são da ideologia e das injunções de poder no
                                                    discurso repressivo sobre drogas. Repertorian-
                                                    do esse discurso no espaço específico onde se
Método: Ideologia e análise do discurso             articulam linguagem e ideologia, é possível res-
                                                    saltar os processos de significação que regem o
     Na investigação proposta, optou-se pela        imaginário social sobre drogas no Brasil. Para
Análise do Discurso como instrumento adequa-        tanto, série de características lingüísticas relati-
do para examinar a ligação entre a linguagem        vas ao vocabulário e à gramática são considera-
apresentada e a ideologia subjacente. Sua meto-     das marcas para o entendimento analítico de
dologia permite explicitar os processos comu-       tais processos. O presente trabalho, no entanto,
nicativos construídos nos textos sobre drogas e     não se limita à análise da superfície lingüística,
detectar intenções secretas ou interesses escu-     mas examina também as propriedades discursi-
sos em veicular idéias condenatórias radicais,      vas que se situam além das marcas formais.
por razões que ultrapassam os efeitos nefastos            Examinando-se a relação do texto com o
do consumo de drogas em si.                         discurso e com o contexto, atingem-se três ní-
     A Teoria do Discurso apóia-se no conceito      veis de análise, conforme três níveis de organi-
de linguagem como sendo a materialidade             zação: a situação social do momento imediato,
apropriada à ideologia. Sistematizada inicial-      a instituição social enquanto matriz do discur-
mente por Pecheux12 , (1969), a Análise do          so, o nível mais amplo da sociedade como um
Discurso, somada à contribuição de autores          todo e das suas ideologias. O procedimento
como Bakhtin 1 (1970),              Foucault 7,8    completo da análise passa pelas etapas da des-
(1969,1971), Ducrot , (1972) e Fairclough6,
                      4
                                                    crição, interpretação e explicação (segundo
(1989), vem sendo amplamente utilizada para         Fairclough6), abrangendo vocabulário, gramáti-
trabalhar os sentidos não literais dos enuncia-     ca e estrutura textual, visando a revelar tanto os
dos, com base no reconhecimento da dimen-           esquemas classificatórios quanto as combina-
são sócio-histórica da linguagem.                   ções das formas lingüísticas.
     Na sua origem, a Teoria da Análise do                Na análise contextual do discurso repressi-
Discurso, tal como idealizada por Pecheux 12 ,      vo sobre drogas aparece como particularmente
aparece ligada à dimensão político-ideológica:      relevante para a apreensão dos sentidos implíci-
suas premissas básicas apoiam-se na concep-         tos o exame dos pressupostos e dos subentendi-
ção da linguagem ter um modo de constitui-          dos. Estes se deixam considerar como estraté-
ção profundamente histórico, não sendo pos-         gias lingüísticas e retóricas para neutralizar pos-
sível dissociá-lo do conjunto das práticas hu-      síveis conseqüências de uma compreensão lite-
manas. Por esta razão, saber quem fala, para        ral dos atos da fala. Assim, querendo dizer mais
quem fala, em que situação, de que lugar da         do que se diz ou apagando sentidos pelo silen-
sociedade, com que intento, são elementos de        ciamento de aspectos cruciais do consumo de
suma importância no processo comunicativo.          drogas, é possível produzir representações con-
     Na constituição dos significados manifes-      venientes a uma determinada formação social. O
tam-se as coerções ideológicas que incidem so-      não-dito, por exemplo, sob a vertente do implí-
bre a linguagem. Nas chamadas ordens do dis-        cito (diz "x" querendo dizer "y") e aquela do
anti-implícito (diz "x" querendo silenciar "y"),      propiciar prazer, sensações agradáveis, facilida-
pode determinar certas significações ocultadas        des de comunicação e relaxamento.
no discurso "oficial" (Orlandi4, 1990).                    8. Omissão ou descaso a respeito do uso e
     A fim de clarear a trama discursiva que          abuso de medicamentos psicotrópicos e outras
sustenta a idéia do "combate às drogas" e apon-       drogas lícitas.
tar os elementos usados para dirigir a opinião             9. Crença na intervenção heróica e desinte-
pública rumo ao entendimento "certo" da ques-         ressada que livrará a comunidade e o país, defi-
tão, são colocadas na base da investigação per-       nitivamente, das drogas.
guntas como: que elementos são articulados                 10. Recomendação de atividades religiosas,
para se chegar a uma representação ideologica-        morais, patrióticas e esportivas como estraté-
mente orientada da droga? que dados são silen-        gias de prevenção (ou mesmo como "vacinas").
ciados, quais outros superdimensionados? que               De acordo com a prevalência desses temas,
relações de poder estão em jogo...?                   foram feitos cortes em três instâncias de produ-
                                                      ções discursivas: textos americanos divulgados
                                                      no Brasil, documentos oficiais brasileiros e tex-
Material: Os textos analisados                        tos da imprensa brasileira. Os textos seleciona-
                                                      dos para a análise foram:
     Foi desenvolvida uma análise prévia de um            Documentos de produção americana:
conjunto de textos sobre drogas, lançando-se           a) O Presidente Bush adverte estudantes sobre
mão de uma leitura assistemática que acabou                o consumo de drogas. Brasília, Embaixada
determinando a composição do corpus. Os tex-               Americana. Tradução do documento edita-
tos foram selecionados pelas especificidades e             do pelo USIS - United States Information
regularidades discursivas correspondendo às                Service, 1989;
características da formação impregnada pelo            b) Escola sem drogas. Brasília, Embaixada Ame-
Leitmotiv do "combate às drogas". Assim, a re-             ricana. Tradução do documento editado
corrência de determinadas particularidades lin-            pelo US Department of Education, 1989;
                                                            Documentação oficial brasileira:
guísticas, retóricas e temáticas serviu para dife-
                                                       c) PREVIDA - Programa de Prevenção, Educa-
renciar e agrupar os textos como partes de um              ção e Vida: subsídios para o educador. Bra-
mesmo processo de divulgação ideológica.                   sília, CONEN/DF, 1991;
     Na presente análise destacaram-se as seguin-      d) MURAD, J.E.: Como manter sua escola longe
tes características, induzindo à escolha das unida-        das drogas. Belo Horizonte, ABRAÇO/PRE-
des de pesquisa e das categorias de referência:            VIDA*, 1989;
      1. Silenciamento acerca das questões so-              Produção jornalística:
ciais que concorrem para os fenômenos de uso,          e) Império do pó. Jornal do Brasil, 26/02/92,
abuso e dependência de drogas.                             p. 10;
     2. Desconsideração da motivação do usuá-          f) Na carteira ao lado. VEJA, 27/03/91, p. 42-48.
rio, da sua dimensão subjetiva.                             Com base na interpretação e explicação dos
     3. Simplificação do fenômeno das drogas,         elementos lingüísticos, da estrutura argumenta-
apontando elementos unidimensionais na etio-          tiva e dos implícitos desses textos, foi possível
logia da dependência.                                 apreender os elementos cruciais da ideologia
     4. Centralização exclusiva no produto tóxi-      que formenta a sua produção e os sustenta.
co (ilícito).
     5. Tratamento genérico dos efeitos da            Resultados da análise: O "combate às
droga, pela lei do tudo ou nada, sem especifi-        drogas" como construção ideológica
cação do produto, do padrão de uso, da per-
sonalidade e história de vida do usuário, do              Os resultados demonstram que há série de
contexto.                                             regularidades discursivas comuns aos textos ana-
     6. Associação dramática freqüente entre
droga e sexo, droga e crime, droga e loucura,         *    ABRAÇO - Associação Comunitária de Pais e Mestres
droga e morte.                                             para Prevenção ao Abuso de Drogas.
     7. Omissão do fato de que a droga pode                PREVIDA - Programa de Prevenção, Educação e Vida.
lisados (e a muitos outros sobre o assunto, em       to de autoridade, que fortalece o efeito persua-
particular na imprensa cotidiana) que se ligam       sivo na medida do prestígio que se associar ao
entre si, cooperando na fixação de sentidos          lugar de fala do orador - no caso, o Presidente
ideologicamente comprometidos. Estes, por            dos EUA.
sua vez, propiciam práticas que atendem às                 Exercem também função decisiva, pois
necessidades de controle social e de manuten-        criam um "efeito verdade", os números e os
ção de certos padrões da ordem vigente.              dados estatísticos freqüentemente apresenta-
     Os textos remetem-nos a uma visão precon-       dos sem citar a fonte. É comum a referência a
ceituosa, repressora e, por vezes, moralista,        números de grande porte, de forma a alarmar
obtendo aceitação nos segmentos políticos e          mais do que informar, como ilustra o seguinte
públicos que se destacam seja pelo desconheci-       exemplo: "Pesquisas mostram que o uso de
mento do tema, seja pelas tendências conserva-       drogas entre as crianças é dez vezes mais
doras ou anti-liberais. O autoritarismo e a mo-      prevalente do que os pais suspeitam" (b, p.2).
nossemia são marcas que direcionam suas ope-               Vê-se, pois, mensagens que não têm por
rações verbais, dirigidas aos leitores com obje-     objetivo informar, mas convencer, limitando a
tivos claramente persuasivos, visando a exercer      possibilidade de elaboração de uma concepção
influência decisiva sobre as suas representações     própria por parte do leitor. É dessa forma que
- como, de fato, qualquer discurso de propagan-      se constrói o discurso do consenso, pelo qual
da ou de publicidade. As produções funcionam         transmitem-se idéias como partilhadas virtual-
então como cúmplices nas explicações e justi-        mente por todos, investindo-as do papel de um
ficações dessa visão preconcebida da questão         axioma do qual não se pode (ou deve) duvidar.
das drogas.                                          Assim sendo, os textos induzem uma verdadeira
     Pode-se concluir que os textos analisados       subordinação intelectual: o leitor mergulha no
fazem parte de um grande conjunto denomina-          movimento de "combate às drogas" sem se dar
do formação discursiva anti-drogas. Enquanto         conta, uma vez que este é apresentado (se não
entidade global, ela é abstrata e inacessível, mas   apregoado) como único caminho para enfren-
se deixa conhecer através dos textos particula-      tar e "resolver" a questão do consumo.
res dando corpo material ao seu funcionamento.             2. O tom autoritário e alarmista imprimido
     Enumeram-se, em seguida, os principais          aos textos que materializam o discurso em pau-
efeitos de sentido construídos neste discurso,       ta traz como resultado a idéia de um saber único
detectados pela análise praticada.                   e exclusivo. A tendência de se apresentar como
      1. Segundo sua retórica argumentativa, des-    detentor da verdade está então duplamente pre-
taca-se como primeira função a meta da persua-       sente: pelo caráter formal da produção mas
são. Termos expressivos e combinações lin-           também pela força dos argumentos veiculados.
güísticas diversas estão voltados para a constru-    O discurso autoritário é o campo da certeza, do
ção de um sentido dominante. Palavras carrega-       imperativo categórico que manifesta um saber
das de conteúdos ameaçadores como sinistro,          supremo, levando o interlocutor a aceitá-lo
luta, guerra, espúrio, crime, morte e outros, são    como verdade. Impede-se, por conseguinte, a
usadas com freqüência, ajudando a construir          expansão de um pensamento mais crítico, seja
enunciados de teor passional, o que dificulta        individual, seja social ou comunitário.
uma avaliação sóbria da problemática.                     Uma das maneiras pelas quais os produtores
     Outros recursos, como a reiteração e o          de textos conseguem impor os seus argumentos
argumento de autoridade, capazes de promo-           dá-se com a utilização de verbos como tenho
ver o discurso como consensual, colaboram            encontrado, estou convencido, acredito, preci-
para levar o sujeito a aderir à concepção pro-       samos, que exprimem uma atitude de convic-
posta. Por exemplo, enunciados do tipo: "O           ção, marcando a posição autoritária do locutor.
Presidente Bush deu uma lição aos estudantes              Reforça tal análise a presença de termos
norte-americanos sobre responsabilidade e            como trincheira, combate, perigoso, danoso,
maturidade"(texto a, p.1), introduzem perso-         insinuando guerra e sofrimento. Estas são asso-
nagens importantes como estratégia de valo-          ciadas às drogas para provocar um clima de
rização da mensagem. É o chamado argumen-            repúdio incondicional, subsidiando enuncia-
dos do tipo: "O consumo de drogas não é um fato            4. Uma outra idéia chave diz respeito à
novo na história da humanidade, atualmente ob-       apresentação do cidadão, em particular jovem,
serva-se um incremento crescente do seu consu-       como ser indefeso, necessitando de orientação
mo, gerando grandes problemas sociais e de saú-      e proteção: "O nosso papel é fazer prevenção e
de como a violência, a marginalidade, a prostitui-   tentar ajudar os alunos que caem nessa" (f, p.46).
ção, a auto-destruição e morte", (c, p. 15).         Ou ainda: "Precisamos continuar a propiciar
      O enunciado acima usa o recurso linguísti-     apoio e orientação aos jovens para que façam
co denominado de paralelismo, que repete             escolhas sãs." (b, p.VI). Enfatiza-se dessa forma o
uma certa estrutura para reforçar uma idéia,         relacionamento vertical (provedor/receptor) ou
acentuando o seu efeito (a violência, a margina-     ainda paternalista, articulado à perfeição com o
lidade, a prostituição, a auto-destruição e mor-     modelo da sociedade disciplinar, cuja racionalida-
te). Faz dessa forma emergir o sentido de que a      de estimula o controle institucional, a relação
droga é hoje o único fator causal de problemas       autoritária, o enquadramento dos indivíduos sem
que, por outras razões, sempre estiveram pre-        participação criativa, sem responsabilidade civil e
sentes na história da humanidade.                    sem pensamento crítico.
      3. Uma das técnicas fundamentais na                  No parágrafo "Se as bocas funcionam nos
construção do discurso anti-droga são os si-         morros, administradas por traficantes que ater-
lenciamentos, utilizados seja para omitir deli-      rorizam comunidades indefesas, explorando e
beradamente algo, seja para fala superficial-        pervertendo menores, os consumidores prolife-
mente de um fato que poderia enfraquecer a           ram em todas as camadas sociais"(e, p. 10), vê-se
argumentação. Assim, fala-se muito da droga          da mesma forma a construção de sujeitos sociais
ilícita omitindo-se falar das drogas lícitas - as    frágeis, otários ou vitimados. Note-se o vocábu-
mais consumidas no mundo inteiro e as mais           lo indefesas, modificando radicalmente o termo
perniciosas para a saúde pública. Aplica-se          comunidade, transmitindo a idéia de inércia,
indiscriminadamente o termo droga, induzin-          passividade, vulnerabilidade. Embora na pers-
do o leitor a incluir nesta categoria apenas os      pectiva sociológica o termo comunidade carac-
produtos ilícitos, pela associação permanente        terize um agrupamento com forte coesão afeti-
com palavras como tráfico, posse, busca,             va, com capacidade de organização ativa e trans-
apreensão, aplicação da lei, notificação e ou-       formadora, prevalece no texto o sentido de
tras, termos que excluem qualquer possibili-         fragilidade e sujeição.
dade de vínculo com a substância alcoólica ou              Insistindo sobre a passividade como inevi-
outro produto legalmente aceito.                     tável - implicando em negar qualquer possibili-
      Assim, no enunciado: "(...) apelou para        dade de autonomia pessoal - incentiva-se como
que tomassem parte na luta contra os narcóti-        efeito adicional toda uma desmobilização so-
cos" (a, p. 1), o termo luta, pela sua associação    cial. É como se, diante da "ameaça das drogas",
com narcóticos, faz referência ao narcotráfi-        o cidadão, "por sua ingenuidade e incapacidade
co; somado à ausência de informações sobre           de defesa", precisasse da intervenção regulado-
contexto, tipo e padrão de uso do produto,           ra das autoridades benevolentes e "competen-
determina a inclusão de todas as drogas em           tes". Desta forma, ilustra-se (e estimula-se) a
uma mesma categoria e reduz a uma única              longa trajetória da submissão obediente às nor-
forma de consumo toda a gama de possibilida-         mas disciplinares, rumo à construção de "cor-
des de uso - desde o consumo ocasional ou            pos dóceis" (Foucault 9 , 1975).
recreativo até o dependente.                               5. Outra característica marcante dos textos
      Em que pesem referências ocasionais ao         analisados diz respeito àquelas construções so-
consumo de álcool, fumo, psicofármacos e sol-        bre drogas que as apresentam como um mal em
ventes, o efeito de sentido criado é de que só a     si, independentemente do uso que delas se faz,
droga ilegal "é problema". Transmitindo-se a         das ações subjetivas e dos processos sociais.
idéia de que existem duas categorias de substân-     Utilizando os recursos lingüísticos de persona-
cias, as perigosas (= ilegais) e outras benignas,    lização, nominalização, metáforas, apresen-
beneficia-se implicitamente a indústria farma-       tam-se os fenômenos como desvinculados de
cêutica e o comércio das substâncias lícitas.        outros fatores que intervêm na dinâmica dos
comportamentos de consumo.                           evitados os advérbios modalizadores possivel-
     Os enunciados abaixo exemplificam a per-        mente, provavelmente, ou verbos no futuro do
sonificação, figura de linguagem pela qual os        pretérito, o que revela o postulado de uma visão
seres inanimados agem como se fossem pessoas.        transparente da realidade.
Aplicada à droga, empresta-lhe vida e ação, im-            Prevalecem então os verbos na forma pre-
pedindo que fosse percebida como parte de um         sente, atestando significados absolutos, verda-
processo social: "As drogas ameaçam a vida de        des incontestáveis que não necessitam de inter-
nossos filhos, causam ruptura em nossas escolas      pretação: "O uso ocasional de drogas é respon-
e desagregam famílias" (b, p.41). Ou: "Não existe    sável pelas vítimas na guerra das drogas"(a,
a escola onde a droga nao entra" (f, p.43).          p.1); "as instituições, principalmente a família,
     Apaga-se assim a subordinação do consu-         estão sofrendo uma de suas piores crises" (c,
mo de drogas às dinâmicas social e individual,       p. 15); "o traficante está na sala de aula sentado
necessárias à sua configuração como "proble-         na carteira ao lado do estudante, a quem irá
ma". Eventos sociais, historicidade, motivações      oferecer maconha ou cocaína" (f, p.43).
e decisões pessoais são negligenciados em be-              Com a separação maniqueista do mundo
nefício de determinadas lógicas simplistas que,      em dois blocos compactos e inconciliáveis - o
"inexistentes" por não serem diretamente ex-         mundo dos bons e o mundo dos maus, ao
plicitadas nos textos, não podem ser contesta-       exemplo das fábulas de mocinhos e bandidos -
dos - tão pouco que as formas de controle social     os autores de tais textos legitimam os próprios
que encetam.                                         papéis: protetores dos "bons cidadãos", cujos
     Na sociedade atual, a individualidade inco-     comportamentos correspondem às expectati-
moda. Desta forma, ela é submetida a um meca-        vas de "normalidade", e perseguidores dos "vi-
nismo disciplinar que a vilipendia como "desvio      ciados e traficantes" e outros desviantes de
da norma", para que se possa assegurar a homo-       normas, cujos comportamentos são incrimina-
geneização das multiplicidades humanas. Ne-          dos de ameaçarem a "ordem social".
cessitando de um campo social homogêneo, os                Vilipendiando representantes de diferen-
poderes hegemônicos - políticos mas sobretudo        ças como desviantes, cria-se todo um sistema de
econômicos - não conseguem conviver com as           acusação, podendo funcionar como estratégia
diferenças, marcando-as enfaticamente para po-       valiosa para a manutenção de certos poderes
der normatizá-las. Mas eis o paradoxo: com a         discriminatórios. São acusações que, uma vez
coerção normalizadora, a diferença se acentua        formalizadas, implicam um elaborado ritual de
e faz o sujeito aparecer como desviante (Ve-         exorcização - segundo o exemplo bem conhe-
lho13, 1978).                                        cido do bode expiatório - envolvendo todo um
     6. Outro sentido prevalente refere-se a uma     aparato institucional respaldado pela lei, isto é,
visão do mundo simplista e maniqueista. Seus         pela possibilidade de coerção e punição.
autores, referenciados por ideologias represso-            "Viciado", em particular, contém toda uma
ras e moralistas, enveredem então com facilida-      acusação moral que assume explicitamente
de pelo campo do dogmatismo absoluto, con-           uma dimensão policial e política. Implicitamen-
siderando a verdade como propriedade pessoal.        te, carrega uma acusação totalizadora pondo em
Usam verbos na forma imperativa e termos             dúvida não apenas a cidadania, mas a própria
como jamais, nunca, que insinuam uma posição         humanidade do usuário de drogas. Rotulado
de certeza, de verdade, de supremacia das afir-      como "maconheiro" ou "marginal", passa a ser
mações expressas:                                    visto como alguém que atenta contra a moral e
     "Ensine aos seus filhos desde criança a dizer   os bons costumes, mas também contra as pró-
não" ... "Mostre-lhes que o uso de drogas é          prias instituições, o que faz dele um ser anti-so-
perigoso"... "Jamais permitam que os filhos me-      cial. Vítimas de uma tal estigmatização, os dro-
nores façam uso de bebidas alcoólicas"(d, p.8).      gaditos são considerados como "desviantes" e
     Tais enunciados ensinam e ordenam com           transformam-se, a partir daí, em excluídos da
tamanha convicção que não resta ao leitor se-        convivência social pacífica, em função de prin-
não acatar e submeter-se à força da argumenta-       cípios rígidos, impostos, mantidos e manipula-
ção construída no texto. Simultaneamente, são        dos ideologicamente.
Conclusão: "Combate às drogas" para                  posições radicais contra usuários e dependen-
quê?                                                 tes. Atém-se, fundamentalmente, à propagação
                                                     de duas metas: por um lado, veicular explica-
      As análises dos mecanismos de poder envol-     ções e recomendações que garantam a adapta-
vidos no discurso de "combate às drogas" indicam     ção dos cidadãos à ordem social, concebida
formas de um processo disciplinar referentes a       como entidade ahistórica, inquestionável, imu-
um contexto autoritário, discriminatório e re-       tável e ideal; por outro, a de prover interven-
pressivo. Seus textos contribuem com o traba-        ções repressoras e punitivas que excluem o
lho político (senão policial) de sujeição do cida-   sujeito diferente, apontado como uma ameaça
dão a um determinado ideário de harmonia so-         às instituições e à sociedade como um todo.
cial, ajudando a encobrir as contradições ineren-         A dimensão ideológica permeia o conjunto
tes às sociedades modernas e sustentando rela-       desses textos, vinculando suas formas e idéias a
ções de força estabelecidas entre certos grupos      sistemas de poder presentes nas relações so-
sociais. Ele contrasta em particular com a abor-     ciais, necessitando de controles eficazes. Etica-
dagem do "problema das drogas" que o situa no        mente descompromissado com o ser humano e
âmbito da saúde pública, enquanto ameaça não         sua existência, constrói um quadro de moralis-
à "ordem social", mas à saúde da população no        mo que se baseia na intolerância quanto à plu-
sentido amplo, visando em particular os danos        ralidade das opções e visões; por não se fundar
causados pelos abusos de álcool e fumo.              numa ética humanista, torna-se incapaz de ca-
      O discurso em pauta não se constitui, por-     minhar em direção a valores representativos de
tanto, como uma simples idéia, um conheci-           liberdade e dignidade, esteios de uma convivên-
mento objetivo e benéfico ou uma ideal idade         cia democrática se não harmoniosa, pelo menos
discursiva sobre drogas e seus inegáveis malefí-     norteada pelos ideais de justiça e respeito às
cios. Sua ação mais eficaz consiste no papel de      diferenças.
disciplinarização das pessoas, na medida em               O modelo repressivo apregoado pelo dis-
que compactua com normas de conduta consti-          curso anti-droga deve ser questionado não ape-
tutivas de um amplo projeto normalizador das         nas pela sua comprovada ineficácia em diminuir
relações sociais. Apontando a possibilidade e a      o consumo de drogas e em contribuir significa-
ameaça de condutas desviantes, funda-se a pres-      tivamente para resolver as questões de saúde
crição normativa que desencadeia o controle, a       pública que levanta, mas por impor um sistema
intervenção e a exclusão.                            de intervenção injusto e freqüentemente desu-
      Reproduz-se assim, a cada instante, as con-    mano. Obcecados pela idéia de combater as
dições de possibilidades de implantação, na          drogas ilícitas por mecanismos jurídicos e poli-
sociedade, de uma estratégia de normalização         ciais - o que significa, de fato, redução da pro-
fundada numa razão aparentemente concreta e          blemática social e sanitarista do abuso de drogas
irrefutável: o indivíduo social reduzido à sua       ao combate ao narcotráfico - os adeptos deste
condição de usuário ou dependente de drogas          discurso esquecem-se da dimensão humana,
- reduzido, em suma, a ser um "viciado" em           bem como da necessidade de modelos de pre-
função de um não conformismo qualquer.               venção e tratamento que valorizem a vida e a
      Dessa forma, as justificativas, explicações,   pessoa, dentro de um contexto abrangente de
recomendações e argumentos que o discurso            ecologia humana.
de "combate às drogas" usa ou inventa para                Esquecem-se, ainda, de que não existe ne-
desestimular o consumo, devem ser entendidos         nhuma razão, nem filosófica, nem farmacológi-
menos em razão do próprio fenômeno e mais            ca, nem antropológica, nem alopata, nem ho-
em função das estruturas de poder e do sistema       meopata, de se posicionar "contra" as drogas,
de normas dominantes que impõem a suprema-           visto que essas são neutras em si e que eventuais
cia da ordem moral, social e econômica vigente.      problemas decorrem das condições de consu-
      Em suma, esta formação discursiva apre-        mo adotadas por determinados sujeitos; esque-
senta-se como uma abordagem unilateral e res-        cem-se, afinal, que "ser do contra" raramente
tritiva, de natureza persuasiva, que fortalece       representa uma contribuição construtiva, mas
                                                     sim, uma postura defensiva, em prol, por exem-
plo, mais do "status quo" do que das mudanças            a moralistic and enforcement approach are analysed
estruturais necessárias para que as sociedades           from a scientific and public health point of view. A
                                                         non-literal sense is brought out so that the discourse may
se tornem menos desequilibradas e injustas.              be understood in its original context and its links with
     A idéia do "contra" merece uma última aná-          the forms of power present in social relations. The
lise: até que ponto o discurso anti-droga não            theory of discourse analysis is used as the appropriate
satisfaz a uma antiga, mas sempre viva necessi-          methodology by which the ideological indicators that
dade dos detentores de poder, aquela de preci-           impose on the texts on drugs a predetermined bias are
sar de um inimigo - se não externo, então                to be found. The results clearly reveal a persuasive
                                                         discourse that has the propose of directing and
interno à sociedade...?Afinal, a atual onda de           manipulating ways of being and seeing in society,
intolerância diante das drogas iniciou-se nos            allowing the authors to be seen as interested parties in
Estados Unidos após a derrota no Vietnam,                a heavy-handed system for the maintenance "of the
onde os narcóticos, em particular os opiáceos,           social status quo". The conclusion is that in these tests,
tinham um papel não desprezível, devidamente             it is not really the drug question in itself that is dealt with,
apontado pelos defensores da gloria militar              but rather a mythical construction, used do combat
                                                         social deviation.
americana. A potencialidade "explicativa" da in-
culpação das substâncias psicoativas ilícitas foi        Keywords: Substance abuse, prevention and control.
sem dúvida realçada com o desaparecimento do             Language. Authoritarianism.
grande inimigo externo, o comunismo e seus
poderes militares.
     O embate belicista deslocou-se, desde en-           Referências Bibliográficas
tão, de preferência para o plano do narcotráfi-
co, inimigo econômico poderoso, bem organi-              1. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoieviski.
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zado e bem protegido, superado pelos merca-              2. BUCIIER, R. Drogas e drogadição no Brasil. Porto
dos do petróleo e dos armamentos, mas capaz                    Alegre, Altes Médicas 1992.
de desestabilizar as economias de mercado oci-           3. CARLINI-COTRIN, B. & PINSKI, I. Prevenção ao abuso
                                                               de drogas na escola: uma revisão da literatura inter-
dentais pela instalação de poderes paralelos.                  nacional recente. Cad. Pesq, 69: 48-52, 1989.
Esta nova vertente da ameaça às hegemonias               4. DUCROT, O. Princípios de semântica lingüística. São
estabelecidas no ocidente suscitou colossais es-                Paulo, Cultrix, 1988 (Original: 1972).
                                                         5. FIORIN, J.L. Linguagem e ideologia. São Paulo, Ática,
tratégias de combate transferidas de outros                     1990.
campos de batalha - com certeza não pelo peri-           6. FAIRCLOUGH, N. Linguage and power. London, Loug-
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macro-econômico que as caracteriza.                      7. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro,
                                                                Forense-Universitária, 1987. (Original: 1969).
     Eis talvez um outro sentido, e não dos mais         8. FOUCAULT, M. L'ordre du discours. París, Gallimard,
inocentes, da dimensão ideológica detectada no                  1971.
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                                                                (Original: 1975).
lência no setor das políticas públicas, o ser            10. OLIVEIRA, S.R.M. Ideologia no discurso sobre as drogas.
humano mais uma vez sai perdendo, descartado                    Brasília, 1992 [Dissertação de Mestrado - Universi-
que é diante de interesses apresentados como                    dade de Braília].
                                                         11. ORNALDI, E.P. Terra à vista: discurso do confronto:
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como "suprahumanos". Fica a questão, inquie-             12. PECIIEUX, M. Analyse automatique du discours. Paris,
tante, de saber quem seria, afinal, o verdadeiro                Dunod , 1969.
inimigo do homem - este sim a ser investido, no          13. VELHO, G. Duas categorias de acusação na cultura
                                                                brasileira contemporânea. In: Figueira, S. coord.So-
interesse da humanidade e dos direitos do ho-                   ciedade e doença mental. Rio de Janeiro, Campus,
mem, como alvo de um combate mais nobre e                       1978. p. 37-45.
mais ético do que aquele dirigido, aparente-
mente, às drogas e aos seus mitos.                                         Recebido para publicação em 12.4.1993
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BUCHER, R. & OLIVEIRA, S. R. M. [The discourse of the
"fight against drugs" and its ideologies]. Rev. Saúde
Pública, 28: 137-45, 1994. The ideological contents of
the literature on drug consumption and addiction with

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O discurso do combate às drogas e suas ideologias

  • 1. O discurso do "combate às drogas" e suas ideologias The discourse of the "fight against drugs" and its ideologies Richard Bucher*, Sandra R.M. Oliveira** BUCHER, R. & OLIVEIRA, S.R.M. O discurso do "combate às drogas''e suas ideologias. Rev. Saúde Pública, 28: 137-45, 1994. À luz de considerações científicas sobre o abuso de drogas, discute-se a ideologia dos textos sobre drogas que seguem uma orientação moralista e repressora, a despeito das condições sócio-históricas do consumo. Colocam-se em foco os sentidos não-literais para situar tais discursos no contexto da sua produção e para detectar neles formas de manutenção de poder presentes nas relações sociais. Utiliza-se a teoria da análise do discurso como a metodologia apropriada para se desvendar os indicadores da ideologia que impõe aos textos sobre drogas uma determinada modalidade. Os resultados revelam um discurso com propósitos claramente persuasivos, direcionando e manipulando modos de ser e de ver na sociedade, deixando-se interpretar como parte interessada em um pesado sistema de conformismo social. Conclui-se que a questão das drogas não é tratada em si, mas enquanto mito construído, usado para combater série de desvios da ordem social vigente. Descritores: Abuso de substâncias, prevenção. Linguagem. Autoritarismo. Considerações sobre o discurso do em muitos países, entre os quais o Brasil, são "combate às drogas" precisamente as substâncias lícitas as mais con- sumidas e as mais fortes geradoras de abusos e Entre as diversas abordagens da "questão dependências. Trata-se aí de um fato epidemio- das drogas", nas sociedades modernas, destaca- lógico inconteste, a ser levado a sério diante da se aquela que enfatiza o "combate às drogas", distorção do fenômeno introduzida pela prega- apresentando-o como a única maneira capaz de ção tantas vezes piegas do "combate às drogas". enfrentar e erradicar o "grave flagelo". De ex- Opor-se a esta visão reducionista não signi- pressão rigorosamente condenatória, caracteri- fica, no entanto, entregar-se à apologia do con- za-se pela veemência de uma argumentação sumo de substâncias psicoativas, mas tão so- mais emotiva e alarmista do que serena e obje- mente defender uma análise objetiva e contex- tiva, mais sensacionalista do que científica, mais tualizada da situação das drogas em uma deter- moralista do que isenta de juízos valorativos. minada sociedade. Não se trata, pois, da defesa Desta forma, incita a uma "cruzada anti-drogas", de uma posição extremista de "liberação de cuja beligerância encobre série de fatores que, todas as drogas" para um consumo indiscrimina- de certo, contribuem decisivamente para a ex- do, mas do respeito por uma experiência huma- pansão do fenômeno. na milenar, a ser examinada numa linha históri- Portanto, ao invés de analisar o consumo de co-antropológica para que se torne possível drogas em seus múltiplos determinantes para apreender suas significações modernas. chegar a propostas preventivas pertinentes e Constata-se, de fato, que a cegueira da po- prometedoras de eficácia, tal abordagem limita- sição repressiva radical traz mais estragos do se a preconizar uma repressão implacável, res- que benefícios, por fazer prevalecer uma visão tringindo-se, desta forma, às drogas ilícitas. Ora, unidimensional, inapropriada para o trato do fenômeno em toda sua complexidade. As nume- rosas implicações ideológicas daquela visão não * Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília - Brasília, DF - Brasil encontram o necessário contra-peso através de ** Bolsista junto ao Departamento de Psicologia Clínica análises sociais profundas, pertinentes e abran- da Universidade de Brasília - Brasília, DF - Brasil gentes (Carlini - Cotrim & Pinski3, 1989). Separata/Reprints: R. Bucher - PCL-UnB - 70910-900 - Brasília, Abordar a "questão das drogas" no enfoque DF - Brasil combativo citado significa, ainda, não tratá-la
  • 2. como realidade a ser investigada, mas sim, trans- em pauta, incluindo aí as repercussões no cam- formá-la em mito fabricado para cumprir deter- po da saúde pública. minadas funções sociais. Espalhada no bojo da A aproximação dá-se através do conceito "cruzada anti-drogas", lhe é imputada nitida- de ideologia, enfatizada enquanto categoria ex- mente a função de "bode expiatório", fazendo-a plicativa do funcionamento dos discursos so- aparecer como responsável por grande parte ciais. Em face deste termo controverso e plurí- dos revezes sociais; produz-se então uma misti- voco, lançou-se mão do discernimento de pola- ficação, erigindo-se uma cortina de fumaça ao ridades positiva e negativa para incluir seus redor do pretendido "flagelo", o que impede seu inúmeros significados em dois registros: o des- dimensionamento correto e averigüável, im- critivo e o crítico. O primeiro enfoque refere-se prescindível para se ultrapassar o nível de pre- a sistemas de pensamentos, crenças, valores ou conceitos, prejulgamentos e visões preconcebi- "cosmovisão"; por sua vez, o sentido crítico das, ou ainda, aquele de interpretações unidire- aponta as idéias e atitudes postas ao serviço da cionais ou tendenciosas (Bucher 2 , 1992). sustentação das relações assimétricas de poder, Qualquer discurso que enfoca questões so- da injustiça social e da distribuição desigual de ciais pode, conforme os seus efeitos de sentido, direitos e rendas. transformar ou manipular as representações co- Exploram-se, assim, as relações entre ideo- letivas com a finalidade de manter certas estru- logia e linguagem, ultrapassando a noção de turas de poder; da mesma forma, pode modifi- linguagem como sistema de comunicação para cá-las, visando à superação dessas mesmas es- correlacioná-la com os fenômenos conflitantes truturas. Assim, adquirem identidade particu- da estruturação social da qual ela própria faz lar, aparecendo como formações que se defi- parte. Dessa maneira concebida, a linguagem nem pelos sentidos ideológicos que reiteram e passa a ser definida como discurso, ou seja, que vão direcionar a sua função enunciativa. como ato social ou ação que visa a produzir Desencadeadas a partir da interação de opiniões efeitos (Fiorin5, 1990). diferentes sobre questões de interesse comum, Se e verdade que nenhum discurso escapa tais formações apresentam regularidades em do envolvimento com a dimensão ideológica, seu funcionamento que permitem interpretá-las discernir os dois enfoques citados propicia uma como parte de uma matriz ideológica específi- avaliação contingente dos efeitos de sentido ca, constituindo o que se denomina, em Análise dominantes, permitindo compreender o alcan- do Discurso, de formação discursiva. ce de determinado fenômeno social, no caso, o Aplicando esta concepção à discussão so- consumo de drogas. Assim, uma contextualiza- bre drogas, pode-se formular a hipótese segun- ção desse consumo como fenômeno histórico do a qual determinados textos, ainda que pro- e antropologicamente situado permite apreen- duzidos em setores diferentes, constituem uma der descritivamente seus sistemas de valores, mesma formação discursiva, promovendo a cir- crenças e representações populares, enquanto culação de uma série de sentidos específicos. que uma análise crítica das produções sobre Estes, no seu conjunto, incorporam toda uma drogas, proferidas por certas instâncias de po- ideologia anti-drogas, plataforma para se divul- der ou de autoridade, permite detectar tendên- garem e implantarem medidas de controle da- cias, esforços e manipulações para proteger queles fenômenos de consumo considerados, determinadas relações econômicas e políticas no referido prisma ideológico, como socialmen- vigentes. te indesejáveis e portanto, exigindo repressão É com este intuito de avaliação crítica que (Oliveira10 , 1992). textos representativos do discurso repressivo A partir dessas considerações, propõe-se sobre drogas foram analisados no presente tra- um recorte no extenso campo de produção balho. Ao visar as coerções institucionais que sobre drogas, submetendo à análise a forma- marcam tal produção discursiva, levantaram-se ção discursiva do "combate", buscando com- questões vinculadas ao poder institucional, às preender os seus processos de significação e práticas repressivas, punitivas e assistenciais a forma como influem na construção do senso em saúde mental, aos jogos de interesses políti- comum do brasileiro a respeito da temática cos e econômicos no comércio de drogas lícitas
  • 3. (além das ilícitas), ao papel do profissional nas curso (Foucault8 , 1971) expressam-se determi- áreas de saúde, educação, ação social, justiça e nadas condições sócio-históricas que impreg- pesquisa científica. nam as formações discursivas, enquanto con- Dentre as numerosas contradições possí- junto de regras limitadas no tempo e no espaço veis de se apontar na formação discursiva da e que definem as condições de exercício da "cruzada anti-droga" destacaram-se certos função enunciativa. Os discursos que reiteram pressupostos inerentes à sua vinculação com processos socialmente cristalizados podem ser as estruturas sociais e de poder que as engen- apreendidos como partes de uma mesma ma- dram e que asseguram sua divulgação - pres- triz, determinando regularidades definidas pela supostos esses detentoras de configurações relação que mantém com a ideologia. ideológicas, cujos contornos mais precisos Tais idéias chaves servem para a compreen- tentou-se apreender. são da ideologia e das injunções de poder no discurso repressivo sobre drogas. Repertorian- do esse discurso no espaço específico onde se Método: Ideologia e análise do discurso articulam linguagem e ideologia, é possível res- saltar os processos de significação que regem o Na investigação proposta, optou-se pela imaginário social sobre drogas no Brasil. Para Análise do Discurso como instrumento adequa- tanto, série de características lingüísticas relati- do para examinar a ligação entre a linguagem vas ao vocabulário e à gramática são considera- apresentada e a ideologia subjacente. Sua meto- das marcas para o entendimento analítico de dologia permite explicitar os processos comu- tais processos. O presente trabalho, no entanto, nicativos construídos nos textos sobre drogas e não se limita à análise da superfície lingüística, detectar intenções secretas ou interesses escu- mas examina também as propriedades discursi- sos em veicular idéias condenatórias radicais, vas que se situam além das marcas formais. por razões que ultrapassam os efeitos nefastos Examinando-se a relação do texto com o do consumo de drogas em si. discurso e com o contexto, atingem-se três ní- A Teoria do Discurso apóia-se no conceito veis de análise, conforme três níveis de organi- de linguagem como sendo a materialidade zação: a situação social do momento imediato, apropriada à ideologia. Sistematizada inicial- a instituição social enquanto matriz do discur- mente por Pecheux12 , (1969), a Análise do so, o nível mais amplo da sociedade como um Discurso, somada à contribuição de autores todo e das suas ideologias. O procedimento como Bakhtin 1 (1970), Foucault 7,8 completo da análise passa pelas etapas da des- (1969,1971), Ducrot , (1972) e Fairclough6, 4 crição, interpretação e explicação (segundo (1989), vem sendo amplamente utilizada para Fairclough6), abrangendo vocabulário, gramáti- trabalhar os sentidos não literais dos enuncia- ca e estrutura textual, visando a revelar tanto os dos, com base no reconhecimento da dimen- esquemas classificatórios quanto as combina- são sócio-histórica da linguagem. ções das formas lingüísticas. Na sua origem, a Teoria da Análise do Na análise contextual do discurso repressi- Discurso, tal como idealizada por Pecheux 12 , vo sobre drogas aparece como particularmente aparece ligada à dimensão político-ideológica: relevante para a apreensão dos sentidos implíci- suas premissas básicas apoiam-se na concep- tos o exame dos pressupostos e dos subentendi- ção da linguagem ter um modo de constitui- dos. Estes se deixam considerar como estraté- ção profundamente histórico, não sendo pos- gias lingüísticas e retóricas para neutralizar pos- sível dissociá-lo do conjunto das práticas hu- síveis conseqüências de uma compreensão lite- manas. Por esta razão, saber quem fala, para ral dos atos da fala. Assim, querendo dizer mais quem fala, em que situação, de que lugar da do que se diz ou apagando sentidos pelo silen- sociedade, com que intento, são elementos de ciamento de aspectos cruciais do consumo de suma importância no processo comunicativo. drogas, é possível produzir representações con- Na constituição dos significados manifes- venientes a uma determinada formação social. O tam-se as coerções ideológicas que incidem so- não-dito, por exemplo, sob a vertente do implí- bre a linguagem. Nas chamadas ordens do dis- cito (diz "x" querendo dizer "y") e aquela do
  • 4. anti-implícito (diz "x" querendo silenciar "y"), propiciar prazer, sensações agradáveis, facilida- pode determinar certas significações ocultadas des de comunicação e relaxamento. no discurso "oficial" (Orlandi4, 1990). 8. Omissão ou descaso a respeito do uso e A fim de clarear a trama discursiva que abuso de medicamentos psicotrópicos e outras sustenta a idéia do "combate às drogas" e apon- drogas lícitas. tar os elementos usados para dirigir a opinião 9. Crença na intervenção heróica e desinte- pública rumo ao entendimento "certo" da ques- ressada que livrará a comunidade e o país, defi- tão, são colocadas na base da investigação per- nitivamente, das drogas. guntas como: que elementos são articulados 10. Recomendação de atividades religiosas, para se chegar a uma representação ideologica- morais, patrióticas e esportivas como estraté- mente orientada da droga? que dados são silen- gias de prevenção (ou mesmo como "vacinas"). ciados, quais outros superdimensionados? que De acordo com a prevalência desses temas, relações de poder estão em jogo...? foram feitos cortes em três instâncias de produ- ções discursivas: textos americanos divulgados no Brasil, documentos oficiais brasileiros e tex- Material: Os textos analisados tos da imprensa brasileira. Os textos seleciona- dos para a análise foram: Foi desenvolvida uma análise prévia de um Documentos de produção americana: conjunto de textos sobre drogas, lançando-se a) O Presidente Bush adverte estudantes sobre mão de uma leitura assistemática que acabou o consumo de drogas. Brasília, Embaixada determinando a composição do corpus. Os tex- Americana. Tradução do documento edita- tos foram selecionados pelas especificidades e do pelo USIS - United States Information regularidades discursivas correspondendo às Service, 1989; características da formação impregnada pelo b) Escola sem drogas. Brasília, Embaixada Ame- Leitmotiv do "combate às drogas". Assim, a re- ricana. Tradução do documento editado corrência de determinadas particularidades lin- pelo US Department of Education, 1989; Documentação oficial brasileira: guísticas, retóricas e temáticas serviu para dife- c) PREVIDA - Programa de Prevenção, Educa- renciar e agrupar os textos como partes de um ção e Vida: subsídios para o educador. Bra- mesmo processo de divulgação ideológica. sília, CONEN/DF, 1991; Na presente análise destacaram-se as seguin- d) MURAD, J.E.: Como manter sua escola longe tes características, induzindo à escolha das unida- das drogas. Belo Horizonte, ABRAÇO/PRE- des de pesquisa e das categorias de referência: VIDA*, 1989; 1. Silenciamento acerca das questões so- Produção jornalística: ciais que concorrem para os fenômenos de uso, e) Império do pó. Jornal do Brasil, 26/02/92, abuso e dependência de drogas. p. 10; 2. Desconsideração da motivação do usuá- f) Na carteira ao lado. VEJA, 27/03/91, p. 42-48. rio, da sua dimensão subjetiva. Com base na interpretação e explicação dos 3. Simplificação do fenômeno das drogas, elementos lingüísticos, da estrutura argumenta- apontando elementos unidimensionais na etio- tiva e dos implícitos desses textos, foi possível logia da dependência. apreender os elementos cruciais da ideologia 4. Centralização exclusiva no produto tóxi- que formenta a sua produção e os sustenta. co (ilícito). 5. Tratamento genérico dos efeitos da Resultados da análise: O "combate às droga, pela lei do tudo ou nada, sem especifi- drogas" como construção ideológica cação do produto, do padrão de uso, da per- sonalidade e história de vida do usuário, do Os resultados demonstram que há série de contexto. regularidades discursivas comuns aos textos ana- 6. Associação dramática freqüente entre droga e sexo, droga e crime, droga e loucura, * ABRAÇO - Associação Comunitária de Pais e Mestres droga e morte. para Prevenção ao Abuso de Drogas. 7. Omissão do fato de que a droga pode PREVIDA - Programa de Prevenção, Educação e Vida.
  • 5. lisados (e a muitos outros sobre o assunto, em to de autoridade, que fortalece o efeito persua- particular na imprensa cotidiana) que se ligam sivo na medida do prestígio que se associar ao entre si, cooperando na fixação de sentidos lugar de fala do orador - no caso, o Presidente ideologicamente comprometidos. Estes, por dos EUA. sua vez, propiciam práticas que atendem às Exercem também função decisiva, pois necessidades de controle social e de manuten- criam um "efeito verdade", os números e os ção de certos padrões da ordem vigente. dados estatísticos freqüentemente apresenta- Os textos remetem-nos a uma visão precon- dos sem citar a fonte. É comum a referência a ceituosa, repressora e, por vezes, moralista, números de grande porte, de forma a alarmar obtendo aceitação nos segmentos políticos e mais do que informar, como ilustra o seguinte públicos que se destacam seja pelo desconheci- exemplo: "Pesquisas mostram que o uso de mento do tema, seja pelas tendências conserva- drogas entre as crianças é dez vezes mais doras ou anti-liberais. O autoritarismo e a mo- prevalente do que os pais suspeitam" (b, p.2). nossemia são marcas que direcionam suas ope- Vê-se, pois, mensagens que não têm por rações verbais, dirigidas aos leitores com obje- objetivo informar, mas convencer, limitando a tivos claramente persuasivos, visando a exercer possibilidade de elaboração de uma concepção influência decisiva sobre as suas representações própria por parte do leitor. É dessa forma que - como, de fato, qualquer discurso de propagan- se constrói o discurso do consenso, pelo qual da ou de publicidade. As produções funcionam transmitem-se idéias como partilhadas virtual- então como cúmplices nas explicações e justi- mente por todos, investindo-as do papel de um ficações dessa visão preconcebida da questão axioma do qual não se pode (ou deve) duvidar. das drogas. Assim sendo, os textos induzem uma verdadeira Pode-se concluir que os textos analisados subordinação intelectual: o leitor mergulha no fazem parte de um grande conjunto denomina- movimento de "combate às drogas" sem se dar do formação discursiva anti-drogas. Enquanto conta, uma vez que este é apresentado (se não entidade global, ela é abstrata e inacessível, mas apregoado) como único caminho para enfren- se deixa conhecer através dos textos particula- tar e "resolver" a questão do consumo. res dando corpo material ao seu funcionamento. 2. O tom autoritário e alarmista imprimido Enumeram-se, em seguida, os principais aos textos que materializam o discurso em pau- efeitos de sentido construídos neste discurso, ta traz como resultado a idéia de um saber único detectados pela análise praticada. e exclusivo. A tendência de se apresentar como 1. Segundo sua retórica argumentativa, des- detentor da verdade está então duplamente pre- taca-se como primeira função a meta da persua- sente: pelo caráter formal da produção mas são. Termos expressivos e combinações lin- também pela força dos argumentos veiculados. güísticas diversas estão voltados para a constru- O discurso autoritário é o campo da certeza, do ção de um sentido dominante. Palavras carrega- imperativo categórico que manifesta um saber das de conteúdos ameaçadores como sinistro, supremo, levando o interlocutor a aceitá-lo luta, guerra, espúrio, crime, morte e outros, são como verdade. Impede-se, por conseguinte, a usadas com freqüência, ajudando a construir expansão de um pensamento mais crítico, seja enunciados de teor passional, o que dificulta individual, seja social ou comunitário. uma avaliação sóbria da problemática. Uma das maneiras pelas quais os produtores Outros recursos, como a reiteração e o de textos conseguem impor os seus argumentos argumento de autoridade, capazes de promo- dá-se com a utilização de verbos como tenho ver o discurso como consensual, colaboram encontrado, estou convencido, acredito, preci- para levar o sujeito a aderir à concepção pro- samos, que exprimem uma atitude de convic- posta. Por exemplo, enunciados do tipo: "O ção, marcando a posição autoritária do locutor. Presidente Bush deu uma lição aos estudantes Reforça tal análise a presença de termos norte-americanos sobre responsabilidade e como trincheira, combate, perigoso, danoso, maturidade"(texto a, p.1), introduzem perso- insinuando guerra e sofrimento. Estas são asso- nagens importantes como estratégia de valo- ciadas às drogas para provocar um clima de rização da mensagem. É o chamado argumen- repúdio incondicional, subsidiando enuncia-
  • 6. dos do tipo: "O consumo de drogas não é um fato 4. Uma outra idéia chave diz respeito à novo na história da humanidade, atualmente ob- apresentação do cidadão, em particular jovem, serva-se um incremento crescente do seu consu- como ser indefeso, necessitando de orientação mo, gerando grandes problemas sociais e de saú- e proteção: "O nosso papel é fazer prevenção e de como a violência, a marginalidade, a prostitui- tentar ajudar os alunos que caem nessa" (f, p.46). ção, a auto-destruição e morte", (c, p. 15). Ou ainda: "Precisamos continuar a propiciar O enunciado acima usa o recurso linguísti- apoio e orientação aos jovens para que façam co denominado de paralelismo, que repete escolhas sãs." (b, p.VI). Enfatiza-se dessa forma o uma certa estrutura para reforçar uma idéia, relacionamento vertical (provedor/receptor) ou acentuando o seu efeito (a violência, a margina- ainda paternalista, articulado à perfeição com o lidade, a prostituição, a auto-destruição e mor- modelo da sociedade disciplinar, cuja racionalida- te). Faz dessa forma emergir o sentido de que a de estimula o controle institucional, a relação droga é hoje o único fator causal de problemas autoritária, o enquadramento dos indivíduos sem que, por outras razões, sempre estiveram pre- participação criativa, sem responsabilidade civil e sentes na história da humanidade. sem pensamento crítico. 3. Uma das técnicas fundamentais na No parágrafo "Se as bocas funcionam nos construção do discurso anti-droga são os si- morros, administradas por traficantes que ater- lenciamentos, utilizados seja para omitir deli- rorizam comunidades indefesas, explorando e beradamente algo, seja para fala superficial- pervertendo menores, os consumidores prolife- mente de um fato que poderia enfraquecer a ram em todas as camadas sociais"(e, p. 10), vê-se argumentação. Assim, fala-se muito da droga da mesma forma a construção de sujeitos sociais ilícita omitindo-se falar das drogas lícitas - as frágeis, otários ou vitimados. Note-se o vocábu- mais consumidas no mundo inteiro e as mais lo indefesas, modificando radicalmente o termo perniciosas para a saúde pública. Aplica-se comunidade, transmitindo a idéia de inércia, indiscriminadamente o termo droga, induzin- passividade, vulnerabilidade. Embora na pers- do o leitor a incluir nesta categoria apenas os pectiva sociológica o termo comunidade carac- produtos ilícitos, pela associação permanente terize um agrupamento com forte coesão afeti- com palavras como tráfico, posse, busca, va, com capacidade de organização ativa e trans- apreensão, aplicação da lei, notificação e ou- formadora, prevalece no texto o sentido de tras, termos que excluem qualquer possibili- fragilidade e sujeição. dade de vínculo com a substância alcoólica ou Insistindo sobre a passividade como inevi- outro produto legalmente aceito. tável - implicando em negar qualquer possibili- Assim, no enunciado: "(...) apelou para dade de autonomia pessoal - incentiva-se como que tomassem parte na luta contra os narcóti- efeito adicional toda uma desmobilização so- cos" (a, p. 1), o termo luta, pela sua associação cial. É como se, diante da "ameaça das drogas", com narcóticos, faz referência ao narcotráfi- o cidadão, "por sua ingenuidade e incapacidade co; somado à ausência de informações sobre de defesa", precisasse da intervenção regulado- contexto, tipo e padrão de uso do produto, ra das autoridades benevolentes e "competen- determina a inclusão de todas as drogas em tes". Desta forma, ilustra-se (e estimula-se) a uma mesma categoria e reduz a uma única longa trajetória da submissão obediente às nor- forma de consumo toda a gama de possibilida- mas disciplinares, rumo à construção de "cor- des de uso - desde o consumo ocasional ou pos dóceis" (Foucault 9 , 1975). recreativo até o dependente. 5. Outra característica marcante dos textos Em que pesem referências ocasionais ao analisados diz respeito àquelas construções so- consumo de álcool, fumo, psicofármacos e sol- bre drogas que as apresentam como um mal em ventes, o efeito de sentido criado é de que só a si, independentemente do uso que delas se faz, droga ilegal "é problema". Transmitindo-se a das ações subjetivas e dos processos sociais. idéia de que existem duas categorias de substân- Utilizando os recursos lingüísticos de persona- cias, as perigosas (= ilegais) e outras benignas, lização, nominalização, metáforas, apresen- beneficia-se implicitamente a indústria farma- tam-se os fenômenos como desvinculados de cêutica e o comércio das substâncias lícitas. outros fatores que intervêm na dinâmica dos
  • 7. comportamentos de consumo. evitados os advérbios modalizadores possivel- Os enunciados abaixo exemplificam a per- mente, provavelmente, ou verbos no futuro do sonificação, figura de linguagem pela qual os pretérito, o que revela o postulado de uma visão seres inanimados agem como se fossem pessoas. transparente da realidade. Aplicada à droga, empresta-lhe vida e ação, im- Prevalecem então os verbos na forma pre- pedindo que fosse percebida como parte de um sente, atestando significados absolutos, verda- processo social: "As drogas ameaçam a vida de des incontestáveis que não necessitam de inter- nossos filhos, causam ruptura em nossas escolas pretação: "O uso ocasional de drogas é respon- e desagregam famílias" (b, p.41). Ou: "Não existe sável pelas vítimas na guerra das drogas"(a, a escola onde a droga nao entra" (f, p.43). p.1); "as instituições, principalmente a família, Apaga-se assim a subordinação do consu- estão sofrendo uma de suas piores crises" (c, mo de drogas às dinâmicas social e individual, p. 15); "o traficante está na sala de aula sentado necessárias à sua configuração como "proble- na carteira ao lado do estudante, a quem irá ma". Eventos sociais, historicidade, motivações oferecer maconha ou cocaína" (f, p.43). e decisões pessoais são negligenciados em be- Com a separação maniqueista do mundo nefício de determinadas lógicas simplistas que, em dois blocos compactos e inconciliáveis - o "inexistentes" por não serem diretamente ex- mundo dos bons e o mundo dos maus, ao plicitadas nos textos, não podem ser contesta- exemplo das fábulas de mocinhos e bandidos - dos - tão pouco que as formas de controle social os autores de tais textos legitimam os próprios que encetam. papéis: protetores dos "bons cidadãos", cujos Na sociedade atual, a individualidade inco- comportamentos correspondem às expectati- moda. Desta forma, ela é submetida a um meca- vas de "normalidade", e perseguidores dos "vi- nismo disciplinar que a vilipendia como "desvio ciados e traficantes" e outros desviantes de da norma", para que se possa assegurar a homo- normas, cujos comportamentos são incrimina- geneização das multiplicidades humanas. Ne- dos de ameaçarem a "ordem social". cessitando de um campo social homogêneo, os Vilipendiando representantes de diferen- poderes hegemônicos - políticos mas sobretudo ças como desviantes, cria-se todo um sistema de econômicos - não conseguem conviver com as acusação, podendo funcionar como estratégia diferenças, marcando-as enfaticamente para po- valiosa para a manutenção de certos poderes der normatizá-las. Mas eis o paradoxo: com a discriminatórios. São acusações que, uma vez coerção normalizadora, a diferença se acentua formalizadas, implicam um elaborado ritual de e faz o sujeito aparecer como desviante (Ve- exorcização - segundo o exemplo bem conhe- lho13, 1978). cido do bode expiatório - envolvendo todo um 6. Outro sentido prevalente refere-se a uma aparato institucional respaldado pela lei, isto é, visão do mundo simplista e maniqueista. Seus pela possibilidade de coerção e punição. autores, referenciados por ideologias represso- "Viciado", em particular, contém toda uma ras e moralistas, enveredem então com facilida- acusação moral que assume explicitamente de pelo campo do dogmatismo absoluto, con- uma dimensão policial e política. Implicitamen- siderando a verdade como propriedade pessoal. te, carrega uma acusação totalizadora pondo em Usam verbos na forma imperativa e termos dúvida não apenas a cidadania, mas a própria como jamais, nunca, que insinuam uma posição humanidade do usuário de drogas. Rotulado de certeza, de verdade, de supremacia das afir- como "maconheiro" ou "marginal", passa a ser mações expressas: visto como alguém que atenta contra a moral e "Ensine aos seus filhos desde criança a dizer os bons costumes, mas também contra as pró- não" ... "Mostre-lhes que o uso de drogas é prias instituições, o que faz dele um ser anti-so- perigoso"... "Jamais permitam que os filhos me- cial. Vítimas de uma tal estigmatização, os dro- nores façam uso de bebidas alcoólicas"(d, p.8). gaditos são considerados como "desviantes" e Tais enunciados ensinam e ordenam com transformam-se, a partir daí, em excluídos da tamanha convicção que não resta ao leitor se- convivência social pacífica, em função de prin- não acatar e submeter-se à força da argumenta- cípios rígidos, impostos, mantidos e manipula- ção construída no texto. Simultaneamente, são dos ideologicamente.
  • 8. Conclusão: "Combate às drogas" para posições radicais contra usuários e dependen- quê? tes. Atém-se, fundamentalmente, à propagação de duas metas: por um lado, veicular explica- As análises dos mecanismos de poder envol- ções e recomendações que garantam a adapta- vidos no discurso de "combate às drogas" indicam ção dos cidadãos à ordem social, concebida formas de um processo disciplinar referentes a como entidade ahistórica, inquestionável, imu- um contexto autoritário, discriminatório e re- tável e ideal; por outro, a de prover interven- pressivo. Seus textos contribuem com o traba- ções repressoras e punitivas que excluem o lho político (senão policial) de sujeição do cida- sujeito diferente, apontado como uma ameaça dão a um determinado ideário de harmonia so- às instituições e à sociedade como um todo. cial, ajudando a encobrir as contradições ineren- A dimensão ideológica permeia o conjunto tes às sociedades modernas e sustentando rela- desses textos, vinculando suas formas e idéias a ções de força estabelecidas entre certos grupos sistemas de poder presentes nas relações so- sociais. Ele contrasta em particular com a abor- ciais, necessitando de controles eficazes. Etica- dagem do "problema das drogas" que o situa no mente descompromissado com o ser humano e âmbito da saúde pública, enquanto ameaça não sua existência, constrói um quadro de moralis- à "ordem social", mas à saúde da população no mo que se baseia na intolerância quanto à plu- sentido amplo, visando em particular os danos ralidade das opções e visões; por não se fundar causados pelos abusos de álcool e fumo. numa ética humanista, torna-se incapaz de ca- O discurso em pauta não se constitui, por- minhar em direção a valores representativos de tanto, como uma simples idéia, um conheci- liberdade e dignidade, esteios de uma convivên- mento objetivo e benéfico ou uma ideal idade cia democrática se não harmoniosa, pelo menos discursiva sobre drogas e seus inegáveis malefí- norteada pelos ideais de justiça e respeito às cios. Sua ação mais eficaz consiste no papel de diferenças. disciplinarização das pessoas, na medida em O modelo repressivo apregoado pelo dis- que compactua com normas de conduta consti- curso anti-droga deve ser questionado não ape- tutivas de um amplo projeto normalizador das nas pela sua comprovada ineficácia em diminuir relações sociais. Apontando a possibilidade e a o consumo de drogas e em contribuir significa- ameaça de condutas desviantes, funda-se a pres- tivamente para resolver as questões de saúde crição normativa que desencadeia o controle, a pública que levanta, mas por impor um sistema intervenção e a exclusão. de intervenção injusto e freqüentemente desu- Reproduz-se assim, a cada instante, as con- mano. Obcecados pela idéia de combater as dições de possibilidades de implantação, na drogas ilícitas por mecanismos jurídicos e poli- sociedade, de uma estratégia de normalização ciais - o que significa, de fato, redução da pro- fundada numa razão aparentemente concreta e blemática social e sanitarista do abuso de drogas irrefutável: o indivíduo social reduzido à sua ao combate ao narcotráfico - os adeptos deste condição de usuário ou dependente de drogas discurso esquecem-se da dimensão humana, - reduzido, em suma, a ser um "viciado" em bem como da necessidade de modelos de pre- função de um não conformismo qualquer. venção e tratamento que valorizem a vida e a Dessa forma, as justificativas, explicações, pessoa, dentro de um contexto abrangente de recomendações e argumentos que o discurso ecologia humana. de "combate às drogas" usa ou inventa para Esquecem-se, ainda, de que não existe ne- desestimular o consumo, devem ser entendidos nhuma razão, nem filosófica, nem farmacológi- menos em razão do próprio fenômeno e mais ca, nem antropológica, nem alopata, nem ho- em função das estruturas de poder e do sistema meopata, de se posicionar "contra" as drogas, de normas dominantes que impõem a suprema- visto que essas são neutras em si e que eventuais cia da ordem moral, social e econômica vigente. problemas decorrem das condições de consu- Em suma, esta formação discursiva apre- mo adotadas por determinados sujeitos; esque- senta-se como uma abordagem unilateral e res- cem-se, afinal, que "ser do contra" raramente tritiva, de natureza persuasiva, que fortalece representa uma contribuição construtiva, mas sim, uma postura defensiva, em prol, por exem-
  • 9. plo, mais do "status quo" do que das mudanças a moralistic and enforcement approach are analysed estruturais necessárias para que as sociedades from a scientific and public health point of view. A non-literal sense is brought out so that the discourse may se tornem menos desequilibradas e injustas. be understood in its original context and its links with A idéia do "contra" merece uma última aná- the forms of power present in social relations. The lise: até que ponto o discurso anti-droga não theory of discourse analysis is used as the appropriate satisfaz a uma antiga, mas sempre viva necessi- methodology by which the ideological indicators that dade dos detentores de poder, aquela de preci- impose on the texts on drugs a predetermined bias are sar de um inimigo - se não externo, então to be found. The results clearly reveal a persuasive discourse that has the propose of directing and interno à sociedade...?Afinal, a atual onda de manipulating ways of being and seeing in society, intolerância diante das drogas iniciou-se nos allowing the authors to be seen as interested parties in Estados Unidos após a derrota no Vietnam, a heavy-handed system for the maintenance "of the onde os narcóticos, em particular os opiáceos, social status quo". The conclusion is that in these tests, tinham um papel não desprezível, devidamente it is not really the drug question in itself that is dealt with, apontado pelos defensores da gloria militar but rather a mythical construction, used do combat social deviation. americana. A potencialidade "explicativa" da in- culpação das substâncias psicoativas ilícitas foi Keywords: Substance abuse, prevention and control. sem dúvida realçada com o desaparecimento do Language. Authoritarianism. grande inimigo externo, o comunismo e seus poderes militares. O embate belicista deslocou-se, desde en- Referências Bibliográficas tão, de preferência para o plano do narcotráfi- co, inimigo econômico poderoso, bem organi- 1. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoieviski. Rio de Janeiro, Forense - Universitária, 1981. zado e bem protegido, superado pelos merca- 2. BUCIIER, R. Drogas e drogadição no Brasil. Porto dos do petróleo e dos armamentos, mas capaz Alegre, Altes Médicas 1992. de desestabilizar as economias de mercado oci- 3. CARLINI-COTRIN, B. & PINSKI, I. Prevenção ao abuso de drogas na escola: uma revisão da literatura inter- dentais pela instalação de poderes paralelos. nacional recente. Cad. Pesq, 69: 48-52, 1989. Esta nova vertente da ameaça às hegemonias 4. DUCROT, O. Princípios de semântica lingüística. São estabelecidas no ocidente suscitou colossais es- Paulo, Cultrix, 1988 (Original: 1972). 5. FIORIN, J.L. Linguagem e ideologia. São Paulo, Ática, tratégias de combate transferidas de outros 1990. campos de batalha - com certeza não pelo peri- 6. FAIRCLOUGH, N. Linguage and power. London, Loug- go das drogas em si, mas pelo envolvimento man, 1989. macro-econômico que as caracteriza. 7. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987. (Original: 1969). Eis talvez um outro sentido, e não dos mais 8. FOUCAULT, M. L'ordre du discours. París, Gallimard, inocentes, da dimensão ideológica detectada no 1971. discurso de combate às drogas. Pela sua preva- 9. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1988. (Original: 1975). lência no setor das políticas públicas, o ser 10. OLIVEIRA, S.R.M. Ideologia no discurso sobre as drogas. humano mais uma vez sai perdendo, descartado Brasília, 1992 [Dissertação de Mestrado - Universi- que é diante de interesses apresentados como dade de Braília]. 11. ORNALDI, E.P. Terra à vista: discurso do confronto: superiores àqueles da saúde pública, senão velho e novo mundo. Campinas, Cortez, 1990. como "suprahumanos". Fica a questão, inquie- 12. PECIIEUX, M. Analyse automatique du discours. Paris, tante, de saber quem seria, afinal, o verdadeiro Dunod , 1969. inimigo do homem - este sim a ser investido, no 13. VELHO, G. Duas categorias de acusação na cultura brasileira contemporânea. In: Figueira, S. coord.So- interesse da humanidade e dos direitos do ho- ciedade e doença mental. Rio de Janeiro, Campus, mem, como alvo de um combate mais nobre e 1978. p. 37-45. mais ético do que aquele dirigido, aparente- mente, às drogas e aos seus mitos. Recebido para publicação em 12.4.1993 Reapresentado em 24. 11993 Aprovado para publicação em 7.3.1994 BUCHER, R. & OLIVEIRA, S. R. M. [The discourse of the "fight against drugs" and its ideologies]. Rev. Saúde Pública, 28: 137-45, 1994. The ideological contents of the literature on drug consumption and addiction with