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POESIA E FICÇÃO
      DE
PÉRICLES PRADE
(semas, semantemas, logomatrias)




   Jayro Schmidt
Jayro Schmidt                      1




                São Paulo - 2011
2          Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)


© Jayro Schmidt

                     é marca requerida de
                     Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.

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Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.
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Fone/Fax (11) 5084-4544

www.pantemporaneo.com.br
www.pantemporaneo.com.br

ISBN nº 978-85-62402-11-1

Na capa, reproduz-se, em destaque,
obra de Jayro Schmidt
              Schmidt.

Editoração: nsm




    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
             (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

       Schmidt, Jayro
           Poesia e ficção de Péricles Prade (semas,
       semantemas, logomatrias) / Jayro Schmidt. --
       São Paulo : Pantemporâneo, 2011.


            ISBN 978-85-62402-11-1

            1. Ficção brasileira 2. Poesia brasileira
       3. Prade, Péricles 4. Prade, Péricles - Escritores
       brasileiros - Crítica e interpretação I. Título.



    11-13377                                 CDD-869.9109

               Índices para catálogo sistemático:
         1. Escritores brasileiros : Apreciação crítica
              070.449306
3




                            Dependendo do dia,
                         noto-me alvo ou flecha.

                                   Péricles Prade


    A imagem é aquilo em que o ocorrido encontra
o agora num lampejo, formando uma constelação.

                                Walter Benjamin
4   Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)
5



                                      Sumário

Introdução .....................................................................        7

Primeira Parte: Poesia ....................................................             9
Gênese panorâmica ........................................................              9
Signos e sepulturas .........................................................          11
Palavras lemes ................................................................        16
Voo e chifre ...................................................................       23
A aura ............................................................................    25
Lírica limiar ...................................................................      27
Fogo e faróis ..................................................................       32
Coisa de palavra .............................................................         36
Simbólico, andaluz, ibérico ............................................               37
Hermenêutica e iconografia ...........................................                 47
Arma branca ..................................................................         52

Segunda Parte: Ficção ....................................................             55
Cão ................................................................................   57
Alçapão ..........................................................................     60
Realejo ...........................................................................    62
Corvo ............................................................................     64
Espelho ..........................................................................     66
Correspondências ..........................................................            68

Terceira Parte: Imagens Multievocativas ........................                       77

Índice Onomástico .........................................................            83

Bibliografia ....................................................................      91
6   Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)
7



                         Introdução

      Desde o livro de estreia em 1963, Este interior de serpentes
alegres, Péricles Prade tem mantido regularidade editorial em
signações não afetadas por suas atividades profissionais, fazen-
do dele um artista que antes de tudo é um cidadão do mundo.
      Em meio a estas solicitações levanta-se uma voz poética em
coordenadas visionárias que desfazem as fronteiras entre o real
e o irreal, que seriam instâncias provisórias, demarcatórias ape-
nas, pois os estados poéticos são imaginários. Os poetas acredi-
tam que nas coisas e em suas relações objetuais há substratos síg-
nicos que transformam aparências em aparições.
      A regularidade editorial de Prade forma um panorama como
de fato é a visada de um todo que conciliou caos e caosmo, no
qual cada parte repercute nas demais. Seus livros compõem um
único livro, o livro dos livros que na tradição esotérica tem as
páginas em branco e na exotérica o livro escrito por vários au-
tores. O livro infinito de Borges ao atribuir aos poetas, na tradi-
ção do novo, a criação dos precursores. Os seus, poetas ingleses
e Kafka, entre outros, e mais ainda ao se reportar ao onírico
como simetria de almas e de continentes a exemplo de Coleridge,
no Livro dos sonhos.

       Um imperador mongol (Kublai Kahn), no século XIII, so-
       nha com um palácio e o edifica conforme a visão; no sé-
       culo XVIII, um poeta inglês (Coleridge), que não tinha
       como saber que esta construção se originou de um sonho,
       sonha um poema sobre o palácio.

     Pouco importa se o sonho de Coleridge tenha sido uma for-
midável coincidência ou simplesmente uma invenção. E nem é
o caso de se duvidar de Próspero, o mágico de A tempestade:
“somos feitos da matéria dos sonhos”.
     O livro de livros de Prade, sem reservas, mas com rigor no
tratamento das palavras, tem a assinatura pessoal do movimen-
to rápido dos olhos sem a indecisão sonhada por Russell, com
8     Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



papéis que deixou sobre a mesinha no colégio, em um deles es-
crito: “O que se diz do outro lado não é verdade”. Ao virar o
papel, no transcurso do sonho, leu: “O que se diz do outro lado
não é verdade”.
9



                 Primeira Parte: Poesia

Gênese panorâmica

      Com mais de vinte livros publicados em poesia e ficção, Pra-
de, no entanto, é escritor do conciso, da palavra lapidada, clara
como é a natureza do pensamento. Sem dar fôlego a interpola-
ções literárias, sua poética lembra o acendro de grifos e cifras da
imaginação. A palavra bisagra, limiar, operação de sinais, poli-
mentos com cinzas.
      Quanto mais brinda a concisão, mais a poética é fantasma-
górica, contrastando a claridade das palavras com um mundo
absolutamente estranho, sinestésico e alucinógeno. Mundo so-
brenatural, não fosse a evidência subliminar, natural como a luz
filtrada por uma abóboda que se sustenta por perfeição numéri-
ca. A naturalidade das palavras de Prade é a mesma das imagens
do sonho, porém complexas se não há domínio de sombras, re-
flexos, projeções e bifurcações que fazem parte do subsolo da
mente, no qual se encontram criaturas em formação e que o
poeta transforma em imagens fantásticas com as sondagens acu-
muladas desde os precursores do inconsciente em arte literária
e pictórica.
      Este é o ponto, o tópico, o traçado de um agente inventivo
nas palavras e nas imagens que têm toda a estocástica posta em
circulação pelos poetas e pintores metafísicos, para não dizer
surrealitas simplesmente. Há, portanto, uma genealogia em sua
poesia que diz respeito a motivações que fazem do ato de escre-
ver a vivificação do que é paralelo às palavras imagísticas, isto
é, mundos limítrofes, os mesmos que são vistos entre o sono e a
vigília. Nesta arte de elaborar imagens que diferem de seus mol-
des, as palavras não são estranhas e sim o que exprimem em ter-
mos de mundos possíveis em esferas tão palpáveis como são as
de um problema matemático típico de Riemann. As lendas dizem
que se trata de uma porta mágica, e as deduções numéricas que
são projeções da quarta dimensão. Em caso de se poder compa-
rar um poema de Prade com o retard duchampiano, o mesmo
seria a passagem ao invisível que pode ser desenhada com a pro-
10    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



jeção descritiva ou com a proposição do sofisma sobre a luz que
incide sobre corpos que projetam sombras em duas dimensões.
Por que não pode o mundo visível, que é tridimensional, ser a
projeção de uma realidade em quatro dimensões que não conhe-
cemos?
      Esta é uma pergunta a que a poesia dá muitas respostas,
sobretudo a que permeia as mesmas questões postas pela filoso-
fia, como, por exemplo, a de Wittgenstein. Mas como assim? Um
lógico poderá dizer alguma coisa sobre o que um poema faz,
enquanto é feito com probabilidades? Um lógico como Wittgens-
tein, sim, ainda mais por ter feito experiências com a hipnose
para melhor obter o que deve ser obtido pela lógica: a clareza.
Abro as páginas de suas filosóficas investigações e está ali, subli-
nhado: onde há sentido, há ordem perfeita. O imaginário tem
outra ordem “porque pode-se pensar o que não ocorre”. Trans-
ferindo esta ordem para a estocástica, transfere-se a lógica de
Wittgenstein para a relação entre o que não ocorre e o que ocorre
por variáveis aleatórias de Markov. Sonho e estocástica têm em
comum alguma coisa que precipita as demais, no sonho de ma-
neira relativamente involuntária e na estocástica voluntária nas
escolhas que podem ser feitas. Com isso não quero dizer que
Prade recorra a teorias de ambas as modalidades. Pelo contrário.
Tanto o sonho como a estocástica fazem parte da memória con-
temporânea, dos gestos psicofisiológicos dos criadores – heran-
ça substancial do moderno e de vanguardas, o expressionismo,
o abstracionismo, o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo. São
as propriedades intrapoéticas de signos da contemporaneidade
que, em variações, ultrapassam as influências, suplantadas pelas
contaminações remissivas e prospectivas que formam paideumas.
Interessa o que está formado, mais ainda o que está em forma-
ção. Pois é a formação estocástica que pertence a todos na defi-
nição de Décio Pignatari.

       Quando falamos ou escrevemos, em verdade, estamos
       procedendo a rapidíssimas seleções de signos em nosso
       repertório, numa ordem organizativa, às vezes bastante
       maleável, prescrita pelas normas do sistema; não nos da-
       mos conta do fato porque o processo já está automatizado,
Jayro Schmidt                                                  11



       por meio dos constantes e reiterados feedbacks (auto-in-
       formação) da aprendizagem. Mas basta observar como a
       criança aprende a falar para percebermos as relações es-
       truturais entre os processos do feedback, da cadeia de
       Markov e da formação do repertório. Estatisticamente
       falando, as leis que comandam o processo integrado são
       as do acaso-e-escolha (chance & choice), ou seja, leis da
       probabilidade.

     Não cabe na abordagem da poética de Prade, portanto, a
aplicação estrita das cadeias de Markov. O que cabe é frisar que
com a desconstrução da linguagem clássica pelos modernistas,
implodiram-se monumentos estéticos. Apagogia do belo e do
novo iniciada por Mallarmé com “as subdivisões prismáticas da
Ideia”, prenúncio da estocástica como recepção e emissão da
semiótica como vinha acontecendo com a vontade no pensamen-
to de Nietzsche, e, mais tarde, com a probabilidade na arte de
vanguarda no que tinha de parentesco com a filosofia e a física.
     A estocástica tem muitos exemplos na poesia brasileira, co-
meçando com Drummond e o poema da pedra. Um caminho por
dentro da linguagem proporcionado pela Semana de 22, e, por
horizontes estatísticos de poética teórica, outros rumos depois da
passividade discursiva de grande parte da Geração de 45.
     Menciono o poema de Drummond não somente por ser um
marco histórico da poesia em língua portuguesa em impasses
metafísicos por não ter metafísica, pedra revitalizada e perturba-
dora, biografada pelo autor mais pelo que disseram seus detra-
tores. Mencionei para situar que na estocástica são inevitáveis a
repetição e a variação que uma vez escritas alteram significações
que fazem parte das expectativas de cada poeta. No caso de Pra-
de, que tem muito de representação e de apresentação, são im-
previsões de cruzamentos metamórficos, todas vinculadas a se-
mas, semantemas e logomatrias.

Signos e sepulturas

     O termo sema, de origem grega, significa signo e sepultu-
ra. Os significados subjazem, estão sob um véu reativo. Em si-
12    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



lêncio esperam ser chamados, nomeados, ou também chamam os
poetas para que encontrem as suas próprias vozes. O sema, uma
vez despertado, conjuga o sujeito e o mundo, pois entre ambos
está o signo por virtualidade. Os signos operam a consciência e
assim estamos em outro mundo, o da semiótica, que em sua ori-
gem foi a arte de tratar, de diagnosticar.
     A palavra semiótica foi introduzida na filosofia moderna
por Locke, reconhecendo-a como lógica assim como em Peirce,
e em Wittgenstein com a “terapia gramatical”, vista por Morris,
em seus desenvolvimentos, como tendo funções de linguagem:
sintática, semântica e pragmática. Com a sintaxe ocorre a rela-
ção dos signos entre si, com a semântica a relação dos signos com
o que significam, com a pragmática a relação entre os signos e
seus intérpretes. Morris aperfeiçoou a semiótica de Peirce, que
teve o mérito de fundá-la como método filosófico e científico.
     A semiótica peirciana não se restringe ao discurso, reportan-
do-se a todas as formas de conhecimento e de expressão, o que
fez Barthes pensar a semiologia, na Aula, como “cadeira móvel,
curinga do saber de hoje, como o próprio signo o é de todo dis-
curso”. A semiologia, neste caso operacional, teve grande desen-
volvimento na “análise das narrativas”, prestando serviços ine-
gáveis “à História, à etnologia, à crítica de textos, à exegese, à
icologia (toda imagem é, de certo modo, uma narrativa)”.
     Apesar de a linguagem ser preferentemente discurso em
função da semiose das palavras, fazendo com que a semiologia
seja metalinguagem, a semiótica forneceu as condições funda-
mentais para o surgimento de teorias e práticas informacionais
em suportes abrangentes, nos quais tudo se dá por descontinui-
dade da comunicação na multiplicidade de canais, de meios ou
repertórios. A redundância e a banalização são os mais inconve-
nientes produtos dessa indústria com seus apelos vazios, aos
quais os artistas reagem com o noético, por si mesmo um ato
problemático e crítico.
     Peirce, em um dos ensaios que compõem Semiótica, definiu
a estrutura sígnica por modalidades interativas de significados e
significantes.

       Ora, um signo possui três referências: primeiro, é signo
       para algum pensamento que o interpreta; segundo, é sig-
Jayro Schmidt                                                  13



       no para algum objeto que se lhe equivale nesse pensamen-
       to; terceiro, é signo sob algum aspecto ou qualidade que
       o liga ao seu objeto.

       Observa-se que a definição do signo, em suas referências,
enfatiza o pensamento como atividade psicofisiológica, o que
interessa sobremaneira ao campo da arte, principalmente da li-
teratura e da pintura em interpretações do mundo e invenções
de signos. Os objetos ficcionais e pictóricos relacionam conota-
ções e denotações, ou seja, sentidos imediatamente condiciona-
dos por referências entre o mundo e o sujeito postos na lingua-
gem. A ideia de ser, por ontologia, já seria um significar o pen-
samento do mundo e o mundo do pensamento. Uma via dupla
que se unifica ou, melhor ainda, uma circularidade que desfaz o
limite entre linguagem de coisas e coisas de linguagem.
     Os ícones, os índices e os símbolos podem ser estudados
isoladamente, sendo eventos de um todo sob circunstâncias do
mundo e do sujeito intermediados pela linguagem: o ícone re-
ferencia a semelhança, o índice a causalidade, o símbolo a con-
venção ou a arbitrariedade. Suas aparições nas obras de arte equi-
valem, para expandir suas energias metonímicas e polissêmicas,
a pentimentos – finas camadas de sentidos que se acumulam e
desvelam umas às outras como se vê em “A traição das imagens”,
de Magritte.
     Cada vez que observo a reprodução do cachimbo de Magrit-
te, penso sobre a representação do visível que deu imagem ao
que é mudo nas coisas. Visibilidade do invisível, verismo para
provocar a ilusão de ótica que sugere que no aparente mais apa-
rente está subentendido o através com as imagens. O recurso do
engano de visão tem apenas um vínculo com o figural levado ao
extremo de sua possibilidade no contexto em que a pintura foi
realizada, no experimento da imagem como signo, que não é
fixo: media, correlaciona, referencia. Incomparável é a força
inventiva que se pode obter com o símbolo por seu caráter arbi-
trário e que armazena o iconográfico e o indicial, no qual a ima-
gem é metonímica, ao passo que no ícone e no índice a imagem
é metafórica pela intersecção icônica com o objeto e a reunião
indicial com o objeto. Esta simbolização foi a percepção semió-
14    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



tica de Magritte, que não é um caso isolado na radicalização das
vanguardas, mas é o reflexo mais específico, valendo-se da ex-
perimentação do “automatismo psíquico” como atividade pura-
mente semântica em função das correspondências entre sono e
vigília. E com este deslocamento de intencionalidade poética,
então ele pode dizer, ao pintar o cachimbo, ceci n’est pas une
pipe, isto não é um cachimbo. O título da pintura questiona o
dado sensorial ao submetê-lo ao dado conceitual. O ícone do
objeto está ali com todos os seus atributos, por analogia repre-
sentacional do forno e do canal de madeira encaixados no osso
do bocal com o metal anelado. Além disso, o mais significante é
que Magritte pintou a frase como imagem indicial, cujo enuncia-
do afirma categoricamente que o ícone acima, o cachimbo, não
é um cachimbo. O enunciado é claro na sintaxe e na semântica,
o que não dá margem para que se pense que o cachimbo é outra
coisa – sendo ele mesmo, porém como engano ou traição dos
hábitos sensoriais. O verismo da imagem, Magritte apresentou
por semiose visual, proporcionando ao receptor a oportunida-
de de pensar que no aparente está o transparente.
      Os enunciados de Magritte, como os da vanguarda de um
modo geral, queriam mudar as direções da consciência e isso sig-
nificava, em primeiro lugar, varrer a opacidade mental que mol-
da as normalidades, as convenções e outros aparatos do gênero.
Então, vários dadaístas derivaram para o surrealismo, movimen-
to que colocou definitivamente a linguagem entre a consciência
e o mundo sob a estocástica que gradualmente substituiu proble-
mas estéticos por problemas semióticos. Outras vanguardas, nos
mesmos impulsos, fizeram da realidade da visão a realidade do
conhecimento, como são os casos do cubismo e do abstracionis-
mo. Enquanto o dadaísmo e o surrealismo traziam à consciên-
cia a experiência semiótica do onírico com a fusão de ícone e
índice sem abandonar o objetual e o figural, o cubismo efetuava
um corte no analógico-imitativo, um processo que atingiu a for-
ma completa do abstrair com Kandinsky, Mondrian e Malevitch.
      Por ter envolvido a interpretação de Magritte com analíti-
ca, não poderia deixar de comentar que a semiótica também ser-
viu para que a filosofia da linguagem abreviasse a especulação
metafísica impregnada de interpretações adjacentes, quando o
Jayro Schmidt                                                  15



objeto da inventividade é a leitura crítica das adjacências, ideo-
lógicas ou não, daí seu caráter antitético, o que lhe confere au-
tonomia em relação a teorias e sistemas. E isso se deu graças aos
avanços em semiose nos próprios objetos artísticos, todos vincu-
lados aos conceitos de contemporaneidade, que abarcam todos
os tempos. Desde os modernos, que colocaram o novo no lugar
do belo, o pensamento estético tornou-se analítico – análise da
linguagem e de novos problemas como em Picasso na elabora-
ção de “As senhoritas d’Avignon”, imagem mental que em parte
contradizia o que havia pintado anteriormente com a efusão lí-
rica dos fauves. E esta imagem desenvolveu-se como princípio de
contradição das formas que expressaram, por sua vez, a contra-
dição da vida, da história. Além disso, Picasso estava evitando o
representacional como ilusão, apresentando assim um cômputo
de inferências sobre o falso e o verdadeiro, o principal objeto da
analítica. A lógica, entretanto, não pode admitir que algo seja ao
mesmo tempo falso e verdadeiro. De qualquer maneira, até que
ponto a lógica pode aceitar que na expressão não seja uma coisa
nem outra, nem o falso nem o verdadeiro? Há uma passagem nas
proposições de Wittgenstein, em Investigações filosóficas, que
esclarece o impasse.

       Quando dizemos ou achamos (meinen) que algo está deste
       ou daquele modo, não nos detemos num ponto qualquer,
       com aquilo que achamos, diante do fato: mas achamos
       que isto e aquilo está deste ou daquele modo. Mas pode-
       se expressar este paradoxo (que na verdade tem a forma
       de uma evidência) também assim: pode-se pensar o que
       não ocorre.

     Pensamento e linguagem são correlatos do mundo, são ima-
gens. Wittgenstein pergunta por que são usadas essas palavras.
A resposta está no “jogo de linguagem”. Esta ordem antecede
a experiência e se estende sobre sua vivência sem as perturba-
ções ou incertezas empíricas. O papel da lógica, como essên-
cia do pensamento para o filósofo austríaco, seria o de escla-
recer, pois o sujeito está sob exigências psíquicas que obscure-
cem a linguagem.
16    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



      Pensamento e linguagem são confusos porque não dispomos
de “uma visão panorâmica do uso de nossas palavras”. Caráter
panorâmico traduz Uebersichlichkeit, que também é clareza por
permitir que se tenha a visão das conexões ou articulações do
todo como se a linguagem fosse uma partida de xadrez.
      O perspícuo do panorâmico teve outras vertentes com a
semiose, sobretudo na estética informacional, vasta e constante
operação de meios matemáticos e semióticos de objetos naturais
e artísticos sem ignorar problemas intencionais nos materiais.
Operações que acumulam informações estatísticas de fontes, de
repertórios. Bense, um dos principais seguidores e ampliadores
da estética informacional fundada por Birkhoff e Moles, diz que
ela não é filosófica do ponto de vista da reflexão metafísica ao
se valer da matemática e da tecnologia, portanto uma estética
científica sempre em progresso e adaptando-se aos sobressaltos
das linguagens contemporâneas. Bense em Pequena estética:
“Esta estética foi, portanto, concebida como uma estética obje-
tiva e material, que não opera com meios especulativos, porém
com meios racionais”. A estética informacional opõe-se às teo-
rias oriundas de Kant e de Hegel, para os quais não havia auto-
nomia dos objetos artísticos, subordinados ao sujeito da expe-
riência estética e ao sujeito da experiência teleológica.

Palavras lemes

     Toda esta digressão foi para mencionar uma das predileções
de Prade, a pintura, ele mesmo colecionador e crítico de arte,
além de seu interesse filosófico de escopo amplo: na logogêne-
se, na hermenêutica, na heurística e na icologia.
     Com a imantação de reflexão e visibilidade, e sem que haja
a separação de intuição e intelecto, dizia que Prade se beneficia
da estocástica de maneira deliberada, resoluta e objetiva, com a
obstinação de quem procura abrir um claro no claro. Não seria
outra a obsessão dos poetas, ainda mais com os versos brancos e
a prosa poética por invenção singular de um poeta francês pou-
co conhecido, Aloysius Bertrand, que viveu de 1807 a 1841.
     Com o verso e o reverso na prosa poética, Prade alonga-se
para fora de si e volta com todas as iminências que dão vida a
Jayro Schmidt                                                   17



um escorpião irônico, lírico e dramático, com o cuidado pitagó-
rico-espinosiano para que sobressaia o que é o mais perfeito no
animal, a cauda e o bote.
     À maneira dos antigos dicionários analógicos, que trazem o
índice de palavras para orientar as remissões aos respectivos pla-
nos classificatórios, empreendo uma jornada por algumas pala-
vras lemes na obra de Prade. Este material anamnéstico compõe
um índice onomástico-poemático. Pelo tom escriturado de cada
uma delas, o real conota irrealidade e o irreal realidade. Palavras
charneiras, algo semelhante à “tribarra” criada, em 1934, pelo
artista sueco Oscar Reutersvärd, e popularizada pelo físico e
matemático inglês Roger Penrose, o objeto impossível, do mun-
do às avessas, da ilusão de ótica, mas não tanto uma vez consi-
derado o quântico em todas as coisas, no côncavo e no convexo
da gênese do caracol, o movimento que enquanto vai para fora,
mais se volta para dentro. A “tribarra” serve para a significação
do perto e do distante, sempre revertidos: quanto mais próximo
se está de alguma coisa, mais se afasta e vice-versa.
     Os nomes de criaturas míticas e humanas, animais e luga-
res na obra de Prade iconizam e indiciam. Para tanto, e para não
ser exaustivo, escolhi quatro livros que espelham os demais: Pe-
queno tratado poético das asas, Em forma de chama, Além dos
símbolos e Relatos de um corvo sedutor.

       Criaturas míticas e humanas: Po-yi, Avicena, Farid-od-
       Dinn Attar, Ramakrishina, Kinnara, Surya, Vinexu, Ja-
       tayu, Ravana, Saint-John Perse, São João da Cruz, Buda,
       Rhiannon, Abraão, Abetarda, Deus, Cristo, Anjo, Fênix,
       Unicórnio, Zürchen Bibel, Ariosto Giovanni Benvenutti,
       Tales de Mileto, Adão, Sofia, Verônica, Zózimo, Osíris,
       Rosinus, Persépolis, Manu, Vishunu, Andrógino, Abu’l-
       Qasim, Jahvé, Jaldaboath, Melusina, Og, Noé, Moisés,
       Abba Saul, K’i-Lin, Confúcio, K’ung-Tse, Antonio Pisano,
       José, Anacreonte, Jesus, Esdras, Percival, Rock Lane, Roy
       Rogers, Tom Mix, Vivaldi, Dionísio, Beethoven, Carlos
       Magno, Diomedes, Kostro, Jarry, Guillaume Apollinaire,
       Colombo, Leonardo da Vinci, Esteves, Álvaro de Cam-
       pos, Martin Corvo, Tiago, João, Judas, São Jorge, Aleis-
18    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



       ter Crowley, Afonso Ferreira Borges, Ramsés, Lorenzo
       Vizencia, Léon, Tischio, Belmonte Pellegrini, Van Gogh,
       Tamiris, Homero, Camões, Rousseau, Douamier, Maurí-
       cio de Nassau, Cléopatra, Demócrito de Abdera, Sansão,
       Milton, Rodrigo de Haro, Floriano Peixoto, Gioconda,
       Jean-Paul, Simone, Edith Piaf, Nathaniel, Willian Blake,
       Jorge Luis Borges, James Joyce, Konstantin Kaváfis,
       Saint-Exupéry, Lewis Carroll, Picasso, Hyeronymus Bosch,
       Wittgenstein, Tissaut, Kafka, Bachelard, Rimbaud,
       Buñuel, Lautréamont, Salvador Dali, Marcel Proust,
       Charles Chaplin, Eva Perón, Gutenberg, Luigi Pomera-
       nos, Edgar Allan Poe, Annabel Lee, Pilatos, Marco Antô-
       nio, Pavarotti, Ernestina Kegel, Amenófis, Prometeu,
       Satã.

       Animais e lugares: Pássaro, serpente, Roma, Paraíso,
       Meca, águia, borboleta, Curdistão, grou, falcão, coruja,
       urso, corvo, pavão, dragão, escaravelho, cavalo, touro,
       búfalo, peixe, rinoceronte, leão, pomba, cervo, antílope,
       Oriente, ovelha, Jerusalém, Arábia, lagarto, Basan, cor-
       ça, boi, tartaruga, Canaã, Galileia, Egito, Bizâncio, Babi-
       lônia, tordo, andorinha, Córsega, mosca, sangue-suga,
       zangão, bode, América, Lisboa, cão, cisne, Sintra, Guima-
       rães, Damasco, Cairo, abelha, Gaza, Nossa Senhora do
       Desterro, Lagoa da Conceição, Florença, Veneza, Paris,
       grilo, Salem, Mississipi, Tóquio, Buenos Aires, Dublin,
       Alexandria, lobo, Campeche, Dinamarca, ouriço, Cons-
       tantinopla, porco, Praia Brava, Ocidente, cordeiro, escor-
       pião, gafanhoto, javali, Abissínia, lebre, Praia da Joaqui-
       na, percevejo, Costão do Santinho, Cemitério da Paz,
       New Orleans, pulga, peixe-espada, Santa Catarina, Cam-
       birela, Borgonha, tartaruga, rã, Braço do Norte, formiga,
       aranha, Praia de Canasvieiras, Floresta Negra, centopeia,
       chacal, Machu Picchu, Mesopotâmia, Lagoa do Peri.

     Tenha-se em vista que os nomes, fotogramas de civilizações,
reinventam épocas e continentes e compõem a arqueologia ima-
ginária do autor, e um autor que em viagens mentais e geográfi-
Jayro Schmidt                                                 19



cas desenha o mapa de sua força poética e erudita, cujas orien-
tações rizomáticas apresentam a pluridimensionalidade do mun-
do na unidimensionalidade das palavras. A imaginação do poe-
ta é o aleph com a disponibilidade com que emprega o balustri-
no e o corta mão para intermediar culturas iniciáticas. Um inven-
tário multifacetado que compõe, se o autor achar oportuno, um
dicionário de motivos que levam às temáticas, o que seria a bio-
grafia de manhãs do mundo nos mistérios da linguagem.
     Não cabe aqui discutir as origens da linguagem em fusões
do ouvir, do ver, do dizer e do grafar que giraram nas mentes dos
ancestrais, poetas e desenhistas anímicos, todos sob o mesmo
efeito – o da natureza com seus feixes de funções que levaram
os chineses, entre outros, a colocar ideias em imagens, os ideo-
gramas, que são vinhetas configurativas que transferem o agen-
te para o ato e deste para o objeto por divisões e não por conti-
nuidades como nas línguas ocidentais apesar do alemão, do in-
glês e, para o espanto dos gramáticos, do tupi-guarani em suas
aglutinações verbais com a qualidade semântica que não disso-
cia coisa de ação. Agente e objeto verbais originam o substancial
em seu conluio, eminentemente poético no sentido de que os
nomes são as próprias coisas em ações sígnicas.
     Garimpar as palavras dos contextos em que aparecem, além
do prazer de reencontrar a nuclearidade poética de cada uma
delas, qualifica os giros modais e tonais do pensamento de Pra-
de em dois aspectos que se polarizam: o sucessivo e o simultâ-
neo. Conclusão: nos poemas ou nos contos aparecem o que é
próprio da escritura, a sucessão, e o que é próprio da pintura, o
simultâneo. Um princípio de montagem da imagem, que é o ago-
ra ou a duração espaço-temporal, que pode ser técnica, mas é,
antes de tudo, simetria onírica e estocástica.
     Com bibliomancia abro páginas da obra de Prade e leio jus-
taposições e sobreposições da sucessão e da simultaneidade. E
assim, sem deixar de estar onde estou, sou levado com a leitura
de um sonho para o despertar de outro sonho, este da história
na perspectiva do momento singular que projeta o passado no
presente. A intensidade desta leitura é provocada pela intensida-
de poemática como se fosse um esfregar retinas sob pálpebras
transitivas. No lugar de conceitos surgem as imagens, o que não
20    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



deixa de ser mística e dialética, aproximação que para muitos é
improvável, absurda.
     Os poemas “Semelhança” e “Fatalidade”, em Pequeno tra-
tado poético das asas, 1999, exemplificam a energia com que o
sucessivo e o simultâneo das imagens na noite iluminada dos
tempos são atualizados, postos na primeira pessoa com o poeta
capaz de adivinhar o voo e o canto ancestral com um de seus
precursores, Saint-John Perse.

            Voo
            e            gêmea adivinhação
            canto
                         Acudam-me
                         Saint-John Perse
                         e sua ancestral intuição

            E mais São João da Cruz
                         Buda
                         e Tao
                  que de tão leves
                   a eles se assemelham

     Até agora não havia empregado a palavra intuição, substrato
de todas as obras de arte, angular na imaginação e na memória,
tanto no pensamento ocidental como no oriental com a abolição
do conflito dos contrários. Intuição de tantas culturas em um
mesmo poema, além do poeta incorporar o que está no pássaro,
que o guia: indícios, sinais.

            No meu pescoço
                  o pássaro atado

            O destino
                  atrai as penas da fatalidade

     Quadrilogia por perfeição da escolha estocástica em pares:
o pescoço e o pássaro, o destino e a fatalidade. O número qua-
tro suporta o mundo e na mitologia do pássaro está a mensagem
Jayro Schmidt                                                21



que magnetiza o poeta pela fatalidade de ter que escrever o sím-
bolo para criar-se por dentro da cultura que o gerou.
     Não é somente neste poema que a paridade é modal, sem-
pre impulsionada no tom poemático de Prade, o que resulta
numa estrutura de poemas que tem a maturidade de um cristal.
A fonte e o correr da fonte e na correnteza algo que aparece e
faz dos pares sua gravitação, sua gravidade.

                Crianças
                almas de crianças

                Os passarinhos e as borboletas
                às vezes pousavam no umbigo
                                     da grávida

                Menino
                Menina

                o sexo é um pássaro que sonha

     Linguagem analógica: o erotismo na sombra do bosque, no
livro os rostos do menino e da menina. O sexo sonha um pássa-
ro que sonha o ninho, lençol de anagramas da mulher-pantera,
o poeta admirando a obra que lhe fita, fendida no “olho” e no
“órgão singular quando o desejo agita”. O amante admira-se na
comunhão de que faz parte.

                         Teu corpo percorro
                       entre os azuis das veias,
                     fadado que sou ao exagero.

                         Teu corpo percorro,
                      sopro profano no umbigo,
                    porto sagrado que Arquimedes
                         tocar não atreveria.

                               Corpo.
                                    Teu corpo.
                   Continente de minha geometria.
22    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



     O que se passa com os amantes é segredo, mas em Pantera
em movimento, 2006, aparece o voyeur no amante que saciado
escreve o corpo amado. O artista e seu modelo que Arquimedes
não poderia tocar, somente ver se tivesse o espírito travesso de
Duchamp e Picasso, ou de Courbet ao pintar a “origem do mun-
do” para o colecionador turco Khalil Bey, a gruta de jade, flo-
resta antecedida por pilares de alabastro para prevenir os incau-
tos em seus segredos e armadilhas. Entrar neste non ultra, até a
Idade Média, era provar o memento mori. Ao que era, para
Columbus, “doçura de Vênus” e “sede do prazer da mulher”,
Aristóteles havia chamado de “nobre coroa”, cantada mais tar-
de como “jardim formoso”, para os espanhóis “sorriso vertical”,
bem exposto em suas delícias por Picasso com o espectador na
obra de traços erotizados, porém voyeur que não vê o que ve-
mos como se vê através do orifício da porta hermética de Du-
champ, a mulher-herma distendida em sua própria nudez e que
segura uma lâmpada que acende e apaga, tendo ao fundo uma
paisagem paradisíaca, à maneira dos cenários de teatro, com a
cascata da menina mítica que se transforma em fonte caudalosa,
logo mulher de carne querida e que atravessa a cidade da memó-
ria.

                           Deusa volátil
                  atraída pelas nuvens do prazer
                             esvaiu-se

                            muito cedo.

      O espaço entre os três versos e o quarto reafirma a cesura
da passagem, da passante de Baudelaire em pleno rumor da ave-
nida, no frenético alarido, a encantadora parisiense que ele en-
controu, bizarro e basbaque em seu olhar. Para Benjamin, amor
à última vista na multidão.

       Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
       tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
Jayro Schmidt                                                  23



Voo e chifre

      Na introdução de Pequeno tratado poético das asas, 1999,
diz o autor que os pássaros reais ou míticos “desde a infância têm
provocado” o “imaginário poético no percurso de seu voo men-
sageiro, pleno de presságios, rumo ao desconhecido que nos
governa”.
      Invejável é esta convicção que faz parte da história, do voo
da história que parodia o anjo anunciador. Poemas e pinturas
nórdicas estão sob esta mítica figura de apocatástese, de reden-
ção. Menciono, apenas, Rilke, Trakl, Kafka e Klee, ressaltando
que para Hegel a ave da história é um abutre. Anjos que dizem
sobre rupturas cíclicas como nos de Kafka, Benjamin e Klee.
      O anjo de Kafka aparece em um esboço de conto em Diá-
rios, o sonho com um anjo que ao anoitecer entrou pelo teto no
quarto, que nele o sonhador passou o dia sem, contudo, pressen-
ti-lo. O anjo deveria falar com ele, pensou, mas, aos poucos, não
era mais “um anjo de verdade: era apenas uma figura de madei-
ra pintada da proa de algum navio, do tipo que costuma ser pen-
durada no teto das tavernas de marinheiros”. E o sonho prosse-
gue para o mais surpreendente. O sonhador havia arrancado a
lâmpada do teto para melhor dar passagem ao anjo e, para não
ficar no escuro, acendeu uma vela no punho de sua espada ago-
ra servindo de candelabro, ficando “sentado até tarde sob a luz
fraca do anjo”.
      O anjo de Benjamin é uma das teses da história com a lei-
tura dialética e messiânica de tradição e modernidade em uma
aquarela de Klee, “Angelus novus”, que paira com as asas aber-
tas sobre o abismo onde destroços acumulam-se sobre destroços.
Diz Benjamin que o anjo gostaria de ficar ali, de costas para o
futuro, mas um vento que vem do paraíso o empurra para fren-
te, ao devir da história. Esse anjo representa o progresso, é a
potencialização de energias do modernismo em oposição à mo-
dernização com todas as suas ruínas. A tese de Benjamin desperta
camadas mais profundas da história pela mimética das imagens
ao “atravessar o ocorrido com a intensidade de um sonho para
experienciar o presente como o mundo da vigília ao qual o so-
nho se refere”. Proposta utópica com recorrência a Bloch: “Cada
24    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



época sonha a seguinte, mas ao sonhar esforça-se em despertar.
Ela carrega em si seu próprio fim”.
     Na apocatástese da ave em Pequeno tratado poético das asas,
tão concisa como de fato é o despertar símbólico – no pescoço
o pássaro, no destino a fatalidade – o poeta deu outros nomes a
seus membros e projetou entre o pássaro e o voo semas gerado-
res de semantemas, que de uma figura do mercúrio seguiu para
o animal mítico e terno, o unicórnio. Veja-se, como exemplo, o
poema de Abba Saul nas variações de Em forma de chama, 2005,
motivado pelo diálogo rabínico, no qual ele conta que foi covei-
ro: ao correr ao encalço de uma corça, foi parar dentro do fê-
mur de um defunto, de Og, mitificado em montanha, mas sem
apanhá-la por não ter encontrado o fim do osso.

       Sou Abba Saul: onde a corça
       vai lá estou, perseguindo-a
       como parafuso faminto

       No fêmur do morto
       estacionei, a Corça, não veloz
       como flecha solteira

       O osso era o de Og. Dentro
       dele medula
       não havia: só o resto
       de um corno branco. Ognicórnio

     Na mítica do rabino, o osso foi polido pelo símbolo tal
como é o osso branco da poesia nas semelhanças e diferenças das
palavras.
     O unicórnio é a água andrógina que se reparte em luz, o
símbolo do “benévolo animal” que somente pode ser capturado
se descansar no colo de uma virgem. O enxofre da urina, a pri-
ma materia de Paracelso, o incriatum, o que vem de si mesmo.

       É a si mesmo que se gera
       com essa forma nada sutil
       em grave movimento
Jayro Schmidt                                                    25



     O separatio elementorum da alquimia, a urina do unicórnio
curativa. Ur é fogo, a simbólica da doutrina das assinaturas de
Paracelso que Hennig Brand estudou com a trasmutação, a na-
tureza que se revela por meio de símbolos. Com os poucos co-
nhecimentos que tinha de alquimia, Brand constatou que ener-
gias químicas estavam em resíduos, incluindo os do corpo huma-
no, constatando que na urina estava a transmutação pela evapo-
ração, putrefação, fervura, empastamento, fermentação e aque-
cimento em uma retorta, na qual a matéria destilava-se brilhan-
te, que se inflamava e soltava vapores. Brand, maravilhado com
a descoberta, chamou a substância química de “fósforo”, do gre-
go phos, luz, de phoros, o que dá.

A aura

     Para a minha surpresa, enquanto garimpava nomes em seus
livros, Prade foi encontrado em matrizes onomásticas no poema
“Brevíssimo inventário de palavras nervosas”, na secção “Ilumi-
nuras” de Além dos símbolos, de 2003.

         Cavalos de Diomedes, Kostro, Cardeal, polpa, bicicleta,
         Jarry, espátula, mosca, mousse, água-morta, avatar, zigue-
         zague, Córsega, agulha, assassinato, corneta, obra-prima,
         veneno, pálpebra, sanguessuga, leite-moça, proparoxíto-
         na, esdrúxulo, zangão, urina, feras, pás, escaravelho, bode
         branco, tique-taque, potranca, fogo, brisa, brita, frieira,
         espinafre, curto-circuito, incunábulos, vidro moído, lepra,
         naftalina, Gomorra, tico-tico no fubá, prisão perpétua,
         vinagre e, naturalmente, pomba-gira.

     O título do poema, que se refere a inventário por ser docu-
mental de escolhas imaginárias com o cognato saber e sabor, ao
mesmo tempo diz sobre o desconhecido e o conhecido, o inco-
mum e o comum. As escolhas são aleatórias, mas sem que se
possa subestimá-las porque há a intencionalidade formada e em
formação no ato de escrever. O poeta, ao trabalhar com o aca-
so, foi trabalhado por ele. Um poema surge porque de alguma
forma já estava feito na vida de cada percepção. O poema pode
26    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



ser uma vivência, mas é, sobretudo, uma experiência. Por con-
seguinte, “bicicleta” e “Jarry” não poderiam estar separados,
enquanto “mosca” está perto de “ziguezague”, a mosca do poe-
ta, seu olho que costuma ter leitura de raio nas folhas da vida e
dos livros de sua afeição escrita e figurada. “Agulha”, “assassina-
to” e “corneta” correspondem-se, como também “obra-prima”
e “veneno”, e assim por diante. No final do poema, o “natural-
mente” o conceituou por suas imagens: poeta e poema traduzem
um original superior com a logomatria – pomba-gira da poesia.
      Outros poemas dariam conta de toda estocástica noética
pradeana. Além dos símbolos, entretanto, tem a particularidade
de situá-la na problemática da aura, começando com o título.
      O símbolo tradicional é para ser visto e o que nele é visto é
a aura, em uma palavra, o cultual. Somente um pensador com
suficiente visão dialética, como Benjamin, poderia com tanta
propriedade pensar que o advento da vida moderna suplantou
duramente o cultual com a mercadoria, identificando-a com a
arte.
      Brilhante ensaísta, Benjamin não visou uma teoria geral da
arte, antes fazendo a revisão clarividente de possíveis teorias
acerca da volatização intrínseca do novo percebida por Baude-
laire, comparando a arte com a moda. É o seu conceito de arte
que Benjamin vai considerar como insuficiente ao exigir do ob-
jeto artístico o eterno no transitório. Ao imutável juntar-se-ia o
relativo “fornecido pela época, pela moda, pela moral, pelas
paixões”. O artista, desta maneira, encontraria aquilo que Bau-
delaire chamou de modernidade em O pintor da vida moderna.
E Benjamin foi mais longe. Ao aclimatar o conceito de moder-
nidade na filosofia alemã, que reclamava uma substância eterna
da arte, radicalizou-o com a ideia de que o novo, no instante
mesmo de seu aparecer, já trazia o seu envelhecimento. A arte
poderia ser isso como mercadoria, assim como a moda que com
requintes parodiava a morte.
      Baudelaire não deixou de reivindicar para a arte o estatuto
de antiguidade, o mesmo fazendo Benjamin, porém sem os atri-
butos de eternidade em função da volatibilidade do novo e da
perda da aura. O curioso é que Baudelaire escreveu um peque-
no poema em prosa que versa sobre a perda do halo. O perso-
Jayro Schmidt                                                 27



nagem, poeta comedor de ambrosia, ao atravessar a avenida,
deixa cair o halo. A sua inquietação diante da perda logo se dis-
sipa e até lhe dá satisfação por não ter mais que prestar contas
de suas atitudes, podendo até praticar atos inconfessáveis, além
de favorecer algum poeta canhestro em caso de achar o halo,
podendo então ostentá-lo e vangloriar-se.
      Não se sabe o quanto Baudelaire foi um perfeito ironista,
incorrigível na volubilidade com que ora estava ao lado da víti-
ma ora ao lado do carrasco. Baudelaire queria a revolução de
ambos os lados, “a metafísica do provocador” para Benjamin.
Quem sabe, na realidade das ambivalências de sua lírica, Baude-
laire estava sendo a expressão das descontinuidades psicofísicas
que a emergência da vida urbana imprimia em cada passo, em
todos os gestos, fazendo da metrópole o irreversível apelo de
escritas, de choques.
      Foi esta a fundamental cosmovisão de Benjamin ao repor-
tar-se às mudanças repentinas provocadas pela vida nas cidades
modernas, notadamente em Paris, cuja grandeza formava o tran-
sitivo das consciências entre a tradição e a modernidade. Da tra-
dição Benjamin ainda percebeu resquícios de aura no aparelho
fotográfico, nos daguerreótipos, no congelamento iconográfico,
imagens imobilizadas no tempo em lugares fora da cidade, pai-
sagens e cemitérios como se fossem intervalos da tradição. Muito
desta aura é matéria das concepções contemporâneas de poesia
e artes plásticas, experimentada como tradição do novo com
meios específicos ou na especificidade de todos os meios, den-
tre os quais a palavra.
      A palavra pradeana não desconhece tais sinapses significa-
tivas, sendo, em corte transversal do tempo, duração no que
guarda de aura no mundo metamoderno com símbolos épicos,
de origem mítica, escatológica no ritual da renovação de criatu-
ras sobrenaturais, nas quais a lembrança do humano cultua ani-
mais, plantas e objetos mágicos.

Lírica limiar

     O adiamento da entrada dos primeiros livros de Prade foi
estratégico. Preferi este recurso para estar descondicionado em
28    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



suas fontes evocativas que, acredito, circunscrevem um dos con-
ceitos de linguagem que mais aprecia, os ilimitados sentidos das
imagens.
      As epígrafes tornaram-se, desde o primeiro livro, uma cons-
tante com brevíssimas frases mestras, orientadoras de conteúdos
e formas inseparáveis na lírica limiar de um jovem poeta: Este
interior de serpentes alegres, A lâmina, Sereia e castiçal. Trilogia
de nascedouro, segura no que tinha a dizer nas incertezas pes-
soais e da época desagregadora, tenebrosa, na qual as reações
humanas queriam mudar o mundo com a contracultura existen-
cial de Sartre, Camus e Vian.
      O ser, o nada e a revolta marcaram esta vertente filosófica
e literária com o termo adotado por Sartre, existence, para tra-
duzir o Dasein de Heidegger, um dos expoentes existenciais ao
lado de Nietzsche e Kierkegaard. E assim ele teve os fundamen-
tos necessários para definir o existencialismo, que influenciou
toda uma geração de artistas e intelectuais do pós-guerra: “A
existência precede e governa a essência”. Outras origens se en-
contram em Schopenhauer, Dostoiévski e Husserl.
       Sem que houvesse alguma coisa que determinasse o exis-
tente, o homem estava diante de si mesmo, da liberdade de es-
colhas subjetivas, construindo sua essência, transitória como o
mundo. Destituído de imutabilidade, o homem estava à deriva,
no opúsculo do exitir que Sartre explicou em O existencialismo
é um humanismo.

       Se Deus não existe, há pelo menos um ser, no qual a exis-
       tência precede a essência, um ser que existe antes de po-
       der ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o
       homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana.
       Que significa então que a existência precede a essência?
       Significa que o homem primeiramente existe, se descobre,
       surge no mundo, e que só depois se define. O homem, tal
       como o concebe o existencialista, se não é definível, é
       porque a princípio é nada. Só depois será, e será tal como
       a si próprio se fizer.
Jayro Schmidt                                                   29



      Considera-se que a filosofia existencialista realizou-se com-
pletamente na literatura, na responsabilidade da linguagem. O
indivíduo, ao conduzir sua realidade, criava a linguagem de suas
escolhas. A concretude da vida posta em palavras significava a
realidade mesma do sujeito na privacidade de sua vontade, en-
quanto o geral não passava de abstrações catastróficas e absur-
das. A linguagem deveria redimir o ato problemático de existir
a ponto de Heidegger afirmar que “a linguagem fala, não o ho-
mem”. Por outro lado, de nada valeu o repúdio de Sartre a Ca-
mus quando se desviou da prática política do existencialismo
com o primado da prática literária, apta a descondicionar o su-
jeito de qualquer ideologia. A Camus não era improvável que o
homem fosse estrangeiro de si mesmo e, ao apresentar-se como
“artista” ao receber o Nobel, tinha ciência de que a obra é o
encontro de “duas ou três imagens simples e grandes para as
quais o coração, ao princípio, se abriu”.
      Estas imagens se encontram em Este interior de serpentes
alegres, 1963, com a epígrafe crucial de Camus: “Basta mover a
língua para que as trevas invadam tudo e os seres me repugnem”.
Surpreende a força com que, aos vinte e um anos, Prade mani-
festa a poética descontente, de consciência ampliada do pastoril
ao urbano, moldando-se com a linguagem lírica, instintiva, a
parte obscura que poderia ser objetada no contexto daquela épo-
ca que não queria ver no onírico o meio mais crítico da cultura.
Um engano interpretativo, o mesmo que levou Jorge de Lima,
Murilo Mendes e Ismael Nery ao esquecimento.
      Interpretações à parte, Prade integra uma geração catarinen-
se de poetas que têm o caráter extraordinário do contemporâ-
neo junto com C. Ronald, Lindolf Bell e Érico Max Müller. Pra-
de e C. Ronald não participaram da Catequese Poética, mas os
motivos não importam: o fato é que eles não foram menos ur-
gentes no sentimento do mundo, no que faz a poesia ser poesia
– a lembrança do que devemos ser por resistência utópica.
      Quais as imagens do poeta, jovem encanecido? O mundo é
um carbono, as emoções ficam estranhas, não existem promes-
sas. Não há retorno, o poeta está condenado a ser livre, daí a
angústia e a comédia. Fica a emoção da corda e do pescoço.
30    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



            Entre o imprevisto e o ousado nascendo dos gestos
            Conservo o ritmo de ouro destas veias incertas.

    O suicídio é simbólico, a poesia não tem idade, a morte
perdura para rejuvenescer a palavra.

      Ah, noturno, haverei de batizar com sangue a alegria
      de amar o desconhecido no mundo, porque somente assim
      serei feliz como Calígula
      na serenidade triste do impossível.

     A gula de se formar sem se conformar. Fome de mundo,
ternura da sobrevivência, do respirar. O homem quer ser pássa-
ro, criança do futuro. Todas as manhãs findam e a poesia não se
completa no escrever, que é redescoberta. No jovem poeta está
o ancião.
     No mesmo ano de Este interior de serpentes alegres, 1963,
A lâmina deu continuidade às inquietações existenciais aclima-
tadas nas antinomias da procura e do encontro de linguagens.
Dos versos o poeta passou ao poema em prosa indagativa e com
forte acento narrativo, retomado na década seguinte com a fic-
ção.
     Uma lâmina de perguntas sobre a verdade do humano ou
da animalidade perdida. O que mais importa, o “essencial”, é que
no mundo “as coisas tenham existência, mesmo absurda”. O
animal parece saber da força que habita o homem, que quer sair
de si, estar em outro lugar, natural como a infância, a imagina-
ção, a corrente sanguínea. O poeta, em expectativas ansiosas,
aspira o incessante, o movimento da vida.

       Tudo o que é estático me desagrada. Tudo o que é imóvel
       me dá náuseas.

     É a outra natureza, a do panteísmo, que poderá livrar o
humano da moral, a doença da manada humana. Ferir para co-
nhecer e simbolizar para crer, ainda que a queda seja o mundo e
o vazio permaneça.
Jayro Schmidt                                                  31



       O vazio permanece no homem como água transparente.
       O vazio permanece no homem como sangue sujo. O que
       poderás criar na infância de teu corpo e voz? Não sei.
       Deves ser raiz e flor ao mesmo tempo. Deves crer em ti,
       no teu núcleo, no teu nó, na tua força.

      O que poderá ser criado é aquilo que se é. O conhecer é um
acreditar com o esquecimento das nuvens, o humano cruamen-
te lançado na imanência.
      Depois do convulsivo A lâmina, as erosões emocionais cris-
talizaram-se em Sereia e castiçal, 1964. Ao tom elegíaco sobre-
veio o tom idílico, apaziguador com a convicção de que a poe-
sia é a infância reencontrada como se lê na epígrafe geral do li-
vro, de Baudelaire: La poésie c’est l’enfance retrouvée. A origi-
nalidade dos poetas modernos estava na infância da palavra, as
águas de ma soeur, o nome da poesia.
      O nome de todo poeta adolescente ingressando na maturi-
dade do poema, que se dirige finalmente ao outro, nele refleti-
do, o nome de uma moça violeta, Arminda. Ao ter procurado
uma filosofia, encontrou a rosa de sangue, a palavra que fermen-
ta, a carne radiante da amada mulher-bengala, mulher-libélula,
mulher-sereia. O amante cresce em ilha, carne de espumas, sar-
gaços, vogais da cultura que criou.

       Sou caçador e fera nesta corrida louca
       para o domínio do mundo. Do vasto e largo mundo
       que abre um abismo na dor e outro na flor.

      Na trilogia inicial estava o poeta futuro, constante de epí-
grafes e de alusões que formam seu firmamento espiritual. Não
é à toa que a triangulação encerra com Cruz e Sousa, o poeta da
existência simbólica, com o “bordão clemente”, o sonho, crian-
do-se como um original.

       Sei que no teu interior de neve
       o segredo da abertura do infinito
       mostra-se puro como o símbolo.
32    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



    A admiração de símbolos por Prade foi precoce, daí Cruz e
Sousa e o sentimento que o desterrense transformou em “hóstia
de ouro”.

Fogo e faróis

      Sem forçar a simbologia e a fenomenologia do fogo, os
poemas de Nos limites do fogo, 1976, têm a elevação da chama,
que é cônica, piramidal, figura de simetria do pensamento, que
irrompe de um ponto interior e evola. Esta simetria não é alheia
à estrutura poemática no referido livro de Prade, caracterizado
pelo fluxo de consciência em fragmentos portais aos demais poe-
mas. Um poema evocativo e narrativo, “O escorpião sonolento”,
com mínimas pontuações e alinhado em ambas as margens, se-
quenciais, mas guardando autonomia em cada um dos frag-
mentos que podem ter leituras isoladas e alternadas. São vinte
fragmentos infinitivos e que por velaturas despertam outros poe-
mas no monólogo da leitura.
      Nos limites do fogo tem a densidade de imagens em atritos,
fagulhas, crepitações de matérias em formação e na primeira
pessoa fáustica que se recusa, diante do mar, explorar sua ener-
gia armazenada desde o tempo original, visto da colina com
Mefistófeles, o cavaleiro e o réptil traidores. Um herói que des-
confia da perda de sangue em nome do tentador que quer levá-
lo à exploração da natureza no canteiro de obras, da matéria que
para ele é livre na contemplação e no estudo do fogo e da água
do casal originário, antes do tempo da usura, da alienação hu-
mana. Nos limites do fogo é a invenção da eletricidade poética,
mas o destruidor está à espreita, sedento, frente ao mar – a “pla-
centária lembrança” do lugar ameno, imemorial, que não deve
ser tocado.

       Não me convence
       o sangue que perdi em teu nome,
       Mefistófeles.

       Cruzamos o limiar
       do gesto cruel,
Jayro Schmidt                                                 33



       oh treva inconsútil
       que me devora.

       Repousa logo os crespos cabelos,
       tu, sábio, luminoso pecado
       que incendeia as veias do morto.

     Entre Nos limites do fogo e Os faróis invisíveis, 1980, há
uma proximidade acerca da disposição visual do poema, em si e
na página, radicalizada na forma de um sinete, de um lacre, de
um ícone de palavras que indicam tanto as estimativas visuais do
poema como a familiaridade do autor com pinturas que sedimen-
tam os poemas no campo expandido da arte, ou seja: o desenho
da página com o desenho das frases, entre e nos quais os espa-
ços em branco fazem o mesmo que fazem as formas supremas de
Malevitch, em amplas superfícies brancas, por onde o olhar ga-
nha força transformadora. Não são as representações figuradas
na inventividade de Prade que impedem as recepções espontâ-
neas das apresentações abstratas, cujos equivalentes verbais são
as ideias ou conceitos.
     Em “limites do fogo” e “faróis invisíveis” as notações res-
peitam estes cortes e recortes como se os poemas fossem som-
bras chinesas que oscilaram em Os faróis invisíveis para o assi-
nalado por Claudio Willer, a transgressão tal como foi formula-
da por Bataille e, com o prazer da linguagem, por Barthes. O
prazer é perverso pela própria natureza de seus impulsos e o tex-
to o prazer da escritura. A transgressão é a da linguagem ao di-
zer-se, e transgressão de linguagens imobilizadas pelo o ter que
dizer sobre alguma coisa.
     Dentre os comentadores da obra de Prade, a abordagem de
Willer é praticamente isolada ao concentrar-se na questão da lin-
guagem, em signos de signos, poemas sobre a linguagem sem,
entretanto, o sacrifício do factível numa circularidade apontada
por ele, a tautologia de Octavio Paz e, digo, dos lógicos de Vie-
na, que elaboraram um sistema que tem como premissa a reto-
mada da proposição que vai do simples ao mais complexo, man-
tendo-a em constante ebulição. Tudo é tautologia, exceto as cons-
tatações sensoriais.
34    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



     Willer detecta a autenticidade da poesia neste “círculo vi-
cioso”, o da palavra que se volta sobre si mesma, sem que haja
uma exterioridade comandando-a, somente “o puro jogo de pa-
lavras, o lúdico, o prazer”. A perversão da linguagem que balda
poderes da linguagem em O prazer do texto, de Barthes.

       A Lei, a Doxa, a Ciência não querem compreender que a
       perversão, muito simplesmente, torna feliz; ou então,
       mais precisamente, produz um mais: torno-me mais sen-
       sível, mais perceptivo, mais loquaz, distraio-me mais etc.,
       e neste mais vem situar-se a diferença (e a partir daí o
       Texto da vida, a vida como texto).

      De nada adianta amarrar a poesia em uma corrente ou su-
percorrente, sujeitando-a a ser o que não é, ou pouco que é, ni-
velando-a no sincrônico, que não pode levar em conta o que nela
não é vicário, submisso. Um ciclo poemático é demolidor em
relação a antecedentes, somente isso, a liberdade barroca em
contraparte ao comedimento renascentista ou, mais próximo de
nós, os paraísos artificiais de Baudelaire que nas seguintes gera-
ções seriam realismo, a realidade mesma de Rimbaud. O que
pode ser suposto como revolução moderna da poesia, e da arte
em geral, se deu mais por diacronia e por devir do presente com
o reconhecimento de que “o desconhecido reclama novas for-
mas”. Insisto na ideia de que temas permanecem, são retomados
em suas universalidades, porém com outras estruturas de lingua-
gem, outros motivos. Bashô aconselhava seus discípulos de poe-
sia a não seguir os antigos, mas procurar o que eles procuraram.

       O corpo desconhece a superfície
       nas esferas limitadas pela dor

                                        Não é o pássaro zangado
                                        a versátil criatura

                                        Nem balão veloz
                                        suprido pelo canto
Jayro Schmidt                                                  35



                                     E anjo não se presta
                                     a voo tão luminoso

       O corpo desconhece a cor
       porque o brilho apodrece o manto

      O poema de dois poemas em Os faróis invisíveis, o primei-
ro elíptico, com a transposição dos significados do corpo. A re-
petição dos signos, que não se confunde com a redundância,
desloca-os com corpo e corpo ainda ao ser movido da superfí-
cie para a cor, da dor para o manto. No segundo poema – en-
tremeado e deslocado à direita para o silêncio da página unindo
as duas partes do primeiro, espelhados, duplicados – a sequên-
cia dos dísticos com uma única imagem transvalorou-se do pás-
saro ao balão e deste ao anjo.
      O significado deste poema é ele mesmo sem deixar de ser a
linguagem do mundo. Enquadrá-lo em um determinado ponto
de vista, estético ou não, reduz seu alcance, diminui a sua força.
É o poema que ilumina quem dele se ocupa: indica por onde
deve seguir a leitura. Ler, comentar um poema, é receber sem
reservas o que ele exprime. De nada adiantam princípios prees-
tabelecidos, sobretudo os da evolução. Um poema ou um con-
junto de poemas pode ser evolutivo, mas o seu prazo não tem a
duração e a multiplicidade das reações, das rupturas. Não é pos-
sível manter fidelidade por muito tempo a algum sistema a par-
tir do momento em que se escreve. O escrito não se deixa mo-
delar, é ele que modela o provável – ato crítico de linguagens ao
deslocar-se do que sabe para o que não sabe. É preferível o de-
sabrigo da formação que o abrigo do formado. O escritor, este
é o seu fantasma, disponibiliza o caos, de onde tudo pode vir a
ter forma, imagem. Em Pequena estética, Max Bense explicou o
caos como “fonte real, um repertório real de possíveis inovações
no sentido de criações”. Até mesmo a filosofia comprometeu-se
com o caógeno da inventividade, buscando no processo artísti-
co respostas para as indagações filosóficas. Duradouras são es-
tas “propriedades da linguagem” sem perder a atualidade, o
móbile de Valéry que revela como os objetos artísticos são fei-
tos na distinção de motivo e tema. O motivo do poema pensa a
36    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



linguagem que, dependendo da embocadura, causa a sensação de
que foi o poema que pensou o poeta.

Coisa de palavra

      As obras de Prade são factíveis nas visões mitopoéticas. Pela
densidade, geralmente atraem interpretações do tema com o sa-
crifício do motivo da linguagem, o da poesia que está nas coisas
e transformadas em palavras. Importa a factibilidade, mais ain-
da as relações de significados e significantes no escrito que se vale
da suprarrealidade por reconhecer que no arbitrário há uma or-
dem na formação da matéria. Todorov, em Poética da prosa, ad-
verte que se há um ritmo regular nos eventos do mundo “é por-
que esse ritmo vem de outro lugar”, da harmonia cósmica de
Khlebnikov, relacionando-a com as “consoantes iniciais” e com
os “nomes elementares”. Khlebnikov: “Os corpos elementares da
língua – os sons do alfabeto – são os nomes das diversas formas
de espaço, a enumeração dos casos de sua vida”. Mallarmé di-
zia que os prefixos são as virtudes dos nomes, a arquilíngua das
semioses poéticas. Neste sentido, a coisa posta na palavra tem
densidade semantológica em Prade, na qual cabe, inclusive, a
leitura de iconografias pictóricas.
      Em Jaula amorosa, 1995, há esta paratática verbal das ima-
gens de pintores que fizeram o mesmo em contextos diferentes,
porém sob os imperativos da linguagem como se lê na alusão a
van Gogh nos sonetos de “O jardim das asas multiplicadas”.
      “Saint-Rémy” é o poema, cidade da França, região em que
nasceu Nostradamus, de ciprestes e noites estreladas que o ho-
landês pintou com o chi’yun, a expressão do vívido nos cânones
da pintura oriental formulados por Hieh Ho. O chi’yun é a vida
na estrutura do traço, chamado então de “osso” e que, na pin-
tura de van Gogh, se dava por golpes caligráficos, vibrações na-
quela cidade e antes, em Arles, “a arlesiana à margem do livro”
no soneto de Prade, Madame Ginoux com o cotovelo na beira
da mesa redonda com livros, um fechado e outro aberto, a mão
esquerda apoiando o rosto com o olhar já sem fundo com que
retratou, no mesmo período, a berceuse Augustine Roulin posan-
do e segurando uma corda para embalar o filho recém-nascido,
Jayro Schmidt                                                37



berço que fez van Gogh pensar na árdua labuta de pescadores
embalados pelas ondas. A temporada do pintor em Saint-Rémy
foi breve e exclusivamente para ser “tratado” como artista, ten-
do, além de seu quarto, um compartimento para pintar e pintou,
antes engolindo a pintura, ou melhor, a tinta a óleo saturada de
chumbo, um suicídio simbólico conforme seu médico. Van Gogh
já havia aceitado a condição de louco, transfomado em perigo
para si e para os demais depois do episódio da orelha cortada.
Impressiona as aquarelas que fez no sanatório de Saint-Rémy, um
mosteiro medieval, do início do corredor e de sua extensão com
corredores laterais e a saída para o pátio, onde desenhou o poço
do jardim e encontrou a borboleta caveira, esboçando-a em car-
ta e descrevendo-a ao irmão. Dela quis fazer uma pintura, mas
para tanto teria que matá-la e isso ele não podia fazer. Dos mu-
ros do jardim foi pelas imediações com a “locomotiva de pintar”,
quando teve outro distúrbio auditivo e visual, do qual se recu-
perou com doses acentuadas de remédios à base de ópio, em
seguida indo para Auvers-sur-Oise conhecer Gachet, retratando-
o “com o olhar triste” daquela época em duas pinturas – estu-
dos da loucura, ambas com o ramo da dedaleira, provedora de
digitalis, digitalina, componente do sábio absinto.

Simbólico, andaluz, ibérico

     De um modo geral, poetas publicam coletâneas, escritos de
gavetas. Por mais cuidadas que sejam, e são quando prevalece a
analogia de linguagem, parecem-se com um nó que ao ser feito
perdeu a corda. Não é o caso de Prade, escritor de envergadura
suficiente para fazer com que cada uma de suas obras seja um
organismo vivo, pensado no corpo inteiro e suas pegadas. Co-
menta Fábio Brüggemann que a poesia brasileira atual se ressente
desta qualidade, a do projeto, da construção, concluindo que não
“estamos diante de um autor de antologias, que publica poemas
feitos aqui e ali. Ele apresenta livros de poemas que têm unida-
de, não apenas temática, mas também estrutural”.
     O programático, em Prade, é de infinita importância e isso
depende das escolhas que tem feito ao longo de tantos anos, es-
tritamente pessoais, mas sem render-se ao solipsismo. Nos ter-
38    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



mos desta premissa, o poeta torna-se cada vez mais ciente de que
a excelência de uma peça literária está no máximo desafio escri-
tural: um poema é feito com o que não deve ser dito, a “frase
no pulso” de que falou Cruz e Sousa em sua solidão povoada de
símbolos.
      O não dizer está intimamente presente no ato problemáti-
co da escrita, por si mesmo crítico ao forçar a linguagem a sair
do hábito, do estereótipo. E como a linguagem é a depuração do
que surge com o que é feito, a literatura é colocada nos ângulos
de suas exigências volitivas e cognitivas, sendo, por algum tem-
po, metalinguagem.
      O conjunto das escolhas deliberadas de Prade tem esse mé-
rito maior: trabalho de linguagem em repercussões de lingua-
gens, levando-o, inevitavelmente, a escrever um livro repositó-
rio, híbrido, cambiante em suas formas, Além dos símbolos, suma
de escrituras, livro álgido, emblemático.
      O livro Além dos símbolos, 2003, é um composto de dez
partes, mantendo entre as mesmas a semelhança e a diferença.
“Verônica sem rosto”, “Capela de ossos”, “Caleidoscópio”,
“Ovários de princesa” e “Confabulatores nocturni” são as que se
correspondem por variações mais de ordem temática, verificá-
veis em livros anteriores e posteriores. “Túnel perverso”, “Ilu-
minuras”, “Asa delta”, “Entre as folhagens” e “Visões do jardi-
neiro” são as partes diferenciais, inclusive entre si, tanto no tema
como na forma: sonetos, poemas em prosa, apotegmas e haicais.
      O leque da diferença formal e não costumeira na poética de
Prade, porém com lampejos em toda a sua obra, demonstra a
completude de seu labor exigente, mas sem que isso pese no re-
sultado final. A impressão que fica é a da palavra que já estava
ali polida pelo tempo.
      Nos sonetos (“Túnel perverso”), a construção do aparato
fechado em quatorze versos desmobiliza-o com a ausência pro-
posital da rima. Os pontos do poema ficam ocultos, como devem
ficar para que os contrapontos, ideia e imagem, saiam pelas bor-
das do escrito.

       Nem só de peixes move-se o aquário.
       Habita-lhe o Azul ou então o Verde
Jayro Schmidt                                                 39



       quando o pássaro ridente supera-se
       da terra com soberbas asas caladas.

       O aquário também sem susto convive
       com a cor em movimento de piratas
       entre ondas e outras ondas e ondas
       ao mar conferindo um tom mais claro.

       E se no aquário fogo alto houvesse,
       água alguma porventura dentro dele,
       como fazer para outro nome dar-lhe?

       Seria sempre enfim o mesmo aquário
       refletido neste traço dos desenhos
       de outra água como a luz do pranto.

       Quem conhece poesia sabe o que acabei de comentar. So-
neto assim é porque, ao verter-se em direção de seu centro, ex-
pande-se em todas as direções. Soneto com esta têmpera, com
palavras que mostram a superfície e a profundidade, somente
foram escritos por grandes mestres como Rilke, “Torso arcaico
de Apolo”, e como Jorge de Lima em “Invenção de Orfeu”.
       Nos poemas em prosa (“Iluminuras” e “Visões do jardinei-
ro”), a meticulosidade dos ofícios de ornar uma página com pe-
quenos desenhos e semear retinas tem a simplicidade de quem
passa a vida estudando o que são e o que as coisas fazem. As
coisas são aquilo que fazem: a andorinha o voo, o cálamo a gra-
fia... Truísmos e sinopias de uma sensibilidade ontológica.

       Com o cálamo, sem tremores, urdi iluminuras na Babilô-
       nia. Tordos, pavões e cabeças de outras aves desenhei nas
       folhas de ouro. E mais o azul do lápis-lazúli. Mesmo as-
       sim não se abriram as portas do mistério.

      Nos apotegmas (“Asa delta”), a brevidade das frases descon-
trai as metáforas universais de signações: mundo e ombro vaza-
dos de anamorfias. Apotegmas que encerram crítica lição de coi-
sas.
40    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



       América, América
                      O ovo de Colombo
       caiu e quebrou

     Nos haicais (“Entre as folhagens”), as palavras passam por
dentro de palavras, o kaketotoba, com o ícone que situa o cos-
mos imutável, seguido da ocorrência, o mutável, para o desfe-
cho do caminho seguido pelo poema. Uma ilha de três versos nos
traços de nanquim que destraçam o mundo árido, o não saber
atuar, em modalidades. Com o fu, vento e elegância; com o wabi,
simplicidade e equilíbrio; com o yugen, mistério e escuridão;
com o shibumi, pungente e severo; com o hosomi, exíguo e agu-
do; com o miyabi, graça e harmonia; com o sabi, pátina e tem-
po; com o karumi, leve e límpido; com o mu-ga e mu-i, não-eu
e não-fazer. Outras lições da longevidade na brevidade, a perma-
nência na passagem.

       Signos andantes:
       as águas saltam
       para sete nuvens.

      Por falar em brevidade e longevidade, Ciranda andaluz,
2003, “viagem singular” em Espanha nas palavras do autor –
com a ciranda do canto fundo dos ciganos.
      O livro, breve, diz muito na “publicação solteira” e não
“encartado em um livro maior”, diz o autor, com a expectativa
de encontrar empatia. Sou esse encontro na viagem que levou
Prade a Lorca em giros de pressentimentos. Não posso deixar de
citar o afetivo do viajante com a transcrição, que tem o dom de
guiar quem se ocupa de um texto e seus motivos.

       Cada viagem é uma viagem singular, pessoalíssima, in-
       transferível, ainda que maravilhosa seja a companhia.
       Tantas viagens fiz por esse mundo afora, mas a maior
       parte delas caiu no esquecimento. Contudo, algumas há
       que não saem da memória, tamanho o deslumbramento
       emergido já no primeiro impacto. Foi o que ocorreu na
       belíssima região espanhola da Andaluzia. Eu a percorri
Jayro Schmidt                                                   41



       toda, sem cansaço aparente, durante um tempo de retiro
       espiritual, em um mês de janeiro, encantado pelas paisa-
       gens, arquitetura e pessoas.
       Todavia, supondo-me poeta, e tendo por Federico García
       Lorca especial predileção (considerando-o um verdadeiro
       cânone), não pude resistir e fui até Fuente Vaqueros. Lá,
       no pequeno povoado, estive na casa (ou no que restou
       dela, imagino) em que nasceu esse extraordinário expoente
       da literatura universal, atraído, entre outros objetos, pelo
       berço dele balançado na infância pelos seus pais e fami-
       liares.

     O poeta, no recinto singelo e com o passado de um meni-
no no berço da luz, comovido escreveu “de ouvido” o poema que
seria, na mesma corrente de comoção consciencial, a centelha
magistral dos demais poemas que compõem Ciranda andaluz. O
visto naqueles instantes mobilizou o tempo vivido de Lorca ao
longo de terras espanholas no carroção teatral, moção de músi-
ca, sons entreouvidos do embalar para o berço distinto do “fa-
zer poético” de Prade.
     Além da evocação de Lorca – que pressentiu a guerra civil
ao ver uma vara de porcos devorando carneiros no pátio de uma
casa abandonada – e o ritmo do berço já ciranda, o que é o mais
decisivo nesta distinção poética é exatamente o frontispício do
poeta moderno em viagens ao desconhecido que exigem novas
formas em direção do conhecimento. O poeta, no estranho, en-
controu a canção infantil, as águas europeias que Rimbaud re-
cordou nos crepúsculos da manhã e da tarde de seu barco.
     O berço estava ali para o ouvido do poeta comovido com
“as ausências de uma criança” nas presenças de suas andanças no
fio de versos e de cenários, para os quais as variações imprimi-
ram nos objetos – berço, lanterna, guitarra, piano e espelho – o
futuro de seu pretérito.

       Velho berço de seda encarnada
       sob o leque de sombras balança
       as ausências de uma criança
       que em Fuentevaqueros nasceu.
42   Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



      Em sua cabeça coroada
      colheu ciprestes, ouro e poesia.
      Ramo de oliveira em Andaluzia
      para quem é pássaro e poeta.

      Sob o berço uma lanterna
      que de puro cobre é feita
      servirá para a colheita
      de muito amor e suspiros.

      E se perto da cisterna
      houver laranjas caídas
      recolha suas cascas feridas
      para a melhor sobremesa.

      Sobre a mesa vejo cordas
      de sua primeira guitarra
      onde todo som amarra
      as rimas ciganas do pranto.

      E no rural piano bordas
      como arqueiro de flechas leves
      um belo manto de neves
      para o amante do unicórnio.

      Com este trigo ao vento
      reze por teu “Cristo moreno”.
      Ah! Apenas num vaso pequeno
      guarda teu suor perfumado.

      E guardará tudo, lamento,
      como se guardasse somente
      o veneno de uma serpente
      num frasco de algodão doce.

      Palavras como jarra e medusa,
      Guadalquivir, rã ou punhal,
      tarântula de um faquir fatal
      que é trânsfuga e jardineiro.
Jayro Schmidt                                                  43



       Agora sim vejo no espelho
       palavras tão bem escolhidas
       que as mantenho colhidas
       no Cante Jondo do fogo-fátuo.

    A obra de Lorca vem do cante jondo, canto fundo, a forma
primitiva do flamenco que arrebatou Prade e colocou-o na roda
exposta da canção, no moer o grão da palavra. Um lamento grave
atenuado pela infância da voz, de procedência oriental corren-
do nas veias espanholas, em sonoridades de adivinhações que já
aconteceram ou vão acontecer.

       No cata-vento equestre havia
       Muçulmana e breve inscrição:
       Calet el Bedeci Aben Habuz
       Quidt ahahet Lindabuz.

     Legendas, legados arábes: “Diz o sábio Aben Habuz/que
assim se defende o Andaluz”.
     Guitarra de improvisos e avisos, cuja origem se encontra na
certeira nominação de Baltasar Gracián, o engenho e a agudeza
associados ao cultismo, isto é, exprimir cultamente sus concep-
tos. Culto é um latinismo, o ornamento da oração. A palavra
aguda exprime o engenho conceptivo de quem escreve, o gon-
gorismo e a passagem do maneirismo ao barroco espanhol por
regularidades e irregularidades conciliadas de pomba e punhal.
     O barroco fez da imagística a dialogia através da escrita, ou
do pintado como se observa em Salvador Rosa, pintor, músico e
ator napolitano influenciado pelo espanhol Jusepe Ribera. Rosa
cultuava legendas latinas: o melhor é ficar calado quando não se
tem a dizer algo melhor que o silêncio. O dito, avt tace avt lo-
qvere meliora silentio, está estampado na placa que o pintor se-
gura, autorretrato de 1640, no qual ele aparece inquirindo, no
primeiro plano da pintura, o espectador. Seu olhar é desdenho-
so, insatisfeito, porém ele quer ser visto na agudeza de seu en-
genho encenado à frente de nuvens não tão sombrias como ele.
     Os silêncios dizem o que deve ser dito, sonoridade em ci-
randa, moenda da linguagem.
44    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



       Peço perdão, oh Maria,
       Por assim ter nascido.
       Uma cabeça bastaria
       para ser dragão querido.

       Também a José peço perdão
       por essa grande desgraça.
       Ah! se pudesse ter a graça
       do anjo sobre um portão.

       Peço perdão a Picasso
       que desenha sob medida
       qualquer cabeça perdida
       e faz o que eu não faço.

       Também a Lorca peço perdão
       pelo desenho tão engraçado
       em que o rabo desarrumado
       parece cauda de escorpião.

     Caminhos de Espanha nas rimas toantes, as mesmas de ou-
tro poeta brasileiro, João Cabral de Melo Neto, no diálogo com
o ferrageiro de Carmona. As palavras fundidas não têm a toação
da marreta e da bigorna, somente as forjadas, cabralinas, vistas
na Giralda, pradeanas no dragãozinho, o corpo a corpo com o
domar. Nomes e desenhos forjados são como luta no poema de
João Cabral.

       Forjar: domar o ferro à força,
       não até uma flor já sabida,
       mas ao que pode até ser a flor
       se flor parece a quem o diga.

    Ao nomear o que lhe parece o desenho infantil de Lorca,
Prade nomeia-se feliz Murillo, feliz Miró.

       Eu sou feliz prisioneiro
       por que tenho por companheiro
Jayro Schmidt                                                 45



       um livro de poesia
       fruto desta fantasia?

      Prade sempre escreveu poemas de viagem, em desvelos de
quem se deixa tocar pelo intocável, pela alma secreta das coisas.
Tríplice viagem ao interior da bota, 2007, como Ciranda anda-
luz, é a temporada anímica que por afeição estética e erudita
reencena outras cidades das mesmas cidades que visitou com a
filha Priscila, testemunha de “fatos propiciatórios” dos poemas,
companheira de viagem à bota, a Península Itálica com os medi-
terrâneos familiares do poeta, meridianos dos poemas.
      Poemas de introvisões, escritos em tom de cartas, cujos se-
gredos somente podem ser confiados a uma pessoa ou a poucas.
Talvez por isso o autor tenha dito que os poemas poderão ser
esquecidos, “fadados ao esquecimento”. Cartas podem ser esque-
cidas porque guardadas, segredadas no sodalício em páginas que
dizem que a vida não é breve na brevidade dos fatos que apro-
ximaram pessoas e as afastaram para outras comunhões e memó-
rias. Com muito sabor são lidas as cartas de quem se conheceu
pela sorte de um instante, que chegam como se fossem gatos com
as marcas do que são e do que fizeram. Sêneca, que viveu em
Roma, escrevia a Lucílio, supostamente seu discípulo.

       Escreves-me com frequência, o que me é grato, pois assim
       te mostras a mim pelo único meio de que dispões. De cada
       vez que chega carta tua, hei-nos de imediato juntos. Se
       ficamos felizes por possuir os retratos dos nossos amigos
       ausentes... quanto mais não nos alegra uma carta, pois
       traz vivas marcas do ausente, o cunho autêntico de sua
       pessoa. O traço de uma mão amiga, impresso nas páginas,
       proporciona o que há de mais doce na presença: reconhe-
       cer.

     Os poemas de Tríplice viagem ao interior da bota têm este
cunho e o reconhecimento do que foi habitando o poeta com as
escritas memoráveis de Roma (muralhas, Capela Sistina, Miche-
langelo, Juízo Final, Mariano Fortuny, Aloysius Bertrand, Fabri-
46    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



zio Montecchio); de Veneza (gôndolas, pombas, mendigos, más-
caras, Palazzo Ducale, escultor); de Florença (carrossel, Piazza
Duomo, moedas, Sandro Botticelli, Davi, Golias, Niccollo Ma-
chiaveli, Leonardo da Vinci, Ghiberti, Porta do Paraíso). Cartas,
que pelo instante consagrado do olhar, vivificam os “fatos” que
Priscila testemunhou no frescor de sua idade, a primeira leitora
da bota itálica reatualizada.
      À multipla viagem, de prazer estético em obras e em ocor-
rências, Prade acrescentou outro prazer ao se reportar aos mo-
mentos que propiciaram os poemas, descritos nas “informações
necessárias”, os submersos que enriquecem a leitura, o estudo.
Além do rol de lugares e obras, Prade anotou as peripécias de
fatos inofensivos, porém determinantes na genética dos escritos,
alguns indiferentes ao seu toque e em contraste com o magne-
tismo do poeta, serpente e ave. Menciono, apenas, o poema das
visitas de um escultor veneziano com presentes, “Delicadeza”.

       Um escultor,
           desses de maior hierarquia,
       dupla visita
       ao quarto me fez.

       Na primeira,
       sobre a cama deixou
       três pássaros de ouro.

       Na segunda,
       uma criança nua
       e de sangue azul.

       A um escultor,
                      veneziano,
       nada se recusa.
       Nem mesmo
       pássaros de ouro
       ou criança azul
       à noite e pela manhã.
Jayro Schmidt                                                  47



     O poeta recordou o episódio, pois das peças se desfez ao
passar pela Ponte dos Prisioneiros, sem suspiros mas com remor-
so. Presentes são irrecusáveis, até de inimigos. Irrecusáveis tam-
bém são os exercícios de desfazer-se de alguma coisa.

Hermenêutica e iconografia

      A imagem que tenho da poética de Prade, dependendo das
circunstâncias, ou é a da flecha ou a do alvo. Muito do que ele
viu está em suas viagens em países europeus e em orientes ima-
ginados, o poeta inscrito em focos poéticos para os quais o livro,
sagrado e mágico, reenvia sua mente a origens miméticas e aní-
micas. E nesta absoluta capacidade de impregnar e ser impreg-
nado por mônadas e escatologias preciosas de outras idades, ele
deixa de ser histórico e se torna contemporâneo de origens, de
originais. Não que a história atual e relativamente retrospectiva
não tenha importância para ele, como de fato tem, mas é a an-
cestralidade em portadores escritos e visualizados que o toca por
hermenêutica e iconografia, fatores imprescindíveis para a ela-
boração de sua poesia e ficção. A hermenêutica de textos sim-
bólicos associados a ícones, que fascinam o poeta, comprome-
te-se com a linguagem ao aspirar e sorver o poema no interpre-
tar, cuja compreensão é a da palavra como foi dita e da imagem
como foi vista no dizer e no ver outra vez com o haurir, que além
de aspirar e sorver tem o sentido de esgotar. Não propriamente
a fonte, mas quem dela se beneficia para dar lugar, duração, ao
outro. Nos recuos exegéticos, o poeta chega à extremidade de
suas forças para dizer pela primeira vez.
      A mitologia, nas genéticas das obras, tem um papel prepon-
derante de iniciação e estímulo noético, sem que se saiba se es-
tamos lendo o tempo em que as palavras se formaram ou se as
palavras estão nos formando. Assim, por osmose do escrito e do
lido, conhecemos e reconhecemos entidades sobrenaturais, oci-
dentais e orientais, todas por sopros mitomágicos. Uma expe-
riência real do surgimento de cultos imbuídos de retorno às ori-
gens como nos xamânicos, em animismo de sons míticos porque
há o conhecimento do ritual que foi levado a efeito pela primei-
ra vez. Então, no canto xamânico, ouve-se a reiteração ritualís-
tica, o ensejo mágico da origem.
48    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



     Mito é palavra, mythos, encarnação simbólica de forças da
natureza em seu passado remoto, do qual desperta o futuro. O
que vai acontecer, nesta tradição evocativa, já aconteceu – a rede
invisível da memória que em parte é a pré-história de cada pes-
soa e de culturas, o tronco arcaico ou o inconsciente coletivo de
que falam os especialistas. O mito é circular.
     Dentre os livros hermenêuticos e iconográficos de Prade, os
mais característicos em poesia são Pequeno tratado poético das
asas, Em forma de chama e Labirintos. São obras que tratam de
palavras e de imagens em suas origens míticas, nos instantes de
seus aparecimentos reverberados nas elaborações do poeta.
     Foi no escrito ancestral atualizado, com os respectivos íco-
nes, que abordei Prade com a asa, com a chama e, agora, com
os arcanos do Tarô em Labirintos, 2008, obra especificamente
de extrato icônico-hermenêutico que seduz o iniciado e o leigo
com suas figuras do ocultismo. Para tanto, esboço algumas biblio-
mancias dos poemas, levando em conta o texto de abertura e a
interpretação numérica do posfácio.
     Toda a hermenêutica em Labirintos não é uma finalidade,
antes um meio de escritura, de estar na e com a linguagem. Sen-
do um através ou mediação, o ato da escritura reveste-se de ex-
pectativa exegética e heurística com o encontro de logomatrias,
as palavras ditas pela primeira vez. Esta não é somente uma fa-
culdade do livro em questão, convite para o ingresso na matu-
ração do autor já maturado desde os livros precursores. Foi por
isso que mencionei o livro dos livros de Prade, a palavra das
palavras curadas na perspectiva curiosa de que o semelhante atrai
o semelhante para que a diferença imprima sua marca inaugu-
ral. Mas, é em Labirintos, pela rotação noética, que o dizer pela
primeira vez tem os arcanos maiores da probabilidade.

       Longa é a viagem
       em busca do destino.

     A plenitude da palavra está nas vibrações de um círculo
perfeito com a sensação de que não está em nenhum lugar e em
toda parte. Então o poeta não pode olvidar que nele costurou-
Jayro Schmidt                                                 49



se “ambígua sombra”. É o poeta que cria seu destino e dele ten-
ta escapar ao escrever o poema.

       Ao regressar trarei pela mão gigante
       um deus que se chama menino.

     Os números do labirinto estão lançados. O tudo e o nada,
o começo e o fim. Números circulares na definição do posfácio,
“Labirinto poético do Tarô pradeano”, assinado por Onor Cam-
pos Filomeno.
     Depois de investigar cada um dos poemas de Labirintos com
irrompimentos de cunho etimológico, Onor Campos Filomeno
chegou a classificar todas as recorrências verbais que interme-
diam os poemas, além de traçar o próprio círculo de suas apari-
ções numeradas para que se tenha a teia de seus instantes, as
palavras-aranhas na agudeza dos poemas, cada um deles nas teias
dos arcanos. O círculo me fez lembrar, na icologia dos saberes
ocidentais, do homem vitruviano de Leonardo da Vinci, incluí-
do em suas experimentações da proporção, que teve expressão
máxima com a teoria da visão das pirâmides baseada na célebre
lei áurea, que estabelece a relação ideal entre duas grandezas,
constatação arquitetônica de Vitruvius que o frade bolonhês
Luca Pacioli retomou e publicou em 1509.
     O círculo de Leonardo com as imanências de utilitas (utili-
dade), venustas (beleza), e firmitas (solidez) foi implodido por
El Greco, praticamente uma revolução copernicana na pintura,
na qual não há mais um centro predominante, ptolomaico, mas
vários. A intuição de El Greco, sendo um visionário religioso,
superou a perspectiva de ponto de fuga central renascentista com
a perspectiva vivida dos barrocos e românticos, francamente
conceituada na pintura de Cézanne. Na história das morfologias
da pintura, esta linha de formação não é improvável, somente
com diferenças contextuais. Cézanne dedicou a sua paleta baixa
ao visível mais visível, a montanha de Santa Vitória que pintou
de todos os ângulos possíveis até, gradualmente, tê-la sob mui-
tos ângulos em uma mesma pintura. A essa circularidade pictó-
rica e plástica atribuo a paralaxe do olhar, o efeito astronômico
que os gregos conheciam e que foi comprovado, em 1838, por
50    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



Friedrich Bessel, ou seja, a multiplicidade de posições de uma
estrela em relação a uma constelação na órbita da terra em tor-
no do sol. Cézanne não tinha conhecimentos de astronomia, ten-
do, isso sim, uma mente fenomenológica e ontológica. Disse ele,
no auge de suas modulações: “Sou a consciência da paisagem que
se pensa em mim”.
     Por mais remissiva que seja a palavra labiríntica de Prade, a
remissão tem o impacto da diacronia paraláxica quanto à forma
dos poemas com o espaço contínuo na descontinuidade do re-
presentado. Esta é a contemporaneidade de sua poesia, um zoo-
trópio que alterna, no movimento da circularidade, figuras di-
ferentes que compõem figuras que não se conhece, mas que es-
tão ali imagísticas.

       Traço um círculo ao redor
       e creio. Creio nele, o deus vivo,
       Enamorado.

     A suposição da paralaxe que acabei de apresentar sem maio-
res detalhes, um trecho da abertura de Labirintos, que Prade teve
a paciência de escrever, tem a explicação providencial. Diz ele
que as variações poemáticas, de fundo “cabalístico, mitológico
e alquímico, têm valimento somente como corpo ‘poético’. As
palavras passam a ter, assim, significados múltiplos em dimen-
sões especulares, sem referências datadas e teóricas, na rede pen-
dular das metáforas e das imagens”. A palavra cíclica, recircula-
da, tanto nas prospecções dos arcanos, que oferecem direções
ocultas, como nas dos versos ou mesmo em palavras retomadas
e assim deslocadas de um sentido para outro.
      O tempo cíclico está nas idades da terra, no pensamento
de Vico e em muitos autores modernos e que Harold Bloom
aplicou na formação do cânone ocidental, principalmente a Era
do Caos, em cujo centro canônico colocou Kafka, autor de labi-
rintos na viagem de um jovem, na intimação sem motivo e na
aldeia com um suposto castelo. A mais do que conhecida trilo-
gia do pesadelo da razão de um escritor sob a interpretabilidade
judaica em parábolas, lendas e sonhos que primam pela logoman-
cia do retorno. Um de seus sonhos, aliás, é citado por Onor Cam-
Jayro Schmidt                                               51



pos no posfácio de Labirintos, livro de outro absolum que dis-
solve o horror do Minotauro em sua dupla complexidade, ho-
mem e animal, mesmo que guiado pelo fio terno e brilhante da
idade do ouro. O Minotauro ainda chora no reflexo da mons-
truosidade, figura mítica necessária ao sentimento trágico dos
gregos.
     Absolum de vinte e dois poemas na unidade encontrada do
mago ao louco, o originador e o propagador transformados pelo
poeta em dinamismo de palavras vibratórias como se vê, nos flu-
xos e refluxos de linhas no “labirinto gráfico” de Onor Campos
Filomeno.




     Na recirculação das palavras está a imagem mais cara a Ba-
chelard, convocador de poetas do redondo. Foram as inscrições
numéricas que motivaram perfilar a este diagrama, e por visua-
lização de Labirintos, outro círculo interferido pela árvore de
Rilke, que desenhei com fractais de Mondrian, arredondada na
abóboda do céu, na passagem da realidade da visão para a reali-
dade do conhecimento.
52    Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)



    Uma configuração que em muitos aspectos aproxima-se de
cosmicidade e imaginação, matéria e sublimação.

       Ao ponto de partida
       retorno. Sob a lâmpada de Hermes,
       o manto de Apolônio
       e o sábio bastão do eremita eu toco.

     O anima de Labirintos manteve-se do primeiro ao último
poema, girando em torno o animus, o humano – o poeta ainda
no labirinto de sua invenção, rejuvenescido, “geômetra do uni-
verso interior”: na escritura do número-poema.

Arma branca

     Na obra de Prade há persistências da memória que merecem
um estudo à parte: a arma está entre as mais recorrentes, objeto
de usos variados e de polimentos que elevam a lâmina ao sím-
bolo ritualístico que lembra a longa feitura do instrumento para
conquistar o meio, cuja eficiência obtida conquista o poder má-
gico. A adoração dos animais tem muitos propósitos com a per-
cepção de que seus membros são armas, além de curarem-se por
conta própria.
     Em Sob a faca giratória, 2010, a arma é a figura do poeta,
no passado latino com a figura vela dare, o levantar vela como
metáfora do início do texto, instante em que o escritor sente o
temor diante de tão longa e perigosa viagem, além da viagem ser
o tema do conhecimento a partir de Homero para as viagens li-
terárias de Dante, passando por muitos autores e culminando
com Rimbaud, Conrad, Kaváfis e Joyce.
     A metáfora da arma do artista moderno foi enunciada por
Baudelaire com o heroico nas grandes cidades, em Paris das ave-
nidas de Haussmann, logo ocupadas pelas barricadas socialistas
com pedras amontoadas por “mãos mágicas” conforme o poe-
ta. Mágicas, comenta Benjamin, porque Baudelaire não conhe-
cia as mãos que as empilharam apesar da simpatia por Blanqui e
por Courbet, e de ter brandido uma espingarda em desafio ao
general Aupick. Entretanto, a luta passional do poeta não era
Jayro Schmidt                                                 53



menos branda, a lírica alegórica, na qual o artista em duelo po-
deria ser vencido com um gemido de horror.
      Na apreciação do pintor moderno Constantin Guys, a es-
grima é a arma de refinamento técnico, audaciosa e precisa. O
pintor, durante o dia, observa os costumes, os gestos e as ações
na multidão. Nada escapa a sua fina sensibilidade que à noite tem
o silêncio necessário para que possa captar as imagens cambian-
tes, fugitivas. Baudelaire descreveu-o, em O pintor da vida mo-
derna, “esgrimindo com seu lápis, sua pena, seu pincel (...) per-
seguindo o trabalho rápido e impetuoso, como se temesse que
as imagens lhe fugissem. E assim ele luta, mesmo sozinho, e apara
seus próprios golpes”.
      Não são poucos os contemporâneos de Baudelaire que nele
viram o esforço para realizar uma obra de arte, identificado em
“O sol”, de “Quadros parisienses”, exercendo a “estranha esgri-
ma” na tradução de Ivan Junqueira.

       Buscando em cada canto os acasos da rima,
       Tropeçando em palavras como nas calçadas,
       Topando imagens desde há muito já sonhadas.

     Qual o poeta que não sonhou com imagens da arma das
palavras? Nas de Sob a faca giratória o suor frio do poeta está
no passado da cânfora, ainda que lute com rastros emocionais
entre o peso do humano e a leveza da ascese. Ludibriado, des-
consolado caranguejo, quer esquecer a gravidade, a mortalida-
de. Até mesmo o mito esvazia-se.

       O poeta suspende o rosto
       nas águas de Narciso.

     O rosto quer escapar do cansado. Espectador de si mesmo,
o poeta quer outra imagem da forma-homem ao perceber o fan-
tasma ridente: suspenso nos movimentos da sorte, acrobata, um
deus natural aspira.
     Sem que haja ênfase nos mistérios do escrever em algum
poema de Prade, no entanto há reflexos com a menção da pala-
vra e a escrita do corpo, marca viva da passagem, e há a leitura
Poesia e ficção de Péricles Prade
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Poesia e ficção de Péricles Prade

  • 1. POESIA E FICÇÃO DE PÉRICLES PRADE (semas, semantemas, logomatrias) Jayro Schmidt
  • 2. Jayro Schmidt 1 São Paulo - 2011
  • 3. 2 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) © Jayro Schmidt é marca requerida de Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda. Todos os direitos desta edição reservados a Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda. Rua Sena Madureira, 34 CEP 04021-000 - São Paulo - SP e-mail: pantemporaneo@pantemporaneo.com.br Fone/Fax (11) 5084-4544 www.pantemporaneo.com.br www.pantemporaneo.com.br ISBN nº 978-85-62402-11-1 Na capa, reproduz-se, em destaque, obra de Jayro Schmidt Schmidt. Editoração: nsm Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Schmidt, Jayro Poesia e ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) / Jayro Schmidt. -- São Paulo : Pantemporâneo, 2011. ISBN 978-85-62402-11-1 1. Ficção brasileira 2. Poesia brasileira 3. Prade, Péricles 4. Prade, Péricles - Escritores brasileiros - Crítica e interpretação I. Título. 11-13377 CDD-869.9109 Índices para catálogo sistemático: 1. Escritores brasileiros : Apreciação crítica 070.449306
  • 4. 3 Dependendo do dia, noto-me alvo ou flecha. Péricles Prade A imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Walter Benjamin
  • 5. 4 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)
  • 6. 5 Sumário Introdução ..................................................................... 7 Primeira Parte: Poesia .................................................... 9 Gênese panorâmica ........................................................ 9 Signos e sepulturas ......................................................... 11 Palavras lemes ................................................................ 16 Voo e chifre ................................................................... 23 A aura ............................................................................ 25 Lírica limiar ................................................................... 27 Fogo e faróis .................................................................. 32 Coisa de palavra ............................................................. 36 Simbólico, andaluz, ibérico ............................................ 37 Hermenêutica e iconografia ........................................... 47 Arma branca .................................................................. 52 Segunda Parte: Ficção .................................................... 55 Cão ................................................................................ 57 Alçapão .......................................................................... 60 Realejo ........................................................................... 62 Corvo ............................................................................ 64 Espelho .......................................................................... 66 Correspondências .......................................................... 68 Terceira Parte: Imagens Multievocativas ........................ 77 Índice Onomástico ......................................................... 83 Bibliografia .................................................................... 91
  • 7. 6 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)
  • 8. 7 Introdução Desde o livro de estreia em 1963, Este interior de serpentes alegres, Péricles Prade tem mantido regularidade editorial em signações não afetadas por suas atividades profissionais, fazen- do dele um artista que antes de tudo é um cidadão do mundo. Em meio a estas solicitações levanta-se uma voz poética em coordenadas visionárias que desfazem as fronteiras entre o real e o irreal, que seriam instâncias provisórias, demarcatórias ape- nas, pois os estados poéticos são imaginários. Os poetas acredi- tam que nas coisas e em suas relações objetuais há substratos síg- nicos que transformam aparências em aparições. A regularidade editorial de Prade forma um panorama como de fato é a visada de um todo que conciliou caos e caosmo, no qual cada parte repercute nas demais. Seus livros compõem um único livro, o livro dos livros que na tradição esotérica tem as páginas em branco e na exotérica o livro escrito por vários au- tores. O livro infinito de Borges ao atribuir aos poetas, na tradi- ção do novo, a criação dos precursores. Os seus, poetas ingleses e Kafka, entre outros, e mais ainda ao se reportar ao onírico como simetria de almas e de continentes a exemplo de Coleridge, no Livro dos sonhos. Um imperador mongol (Kublai Kahn), no século XIII, so- nha com um palácio e o edifica conforme a visão; no sé- culo XVIII, um poeta inglês (Coleridge), que não tinha como saber que esta construção se originou de um sonho, sonha um poema sobre o palácio. Pouco importa se o sonho de Coleridge tenha sido uma for- midável coincidência ou simplesmente uma invenção. E nem é o caso de se duvidar de Próspero, o mágico de A tempestade: “somos feitos da matéria dos sonhos”. O livro de livros de Prade, sem reservas, mas com rigor no tratamento das palavras, tem a assinatura pessoal do movimen- to rápido dos olhos sem a indecisão sonhada por Russell, com
  • 9. 8 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) papéis que deixou sobre a mesinha no colégio, em um deles es- crito: “O que se diz do outro lado não é verdade”. Ao virar o papel, no transcurso do sonho, leu: “O que se diz do outro lado não é verdade”.
  • 10. 9 Primeira Parte: Poesia Gênese panorâmica Com mais de vinte livros publicados em poesia e ficção, Pra- de, no entanto, é escritor do conciso, da palavra lapidada, clara como é a natureza do pensamento. Sem dar fôlego a interpola- ções literárias, sua poética lembra o acendro de grifos e cifras da imaginação. A palavra bisagra, limiar, operação de sinais, poli- mentos com cinzas. Quanto mais brinda a concisão, mais a poética é fantasma- górica, contrastando a claridade das palavras com um mundo absolutamente estranho, sinestésico e alucinógeno. Mundo so- brenatural, não fosse a evidência subliminar, natural como a luz filtrada por uma abóboda que se sustenta por perfeição numéri- ca. A naturalidade das palavras de Prade é a mesma das imagens do sonho, porém complexas se não há domínio de sombras, re- flexos, projeções e bifurcações que fazem parte do subsolo da mente, no qual se encontram criaturas em formação e que o poeta transforma em imagens fantásticas com as sondagens acu- muladas desde os precursores do inconsciente em arte literária e pictórica. Este é o ponto, o tópico, o traçado de um agente inventivo nas palavras e nas imagens que têm toda a estocástica posta em circulação pelos poetas e pintores metafísicos, para não dizer surrealitas simplesmente. Há, portanto, uma genealogia em sua poesia que diz respeito a motivações que fazem do ato de escre- ver a vivificação do que é paralelo às palavras imagísticas, isto é, mundos limítrofes, os mesmos que são vistos entre o sono e a vigília. Nesta arte de elaborar imagens que diferem de seus mol- des, as palavras não são estranhas e sim o que exprimem em ter- mos de mundos possíveis em esferas tão palpáveis como são as de um problema matemático típico de Riemann. As lendas dizem que se trata de uma porta mágica, e as deduções numéricas que são projeções da quarta dimensão. Em caso de se poder compa- rar um poema de Prade com o retard duchampiano, o mesmo seria a passagem ao invisível que pode ser desenhada com a pro-
  • 11. 10 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) jeção descritiva ou com a proposição do sofisma sobre a luz que incide sobre corpos que projetam sombras em duas dimensões. Por que não pode o mundo visível, que é tridimensional, ser a projeção de uma realidade em quatro dimensões que não conhe- cemos? Esta é uma pergunta a que a poesia dá muitas respostas, sobretudo a que permeia as mesmas questões postas pela filoso- fia, como, por exemplo, a de Wittgenstein. Mas como assim? Um lógico poderá dizer alguma coisa sobre o que um poema faz, enquanto é feito com probabilidades? Um lógico como Wittgens- tein, sim, ainda mais por ter feito experiências com a hipnose para melhor obter o que deve ser obtido pela lógica: a clareza. Abro as páginas de suas filosóficas investigações e está ali, subli- nhado: onde há sentido, há ordem perfeita. O imaginário tem outra ordem “porque pode-se pensar o que não ocorre”. Trans- ferindo esta ordem para a estocástica, transfere-se a lógica de Wittgenstein para a relação entre o que não ocorre e o que ocorre por variáveis aleatórias de Markov. Sonho e estocástica têm em comum alguma coisa que precipita as demais, no sonho de ma- neira relativamente involuntária e na estocástica voluntária nas escolhas que podem ser feitas. Com isso não quero dizer que Prade recorra a teorias de ambas as modalidades. Pelo contrário. Tanto o sonho como a estocástica fazem parte da memória con- temporânea, dos gestos psicofisiológicos dos criadores – heran- ça substancial do moderno e de vanguardas, o expressionismo, o abstracionismo, o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo. São as propriedades intrapoéticas de signos da contemporaneidade que, em variações, ultrapassam as influências, suplantadas pelas contaminações remissivas e prospectivas que formam paideumas. Interessa o que está formado, mais ainda o que está em forma- ção. Pois é a formação estocástica que pertence a todos na defi- nição de Décio Pignatari. Quando falamos ou escrevemos, em verdade, estamos procedendo a rapidíssimas seleções de signos em nosso repertório, numa ordem organizativa, às vezes bastante maleável, prescrita pelas normas do sistema; não nos da- mos conta do fato porque o processo já está automatizado,
  • 12. Jayro Schmidt 11 por meio dos constantes e reiterados feedbacks (auto-in- formação) da aprendizagem. Mas basta observar como a criança aprende a falar para percebermos as relações es- truturais entre os processos do feedback, da cadeia de Markov e da formação do repertório. Estatisticamente falando, as leis que comandam o processo integrado são as do acaso-e-escolha (chance & choice), ou seja, leis da probabilidade. Não cabe na abordagem da poética de Prade, portanto, a aplicação estrita das cadeias de Markov. O que cabe é frisar que com a desconstrução da linguagem clássica pelos modernistas, implodiram-se monumentos estéticos. Apagogia do belo e do novo iniciada por Mallarmé com “as subdivisões prismáticas da Ideia”, prenúncio da estocástica como recepção e emissão da semiótica como vinha acontecendo com a vontade no pensamen- to de Nietzsche, e, mais tarde, com a probabilidade na arte de vanguarda no que tinha de parentesco com a filosofia e a física. A estocástica tem muitos exemplos na poesia brasileira, co- meçando com Drummond e o poema da pedra. Um caminho por dentro da linguagem proporcionado pela Semana de 22, e, por horizontes estatísticos de poética teórica, outros rumos depois da passividade discursiva de grande parte da Geração de 45. Menciono o poema de Drummond não somente por ser um marco histórico da poesia em língua portuguesa em impasses metafísicos por não ter metafísica, pedra revitalizada e perturba- dora, biografada pelo autor mais pelo que disseram seus detra- tores. Mencionei para situar que na estocástica são inevitáveis a repetição e a variação que uma vez escritas alteram significações que fazem parte das expectativas de cada poeta. No caso de Pra- de, que tem muito de representação e de apresentação, são im- previsões de cruzamentos metamórficos, todas vinculadas a se- mas, semantemas e logomatrias. Signos e sepulturas O termo sema, de origem grega, significa signo e sepultu- ra. Os significados subjazem, estão sob um véu reativo. Em si-
  • 13. 12 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) lêncio esperam ser chamados, nomeados, ou também chamam os poetas para que encontrem as suas próprias vozes. O sema, uma vez despertado, conjuga o sujeito e o mundo, pois entre ambos está o signo por virtualidade. Os signos operam a consciência e assim estamos em outro mundo, o da semiótica, que em sua ori- gem foi a arte de tratar, de diagnosticar. A palavra semiótica foi introduzida na filosofia moderna por Locke, reconhecendo-a como lógica assim como em Peirce, e em Wittgenstein com a “terapia gramatical”, vista por Morris, em seus desenvolvimentos, como tendo funções de linguagem: sintática, semântica e pragmática. Com a sintaxe ocorre a rela- ção dos signos entre si, com a semântica a relação dos signos com o que significam, com a pragmática a relação entre os signos e seus intérpretes. Morris aperfeiçoou a semiótica de Peirce, que teve o mérito de fundá-la como método filosófico e científico. A semiótica peirciana não se restringe ao discurso, reportan- do-se a todas as formas de conhecimento e de expressão, o que fez Barthes pensar a semiologia, na Aula, como “cadeira móvel, curinga do saber de hoje, como o próprio signo o é de todo dis- curso”. A semiologia, neste caso operacional, teve grande desen- volvimento na “análise das narrativas”, prestando serviços ine- gáveis “à História, à etnologia, à crítica de textos, à exegese, à icologia (toda imagem é, de certo modo, uma narrativa)”. Apesar de a linguagem ser preferentemente discurso em função da semiose das palavras, fazendo com que a semiologia seja metalinguagem, a semiótica forneceu as condições funda- mentais para o surgimento de teorias e práticas informacionais em suportes abrangentes, nos quais tudo se dá por descontinui- dade da comunicação na multiplicidade de canais, de meios ou repertórios. A redundância e a banalização são os mais inconve- nientes produtos dessa indústria com seus apelos vazios, aos quais os artistas reagem com o noético, por si mesmo um ato problemático e crítico. Peirce, em um dos ensaios que compõem Semiótica, definiu a estrutura sígnica por modalidades interativas de significados e significantes. Ora, um signo possui três referências: primeiro, é signo para algum pensamento que o interpreta; segundo, é sig-
  • 14. Jayro Schmidt 13 no para algum objeto que se lhe equivale nesse pensamen- to; terceiro, é signo sob algum aspecto ou qualidade que o liga ao seu objeto. Observa-se que a definição do signo, em suas referências, enfatiza o pensamento como atividade psicofisiológica, o que interessa sobremaneira ao campo da arte, principalmente da li- teratura e da pintura em interpretações do mundo e invenções de signos. Os objetos ficcionais e pictóricos relacionam conota- ções e denotações, ou seja, sentidos imediatamente condiciona- dos por referências entre o mundo e o sujeito postos na lingua- gem. A ideia de ser, por ontologia, já seria um significar o pen- samento do mundo e o mundo do pensamento. Uma via dupla que se unifica ou, melhor ainda, uma circularidade que desfaz o limite entre linguagem de coisas e coisas de linguagem. Os ícones, os índices e os símbolos podem ser estudados isoladamente, sendo eventos de um todo sob circunstâncias do mundo e do sujeito intermediados pela linguagem: o ícone re- ferencia a semelhança, o índice a causalidade, o símbolo a con- venção ou a arbitrariedade. Suas aparições nas obras de arte equi- valem, para expandir suas energias metonímicas e polissêmicas, a pentimentos – finas camadas de sentidos que se acumulam e desvelam umas às outras como se vê em “A traição das imagens”, de Magritte. Cada vez que observo a reprodução do cachimbo de Magrit- te, penso sobre a representação do visível que deu imagem ao que é mudo nas coisas. Visibilidade do invisível, verismo para provocar a ilusão de ótica que sugere que no aparente mais apa- rente está subentendido o através com as imagens. O recurso do engano de visão tem apenas um vínculo com o figural levado ao extremo de sua possibilidade no contexto em que a pintura foi realizada, no experimento da imagem como signo, que não é fixo: media, correlaciona, referencia. Incomparável é a força inventiva que se pode obter com o símbolo por seu caráter arbi- trário e que armazena o iconográfico e o indicial, no qual a ima- gem é metonímica, ao passo que no ícone e no índice a imagem é metafórica pela intersecção icônica com o objeto e a reunião indicial com o objeto. Esta simbolização foi a percepção semió-
  • 15. 14 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) tica de Magritte, que não é um caso isolado na radicalização das vanguardas, mas é o reflexo mais específico, valendo-se da ex- perimentação do “automatismo psíquico” como atividade pura- mente semântica em função das correspondências entre sono e vigília. E com este deslocamento de intencionalidade poética, então ele pode dizer, ao pintar o cachimbo, ceci n’est pas une pipe, isto não é um cachimbo. O título da pintura questiona o dado sensorial ao submetê-lo ao dado conceitual. O ícone do objeto está ali com todos os seus atributos, por analogia repre- sentacional do forno e do canal de madeira encaixados no osso do bocal com o metal anelado. Além disso, o mais significante é que Magritte pintou a frase como imagem indicial, cujo enuncia- do afirma categoricamente que o ícone acima, o cachimbo, não é um cachimbo. O enunciado é claro na sintaxe e na semântica, o que não dá margem para que se pense que o cachimbo é outra coisa – sendo ele mesmo, porém como engano ou traição dos hábitos sensoriais. O verismo da imagem, Magritte apresentou por semiose visual, proporcionando ao receptor a oportunida- de de pensar que no aparente está o transparente. Os enunciados de Magritte, como os da vanguarda de um modo geral, queriam mudar as direções da consciência e isso sig- nificava, em primeiro lugar, varrer a opacidade mental que mol- da as normalidades, as convenções e outros aparatos do gênero. Então, vários dadaístas derivaram para o surrealismo, movimen- to que colocou definitivamente a linguagem entre a consciência e o mundo sob a estocástica que gradualmente substituiu proble- mas estéticos por problemas semióticos. Outras vanguardas, nos mesmos impulsos, fizeram da realidade da visão a realidade do conhecimento, como são os casos do cubismo e do abstracionis- mo. Enquanto o dadaísmo e o surrealismo traziam à consciên- cia a experiência semiótica do onírico com a fusão de ícone e índice sem abandonar o objetual e o figural, o cubismo efetuava um corte no analógico-imitativo, um processo que atingiu a for- ma completa do abstrair com Kandinsky, Mondrian e Malevitch. Por ter envolvido a interpretação de Magritte com analíti- ca, não poderia deixar de comentar que a semiótica também ser- viu para que a filosofia da linguagem abreviasse a especulação metafísica impregnada de interpretações adjacentes, quando o
  • 16. Jayro Schmidt 15 objeto da inventividade é a leitura crítica das adjacências, ideo- lógicas ou não, daí seu caráter antitético, o que lhe confere au- tonomia em relação a teorias e sistemas. E isso se deu graças aos avanços em semiose nos próprios objetos artísticos, todos vincu- lados aos conceitos de contemporaneidade, que abarcam todos os tempos. Desde os modernos, que colocaram o novo no lugar do belo, o pensamento estético tornou-se analítico – análise da linguagem e de novos problemas como em Picasso na elabora- ção de “As senhoritas d’Avignon”, imagem mental que em parte contradizia o que havia pintado anteriormente com a efusão lí- rica dos fauves. E esta imagem desenvolveu-se como princípio de contradição das formas que expressaram, por sua vez, a contra- dição da vida, da história. Além disso, Picasso estava evitando o representacional como ilusão, apresentando assim um cômputo de inferências sobre o falso e o verdadeiro, o principal objeto da analítica. A lógica, entretanto, não pode admitir que algo seja ao mesmo tempo falso e verdadeiro. De qualquer maneira, até que ponto a lógica pode aceitar que na expressão não seja uma coisa nem outra, nem o falso nem o verdadeiro? Há uma passagem nas proposições de Wittgenstein, em Investigações filosóficas, que esclarece o impasse. Quando dizemos ou achamos (meinen) que algo está deste ou daquele modo, não nos detemos num ponto qualquer, com aquilo que achamos, diante do fato: mas achamos que isto e aquilo está deste ou daquele modo. Mas pode- se expressar este paradoxo (que na verdade tem a forma de uma evidência) também assim: pode-se pensar o que não ocorre. Pensamento e linguagem são correlatos do mundo, são ima- gens. Wittgenstein pergunta por que são usadas essas palavras. A resposta está no “jogo de linguagem”. Esta ordem antecede a experiência e se estende sobre sua vivência sem as perturba- ções ou incertezas empíricas. O papel da lógica, como essên- cia do pensamento para o filósofo austríaco, seria o de escla- recer, pois o sujeito está sob exigências psíquicas que obscure- cem a linguagem.
  • 17. 16 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) Pensamento e linguagem são confusos porque não dispomos de “uma visão panorâmica do uso de nossas palavras”. Caráter panorâmico traduz Uebersichlichkeit, que também é clareza por permitir que se tenha a visão das conexões ou articulações do todo como se a linguagem fosse uma partida de xadrez. O perspícuo do panorâmico teve outras vertentes com a semiose, sobretudo na estética informacional, vasta e constante operação de meios matemáticos e semióticos de objetos naturais e artísticos sem ignorar problemas intencionais nos materiais. Operações que acumulam informações estatísticas de fontes, de repertórios. Bense, um dos principais seguidores e ampliadores da estética informacional fundada por Birkhoff e Moles, diz que ela não é filosófica do ponto de vista da reflexão metafísica ao se valer da matemática e da tecnologia, portanto uma estética científica sempre em progresso e adaptando-se aos sobressaltos das linguagens contemporâneas. Bense em Pequena estética: “Esta estética foi, portanto, concebida como uma estética obje- tiva e material, que não opera com meios especulativos, porém com meios racionais”. A estética informacional opõe-se às teo- rias oriundas de Kant e de Hegel, para os quais não havia auto- nomia dos objetos artísticos, subordinados ao sujeito da expe- riência estética e ao sujeito da experiência teleológica. Palavras lemes Toda esta digressão foi para mencionar uma das predileções de Prade, a pintura, ele mesmo colecionador e crítico de arte, além de seu interesse filosófico de escopo amplo: na logogêne- se, na hermenêutica, na heurística e na icologia. Com a imantação de reflexão e visibilidade, e sem que haja a separação de intuição e intelecto, dizia que Prade se beneficia da estocástica de maneira deliberada, resoluta e objetiva, com a obstinação de quem procura abrir um claro no claro. Não seria outra a obsessão dos poetas, ainda mais com os versos brancos e a prosa poética por invenção singular de um poeta francês pou- co conhecido, Aloysius Bertrand, que viveu de 1807 a 1841. Com o verso e o reverso na prosa poética, Prade alonga-se para fora de si e volta com todas as iminências que dão vida a
  • 18. Jayro Schmidt 17 um escorpião irônico, lírico e dramático, com o cuidado pitagó- rico-espinosiano para que sobressaia o que é o mais perfeito no animal, a cauda e o bote. À maneira dos antigos dicionários analógicos, que trazem o índice de palavras para orientar as remissões aos respectivos pla- nos classificatórios, empreendo uma jornada por algumas pala- vras lemes na obra de Prade. Este material anamnéstico compõe um índice onomástico-poemático. Pelo tom escriturado de cada uma delas, o real conota irrealidade e o irreal realidade. Palavras charneiras, algo semelhante à “tribarra” criada, em 1934, pelo artista sueco Oscar Reutersvärd, e popularizada pelo físico e matemático inglês Roger Penrose, o objeto impossível, do mun- do às avessas, da ilusão de ótica, mas não tanto uma vez consi- derado o quântico em todas as coisas, no côncavo e no convexo da gênese do caracol, o movimento que enquanto vai para fora, mais se volta para dentro. A “tribarra” serve para a significação do perto e do distante, sempre revertidos: quanto mais próximo se está de alguma coisa, mais se afasta e vice-versa. Os nomes de criaturas míticas e humanas, animais e luga- res na obra de Prade iconizam e indiciam. Para tanto, e para não ser exaustivo, escolhi quatro livros que espelham os demais: Pe- queno tratado poético das asas, Em forma de chama, Além dos símbolos e Relatos de um corvo sedutor. Criaturas míticas e humanas: Po-yi, Avicena, Farid-od- Dinn Attar, Ramakrishina, Kinnara, Surya, Vinexu, Ja- tayu, Ravana, Saint-John Perse, São João da Cruz, Buda, Rhiannon, Abraão, Abetarda, Deus, Cristo, Anjo, Fênix, Unicórnio, Zürchen Bibel, Ariosto Giovanni Benvenutti, Tales de Mileto, Adão, Sofia, Verônica, Zózimo, Osíris, Rosinus, Persépolis, Manu, Vishunu, Andrógino, Abu’l- Qasim, Jahvé, Jaldaboath, Melusina, Og, Noé, Moisés, Abba Saul, K’i-Lin, Confúcio, K’ung-Tse, Antonio Pisano, José, Anacreonte, Jesus, Esdras, Percival, Rock Lane, Roy Rogers, Tom Mix, Vivaldi, Dionísio, Beethoven, Carlos Magno, Diomedes, Kostro, Jarry, Guillaume Apollinaire, Colombo, Leonardo da Vinci, Esteves, Álvaro de Cam- pos, Martin Corvo, Tiago, João, Judas, São Jorge, Aleis-
  • 19. 18 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) ter Crowley, Afonso Ferreira Borges, Ramsés, Lorenzo Vizencia, Léon, Tischio, Belmonte Pellegrini, Van Gogh, Tamiris, Homero, Camões, Rousseau, Douamier, Maurí- cio de Nassau, Cléopatra, Demócrito de Abdera, Sansão, Milton, Rodrigo de Haro, Floriano Peixoto, Gioconda, Jean-Paul, Simone, Edith Piaf, Nathaniel, Willian Blake, Jorge Luis Borges, James Joyce, Konstantin Kaváfis, Saint-Exupéry, Lewis Carroll, Picasso, Hyeronymus Bosch, Wittgenstein, Tissaut, Kafka, Bachelard, Rimbaud, Buñuel, Lautréamont, Salvador Dali, Marcel Proust, Charles Chaplin, Eva Perón, Gutenberg, Luigi Pomera- nos, Edgar Allan Poe, Annabel Lee, Pilatos, Marco Antô- nio, Pavarotti, Ernestina Kegel, Amenófis, Prometeu, Satã. Animais e lugares: Pássaro, serpente, Roma, Paraíso, Meca, águia, borboleta, Curdistão, grou, falcão, coruja, urso, corvo, pavão, dragão, escaravelho, cavalo, touro, búfalo, peixe, rinoceronte, leão, pomba, cervo, antílope, Oriente, ovelha, Jerusalém, Arábia, lagarto, Basan, cor- ça, boi, tartaruga, Canaã, Galileia, Egito, Bizâncio, Babi- lônia, tordo, andorinha, Córsega, mosca, sangue-suga, zangão, bode, América, Lisboa, cão, cisne, Sintra, Guima- rães, Damasco, Cairo, abelha, Gaza, Nossa Senhora do Desterro, Lagoa da Conceição, Florença, Veneza, Paris, grilo, Salem, Mississipi, Tóquio, Buenos Aires, Dublin, Alexandria, lobo, Campeche, Dinamarca, ouriço, Cons- tantinopla, porco, Praia Brava, Ocidente, cordeiro, escor- pião, gafanhoto, javali, Abissínia, lebre, Praia da Joaqui- na, percevejo, Costão do Santinho, Cemitério da Paz, New Orleans, pulga, peixe-espada, Santa Catarina, Cam- birela, Borgonha, tartaruga, rã, Braço do Norte, formiga, aranha, Praia de Canasvieiras, Floresta Negra, centopeia, chacal, Machu Picchu, Mesopotâmia, Lagoa do Peri. Tenha-se em vista que os nomes, fotogramas de civilizações, reinventam épocas e continentes e compõem a arqueologia ima- ginária do autor, e um autor que em viagens mentais e geográfi-
  • 20. Jayro Schmidt 19 cas desenha o mapa de sua força poética e erudita, cujas orien- tações rizomáticas apresentam a pluridimensionalidade do mun- do na unidimensionalidade das palavras. A imaginação do poe- ta é o aleph com a disponibilidade com que emprega o balustri- no e o corta mão para intermediar culturas iniciáticas. Um inven- tário multifacetado que compõe, se o autor achar oportuno, um dicionário de motivos que levam às temáticas, o que seria a bio- grafia de manhãs do mundo nos mistérios da linguagem. Não cabe aqui discutir as origens da linguagem em fusões do ouvir, do ver, do dizer e do grafar que giraram nas mentes dos ancestrais, poetas e desenhistas anímicos, todos sob o mesmo efeito – o da natureza com seus feixes de funções que levaram os chineses, entre outros, a colocar ideias em imagens, os ideo- gramas, que são vinhetas configurativas que transferem o agen- te para o ato e deste para o objeto por divisões e não por conti- nuidades como nas línguas ocidentais apesar do alemão, do in- glês e, para o espanto dos gramáticos, do tupi-guarani em suas aglutinações verbais com a qualidade semântica que não disso- cia coisa de ação. Agente e objeto verbais originam o substancial em seu conluio, eminentemente poético no sentido de que os nomes são as próprias coisas em ações sígnicas. Garimpar as palavras dos contextos em que aparecem, além do prazer de reencontrar a nuclearidade poética de cada uma delas, qualifica os giros modais e tonais do pensamento de Pra- de em dois aspectos que se polarizam: o sucessivo e o simultâ- neo. Conclusão: nos poemas ou nos contos aparecem o que é próprio da escritura, a sucessão, e o que é próprio da pintura, o simultâneo. Um princípio de montagem da imagem, que é o ago- ra ou a duração espaço-temporal, que pode ser técnica, mas é, antes de tudo, simetria onírica e estocástica. Com bibliomancia abro páginas da obra de Prade e leio jus- taposições e sobreposições da sucessão e da simultaneidade. E assim, sem deixar de estar onde estou, sou levado com a leitura de um sonho para o despertar de outro sonho, este da história na perspectiva do momento singular que projeta o passado no presente. A intensidade desta leitura é provocada pela intensida- de poemática como se fosse um esfregar retinas sob pálpebras transitivas. No lugar de conceitos surgem as imagens, o que não
  • 21. 20 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) deixa de ser mística e dialética, aproximação que para muitos é improvável, absurda. Os poemas “Semelhança” e “Fatalidade”, em Pequeno tra- tado poético das asas, 1999, exemplificam a energia com que o sucessivo e o simultâneo das imagens na noite iluminada dos tempos são atualizados, postos na primeira pessoa com o poeta capaz de adivinhar o voo e o canto ancestral com um de seus precursores, Saint-John Perse. Voo e gêmea adivinhação canto Acudam-me Saint-John Perse e sua ancestral intuição E mais São João da Cruz Buda e Tao que de tão leves a eles se assemelham Até agora não havia empregado a palavra intuição, substrato de todas as obras de arte, angular na imaginação e na memória, tanto no pensamento ocidental como no oriental com a abolição do conflito dos contrários. Intuição de tantas culturas em um mesmo poema, além do poeta incorporar o que está no pássaro, que o guia: indícios, sinais. No meu pescoço o pássaro atado O destino atrai as penas da fatalidade Quadrilogia por perfeição da escolha estocástica em pares: o pescoço e o pássaro, o destino e a fatalidade. O número qua- tro suporta o mundo e na mitologia do pássaro está a mensagem
  • 22. Jayro Schmidt 21 que magnetiza o poeta pela fatalidade de ter que escrever o sím- bolo para criar-se por dentro da cultura que o gerou. Não é somente neste poema que a paridade é modal, sem- pre impulsionada no tom poemático de Prade, o que resulta numa estrutura de poemas que tem a maturidade de um cristal. A fonte e o correr da fonte e na correnteza algo que aparece e faz dos pares sua gravitação, sua gravidade. Crianças almas de crianças Os passarinhos e as borboletas às vezes pousavam no umbigo da grávida Menino Menina o sexo é um pássaro que sonha Linguagem analógica: o erotismo na sombra do bosque, no livro os rostos do menino e da menina. O sexo sonha um pássa- ro que sonha o ninho, lençol de anagramas da mulher-pantera, o poeta admirando a obra que lhe fita, fendida no “olho” e no “órgão singular quando o desejo agita”. O amante admira-se na comunhão de que faz parte. Teu corpo percorro entre os azuis das veias, fadado que sou ao exagero. Teu corpo percorro, sopro profano no umbigo, porto sagrado que Arquimedes tocar não atreveria. Corpo. Teu corpo. Continente de minha geometria.
  • 23. 22 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) O que se passa com os amantes é segredo, mas em Pantera em movimento, 2006, aparece o voyeur no amante que saciado escreve o corpo amado. O artista e seu modelo que Arquimedes não poderia tocar, somente ver se tivesse o espírito travesso de Duchamp e Picasso, ou de Courbet ao pintar a “origem do mun- do” para o colecionador turco Khalil Bey, a gruta de jade, flo- resta antecedida por pilares de alabastro para prevenir os incau- tos em seus segredos e armadilhas. Entrar neste non ultra, até a Idade Média, era provar o memento mori. Ao que era, para Columbus, “doçura de Vênus” e “sede do prazer da mulher”, Aristóteles havia chamado de “nobre coroa”, cantada mais tar- de como “jardim formoso”, para os espanhóis “sorriso vertical”, bem exposto em suas delícias por Picasso com o espectador na obra de traços erotizados, porém voyeur que não vê o que ve- mos como se vê através do orifício da porta hermética de Du- champ, a mulher-herma distendida em sua própria nudez e que segura uma lâmpada que acende e apaga, tendo ao fundo uma paisagem paradisíaca, à maneira dos cenários de teatro, com a cascata da menina mítica que se transforma em fonte caudalosa, logo mulher de carne querida e que atravessa a cidade da memó- ria. Deusa volátil atraída pelas nuvens do prazer esvaiu-se muito cedo. O espaço entre os três versos e o quarto reafirma a cesura da passagem, da passante de Baudelaire em pleno rumor da ave- nida, no frenético alarido, a encantadora parisiense que ele en- controu, bizarro e basbaque em seu olhar. Para Benjamin, amor à última vista na multidão. Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste, tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
  • 24. Jayro Schmidt 23 Voo e chifre Na introdução de Pequeno tratado poético das asas, 1999, diz o autor que os pássaros reais ou míticos “desde a infância têm provocado” o “imaginário poético no percurso de seu voo men- sageiro, pleno de presságios, rumo ao desconhecido que nos governa”. Invejável é esta convicção que faz parte da história, do voo da história que parodia o anjo anunciador. Poemas e pinturas nórdicas estão sob esta mítica figura de apocatástese, de reden- ção. Menciono, apenas, Rilke, Trakl, Kafka e Klee, ressaltando que para Hegel a ave da história é um abutre. Anjos que dizem sobre rupturas cíclicas como nos de Kafka, Benjamin e Klee. O anjo de Kafka aparece em um esboço de conto em Diá- rios, o sonho com um anjo que ao anoitecer entrou pelo teto no quarto, que nele o sonhador passou o dia sem, contudo, pressen- ti-lo. O anjo deveria falar com ele, pensou, mas, aos poucos, não era mais “um anjo de verdade: era apenas uma figura de madei- ra pintada da proa de algum navio, do tipo que costuma ser pen- durada no teto das tavernas de marinheiros”. E o sonho prosse- gue para o mais surpreendente. O sonhador havia arrancado a lâmpada do teto para melhor dar passagem ao anjo e, para não ficar no escuro, acendeu uma vela no punho de sua espada ago- ra servindo de candelabro, ficando “sentado até tarde sob a luz fraca do anjo”. O anjo de Benjamin é uma das teses da história com a lei- tura dialética e messiânica de tradição e modernidade em uma aquarela de Klee, “Angelus novus”, que paira com as asas aber- tas sobre o abismo onde destroços acumulam-se sobre destroços. Diz Benjamin que o anjo gostaria de ficar ali, de costas para o futuro, mas um vento que vem do paraíso o empurra para fren- te, ao devir da história. Esse anjo representa o progresso, é a potencialização de energias do modernismo em oposição à mo- dernização com todas as suas ruínas. A tese de Benjamin desperta camadas mais profundas da história pela mimética das imagens ao “atravessar o ocorrido com a intensidade de um sonho para experienciar o presente como o mundo da vigília ao qual o so- nho se refere”. Proposta utópica com recorrência a Bloch: “Cada
  • 25. 24 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) época sonha a seguinte, mas ao sonhar esforça-se em despertar. Ela carrega em si seu próprio fim”. Na apocatástese da ave em Pequeno tratado poético das asas, tão concisa como de fato é o despertar símbólico – no pescoço o pássaro, no destino a fatalidade – o poeta deu outros nomes a seus membros e projetou entre o pássaro e o voo semas gerado- res de semantemas, que de uma figura do mercúrio seguiu para o animal mítico e terno, o unicórnio. Veja-se, como exemplo, o poema de Abba Saul nas variações de Em forma de chama, 2005, motivado pelo diálogo rabínico, no qual ele conta que foi covei- ro: ao correr ao encalço de uma corça, foi parar dentro do fê- mur de um defunto, de Og, mitificado em montanha, mas sem apanhá-la por não ter encontrado o fim do osso. Sou Abba Saul: onde a corça vai lá estou, perseguindo-a como parafuso faminto No fêmur do morto estacionei, a Corça, não veloz como flecha solteira O osso era o de Og. Dentro dele medula não havia: só o resto de um corno branco. Ognicórnio Na mítica do rabino, o osso foi polido pelo símbolo tal como é o osso branco da poesia nas semelhanças e diferenças das palavras. O unicórnio é a água andrógina que se reparte em luz, o símbolo do “benévolo animal” que somente pode ser capturado se descansar no colo de uma virgem. O enxofre da urina, a pri- ma materia de Paracelso, o incriatum, o que vem de si mesmo. É a si mesmo que se gera com essa forma nada sutil em grave movimento
  • 26. Jayro Schmidt 25 O separatio elementorum da alquimia, a urina do unicórnio curativa. Ur é fogo, a simbólica da doutrina das assinaturas de Paracelso que Hennig Brand estudou com a trasmutação, a na- tureza que se revela por meio de símbolos. Com os poucos co- nhecimentos que tinha de alquimia, Brand constatou que ener- gias químicas estavam em resíduos, incluindo os do corpo huma- no, constatando que na urina estava a transmutação pela evapo- ração, putrefação, fervura, empastamento, fermentação e aque- cimento em uma retorta, na qual a matéria destilava-se brilhan- te, que se inflamava e soltava vapores. Brand, maravilhado com a descoberta, chamou a substância química de “fósforo”, do gre- go phos, luz, de phoros, o que dá. A aura Para a minha surpresa, enquanto garimpava nomes em seus livros, Prade foi encontrado em matrizes onomásticas no poema “Brevíssimo inventário de palavras nervosas”, na secção “Ilumi- nuras” de Além dos símbolos, de 2003. Cavalos de Diomedes, Kostro, Cardeal, polpa, bicicleta, Jarry, espátula, mosca, mousse, água-morta, avatar, zigue- zague, Córsega, agulha, assassinato, corneta, obra-prima, veneno, pálpebra, sanguessuga, leite-moça, proparoxíto- na, esdrúxulo, zangão, urina, feras, pás, escaravelho, bode branco, tique-taque, potranca, fogo, brisa, brita, frieira, espinafre, curto-circuito, incunábulos, vidro moído, lepra, naftalina, Gomorra, tico-tico no fubá, prisão perpétua, vinagre e, naturalmente, pomba-gira. O título do poema, que se refere a inventário por ser docu- mental de escolhas imaginárias com o cognato saber e sabor, ao mesmo tempo diz sobre o desconhecido e o conhecido, o inco- mum e o comum. As escolhas são aleatórias, mas sem que se possa subestimá-las porque há a intencionalidade formada e em formação no ato de escrever. O poeta, ao trabalhar com o aca- so, foi trabalhado por ele. Um poema surge porque de alguma forma já estava feito na vida de cada percepção. O poema pode
  • 27. 26 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) ser uma vivência, mas é, sobretudo, uma experiência. Por con- seguinte, “bicicleta” e “Jarry” não poderiam estar separados, enquanto “mosca” está perto de “ziguezague”, a mosca do poe- ta, seu olho que costuma ter leitura de raio nas folhas da vida e dos livros de sua afeição escrita e figurada. “Agulha”, “assassina- to” e “corneta” correspondem-se, como também “obra-prima” e “veneno”, e assim por diante. No final do poema, o “natural- mente” o conceituou por suas imagens: poeta e poema traduzem um original superior com a logomatria – pomba-gira da poesia. Outros poemas dariam conta de toda estocástica noética pradeana. Além dos símbolos, entretanto, tem a particularidade de situá-la na problemática da aura, começando com o título. O símbolo tradicional é para ser visto e o que nele é visto é a aura, em uma palavra, o cultual. Somente um pensador com suficiente visão dialética, como Benjamin, poderia com tanta propriedade pensar que o advento da vida moderna suplantou duramente o cultual com a mercadoria, identificando-a com a arte. Brilhante ensaísta, Benjamin não visou uma teoria geral da arte, antes fazendo a revisão clarividente de possíveis teorias acerca da volatização intrínseca do novo percebida por Baude- laire, comparando a arte com a moda. É o seu conceito de arte que Benjamin vai considerar como insuficiente ao exigir do ob- jeto artístico o eterno no transitório. Ao imutável juntar-se-ia o relativo “fornecido pela época, pela moda, pela moral, pelas paixões”. O artista, desta maneira, encontraria aquilo que Bau- delaire chamou de modernidade em O pintor da vida moderna. E Benjamin foi mais longe. Ao aclimatar o conceito de moder- nidade na filosofia alemã, que reclamava uma substância eterna da arte, radicalizou-o com a ideia de que o novo, no instante mesmo de seu aparecer, já trazia o seu envelhecimento. A arte poderia ser isso como mercadoria, assim como a moda que com requintes parodiava a morte. Baudelaire não deixou de reivindicar para a arte o estatuto de antiguidade, o mesmo fazendo Benjamin, porém sem os atri- butos de eternidade em função da volatibilidade do novo e da perda da aura. O curioso é que Baudelaire escreveu um peque- no poema em prosa que versa sobre a perda do halo. O perso-
  • 28. Jayro Schmidt 27 nagem, poeta comedor de ambrosia, ao atravessar a avenida, deixa cair o halo. A sua inquietação diante da perda logo se dis- sipa e até lhe dá satisfação por não ter mais que prestar contas de suas atitudes, podendo até praticar atos inconfessáveis, além de favorecer algum poeta canhestro em caso de achar o halo, podendo então ostentá-lo e vangloriar-se. Não se sabe o quanto Baudelaire foi um perfeito ironista, incorrigível na volubilidade com que ora estava ao lado da víti- ma ora ao lado do carrasco. Baudelaire queria a revolução de ambos os lados, “a metafísica do provocador” para Benjamin. Quem sabe, na realidade das ambivalências de sua lírica, Baude- laire estava sendo a expressão das descontinuidades psicofísicas que a emergência da vida urbana imprimia em cada passo, em todos os gestos, fazendo da metrópole o irreversível apelo de escritas, de choques. Foi esta a fundamental cosmovisão de Benjamin ao repor- tar-se às mudanças repentinas provocadas pela vida nas cidades modernas, notadamente em Paris, cuja grandeza formava o tran- sitivo das consciências entre a tradição e a modernidade. Da tra- dição Benjamin ainda percebeu resquícios de aura no aparelho fotográfico, nos daguerreótipos, no congelamento iconográfico, imagens imobilizadas no tempo em lugares fora da cidade, pai- sagens e cemitérios como se fossem intervalos da tradição. Muito desta aura é matéria das concepções contemporâneas de poesia e artes plásticas, experimentada como tradição do novo com meios específicos ou na especificidade de todos os meios, den- tre os quais a palavra. A palavra pradeana não desconhece tais sinapses significa- tivas, sendo, em corte transversal do tempo, duração no que guarda de aura no mundo metamoderno com símbolos épicos, de origem mítica, escatológica no ritual da renovação de criatu- ras sobrenaturais, nas quais a lembrança do humano cultua ani- mais, plantas e objetos mágicos. Lírica limiar O adiamento da entrada dos primeiros livros de Prade foi estratégico. Preferi este recurso para estar descondicionado em
  • 29. 28 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) suas fontes evocativas que, acredito, circunscrevem um dos con- ceitos de linguagem que mais aprecia, os ilimitados sentidos das imagens. As epígrafes tornaram-se, desde o primeiro livro, uma cons- tante com brevíssimas frases mestras, orientadoras de conteúdos e formas inseparáveis na lírica limiar de um jovem poeta: Este interior de serpentes alegres, A lâmina, Sereia e castiçal. Trilogia de nascedouro, segura no que tinha a dizer nas incertezas pes- soais e da época desagregadora, tenebrosa, na qual as reações humanas queriam mudar o mundo com a contracultura existen- cial de Sartre, Camus e Vian. O ser, o nada e a revolta marcaram esta vertente filosófica e literária com o termo adotado por Sartre, existence, para tra- duzir o Dasein de Heidegger, um dos expoentes existenciais ao lado de Nietzsche e Kierkegaard. E assim ele teve os fundamen- tos necessários para definir o existencialismo, que influenciou toda uma geração de artistas e intelectuais do pós-guerra: “A existência precede e governa a essência”. Outras origens se en- contram em Schopenhauer, Dostoiévski e Husserl. Sem que houvesse alguma coisa que determinasse o exis- tente, o homem estava diante de si mesmo, da liberdade de es- colhas subjetivas, construindo sua essência, transitória como o mundo. Destituído de imutabilidade, o homem estava à deriva, no opúsculo do exitir que Sartre explicou em O existencialismo é um humanismo. Se Deus não existe, há pelo menos um ser, no qual a exis- tência precede a essência, um ser que existe antes de po- der ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significa então que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque a princípio é nada. Só depois será, e será tal como a si próprio se fizer.
  • 30. Jayro Schmidt 29 Considera-se que a filosofia existencialista realizou-se com- pletamente na literatura, na responsabilidade da linguagem. O indivíduo, ao conduzir sua realidade, criava a linguagem de suas escolhas. A concretude da vida posta em palavras significava a realidade mesma do sujeito na privacidade de sua vontade, en- quanto o geral não passava de abstrações catastróficas e absur- das. A linguagem deveria redimir o ato problemático de existir a ponto de Heidegger afirmar que “a linguagem fala, não o ho- mem”. Por outro lado, de nada valeu o repúdio de Sartre a Ca- mus quando se desviou da prática política do existencialismo com o primado da prática literária, apta a descondicionar o su- jeito de qualquer ideologia. A Camus não era improvável que o homem fosse estrangeiro de si mesmo e, ao apresentar-se como “artista” ao receber o Nobel, tinha ciência de que a obra é o encontro de “duas ou três imagens simples e grandes para as quais o coração, ao princípio, se abriu”. Estas imagens se encontram em Este interior de serpentes alegres, 1963, com a epígrafe crucial de Camus: “Basta mover a língua para que as trevas invadam tudo e os seres me repugnem”. Surpreende a força com que, aos vinte e um anos, Prade mani- festa a poética descontente, de consciência ampliada do pastoril ao urbano, moldando-se com a linguagem lírica, instintiva, a parte obscura que poderia ser objetada no contexto daquela épo- ca que não queria ver no onírico o meio mais crítico da cultura. Um engano interpretativo, o mesmo que levou Jorge de Lima, Murilo Mendes e Ismael Nery ao esquecimento. Interpretações à parte, Prade integra uma geração catarinen- se de poetas que têm o caráter extraordinário do contemporâ- neo junto com C. Ronald, Lindolf Bell e Érico Max Müller. Pra- de e C. Ronald não participaram da Catequese Poética, mas os motivos não importam: o fato é que eles não foram menos ur- gentes no sentimento do mundo, no que faz a poesia ser poesia – a lembrança do que devemos ser por resistência utópica. Quais as imagens do poeta, jovem encanecido? O mundo é um carbono, as emoções ficam estranhas, não existem promes- sas. Não há retorno, o poeta está condenado a ser livre, daí a angústia e a comédia. Fica a emoção da corda e do pescoço.
  • 31. 30 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) Entre o imprevisto e o ousado nascendo dos gestos Conservo o ritmo de ouro destas veias incertas. O suicídio é simbólico, a poesia não tem idade, a morte perdura para rejuvenescer a palavra. Ah, noturno, haverei de batizar com sangue a alegria de amar o desconhecido no mundo, porque somente assim serei feliz como Calígula na serenidade triste do impossível. A gula de se formar sem se conformar. Fome de mundo, ternura da sobrevivência, do respirar. O homem quer ser pássa- ro, criança do futuro. Todas as manhãs findam e a poesia não se completa no escrever, que é redescoberta. No jovem poeta está o ancião. No mesmo ano de Este interior de serpentes alegres, 1963, A lâmina deu continuidade às inquietações existenciais aclima- tadas nas antinomias da procura e do encontro de linguagens. Dos versos o poeta passou ao poema em prosa indagativa e com forte acento narrativo, retomado na década seguinte com a fic- ção. Uma lâmina de perguntas sobre a verdade do humano ou da animalidade perdida. O que mais importa, o “essencial”, é que no mundo “as coisas tenham existência, mesmo absurda”. O animal parece saber da força que habita o homem, que quer sair de si, estar em outro lugar, natural como a infância, a imagina- ção, a corrente sanguínea. O poeta, em expectativas ansiosas, aspira o incessante, o movimento da vida. Tudo o que é estático me desagrada. Tudo o que é imóvel me dá náuseas. É a outra natureza, a do panteísmo, que poderá livrar o humano da moral, a doença da manada humana. Ferir para co- nhecer e simbolizar para crer, ainda que a queda seja o mundo e o vazio permaneça.
  • 32. Jayro Schmidt 31 O vazio permanece no homem como água transparente. O vazio permanece no homem como sangue sujo. O que poderás criar na infância de teu corpo e voz? Não sei. Deves ser raiz e flor ao mesmo tempo. Deves crer em ti, no teu núcleo, no teu nó, na tua força. O que poderá ser criado é aquilo que se é. O conhecer é um acreditar com o esquecimento das nuvens, o humano cruamen- te lançado na imanência. Depois do convulsivo A lâmina, as erosões emocionais cris- talizaram-se em Sereia e castiçal, 1964. Ao tom elegíaco sobre- veio o tom idílico, apaziguador com a convicção de que a poe- sia é a infância reencontrada como se lê na epígrafe geral do li- vro, de Baudelaire: La poésie c’est l’enfance retrouvée. A origi- nalidade dos poetas modernos estava na infância da palavra, as águas de ma soeur, o nome da poesia. O nome de todo poeta adolescente ingressando na maturi- dade do poema, que se dirige finalmente ao outro, nele refleti- do, o nome de uma moça violeta, Arminda. Ao ter procurado uma filosofia, encontrou a rosa de sangue, a palavra que fermen- ta, a carne radiante da amada mulher-bengala, mulher-libélula, mulher-sereia. O amante cresce em ilha, carne de espumas, sar- gaços, vogais da cultura que criou. Sou caçador e fera nesta corrida louca para o domínio do mundo. Do vasto e largo mundo que abre um abismo na dor e outro na flor. Na trilogia inicial estava o poeta futuro, constante de epí- grafes e de alusões que formam seu firmamento espiritual. Não é à toa que a triangulação encerra com Cruz e Sousa, o poeta da existência simbólica, com o “bordão clemente”, o sonho, crian- do-se como um original. Sei que no teu interior de neve o segredo da abertura do infinito mostra-se puro como o símbolo.
  • 33. 32 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) A admiração de símbolos por Prade foi precoce, daí Cruz e Sousa e o sentimento que o desterrense transformou em “hóstia de ouro”. Fogo e faróis Sem forçar a simbologia e a fenomenologia do fogo, os poemas de Nos limites do fogo, 1976, têm a elevação da chama, que é cônica, piramidal, figura de simetria do pensamento, que irrompe de um ponto interior e evola. Esta simetria não é alheia à estrutura poemática no referido livro de Prade, caracterizado pelo fluxo de consciência em fragmentos portais aos demais poe- mas. Um poema evocativo e narrativo, “O escorpião sonolento”, com mínimas pontuações e alinhado em ambas as margens, se- quenciais, mas guardando autonomia em cada um dos frag- mentos que podem ter leituras isoladas e alternadas. São vinte fragmentos infinitivos e que por velaturas despertam outros poe- mas no monólogo da leitura. Nos limites do fogo tem a densidade de imagens em atritos, fagulhas, crepitações de matérias em formação e na primeira pessoa fáustica que se recusa, diante do mar, explorar sua ener- gia armazenada desde o tempo original, visto da colina com Mefistófeles, o cavaleiro e o réptil traidores. Um herói que des- confia da perda de sangue em nome do tentador que quer levá- lo à exploração da natureza no canteiro de obras, da matéria que para ele é livre na contemplação e no estudo do fogo e da água do casal originário, antes do tempo da usura, da alienação hu- mana. Nos limites do fogo é a invenção da eletricidade poética, mas o destruidor está à espreita, sedento, frente ao mar – a “pla- centária lembrança” do lugar ameno, imemorial, que não deve ser tocado. Não me convence o sangue que perdi em teu nome, Mefistófeles. Cruzamos o limiar do gesto cruel,
  • 34. Jayro Schmidt 33 oh treva inconsútil que me devora. Repousa logo os crespos cabelos, tu, sábio, luminoso pecado que incendeia as veias do morto. Entre Nos limites do fogo e Os faróis invisíveis, 1980, há uma proximidade acerca da disposição visual do poema, em si e na página, radicalizada na forma de um sinete, de um lacre, de um ícone de palavras que indicam tanto as estimativas visuais do poema como a familiaridade do autor com pinturas que sedimen- tam os poemas no campo expandido da arte, ou seja: o desenho da página com o desenho das frases, entre e nos quais os espa- ços em branco fazem o mesmo que fazem as formas supremas de Malevitch, em amplas superfícies brancas, por onde o olhar ga- nha força transformadora. Não são as representações figuradas na inventividade de Prade que impedem as recepções espontâ- neas das apresentações abstratas, cujos equivalentes verbais são as ideias ou conceitos. Em “limites do fogo” e “faróis invisíveis” as notações res- peitam estes cortes e recortes como se os poemas fossem som- bras chinesas que oscilaram em Os faróis invisíveis para o assi- nalado por Claudio Willer, a transgressão tal como foi formula- da por Bataille e, com o prazer da linguagem, por Barthes. O prazer é perverso pela própria natureza de seus impulsos e o tex- to o prazer da escritura. A transgressão é a da linguagem ao di- zer-se, e transgressão de linguagens imobilizadas pelo o ter que dizer sobre alguma coisa. Dentre os comentadores da obra de Prade, a abordagem de Willer é praticamente isolada ao concentrar-se na questão da lin- guagem, em signos de signos, poemas sobre a linguagem sem, entretanto, o sacrifício do factível numa circularidade apontada por ele, a tautologia de Octavio Paz e, digo, dos lógicos de Vie- na, que elaboraram um sistema que tem como premissa a reto- mada da proposição que vai do simples ao mais complexo, man- tendo-a em constante ebulição. Tudo é tautologia, exceto as cons- tatações sensoriais.
  • 35. 34 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) Willer detecta a autenticidade da poesia neste “círculo vi- cioso”, o da palavra que se volta sobre si mesma, sem que haja uma exterioridade comandando-a, somente “o puro jogo de pa- lavras, o lúdico, o prazer”. A perversão da linguagem que balda poderes da linguagem em O prazer do texto, de Barthes. A Lei, a Doxa, a Ciência não querem compreender que a perversão, muito simplesmente, torna feliz; ou então, mais precisamente, produz um mais: torno-me mais sen- sível, mais perceptivo, mais loquaz, distraio-me mais etc., e neste mais vem situar-se a diferença (e a partir daí o Texto da vida, a vida como texto). De nada adianta amarrar a poesia em uma corrente ou su- percorrente, sujeitando-a a ser o que não é, ou pouco que é, ni- velando-a no sincrônico, que não pode levar em conta o que nela não é vicário, submisso. Um ciclo poemático é demolidor em relação a antecedentes, somente isso, a liberdade barroca em contraparte ao comedimento renascentista ou, mais próximo de nós, os paraísos artificiais de Baudelaire que nas seguintes gera- ções seriam realismo, a realidade mesma de Rimbaud. O que pode ser suposto como revolução moderna da poesia, e da arte em geral, se deu mais por diacronia e por devir do presente com o reconhecimento de que “o desconhecido reclama novas for- mas”. Insisto na ideia de que temas permanecem, são retomados em suas universalidades, porém com outras estruturas de lingua- gem, outros motivos. Bashô aconselhava seus discípulos de poe- sia a não seguir os antigos, mas procurar o que eles procuraram. O corpo desconhece a superfície nas esferas limitadas pela dor Não é o pássaro zangado a versátil criatura Nem balão veloz suprido pelo canto
  • 36. Jayro Schmidt 35 E anjo não se presta a voo tão luminoso O corpo desconhece a cor porque o brilho apodrece o manto O poema de dois poemas em Os faróis invisíveis, o primei- ro elíptico, com a transposição dos significados do corpo. A re- petição dos signos, que não se confunde com a redundância, desloca-os com corpo e corpo ainda ao ser movido da superfí- cie para a cor, da dor para o manto. No segundo poema – en- tremeado e deslocado à direita para o silêncio da página unindo as duas partes do primeiro, espelhados, duplicados – a sequên- cia dos dísticos com uma única imagem transvalorou-se do pás- saro ao balão e deste ao anjo. O significado deste poema é ele mesmo sem deixar de ser a linguagem do mundo. Enquadrá-lo em um determinado ponto de vista, estético ou não, reduz seu alcance, diminui a sua força. É o poema que ilumina quem dele se ocupa: indica por onde deve seguir a leitura. Ler, comentar um poema, é receber sem reservas o que ele exprime. De nada adiantam princípios prees- tabelecidos, sobretudo os da evolução. Um poema ou um con- junto de poemas pode ser evolutivo, mas o seu prazo não tem a duração e a multiplicidade das reações, das rupturas. Não é pos- sível manter fidelidade por muito tempo a algum sistema a par- tir do momento em que se escreve. O escrito não se deixa mo- delar, é ele que modela o provável – ato crítico de linguagens ao deslocar-se do que sabe para o que não sabe. É preferível o de- sabrigo da formação que o abrigo do formado. O escritor, este é o seu fantasma, disponibiliza o caos, de onde tudo pode vir a ter forma, imagem. Em Pequena estética, Max Bense explicou o caos como “fonte real, um repertório real de possíveis inovações no sentido de criações”. Até mesmo a filosofia comprometeu-se com o caógeno da inventividade, buscando no processo artísti- co respostas para as indagações filosóficas. Duradouras são es- tas “propriedades da linguagem” sem perder a atualidade, o móbile de Valéry que revela como os objetos artísticos são fei- tos na distinção de motivo e tema. O motivo do poema pensa a
  • 37. 36 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) linguagem que, dependendo da embocadura, causa a sensação de que foi o poema que pensou o poeta. Coisa de palavra As obras de Prade são factíveis nas visões mitopoéticas. Pela densidade, geralmente atraem interpretações do tema com o sa- crifício do motivo da linguagem, o da poesia que está nas coisas e transformadas em palavras. Importa a factibilidade, mais ain- da as relações de significados e significantes no escrito que se vale da suprarrealidade por reconhecer que no arbitrário há uma or- dem na formação da matéria. Todorov, em Poética da prosa, ad- verte que se há um ritmo regular nos eventos do mundo “é por- que esse ritmo vem de outro lugar”, da harmonia cósmica de Khlebnikov, relacionando-a com as “consoantes iniciais” e com os “nomes elementares”. Khlebnikov: “Os corpos elementares da língua – os sons do alfabeto – são os nomes das diversas formas de espaço, a enumeração dos casos de sua vida”. Mallarmé di- zia que os prefixos são as virtudes dos nomes, a arquilíngua das semioses poéticas. Neste sentido, a coisa posta na palavra tem densidade semantológica em Prade, na qual cabe, inclusive, a leitura de iconografias pictóricas. Em Jaula amorosa, 1995, há esta paratática verbal das ima- gens de pintores que fizeram o mesmo em contextos diferentes, porém sob os imperativos da linguagem como se lê na alusão a van Gogh nos sonetos de “O jardim das asas multiplicadas”. “Saint-Rémy” é o poema, cidade da França, região em que nasceu Nostradamus, de ciprestes e noites estreladas que o ho- landês pintou com o chi’yun, a expressão do vívido nos cânones da pintura oriental formulados por Hieh Ho. O chi’yun é a vida na estrutura do traço, chamado então de “osso” e que, na pin- tura de van Gogh, se dava por golpes caligráficos, vibrações na- quela cidade e antes, em Arles, “a arlesiana à margem do livro” no soneto de Prade, Madame Ginoux com o cotovelo na beira da mesa redonda com livros, um fechado e outro aberto, a mão esquerda apoiando o rosto com o olhar já sem fundo com que retratou, no mesmo período, a berceuse Augustine Roulin posan- do e segurando uma corda para embalar o filho recém-nascido,
  • 38. Jayro Schmidt 37 berço que fez van Gogh pensar na árdua labuta de pescadores embalados pelas ondas. A temporada do pintor em Saint-Rémy foi breve e exclusivamente para ser “tratado” como artista, ten- do, além de seu quarto, um compartimento para pintar e pintou, antes engolindo a pintura, ou melhor, a tinta a óleo saturada de chumbo, um suicídio simbólico conforme seu médico. Van Gogh já havia aceitado a condição de louco, transfomado em perigo para si e para os demais depois do episódio da orelha cortada. Impressiona as aquarelas que fez no sanatório de Saint-Rémy, um mosteiro medieval, do início do corredor e de sua extensão com corredores laterais e a saída para o pátio, onde desenhou o poço do jardim e encontrou a borboleta caveira, esboçando-a em car- ta e descrevendo-a ao irmão. Dela quis fazer uma pintura, mas para tanto teria que matá-la e isso ele não podia fazer. Dos mu- ros do jardim foi pelas imediações com a “locomotiva de pintar”, quando teve outro distúrbio auditivo e visual, do qual se recu- perou com doses acentuadas de remédios à base de ópio, em seguida indo para Auvers-sur-Oise conhecer Gachet, retratando- o “com o olhar triste” daquela época em duas pinturas – estu- dos da loucura, ambas com o ramo da dedaleira, provedora de digitalis, digitalina, componente do sábio absinto. Simbólico, andaluz, ibérico De um modo geral, poetas publicam coletâneas, escritos de gavetas. Por mais cuidadas que sejam, e são quando prevalece a analogia de linguagem, parecem-se com um nó que ao ser feito perdeu a corda. Não é o caso de Prade, escritor de envergadura suficiente para fazer com que cada uma de suas obras seja um organismo vivo, pensado no corpo inteiro e suas pegadas. Co- menta Fábio Brüggemann que a poesia brasileira atual se ressente desta qualidade, a do projeto, da construção, concluindo que não “estamos diante de um autor de antologias, que publica poemas feitos aqui e ali. Ele apresenta livros de poemas que têm unida- de, não apenas temática, mas também estrutural”. O programático, em Prade, é de infinita importância e isso depende das escolhas que tem feito ao longo de tantos anos, es- tritamente pessoais, mas sem render-se ao solipsismo. Nos ter-
  • 39. 38 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) mos desta premissa, o poeta torna-se cada vez mais ciente de que a excelência de uma peça literária está no máximo desafio escri- tural: um poema é feito com o que não deve ser dito, a “frase no pulso” de que falou Cruz e Sousa em sua solidão povoada de símbolos. O não dizer está intimamente presente no ato problemáti- co da escrita, por si mesmo crítico ao forçar a linguagem a sair do hábito, do estereótipo. E como a linguagem é a depuração do que surge com o que é feito, a literatura é colocada nos ângulos de suas exigências volitivas e cognitivas, sendo, por algum tem- po, metalinguagem. O conjunto das escolhas deliberadas de Prade tem esse mé- rito maior: trabalho de linguagem em repercussões de lingua- gens, levando-o, inevitavelmente, a escrever um livro repositó- rio, híbrido, cambiante em suas formas, Além dos símbolos, suma de escrituras, livro álgido, emblemático. O livro Além dos símbolos, 2003, é um composto de dez partes, mantendo entre as mesmas a semelhança e a diferença. “Verônica sem rosto”, “Capela de ossos”, “Caleidoscópio”, “Ovários de princesa” e “Confabulatores nocturni” são as que se correspondem por variações mais de ordem temática, verificá- veis em livros anteriores e posteriores. “Túnel perverso”, “Ilu- minuras”, “Asa delta”, “Entre as folhagens” e “Visões do jardi- neiro” são as partes diferenciais, inclusive entre si, tanto no tema como na forma: sonetos, poemas em prosa, apotegmas e haicais. O leque da diferença formal e não costumeira na poética de Prade, porém com lampejos em toda a sua obra, demonstra a completude de seu labor exigente, mas sem que isso pese no re- sultado final. A impressão que fica é a da palavra que já estava ali polida pelo tempo. Nos sonetos (“Túnel perverso”), a construção do aparato fechado em quatorze versos desmobiliza-o com a ausência pro- posital da rima. Os pontos do poema ficam ocultos, como devem ficar para que os contrapontos, ideia e imagem, saiam pelas bor- das do escrito. Nem só de peixes move-se o aquário. Habita-lhe o Azul ou então o Verde
  • 40. Jayro Schmidt 39 quando o pássaro ridente supera-se da terra com soberbas asas caladas. O aquário também sem susto convive com a cor em movimento de piratas entre ondas e outras ondas e ondas ao mar conferindo um tom mais claro. E se no aquário fogo alto houvesse, água alguma porventura dentro dele, como fazer para outro nome dar-lhe? Seria sempre enfim o mesmo aquário refletido neste traço dos desenhos de outra água como a luz do pranto. Quem conhece poesia sabe o que acabei de comentar. So- neto assim é porque, ao verter-se em direção de seu centro, ex- pande-se em todas as direções. Soneto com esta têmpera, com palavras que mostram a superfície e a profundidade, somente foram escritos por grandes mestres como Rilke, “Torso arcaico de Apolo”, e como Jorge de Lima em “Invenção de Orfeu”. Nos poemas em prosa (“Iluminuras” e “Visões do jardinei- ro”), a meticulosidade dos ofícios de ornar uma página com pe- quenos desenhos e semear retinas tem a simplicidade de quem passa a vida estudando o que são e o que as coisas fazem. As coisas são aquilo que fazem: a andorinha o voo, o cálamo a gra- fia... Truísmos e sinopias de uma sensibilidade ontológica. Com o cálamo, sem tremores, urdi iluminuras na Babilô- nia. Tordos, pavões e cabeças de outras aves desenhei nas folhas de ouro. E mais o azul do lápis-lazúli. Mesmo as- sim não se abriram as portas do mistério. Nos apotegmas (“Asa delta”), a brevidade das frases descon- trai as metáforas universais de signações: mundo e ombro vaza- dos de anamorfias. Apotegmas que encerram crítica lição de coi- sas.
  • 41. 40 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) América, América O ovo de Colombo caiu e quebrou Nos haicais (“Entre as folhagens”), as palavras passam por dentro de palavras, o kaketotoba, com o ícone que situa o cos- mos imutável, seguido da ocorrência, o mutável, para o desfe- cho do caminho seguido pelo poema. Uma ilha de três versos nos traços de nanquim que destraçam o mundo árido, o não saber atuar, em modalidades. Com o fu, vento e elegância; com o wabi, simplicidade e equilíbrio; com o yugen, mistério e escuridão; com o shibumi, pungente e severo; com o hosomi, exíguo e agu- do; com o miyabi, graça e harmonia; com o sabi, pátina e tem- po; com o karumi, leve e límpido; com o mu-ga e mu-i, não-eu e não-fazer. Outras lições da longevidade na brevidade, a perma- nência na passagem. Signos andantes: as águas saltam para sete nuvens. Por falar em brevidade e longevidade, Ciranda andaluz, 2003, “viagem singular” em Espanha nas palavras do autor – com a ciranda do canto fundo dos ciganos. O livro, breve, diz muito na “publicação solteira” e não “encartado em um livro maior”, diz o autor, com a expectativa de encontrar empatia. Sou esse encontro na viagem que levou Prade a Lorca em giros de pressentimentos. Não posso deixar de citar o afetivo do viajante com a transcrição, que tem o dom de guiar quem se ocupa de um texto e seus motivos. Cada viagem é uma viagem singular, pessoalíssima, in- transferível, ainda que maravilhosa seja a companhia. Tantas viagens fiz por esse mundo afora, mas a maior parte delas caiu no esquecimento. Contudo, algumas há que não saem da memória, tamanho o deslumbramento emergido já no primeiro impacto. Foi o que ocorreu na belíssima região espanhola da Andaluzia. Eu a percorri
  • 42. Jayro Schmidt 41 toda, sem cansaço aparente, durante um tempo de retiro espiritual, em um mês de janeiro, encantado pelas paisa- gens, arquitetura e pessoas. Todavia, supondo-me poeta, e tendo por Federico García Lorca especial predileção (considerando-o um verdadeiro cânone), não pude resistir e fui até Fuente Vaqueros. Lá, no pequeno povoado, estive na casa (ou no que restou dela, imagino) em que nasceu esse extraordinário expoente da literatura universal, atraído, entre outros objetos, pelo berço dele balançado na infância pelos seus pais e fami- liares. O poeta, no recinto singelo e com o passado de um meni- no no berço da luz, comovido escreveu “de ouvido” o poema que seria, na mesma corrente de comoção consciencial, a centelha magistral dos demais poemas que compõem Ciranda andaluz. O visto naqueles instantes mobilizou o tempo vivido de Lorca ao longo de terras espanholas no carroção teatral, moção de músi- ca, sons entreouvidos do embalar para o berço distinto do “fa- zer poético” de Prade. Além da evocação de Lorca – que pressentiu a guerra civil ao ver uma vara de porcos devorando carneiros no pátio de uma casa abandonada – e o ritmo do berço já ciranda, o que é o mais decisivo nesta distinção poética é exatamente o frontispício do poeta moderno em viagens ao desconhecido que exigem novas formas em direção do conhecimento. O poeta, no estranho, en- controu a canção infantil, as águas europeias que Rimbaud re- cordou nos crepúsculos da manhã e da tarde de seu barco. O berço estava ali para o ouvido do poeta comovido com “as ausências de uma criança” nas presenças de suas andanças no fio de versos e de cenários, para os quais as variações imprimi- ram nos objetos – berço, lanterna, guitarra, piano e espelho – o futuro de seu pretérito. Velho berço de seda encarnada sob o leque de sombras balança as ausências de uma criança que em Fuentevaqueros nasceu.
  • 43. 42 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) Em sua cabeça coroada colheu ciprestes, ouro e poesia. Ramo de oliveira em Andaluzia para quem é pássaro e poeta. Sob o berço uma lanterna que de puro cobre é feita servirá para a colheita de muito amor e suspiros. E se perto da cisterna houver laranjas caídas recolha suas cascas feridas para a melhor sobremesa. Sobre a mesa vejo cordas de sua primeira guitarra onde todo som amarra as rimas ciganas do pranto. E no rural piano bordas como arqueiro de flechas leves um belo manto de neves para o amante do unicórnio. Com este trigo ao vento reze por teu “Cristo moreno”. Ah! Apenas num vaso pequeno guarda teu suor perfumado. E guardará tudo, lamento, como se guardasse somente o veneno de uma serpente num frasco de algodão doce. Palavras como jarra e medusa, Guadalquivir, rã ou punhal, tarântula de um faquir fatal que é trânsfuga e jardineiro.
  • 44. Jayro Schmidt 43 Agora sim vejo no espelho palavras tão bem escolhidas que as mantenho colhidas no Cante Jondo do fogo-fátuo. A obra de Lorca vem do cante jondo, canto fundo, a forma primitiva do flamenco que arrebatou Prade e colocou-o na roda exposta da canção, no moer o grão da palavra. Um lamento grave atenuado pela infância da voz, de procedência oriental corren- do nas veias espanholas, em sonoridades de adivinhações que já aconteceram ou vão acontecer. No cata-vento equestre havia Muçulmana e breve inscrição: Calet el Bedeci Aben Habuz Quidt ahahet Lindabuz. Legendas, legados arábes: “Diz o sábio Aben Habuz/que assim se defende o Andaluz”. Guitarra de improvisos e avisos, cuja origem se encontra na certeira nominação de Baltasar Gracián, o engenho e a agudeza associados ao cultismo, isto é, exprimir cultamente sus concep- tos. Culto é um latinismo, o ornamento da oração. A palavra aguda exprime o engenho conceptivo de quem escreve, o gon- gorismo e a passagem do maneirismo ao barroco espanhol por regularidades e irregularidades conciliadas de pomba e punhal. O barroco fez da imagística a dialogia através da escrita, ou do pintado como se observa em Salvador Rosa, pintor, músico e ator napolitano influenciado pelo espanhol Jusepe Ribera. Rosa cultuava legendas latinas: o melhor é ficar calado quando não se tem a dizer algo melhor que o silêncio. O dito, avt tace avt lo- qvere meliora silentio, está estampado na placa que o pintor se- gura, autorretrato de 1640, no qual ele aparece inquirindo, no primeiro plano da pintura, o espectador. Seu olhar é desdenho- so, insatisfeito, porém ele quer ser visto na agudeza de seu en- genho encenado à frente de nuvens não tão sombrias como ele. Os silêncios dizem o que deve ser dito, sonoridade em ci- randa, moenda da linguagem.
  • 45. 44 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) Peço perdão, oh Maria, Por assim ter nascido. Uma cabeça bastaria para ser dragão querido. Também a José peço perdão por essa grande desgraça. Ah! se pudesse ter a graça do anjo sobre um portão. Peço perdão a Picasso que desenha sob medida qualquer cabeça perdida e faz o que eu não faço. Também a Lorca peço perdão pelo desenho tão engraçado em que o rabo desarrumado parece cauda de escorpião. Caminhos de Espanha nas rimas toantes, as mesmas de ou- tro poeta brasileiro, João Cabral de Melo Neto, no diálogo com o ferrageiro de Carmona. As palavras fundidas não têm a toação da marreta e da bigorna, somente as forjadas, cabralinas, vistas na Giralda, pradeanas no dragãozinho, o corpo a corpo com o domar. Nomes e desenhos forjados são como luta no poema de João Cabral. Forjar: domar o ferro à força, não até uma flor já sabida, mas ao que pode até ser a flor se flor parece a quem o diga. Ao nomear o que lhe parece o desenho infantil de Lorca, Prade nomeia-se feliz Murillo, feliz Miró. Eu sou feliz prisioneiro por que tenho por companheiro
  • 46. Jayro Schmidt 45 um livro de poesia fruto desta fantasia? Prade sempre escreveu poemas de viagem, em desvelos de quem se deixa tocar pelo intocável, pela alma secreta das coisas. Tríplice viagem ao interior da bota, 2007, como Ciranda anda- luz, é a temporada anímica que por afeição estética e erudita reencena outras cidades das mesmas cidades que visitou com a filha Priscila, testemunha de “fatos propiciatórios” dos poemas, companheira de viagem à bota, a Península Itálica com os medi- terrâneos familiares do poeta, meridianos dos poemas. Poemas de introvisões, escritos em tom de cartas, cujos se- gredos somente podem ser confiados a uma pessoa ou a poucas. Talvez por isso o autor tenha dito que os poemas poderão ser esquecidos, “fadados ao esquecimento”. Cartas podem ser esque- cidas porque guardadas, segredadas no sodalício em páginas que dizem que a vida não é breve na brevidade dos fatos que apro- ximaram pessoas e as afastaram para outras comunhões e memó- rias. Com muito sabor são lidas as cartas de quem se conheceu pela sorte de um instante, que chegam como se fossem gatos com as marcas do que são e do que fizeram. Sêneca, que viveu em Roma, escrevia a Lucílio, supostamente seu discípulo. Escreves-me com frequência, o que me é grato, pois assim te mostras a mim pelo único meio de que dispões. De cada vez que chega carta tua, hei-nos de imediato juntos. Se ficamos felizes por possuir os retratos dos nossos amigos ausentes... quanto mais não nos alegra uma carta, pois traz vivas marcas do ausente, o cunho autêntico de sua pessoa. O traço de uma mão amiga, impresso nas páginas, proporciona o que há de mais doce na presença: reconhe- cer. Os poemas de Tríplice viagem ao interior da bota têm este cunho e o reconhecimento do que foi habitando o poeta com as escritas memoráveis de Roma (muralhas, Capela Sistina, Miche- langelo, Juízo Final, Mariano Fortuny, Aloysius Bertrand, Fabri-
  • 47. 46 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) zio Montecchio); de Veneza (gôndolas, pombas, mendigos, más- caras, Palazzo Ducale, escultor); de Florença (carrossel, Piazza Duomo, moedas, Sandro Botticelli, Davi, Golias, Niccollo Ma- chiaveli, Leonardo da Vinci, Ghiberti, Porta do Paraíso). Cartas, que pelo instante consagrado do olhar, vivificam os “fatos” que Priscila testemunhou no frescor de sua idade, a primeira leitora da bota itálica reatualizada. À multipla viagem, de prazer estético em obras e em ocor- rências, Prade acrescentou outro prazer ao se reportar aos mo- mentos que propiciaram os poemas, descritos nas “informações necessárias”, os submersos que enriquecem a leitura, o estudo. Além do rol de lugares e obras, Prade anotou as peripécias de fatos inofensivos, porém determinantes na genética dos escritos, alguns indiferentes ao seu toque e em contraste com o magne- tismo do poeta, serpente e ave. Menciono, apenas, o poema das visitas de um escultor veneziano com presentes, “Delicadeza”. Um escultor, desses de maior hierarquia, dupla visita ao quarto me fez. Na primeira, sobre a cama deixou três pássaros de ouro. Na segunda, uma criança nua e de sangue azul. A um escultor, veneziano, nada se recusa. Nem mesmo pássaros de ouro ou criança azul à noite e pela manhã.
  • 48. Jayro Schmidt 47 O poeta recordou o episódio, pois das peças se desfez ao passar pela Ponte dos Prisioneiros, sem suspiros mas com remor- so. Presentes são irrecusáveis, até de inimigos. Irrecusáveis tam- bém são os exercícios de desfazer-se de alguma coisa. Hermenêutica e iconografia A imagem que tenho da poética de Prade, dependendo das circunstâncias, ou é a da flecha ou a do alvo. Muito do que ele viu está em suas viagens em países europeus e em orientes ima- ginados, o poeta inscrito em focos poéticos para os quais o livro, sagrado e mágico, reenvia sua mente a origens miméticas e aní- micas. E nesta absoluta capacidade de impregnar e ser impreg- nado por mônadas e escatologias preciosas de outras idades, ele deixa de ser histórico e se torna contemporâneo de origens, de originais. Não que a história atual e relativamente retrospectiva não tenha importância para ele, como de fato tem, mas é a an- cestralidade em portadores escritos e visualizados que o toca por hermenêutica e iconografia, fatores imprescindíveis para a ela- boração de sua poesia e ficção. A hermenêutica de textos sim- bólicos associados a ícones, que fascinam o poeta, comprome- te-se com a linguagem ao aspirar e sorver o poema no interpre- tar, cuja compreensão é a da palavra como foi dita e da imagem como foi vista no dizer e no ver outra vez com o haurir, que além de aspirar e sorver tem o sentido de esgotar. Não propriamente a fonte, mas quem dela se beneficia para dar lugar, duração, ao outro. Nos recuos exegéticos, o poeta chega à extremidade de suas forças para dizer pela primeira vez. A mitologia, nas genéticas das obras, tem um papel prepon- derante de iniciação e estímulo noético, sem que se saiba se es- tamos lendo o tempo em que as palavras se formaram ou se as palavras estão nos formando. Assim, por osmose do escrito e do lido, conhecemos e reconhecemos entidades sobrenaturais, oci- dentais e orientais, todas por sopros mitomágicos. Uma expe- riência real do surgimento de cultos imbuídos de retorno às ori- gens como nos xamânicos, em animismo de sons míticos porque há o conhecimento do ritual que foi levado a efeito pela primei- ra vez. Então, no canto xamânico, ouve-se a reiteração ritualís- tica, o ensejo mágico da origem.
  • 49. 48 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) Mito é palavra, mythos, encarnação simbólica de forças da natureza em seu passado remoto, do qual desperta o futuro. O que vai acontecer, nesta tradição evocativa, já aconteceu – a rede invisível da memória que em parte é a pré-história de cada pes- soa e de culturas, o tronco arcaico ou o inconsciente coletivo de que falam os especialistas. O mito é circular. Dentre os livros hermenêuticos e iconográficos de Prade, os mais característicos em poesia são Pequeno tratado poético das asas, Em forma de chama e Labirintos. São obras que tratam de palavras e de imagens em suas origens míticas, nos instantes de seus aparecimentos reverberados nas elaborações do poeta. Foi no escrito ancestral atualizado, com os respectivos íco- nes, que abordei Prade com a asa, com a chama e, agora, com os arcanos do Tarô em Labirintos, 2008, obra especificamente de extrato icônico-hermenêutico que seduz o iniciado e o leigo com suas figuras do ocultismo. Para tanto, esboço algumas biblio- mancias dos poemas, levando em conta o texto de abertura e a interpretação numérica do posfácio. Toda a hermenêutica em Labirintos não é uma finalidade, antes um meio de escritura, de estar na e com a linguagem. Sen- do um através ou mediação, o ato da escritura reveste-se de ex- pectativa exegética e heurística com o encontro de logomatrias, as palavras ditas pela primeira vez. Esta não é somente uma fa- culdade do livro em questão, convite para o ingresso na matu- ração do autor já maturado desde os livros precursores. Foi por isso que mencionei o livro dos livros de Prade, a palavra das palavras curadas na perspectiva curiosa de que o semelhante atrai o semelhante para que a diferença imprima sua marca inaugu- ral. Mas, é em Labirintos, pela rotação noética, que o dizer pela primeira vez tem os arcanos maiores da probabilidade. Longa é a viagem em busca do destino. A plenitude da palavra está nas vibrações de um círculo perfeito com a sensação de que não está em nenhum lugar e em toda parte. Então o poeta não pode olvidar que nele costurou-
  • 50. Jayro Schmidt 49 se “ambígua sombra”. É o poeta que cria seu destino e dele ten- ta escapar ao escrever o poema. Ao regressar trarei pela mão gigante um deus que se chama menino. Os números do labirinto estão lançados. O tudo e o nada, o começo e o fim. Números circulares na definição do posfácio, “Labirinto poético do Tarô pradeano”, assinado por Onor Cam- pos Filomeno. Depois de investigar cada um dos poemas de Labirintos com irrompimentos de cunho etimológico, Onor Campos Filomeno chegou a classificar todas as recorrências verbais que interme- diam os poemas, além de traçar o próprio círculo de suas apari- ções numeradas para que se tenha a teia de seus instantes, as palavras-aranhas na agudeza dos poemas, cada um deles nas teias dos arcanos. O círculo me fez lembrar, na icologia dos saberes ocidentais, do homem vitruviano de Leonardo da Vinci, incluí- do em suas experimentações da proporção, que teve expressão máxima com a teoria da visão das pirâmides baseada na célebre lei áurea, que estabelece a relação ideal entre duas grandezas, constatação arquitetônica de Vitruvius que o frade bolonhês Luca Pacioli retomou e publicou em 1509. O círculo de Leonardo com as imanências de utilitas (utili- dade), venustas (beleza), e firmitas (solidez) foi implodido por El Greco, praticamente uma revolução copernicana na pintura, na qual não há mais um centro predominante, ptolomaico, mas vários. A intuição de El Greco, sendo um visionário religioso, superou a perspectiva de ponto de fuga central renascentista com a perspectiva vivida dos barrocos e românticos, francamente conceituada na pintura de Cézanne. Na história das morfologias da pintura, esta linha de formação não é improvável, somente com diferenças contextuais. Cézanne dedicou a sua paleta baixa ao visível mais visível, a montanha de Santa Vitória que pintou de todos os ângulos possíveis até, gradualmente, tê-la sob mui- tos ângulos em uma mesma pintura. A essa circularidade pictó- rica e plástica atribuo a paralaxe do olhar, o efeito astronômico que os gregos conheciam e que foi comprovado, em 1838, por
  • 51. 50 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) Friedrich Bessel, ou seja, a multiplicidade de posições de uma estrela em relação a uma constelação na órbita da terra em tor- no do sol. Cézanne não tinha conhecimentos de astronomia, ten- do, isso sim, uma mente fenomenológica e ontológica. Disse ele, no auge de suas modulações: “Sou a consciência da paisagem que se pensa em mim”. Por mais remissiva que seja a palavra labiríntica de Prade, a remissão tem o impacto da diacronia paraláxica quanto à forma dos poemas com o espaço contínuo na descontinuidade do re- presentado. Esta é a contemporaneidade de sua poesia, um zoo- trópio que alterna, no movimento da circularidade, figuras di- ferentes que compõem figuras que não se conhece, mas que es- tão ali imagísticas. Traço um círculo ao redor e creio. Creio nele, o deus vivo, Enamorado. A suposição da paralaxe que acabei de apresentar sem maio- res detalhes, um trecho da abertura de Labirintos, que Prade teve a paciência de escrever, tem a explicação providencial. Diz ele que as variações poemáticas, de fundo “cabalístico, mitológico e alquímico, têm valimento somente como corpo ‘poético’. As palavras passam a ter, assim, significados múltiplos em dimen- sões especulares, sem referências datadas e teóricas, na rede pen- dular das metáforas e das imagens”. A palavra cíclica, recircula- da, tanto nas prospecções dos arcanos, que oferecem direções ocultas, como nas dos versos ou mesmo em palavras retomadas e assim deslocadas de um sentido para outro. O tempo cíclico está nas idades da terra, no pensamento de Vico e em muitos autores modernos e que Harold Bloom aplicou na formação do cânone ocidental, principalmente a Era do Caos, em cujo centro canônico colocou Kafka, autor de labi- rintos na viagem de um jovem, na intimação sem motivo e na aldeia com um suposto castelo. A mais do que conhecida trilo- gia do pesadelo da razão de um escritor sob a interpretabilidade judaica em parábolas, lendas e sonhos que primam pela logoman- cia do retorno. Um de seus sonhos, aliás, é citado por Onor Cam-
  • 52. Jayro Schmidt 51 pos no posfácio de Labirintos, livro de outro absolum que dis- solve o horror do Minotauro em sua dupla complexidade, ho- mem e animal, mesmo que guiado pelo fio terno e brilhante da idade do ouro. O Minotauro ainda chora no reflexo da mons- truosidade, figura mítica necessária ao sentimento trágico dos gregos. Absolum de vinte e dois poemas na unidade encontrada do mago ao louco, o originador e o propagador transformados pelo poeta em dinamismo de palavras vibratórias como se vê, nos flu- xos e refluxos de linhas no “labirinto gráfico” de Onor Campos Filomeno. Na recirculação das palavras está a imagem mais cara a Ba- chelard, convocador de poetas do redondo. Foram as inscrições numéricas que motivaram perfilar a este diagrama, e por visua- lização de Labirintos, outro círculo interferido pela árvore de Rilke, que desenhei com fractais de Mondrian, arredondada na abóboda do céu, na passagem da realidade da visão para a reali- dade do conhecimento.
  • 53. 52 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias) Uma configuração que em muitos aspectos aproxima-se de cosmicidade e imaginação, matéria e sublimação. Ao ponto de partida retorno. Sob a lâmpada de Hermes, o manto de Apolônio e o sábio bastão do eremita eu toco. O anima de Labirintos manteve-se do primeiro ao último poema, girando em torno o animus, o humano – o poeta ainda no labirinto de sua invenção, rejuvenescido, “geômetra do uni- verso interior”: na escritura do número-poema. Arma branca Na obra de Prade há persistências da memória que merecem um estudo à parte: a arma está entre as mais recorrentes, objeto de usos variados e de polimentos que elevam a lâmina ao sím- bolo ritualístico que lembra a longa feitura do instrumento para conquistar o meio, cuja eficiência obtida conquista o poder má- gico. A adoração dos animais tem muitos propósitos com a per- cepção de que seus membros são armas, além de curarem-se por conta própria. Em Sob a faca giratória, 2010, a arma é a figura do poeta, no passado latino com a figura vela dare, o levantar vela como metáfora do início do texto, instante em que o escritor sente o temor diante de tão longa e perigosa viagem, além da viagem ser o tema do conhecimento a partir de Homero para as viagens li- terárias de Dante, passando por muitos autores e culminando com Rimbaud, Conrad, Kaváfis e Joyce. A metáfora da arma do artista moderno foi enunciada por Baudelaire com o heroico nas grandes cidades, em Paris das ave- nidas de Haussmann, logo ocupadas pelas barricadas socialistas com pedras amontoadas por “mãos mágicas” conforme o poe- ta. Mágicas, comenta Benjamin, porque Baudelaire não conhe- cia as mãos que as empilharam apesar da simpatia por Blanqui e por Courbet, e de ter brandido uma espingarda em desafio ao general Aupick. Entretanto, a luta passional do poeta não era
  • 54. Jayro Schmidt 53 menos branda, a lírica alegórica, na qual o artista em duelo po- deria ser vencido com um gemido de horror. Na apreciação do pintor moderno Constantin Guys, a es- grima é a arma de refinamento técnico, audaciosa e precisa. O pintor, durante o dia, observa os costumes, os gestos e as ações na multidão. Nada escapa a sua fina sensibilidade que à noite tem o silêncio necessário para que possa captar as imagens cambian- tes, fugitivas. Baudelaire descreveu-o, em O pintor da vida mo- derna, “esgrimindo com seu lápis, sua pena, seu pincel (...) per- seguindo o trabalho rápido e impetuoso, como se temesse que as imagens lhe fugissem. E assim ele luta, mesmo sozinho, e apara seus próprios golpes”. Não são poucos os contemporâneos de Baudelaire que nele viram o esforço para realizar uma obra de arte, identificado em “O sol”, de “Quadros parisienses”, exercendo a “estranha esgri- ma” na tradução de Ivan Junqueira. Buscando em cada canto os acasos da rima, Tropeçando em palavras como nas calçadas, Topando imagens desde há muito já sonhadas. Qual o poeta que não sonhou com imagens da arma das palavras? Nas de Sob a faca giratória o suor frio do poeta está no passado da cânfora, ainda que lute com rastros emocionais entre o peso do humano e a leveza da ascese. Ludibriado, des- consolado caranguejo, quer esquecer a gravidade, a mortalida- de. Até mesmo o mito esvazia-se. O poeta suspende o rosto nas águas de Narciso. O rosto quer escapar do cansado. Espectador de si mesmo, o poeta quer outra imagem da forma-homem ao perceber o fan- tasma ridente: suspenso nos movimentos da sorte, acrobata, um deus natural aspira. Sem que haja ênfase nos mistérios do escrever em algum poema de Prade, no entanto há reflexos com a menção da pala- vra e a escrita do corpo, marca viva da passagem, e há a leitura