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Bonsais Alexandre Spinelli
Não há como evitar. Toda manhã quando estou caminhando para o trabalho e passo
pela esquina da Summit Avenue com a Moore Street, olho para a minha direita, para a
próxima esquina. É um movimento quase automático e inconsciente que faço – mas faço –
como se estivesse verificando se aquele prédio marrom de três andares ainda está ali. Creio
que é como se eu ainda tivesse alguma esperança de ver nossa vida de volta àquele lugar.
Entretanto, sei que o tal lugar que quero de volta não é aquele: o lugar que quero de volta não
é um espaço físico; o lugar que quero de volta, para viver novamente, é um lugar no passado,
num período de tempo que já se foi, mas que ainda não terminou nas minhas memórias e
sonhos.
Agora, durante os primeiros dias de outubro, quando as árvores das ruas estão
mudando de cor, vindo de verde para tons de amarelos, marrons e uma variedade
inacreditável de vermelhos, nosso prédio parece ser parte do ambiente, com a mesma cor das
folhas da árvore de bordo vermelho que fica bem à sua frente. Agora, durantes os primeiros
dias de outubro, quando as folhas estão caindo e deixando as árvores como um esqueleto seco
e frio, vejo aquele nosso lugar como uma folha que caiu de mim, seca e sem vida. Agora,
durante os primeiros dias de outubro, lembro-me de quando me dei conta de que o outono é
minha estação favorita, por suas cores infinitas, pela quantidade de vida que sentia dentro de
nosso lar. Agora, durante os primeiros dias de outubro, lembro-me de que outono não
significa morte ou fim, mas apenas uma fase, apenas um tempo que irá passar, e passará
rápido, espero. Agora, durante os primeiros dias de outubro, vejo nosso prédio como se
estivesse caindo entre as demais folhas avermelhadas e espero pela próxima primavera.
Estávamos na primeira semana de setembro, há dois anos, quando me mudei para
aquele apartamento. Era no terceiro andar daquele prédio branco na esquina da Portland com
2
a Moore. Era o lugar perfeito para mim, perto de meu trabalho e próximo ao Rio Mississippi,
numa vizinhança calma e segura, cheia de árvores e pássaros, além dos esquilos e coelhos de
costume: um lugar especial. O apartamento tinha dois dormitórios, ambos com janelas
voltadas para o sul. Na primeira noite em que dormi lá acordei com o sol vindo direto no meu
rosto. Foi a primeira vez que isso me aconteceu e eu amei aquela sensação do sol me tocando
o rosto para me acordar. Tinha dormido no meu velho sofá, minha única mobilha naquele
primeiro dia, e o sol me alcançou ali para me acordar, me dar boas vindas cheio de energia e
me despertar para meu primeiro dia naquele apartamento.
Mais tarde fui até a IKEA para comprar uma cama. Escolhi uma que parecia ser feita
de madeira pesada, embora não o fosse. Também comprei um colchão de molas ensacadas –
pois me disseram que eram os melhores – dois travesseiros de penas de ganso e um edredom
tamanho King, totalmente branco. Já estava quase chegando à fila do caixa para ir embora,
quando vi alguns bonsais. Algo que não sei explicar agora, quase como uma voz que vinha
daquelas pequenas árvores, me chamou. Parei em frente daquela prateleira e fiquei assim
olhando para cada um deles, como se os analisasse, como se procurasse pela voz que me
chamou, e assim fiquei sentindo a presença deles comigo. Toquei de leve seus pequenos
troncos, seus galhos, e senti a vida e a energia deles: os senti verdadeiramente vivos,
respirando ali comigo no mesmo ritmo. Senti como se aqueles pequenos seres estivessem
transbordando energia, quem sabe algum tipo de energia que estivesse ali há tempos,
estagnada, em seus corpos minúsculos. Eu não tinha consciência de que naquele momento eu
estava escolhendo além dos meus primeiros bonsais: naquele momento acabei decidindo
sobre a vida que viveria pelos próximos dezesseis meses. Após mais de trinta minutos,
escolhi três bonsais. Esqueci meu carrinho com meus travesseiros e meu edredom; esqueci a
cama que tinha reservado e tudo o mais. Comprei uma estante com quatro prateleiras e todo o
utensílio necessário para manter minhas pequenas em boas condições.
3
No dia seguinte, caminhei algumas quadras, até a A. Johnson & Sons Florist na Grand
Avenue e comprei mais três bonsais, após passar mais de uma hora sentindo cada um deles,
na mão, na pele de meus dedos deslizando sobre os mesmos, e dividindo energia com aqueles
pequenos. Não, na verdade decidi comprar outros: não tinha chegado em casa ainda e voltei,
comprei mais quatro, para somar sete, o que seria um número melhor, o número perfeito, e
que somaria dez, com os outros três que nos esperavam em casa. Bem, você me entenderá,
havia quatro prateleiras em casa; três bonsais em cada uma ficariam muito melhor, ficariam
mais bem distribuídos e deixaria o ambiente mais harmônico. Voltei à loja assim que cheguei
ao apartamento e comprei mais dois. Na manhã seguinte, o sol que me acordou tocando meu
rosto tinha um contorno especial e lindo de árvores, de folhas: um contorno de vida.
Naquele final de semana, logo no sábado pela manhã, comprei mais duas estantes.
Um colega do trabalho me falou sobre um bom lugar para comprar bonsais em Bayport, a uns
quarenta minutos de casa. Fui até lá e comprei mais algumas daquelas adoráveis árvores e
acabei ficando por lá durante toda tarde, conversando e aprendendo mais sobre eles. No
domingo pela manhã caminhei pela Selby Ave e parei em algumas lojas de antiguidades.
Numa delas encontrei uma mesa que era exatamente o que eu precisava para colocar no meio
do quarto dos bonsais. Eu precisava desse espaço para poder cuidar deles. Nessa mesma loja
havia duas estantes antigas que eu tive que comprar: elas eram verdadeiramente lindas, bem
escuras, de madeira de castanheira, com alguns desenhos de flores e galhos esculpidos nas
laterais. Não resisti e comprei as duas. Você não vai acreditar, mas elas estavam expostas
com dois bonsais, um sobre cada uma delas. Estavam lá apenas como decoração, não para
serem vendidos, mas convenci o dono da loja e os comprei também. Você deve concordar
comigo de que isso não poderia ser uma simples coincidência, havia uma sincronicidade
acontecendo e que eu não poderia negar ou fingir que não percebia.
4
O dono da loja me disse que aqueles bonsais eram de cerejeira. Eu mal acreditei
quando ele me disse que aquelas pequenas produziam frutas. Como você pode ver, não pude
resistir e as comprei, sem dúvida alguma.
Retornei à loja de Bayport para confirmar a história sobre os bonsais frutíferos. Era
verdade, eles existiam e eu não sabia. Então comprei alguns deles; vinte, para ser exato. Mr.
Price me falou sobre outras lojas que vendiam vários outros tipos de plantas. Ele me falou
muito de orquídeas, disse que a tal lady-slipper pode viver próxima a bonsais e que essa
presença é beneficial para os dois. Sério mesmo? Orquídeas são nojentas, você não concorda?
São muito sexuais para o meu gosto, com aqueles longos caules e delicadas flores,
normalmente avermelhadas, rosadas e brancas. É quase grotesco aquele longo membro
masculino deflorando – literalmente – a inocente flor tão indefesa. Eu lhe disse que não
gostava de flores, que eu gostava era de bonsais. E que os bonsais gostavam de mim também.
Quando cheguei de volta ao nosso apartamento decidi que um dos quartos, o mais
próximo à esquina seria o quarto dos bonsais verdes, com aqueles que não produziam frutos e
todo mobiliado com estantes e mesa antigas, ou aparentemente antigas. O outro quarto seria o
quarto dos bonsais frutíferos, com aqueles que davam frutos, obviamente, e com mobiliário
moderno, ou contemporâneo, conforme acontecesse. Eu já estava acostumado a dormir no
meu velho sofá, o que já era mais do que suficiente para mim. Quando o gelado inverno
começou, ambos os quartos estavam cheios de plantas, assim como minha sala, para a qual
não reservei nenhum tipo especial de bonsai. A sala era o lugar da diversidade, era onde eles
se misturavam como são encontrados na natureza. Logo após a primeira nevasca de
novembro, me dei conta de que eu tinha que ser mais cuidadoso em relação às condições
climáticas e à temperatura dentro do apartamento. Comprei então um umidificador, um ar
condicionado portátil e sensores de umidade e temperatura, para deixar sempre o ambiente
5
em condições ideias para minhas plantas. Assim ficou mais fácil enfrentarmos o inverno.
Aqueles foram sem sombra de dúvidas o Natal e o Ano Novo mais felizes de minha vida.
Quando começou o verão nosso apartamento estava completamente cheio de bonsais:
havia seis estantes no quarto verde, cinco no quarto frutífero, todas repletas de minhas
pequeninas árvores, além, é claro, de uma mesa central em cada um dos quartos e outros
mobiliários, quase sempre cobertos por outros bonsais. Olhando de fora do nosso prédio
verde era possível se ver minha pequena floresta se formando e crescendo. Sim, ouvi alguns
de meus vizinhos se referindo ao nosso apartamento como “a florestinha”. Várias vezes fui
surpreendido por pássaros voando dentro do apartamento. Isso começou a acontecer quase
diariamente: era só abrir as janelas e logo alguns pássaros voavam para dentro. Com o tempo
comecei a ser acordado por alguns pássaros cantando às minhas janelas, pedindo para que eu
as abrisse. Confesso que de alguma maneira eu me sentia orgulhoso daquela floresta. Sabia
que não tinha nenhuma influência direta minha, eu apenas permiti que a natureza se
manifestasse. E eu estava orgulhoso de ter tanta vida ao meu redor. Nunca mais me senti
sozinho, pois me tornei plural, me tornei nós. Parei de falar sobre meu apartamento, minha
vida, meus problemas e todos os outros meus. Sem perceber, comecei a falar tudo em plural,
tudo se tornou nosso: nosso apartamento, nossas vidas, nossas dificuldades em viver nesse
ambiente tão diferente para nós.
Como você sabe, plantas precisam de terra, de espaço, e bonsais não são diferentes.
Deixar uma planta vivendo num vaso pequeno é como deixar um pássaro numa gaiola, ou um
humano como você numa cela de cadeia. Sim, eu sei que plantas não andam nem voam, mas
elas têm raízes e suas raízes precisam de espaço para crescer e se manifestar.
Uma noite enquanto conversava com eles, pude ouvir suas reclamações; pude ouvir
seus gemidos de dor, e reconheci naquele gemido o mesmo gemido que eu gemia quando
minha mãe me colocava sapatos apertados. Não tive dúvidas: decidi criar um pequeno
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canteiro na minha sala. Lá eu poderia cuidar melhor de minhas filhinhas e elas teriam mais
espaços e terra para crescerem. Esta foi a melhor ideia que poderia ter tido. Você precisava
ver como os bonsais amaram aquele lugar: era perfeito. Decidi então fazer outros canteiros.
Empurrei meu sofá para a parede que separava da cozinha. Assim eu ficava próximo de tudo
que precisava: cozinha, banheira e porta de entrada. Era tudo que eu realmente precisava para
viver. No restante do espaço construí quatro canteiros que iam de parede a parede. Primeiro
tirei o carpete, depois coloquei uma camada de pedras, outra camada de pedregulhos, e então
terra. Comprei vários sacos de terra boa, daquela escura, com bastante adubo misturado.
Numa manhã de sábado, enquanto tomava um brunch no Grandview Grill, vi um
rapaz na televisão falando sobre a importância das minhocas para melhor arejarem a terra.
Segui o conselho do rapaz e comprei também algumas minhocas, que assim que chegaram
em casa, mergulharam felizes nos meus canteiros.
Esta ideia funcionou tão bem que na primeira semana de outubro, um ano atrás, fiz o
mesmo nos dois quartos. Coloquei as vinte estantes que tínhamos em volta, contras todas as
paredes do apartamento e nelas coloquei os bonsais menores, ou aqueles que precisavam de
mais cuidado. Nos quartos, construí dois canteiros grandes, só deixando espaço para as
estantes ao redor. Como você pode imaginar, nosso apartamento era, agora sim, uma
verdadeira floresta, com bonsais e algumas outras plantas tomando conta de tudo. Bem no
meio da sala plantei o mais belo de todos: um bonsai cerejeira anão de vinte anos de idade.
Você precisava ver quando ele ficava coberto de flores, era inacreditavelmente lindo e
perfumado. Minhas plantas me deixavam feliz e orgulhoso como nunca. Eu simplesmente
amava cuidar delas.
A reação dos vizinhos foi que começou a mudar. A maioria deles nos evitava. Até
quando os via nos espiando pela janela, eles disfarçavam e fingiam que não tinham nos visto.
Eu sabia que só poderiam estar com inveja, pois não tinham tamanha natureza em seus
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apartamentos. Você precisava ver como minhas plantas começaram a crescer rápido e cada
vez mais saudáveis, quando lhes dei todo o espaço que podia. Agora sim éramos uma família,
uma unidade, um pedaço único da natureza ali no meio de St Paul.
Foi quando nos demos conta de que outono era nossa estação favorita. Nossa casa
estava cheia de cores e com um perfume único no ar. Aves frequentemente vinham dividir
nosso espaço e espalhar sua beleza e música.
Só cometi um erro. Sim, fui muito imprudente. Deveria ter pedido conselhos de algum
especialista antes de fazer o que fiz. Quando plantei os bonsais naqueles canteiros que criei,
alguns deles começaram a crescer, porque, é claro, agora eles tinham espaço para fazê-lo.
Plantei alguns deles junto às paredes e eles cresceram até alcançarem a altura da janela e
seguiram além. Em breve havia uma segunda parede, toda natural, feita de bonsais, dentro de
meu apartamento.
Tudo seguiu assim muito bem até dezembro. O dia 11 de dezembro do ano passado
foi o pior dia de minha vida. Era um sábado, tinha nevado forte desde a meia noite anterior e
seguiu nevando o dia inteiro. Estava um frio absurdo com um vento congelante. Nossas
janelas estavam fechadas e estávamos aquecidos e em paz dentro de nosso apartamento, de
nossa estufa natural. Porém, você sabe, as outras pessoas não cuidam de suas casas como nós
cuidamos. Eles não mantém suas casas controladas com temperatura e umidade ideais. Antes
de se preocupar conosco, deveriam manter suas casas secas.
Bateram na minha porta às dezoito horas. Era a síndica e mais três vizinhas malucas
com quem eu nunca tinha sequer conversado antes. Minha vizinha do andar debaixo, Ms.
Maiers, disse que havia algumas plantas brotando no seu teto, e minhas outras duas vizinhas,
tanto a do apartamento da esquerda como a do apartamento da direita, estavam praticamente
berrando dizendo que havia raízes brotando por debaixo de suas paredes, além de um
incontável número de minhocas andando por seus apartamentos. Tentei explicar que eu não
8
tinha culpa alguma se elas não sabiam como cuidar de suas casas para mantê-las como
queriam, mas não me deram ouvidos. Além do mais, eu não entendi qual era o problema. Elas
deveriam estar felizes e agradecidas por terem algumas plantas e um pouco da natureza
invadindo suas casas, você não acha?
Eu as convidei para entrarem no meu apartamento e fiquei confuso com a histeria
delas. A síndica, Ms. Fritz, uma senhora tamanho G e do tipo sedentária tampou o nariz e
ousou dizer que o lugar estava fedendo, como se houvesse algo apodrecendo lá dentro. Por
favor, não havia nada apodrecendo, era apenas o cheiro do adubo, o cheiro da natureza, como
ela é: um cheiro maravilhoso de vida. Não tenho culpa se ela nunca foi sequer à fazenda
alguma durante toda sua gorda vida, nem sequer deve ter pisado na terra. Certamente foi
criada sentada num sofá dentro do mesmo apartamento por anos. Não era minha culpa se o
pouco de natureza que ela conhecia era através da National Geographic, a qual tem cheiro de
papel impresso. Ela deveria aproveitar a oportunidade que eu lhe dava e ser agradecida por eu
ter feito de seu prédio um lugar mais saudável para se viver.
Ms. Maiers estava surtando sem razão alguma. Qual era o problema em ter algumas
plantas no teto? Inclusive ofereci ajuda para cuidar das plantas e tentei lhe mostrar o quanto
ela estaria economizando por não ter que pagar pelos bonsais que poderiam nascer dentro de
seu apartamento, mas ela simplesmente não me ouvia. Acho que a neve deixa as pessoas
meio malucas, só pode ser. Elas ficam trancadas dentro de casa o dia inteiro sem poder sair
nem por um minuto sequer, ai elas começam a ver coisas, a criar problemas onde não há
razão de ser. Eu estava ainda argumentando com minhas outras duas vizinhas, quando a
gorda da Ms. Fritz voltou com dois policias. Você sabe, este tipo de gente não se preocupa
com a natureza. Eles apenas querem seguir a lei, mas não há lei alguma que trate de bonsais,
que eu saiba ou que tenha ouvido falar.
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Enfim e ao final, me expulsaram do apartamento: eu e minhas plantas. Os policias me
levaram para a delegacia e eu acabei ficando na cadeia de lá por quase três semanas, pois não
tinha como pagar para sair. Não pude sequer ver ou saber o que fizeram com minhas árvores
tão amadas e desprotegidas. Nunca me disseram se as mataram ou se pelo menos as deixaram
viver em algum outro lugar. Sei que finalmente consegui dinheiro para pagar a fiança e ainda
um depósito de garantia para a imobiliária, sei lá por que razão. Só sei que finalmente, na
tarde do dia 31 de dezembro, sai da cadeia. Lá sim eu conheci o que significa fedor, o que
significa estar longe de seu lar, de sua natureza: o que é viver dentro de um vaso, sem espaço
para crescer suas raízes e seus galhos.
Nestes últimos dias tenho me lembrado daqueles meses quando vivemos juntos,
dividindo o mesmo espaço. Só tenho boas lembranças, só dos dias de alegria; mal me lembro
dos dias que passei preso pagando por algo injusto: uma punição absurda naquela cadeia, sem
ter feito nada errado. Eu posso me lembrar claramente da textura das folhas e das pétalas de
minhas plantas, seus cheiros, perfumes, e do sabor de seus vegetais e frutos. Posso me
lembrar de como era bom ficar calmo lendo um livro, bebendo ou comendo ali sentando
naquele solo e naquela grama dentro de nosso apartamento. Lembro-me bem do sabor
daquele lugar na minha boca e salivo tais memórias.
Agora, durante os primeiros dias de outubro, pisando sobre estas folhas amarelas
ressecadas na calçada, não tenho certeza se sinto falta daquele tempo ou se me sinto feliz por
tê-lo vivido. Agora, durante os primeiros dias de outubro, quando as árvores estão mudando
de cor, troco de cor constantemente, me sinto triste e me sinto alegre. Agora, durante os
primeiros dias de outubro, vejo uma folha seca próxima a meu sapato, pego-a, despedaço-a
devagarinho em minha mão, ouço o barulho dela se quebrando, sinto seu perfume em meus
dedos e saboreio o ciclo da vida. Agora, durante os primeiros dias de outubro, vejo nosso
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prédio marrom e espero por um novo apartamento branco, quem sabe na próxima primavera,
quem sabe mais tarde, quem sabe ainda antes disso, onde viverei intensamente de novo.
* * *

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Bonsais

  • 1. 1 Bonsais Alexandre Spinelli Não há como evitar. Toda manhã quando estou caminhando para o trabalho e passo pela esquina da Summit Avenue com a Moore Street, olho para a minha direita, para a próxima esquina. É um movimento quase automático e inconsciente que faço – mas faço – como se estivesse verificando se aquele prédio marrom de três andares ainda está ali. Creio que é como se eu ainda tivesse alguma esperança de ver nossa vida de volta àquele lugar. Entretanto, sei que o tal lugar que quero de volta não é aquele: o lugar que quero de volta não é um espaço físico; o lugar que quero de volta, para viver novamente, é um lugar no passado, num período de tempo que já se foi, mas que ainda não terminou nas minhas memórias e sonhos. Agora, durante os primeiros dias de outubro, quando as árvores das ruas estão mudando de cor, vindo de verde para tons de amarelos, marrons e uma variedade inacreditável de vermelhos, nosso prédio parece ser parte do ambiente, com a mesma cor das folhas da árvore de bordo vermelho que fica bem à sua frente. Agora, durantes os primeiros dias de outubro, quando as folhas estão caindo e deixando as árvores como um esqueleto seco e frio, vejo aquele nosso lugar como uma folha que caiu de mim, seca e sem vida. Agora, durante os primeiros dias de outubro, lembro-me de quando me dei conta de que o outono é minha estação favorita, por suas cores infinitas, pela quantidade de vida que sentia dentro de nosso lar. Agora, durante os primeiros dias de outubro, lembro-me de que outono não significa morte ou fim, mas apenas uma fase, apenas um tempo que irá passar, e passará rápido, espero. Agora, durante os primeiros dias de outubro, vejo nosso prédio como se estivesse caindo entre as demais folhas avermelhadas e espero pela próxima primavera. Estávamos na primeira semana de setembro, há dois anos, quando me mudei para aquele apartamento. Era no terceiro andar daquele prédio branco na esquina da Portland com
  • 2. 2 a Moore. Era o lugar perfeito para mim, perto de meu trabalho e próximo ao Rio Mississippi, numa vizinhança calma e segura, cheia de árvores e pássaros, além dos esquilos e coelhos de costume: um lugar especial. O apartamento tinha dois dormitórios, ambos com janelas voltadas para o sul. Na primeira noite em que dormi lá acordei com o sol vindo direto no meu rosto. Foi a primeira vez que isso me aconteceu e eu amei aquela sensação do sol me tocando o rosto para me acordar. Tinha dormido no meu velho sofá, minha única mobilha naquele primeiro dia, e o sol me alcançou ali para me acordar, me dar boas vindas cheio de energia e me despertar para meu primeiro dia naquele apartamento. Mais tarde fui até a IKEA para comprar uma cama. Escolhi uma que parecia ser feita de madeira pesada, embora não o fosse. Também comprei um colchão de molas ensacadas – pois me disseram que eram os melhores – dois travesseiros de penas de ganso e um edredom tamanho King, totalmente branco. Já estava quase chegando à fila do caixa para ir embora, quando vi alguns bonsais. Algo que não sei explicar agora, quase como uma voz que vinha daquelas pequenas árvores, me chamou. Parei em frente daquela prateleira e fiquei assim olhando para cada um deles, como se os analisasse, como se procurasse pela voz que me chamou, e assim fiquei sentindo a presença deles comigo. Toquei de leve seus pequenos troncos, seus galhos, e senti a vida e a energia deles: os senti verdadeiramente vivos, respirando ali comigo no mesmo ritmo. Senti como se aqueles pequenos seres estivessem transbordando energia, quem sabe algum tipo de energia que estivesse ali há tempos, estagnada, em seus corpos minúsculos. Eu não tinha consciência de que naquele momento eu estava escolhendo além dos meus primeiros bonsais: naquele momento acabei decidindo sobre a vida que viveria pelos próximos dezesseis meses. Após mais de trinta minutos, escolhi três bonsais. Esqueci meu carrinho com meus travesseiros e meu edredom; esqueci a cama que tinha reservado e tudo o mais. Comprei uma estante com quatro prateleiras e todo o utensílio necessário para manter minhas pequenas em boas condições.
  • 3. 3 No dia seguinte, caminhei algumas quadras, até a A. Johnson & Sons Florist na Grand Avenue e comprei mais três bonsais, após passar mais de uma hora sentindo cada um deles, na mão, na pele de meus dedos deslizando sobre os mesmos, e dividindo energia com aqueles pequenos. Não, na verdade decidi comprar outros: não tinha chegado em casa ainda e voltei, comprei mais quatro, para somar sete, o que seria um número melhor, o número perfeito, e que somaria dez, com os outros três que nos esperavam em casa. Bem, você me entenderá, havia quatro prateleiras em casa; três bonsais em cada uma ficariam muito melhor, ficariam mais bem distribuídos e deixaria o ambiente mais harmônico. Voltei à loja assim que cheguei ao apartamento e comprei mais dois. Na manhã seguinte, o sol que me acordou tocando meu rosto tinha um contorno especial e lindo de árvores, de folhas: um contorno de vida. Naquele final de semana, logo no sábado pela manhã, comprei mais duas estantes. Um colega do trabalho me falou sobre um bom lugar para comprar bonsais em Bayport, a uns quarenta minutos de casa. Fui até lá e comprei mais algumas daquelas adoráveis árvores e acabei ficando por lá durante toda tarde, conversando e aprendendo mais sobre eles. No domingo pela manhã caminhei pela Selby Ave e parei em algumas lojas de antiguidades. Numa delas encontrei uma mesa que era exatamente o que eu precisava para colocar no meio do quarto dos bonsais. Eu precisava desse espaço para poder cuidar deles. Nessa mesma loja havia duas estantes antigas que eu tive que comprar: elas eram verdadeiramente lindas, bem escuras, de madeira de castanheira, com alguns desenhos de flores e galhos esculpidos nas laterais. Não resisti e comprei as duas. Você não vai acreditar, mas elas estavam expostas com dois bonsais, um sobre cada uma delas. Estavam lá apenas como decoração, não para serem vendidos, mas convenci o dono da loja e os comprei também. Você deve concordar comigo de que isso não poderia ser uma simples coincidência, havia uma sincronicidade acontecendo e que eu não poderia negar ou fingir que não percebia.
  • 4. 4 O dono da loja me disse que aqueles bonsais eram de cerejeira. Eu mal acreditei quando ele me disse que aquelas pequenas produziam frutas. Como você pode ver, não pude resistir e as comprei, sem dúvida alguma. Retornei à loja de Bayport para confirmar a história sobre os bonsais frutíferos. Era verdade, eles existiam e eu não sabia. Então comprei alguns deles; vinte, para ser exato. Mr. Price me falou sobre outras lojas que vendiam vários outros tipos de plantas. Ele me falou muito de orquídeas, disse que a tal lady-slipper pode viver próxima a bonsais e que essa presença é beneficial para os dois. Sério mesmo? Orquídeas são nojentas, você não concorda? São muito sexuais para o meu gosto, com aqueles longos caules e delicadas flores, normalmente avermelhadas, rosadas e brancas. É quase grotesco aquele longo membro masculino deflorando – literalmente – a inocente flor tão indefesa. Eu lhe disse que não gostava de flores, que eu gostava era de bonsais. E que os bonsais gostavam de mim também. Quando cheguei de volta ao nosso apartamento decidi que um dos quartos, o mais próximo à esquina seria o quarto dos bonsais verdes, com aqueles que não produziam frutos e todo mobiliado com estantes e mesa antigas, ou aparentemente antigas. O outro quarto seria o quarto dos bonsais frutíferos, com aqueles que davam frutos, obviamente, e com mobiliário moderno, ou contemporâneo, conforme acontecesse. Eu já estava acostumado a dormir no meu velho sofá, o que já era mais do que suficiente para mim. Quando o gelado inverno começou, ambos os quartos estavam cheios de plantas, assim como minha sala, para a qual não reservei nenhum tipo especial de bonsai. A sala era o lugar da diversidade, era onde eles se misturavam como são encontrados na natureza. Logo após a primeira nevasca de novembro, me dei conta de que eu tinha que ser mais cuidadoso em relação às condições climáticas e à temperatura dentro do apartamento. Comprei então um umidificador, um ar condicionado portátil e sensores de umidade e temperatura, para deixar sempre o ambiente
  • 5. 5 em condições ideias para minhas plantas. Assim ficou mais fácil enfrentarmos o inverno. Aqueles foram sem sombra de dúvidas o Natal e o Ano Novo mais felizes de minha vida. Quando começou o verão nosso apartamento estava completamente cheio de bonsais: havia seis estantes no quarto verde, cinco no quarto frutífero, todas repletas de minhas pequeninas árvores, além, é claro, de uma mesa central em cada um dos quartos e outros mobiliários, quase sempre cobertos por outros bonsais. Olhando de fora do nosso prédio verde era possível se ver minha pequena floresta se formando e crescendo. Sim, ouvi alguns de meus vizinhos se referindo ao nosso apartamento como “a florestinha”. Várias vezes fui surpreendido por pássaros voando dentro do apartamento. Isso começou a acontecer quase diariamente: era só abrir as janelas e logo alguns pássaros voavam para dentro. Com o tempo comecei a ser acordado por alguns pássaros cantando às minhas janelas, pedindo para que eu as abrisse. Confesso que de alguma maneira eu me sentia orgulhoso daquela floresta. Sabia que não tinha nenhuma influência direta minha, eu apenas permiti que a natureza se manifestasse. E eu estava orgulhoso de ter tanta vida ao meu redor. Nunca mais me senti sozinho, pois me tornei plural, me tornei nós. Parei de falar sobre meu apartamento, minha vida, meus problemas e todos os outros meus. Sem perceber, comecei a falar tudo em plural, tudo se tornou nosso: nosso apartamento, nossas vidas, nossas dificuldades em viver nesse ambiente tão diferente para nós. Como você sabe, plantas precisam de terra, de espaço, e bonsais não são diferentes. Deixar uma planta vivendo num vaso pequeno é como deixar um pássaro numa gaiola, ou um humano como você numa cela de cadeia. Sim, eu sei que plantas não andam nem voam, mas elas têm raízes e suas raízes precisam de espaço para crescer e se manifestar. Uma noite enquanto conversava com eles, pude ouvir suas reclamações; pude ouvir seus gemidos de dor, e reconheci naquele gemido o mesmo gemido que eu gemia quando minha mãe me colocava sapatos apertados. Não tive dúvidas: decidi criar um pequeno
  • 6. 6 canteiro na minha sala. Lá eu poderia cuidar melhor de minhas filhinhas e elas teriam mais espaços e terra para crescerem. Esta foi a melhor ideia que poderia ter tido. Você precisava ver como os bonsais amaram aquele lugar: era perfeito. Decidi então fazer outros canteiros. Empurrei meu sofá para a parede que separava da cozinha. Assim eu ficava próximo de tudo que precisava: cozinha, banheira e porta de entrada. Era tudo que eu realmente precisava para viver. No restante do espaço construí quatro canteiros que iam de parede a parede. Primeiro tirei o carpete, depois coloquei uma camada de pedras, outra camada de pedregulhos, e então terra. Comprei vários sacos de terra boa, daquela escura, com bastante adubo misturado. Numa manhã de sábado, enquanto tomava um brunch no Grandview Grill, vi um rapaz na televisão falando sobre a importância das minhocas para melhor arejarem a terra. Segui o conselho do rapaz e comprei também algumas minhocas, que assim que chegaram em casa, mergulharam felizes nos meus canteiros. Esta ideia funcionou tão bem que na primeira semana de outubro, um ano atrás, fiz o mesmo nos dois quartos. Coloquei as vinte estantes que tínhamos em volta, contras todas as paredes do apartamento e nelas coloquei os bonsais menores, ou aqueles que precisavam de mais cuidado. Nos quartos, construí dois canteiros grandes, só deixando espaço para as estantes ao redor. Como você pode imaginar, nosso apartamento era, agora sim, uma verdadeira floresta, com bonsais e algumas outras plantas tomando conta de tudo. Bem no meio da sala plantei o mais belo de todos: um bonsai cerejeira anão de vinte anos de idade. Você precisava ver quando ele ficava coberto de flores, era inacreditavelmente lindo e perfumado. Minhas plantas me deixavam feliz e orgulhoso como nunca. Eu simplesmente amava cuidar delas. A reação dos vizinhos foi que começou a mudar. A maioria deles nos evitava. Até quando os via nos espiando pela janela, eles disfarçavam e fingiam que não tinham nos visto. Eu sabia que só poderiam estar com inveja, pois não tinham tamanha natureza em seus
  • 7. 7 apartamentos. Você precisava ver como minhas plantas começaram a crescer rápido e cada vez mais saudáveis, quando lhes dei todo o espaço que podia. Agora sim éramos uma família, uma unidade, um pedaço único da natureza ali no meio de St Paul. Foi quando nos demos conta de que outono era nossa estação favorita. Nossa casa estava cheia de cores e com um perfume único no ar. Aves frequentemente vinham dividir nosso espaço e espalhar sua beleza e música. Só cometi um erro. Sim, fui muito imprudente. Deveria ter pedido conselhos de algum especialista antes de fazer o que fiz. Quando plantei os bonsais naqueles canteiros que criei, alguns deles começaram a crescer, porque, é claro, agora eles tinham espaço para fazê-lo. Plantei alguns deles junto às paredes e eles cresceram até alcançarem a altura da janela e seguiram além. Em breve havia uma segunda parede, toda natural, feita de bonsais, dentro de meu apartamento. Tudo seguiu assim muito bem até dezembro. O dia 11 de dezembro do ano passado foi o pior dia de minha vida. Era um sábado, tinha nevado forte desde a meia noite anterior e seguiu nevando o dia inteiro. Estava um frio absurdo com um vento congelante. Nossas janelas estavam fechadas e estávamos aquecidos e em paz dentro de nosso apartamento, de nossa estufa natural. Porém, você sabe, as outras pessoas não cuidam de suas casas como nós cuidamos. Eles não mantém suas casas controladas com temperatura e umidade ideais. Antes de se preocupar conosco, deveriam manter suas casas secas. Bateram na minha porta às dezoito horas. Era a síndica e mais três vizinhas malucas com quem eu nunca tinha sequer conversado antes. Minha vizinha do andar debaixo, Ms. Maiers, disse que havia algumas plantas brotando no seu teto, e minhas outras duas vizinhas, tanto a do apartamento da esquerda como a do apartamento da direita, estavam praticamente berrando dizendo que havia raízes brotando por debaixo de suas paredes, além de um incontável número de minhocas andando por seus apartamentos. Tentei explicar que eu não
  • 8. 8 tinha culpa alguma se elas não sabiam como cuidar de suas casas para mantê-las como queriam, mas não me deram ouvidos. Além do mais, eu não entendi qual era o problema. Elas deveriam estar felizes e agradecidas por terem algumas plantas e um pouco da natureza invadindo suas casas, você não acha? Eu as convidei para entrarem no meu apartamento e fiquei confuso com a histeria delas. A síndica, Ms. Fritz, uma senhora tamanho G e do tipo sedentária tampou o nariz e ousou dizer que o lugar estava fedendo, como se houvesse algo apodrecendo lá dentro. Por favor, não havia nada apodrecendo, era apenas o cheiro do adubo, o cheiro da natureza, como ela é: um cheiro maravilhoso de vida. Não tenho culpa se ela nunca foi sequer à fazenda alguma durante toda sua gorda vida, nem sequer deve ter pisado na terra. Certamente foi criada sentada num sofá dentro do mesmo apartamento por anos. Não era minha culpa se o pouco de natureza que ela conhecia era através da National Geographic, a qual tem cheiro de papel impresso. Ela deveria aproveitar a oportunidade que eu lhe dava e ser agradecida por eu ter feito de seu prédio um lugar mais saudável para se viver. Ms. Maiers estava surtando sem razão alguma. Qual era o problema em ter algumas plantas no teto? Inclusive ofereci ajuda para cuidar das plantas e tentei lhe mostrar o quanto ela estaria economizando por não ter que pagar pelos bonsais que poderiam nascer dentro de seu apartamento, mas ela simplesmente não me ouvia. Acho que a neve deixa as pessoas meio malucas, só pode ser. Elas ficam trancadas dentro de casa o dia inteiro sem poder sair nem por um minuto sequer, ai elas começam a ver coisas, a criar problemas onde não há razão de ser. Eu estava ainda argumentando com minhas outras duas vizinhas, quando a gorda da Ms. Fritz voltou com dois policias. Você sabe, este tipo de gente não se preocupa com a natureza. Eles apenas querem seguir a lei, mas não há lei alguma que trate de bonsais, que eu saiba ou que tenha ouvido falar.
  • 9. 9 Enfim e ao final, me expulsaram do apartamento: eu e minhas plantas. Os policias me levaram para a delegacia e eu acabei ficando na cadeia de lá por quase três semanas, pois não tinha como pagar para sair. Não pude sequer ver ou saber o que fizeram com minhas árvores tão amadas e desprotegidas. Nunca me disseram se as mataram ou se pelo menos as deixaram viver em algum outro lugar. Sei que finalmente consegui dinheiro para pagar a fiança e ainda um depósito de garantia para a imobiliária, sei lá por que razão. Só sei que finalmente, na tarde do dia 31 de dezembro, sai da cadeia. Lá sim eu conheci o que significa fedor, o que significa estar longe de seu lar, de sua natureza: o que é viver dentro de um vaso, sem espaço para crescer suas raízes e seus galhos. Nestes últimos dias tenho me lembrado daqueles meses quando vivemos juntos, dividindo o mesmo espaço. Só tenho boas lembranças, só dos dias de alegria; mal me lembro dos dias que passei preso pagando por algo injusto: uma punição absurda naquela cadeia, sem ter feito nada errado. Eu posso me lembrar claramente da textura das folhas e das pétalas de minhas plantas, seus cheiros, perfumes, e do sabor de seus vegetais e frutos. Posso me lembrar de como era bom ficar calmo lendo um livro, bebendo ou comendo ali sentando naquele solo e naquela grama dentro de nosso apartamento. Lembro-me bem do sabor daquele lugar na minha boca e salivo tais memórias. Agora, durante os primeiros dias de outubro, pisando sobre estas folhas amarelas ressecadas na calçada, não tenho certeza se sinto falta daquele tempo ou se me sinto feliz por tê-lo vivido. Agora, durante os primeiros dias de outubro, quando as árvores estão mudando de cor, troco de cor constantemente, me sinto triste e me sinto alegre. Agora, durante os primeiros dias de outubro, vejo uma folha seca próxima a meu sapato, pego-a, despedaço-a devagarinho em minha mão, ouço o barulho dela se quebrando, sinto seu perfume em meus dedos e saboreio o ciclo da vida. Agora, durante os primeiros dias de outubro, vejo nosso
  • 10. 10 prédio marrom e espero por um novo apartamento branco, quem sabe na próxima primavera, quem sabe mais tarde, quem sabe ainda antes disso, onde viverei intensamente de novo. * * *