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Em 1955, em Campina Grande, na Paraíba, um
grupo de boêmios fazia serenata numa
madrugada do mês de junho, quando chegou a
polícia e apreendeu o violão.
Decepcionado, o grupo recorreu aos serviços
do advogado Ronaldo Cunha Lima,
então recentemente saído da Faculdade e que
também apreciava uma boa seresta.
Ele peticionou em Juízo para que fosse
liberado o violão.
Aquele pedido ficou conhecido como "HabeasPinho" e enfeita as paredes de escritórios
de muitos advogados e bares de praias no
Nordeste.
Mais tarde, Ronaldo Cunha Lima foi eleito
Deputado Estadual, Prefeito de Campina
Grande, Senador da República, Governador do
Estado e Deputado Federal.
Eis a famosa petição:
HABEAS-PINHO
Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara
desta Comarca:
O instrumento do crime que se arrola
Neste processo de contravenção
Não é faca, revólver nem pistola,
É simplesmente, doutor, um violão.
Um violão, doutor, que na verdade,
Não matou nem feriu um cidadão,
Feriu, sim, a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão.
O violão é sempre uma ternura,
Instrumento de amor e de saudade,
Ao crime ele nunca se mistura,
Inexiste entre eles afinidade.
O violão é próprio dos cantores,
Dos menestréis de alma enternecida
Que cantam as mágoas e que povoam a vida
Sufocando suas próprias dores.
O violão é música e é canção,
É sentimento de vida e alegria,
É pureza e néctar que extasia,
É adorno espiritual do coração.
Seu viver, como o nosso, é transitório,
Porém seu destino se perpetua,
Ele nasceu para cantar na rua
E não para ser arquivo de Cartório.
Mande soltá-lo pelo Amor da noite,
Que se sente vazia em suas horas,
Para que volte a sentir o terno açoite
De suas cordas leves e sonoras.
Libere o violão, Dr. Juiz,
Em nome da Justiça e do Direito,
É crime, porventura, o infeliz
cantar as mágoas que lhe enchem o
peito?
Será crime, e, afinal, será pecado,
Será delito de tão vis horrores,
perambular na rua um desgraçado
derramando ali as suas dores?
É o apelo que aqui lhe dirigimos,
Na certeza do seu acolhimento,
Juntando esta petição aos autos nós
pedimos
e pedimos também DEFERIMENTO.
Ronaldo Cunha Lima, advogado.
O juiz Arthur Moura, sem perder o ponto, deu a
sentença no mesmo tom:
"Para que eu não carregue remorso no coração,
Determino que seja entregue ao seu dono,
Desde logo, O malfadado violão! “
Recebo a Petição escrita em verso
E, despachando-a sem autuação,
Verbero o ato vil, rude e perverso,
Que prende, no cartório, um violão.
Emudecer a prima e o bordão,
Nos confins de um arquivo em sombra imerso
È desumana e vil destruição
De tudo, que há de belo no universo.
Que seja Sol, ainda que a desoras,
E volte à rua, em vida transviada
Num esbanjar de lágrimas sonoras.
Se grato for, acaso ao que lhe fiz,
Noite de lua, plena madrugada,
Venha tocar à porta do Juiz.

Música:
Dilermano Reis_abismo-rosas
O juiz Arthur Moura, sem perder o ponto, deu a
sentença no mesmo tom:
"Para que eu não carregue remorso no coração,
Determino que seja entregue ao seu dono,
Desde logo, O malfadado violão! “
Recebo a Petição escrita em verso
E, despachando-a sem autuação,
Verbero o ato vil, rude e perverso,
Que prende, no cartório, um violão.
Emudecer a prima e o bordão,
Nos confins de um arquivo em sombra imerso
È desumana e vil destruição
De tudo, que há de belo no universo.
Que seja Sol, ainda que a desoras,
E volte à rua, em vida transviada
Num esbanjar de lágrimas sonoras.
Se grato for, acaso ao que lhe fiz,
Noite de lua, plena madrugada,
Venha tocar à porta do Juiz.

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Habeas-Pinho: a famosa petição de Ronaldo Cunha Lima para liberar um violão apreendido

  • 1. Em 1955, em Campina Grande, na Paraíba, um grupo de boêmios fazia serenata numa madrugada do mês de junho, quando chegou a polícia e apreendeu o violão. Decepcionado, o grupo recorreu aos serviços do advogado Ronaldo Cunha Lima, então recentemente saído da Faculdade e que também apreciava uma boa seresta. Ele peticionou em Juízo para que fosse liberado o violão. Aquele pedido ficou conhecido como "HabeasPinho" e enfeita as paredes de escritórios de muitos advogados e bares de praias no Nordeste. Mais tarde, Ronaldo Cunha Lima foi eleito Deputado Estadual, Prefeito de Campina Grande, Senador da República, Governador do Estado e Deputado Federal. Eis a famosa petição:
  • 2. HABEAS-PINHO Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara desta Comarca: O instrumento do crime que se arrola Neste processo de contravenção Não é faca, revólver nem pistola, É simplesmente, doutor, um violão. Um violão, doutor, que na verdade, Não matou nem feriu um cidadão, Feriu, sim, a sensibilidade De quem o ouviu vibrar na solidão. O violão é sempre uma ternura, Instrumento de amor e de saudade, Ao crime ele nunca se mistura, Inexiste entre eles afinidade.
  • 3. O violão é próprio dos cantores, Dos menestréis de alma enternecida Que cantam as mágoas e que povoam a vida Sufocando suas próprias dores. O violão é música e é canção, É sentimento de vida e alegria, É pureza e néctar que extasia, É adorno espiritual do coração. Seu viver, como o nosso, é transitório, Porém seu destino se perpetua, Ele nasceu para cantar na rua E não para ser arquivo de Cartório. Mande soltá-lo pelo Amor da noite, Que se sente vazia em suas horas, Para que volte a sentir o terno açoite De suas cordas leves e sonoras.
  • 4. Libere o violão, Dr. Juiz, Em nome da Justiça e do Direito, É crime, porventura, o infeliz cantar as mágoas que lhe enchem o peito? Será crime, e, afinal, será pecado, Será delito de tão vis horrores, perambular na rua um desgraçado derramando ali as suas dores? É o apelo que aqui lhe dirigimos, Na certeza do seu acolhimento, Juntando esta petição aos autos nós pedimos e pedimos também DEFERIMENTO. Ronaldo Cunha Lima, advogado.
  • 5. O juiz Arthur Moura, sem perder o ponto, deu a sentença no mesmo tom: "Para que eu não carregue remorso no coração, Determino que seja entregue ao seu dono, Desde logo, O malfadado violão! “ Recebo a Petição escrita em verso E, despachando-a sem autuação, Verbero o ato vil, rude e perverso, Que prende, no cartório, um violão. Emudecer a prima e o bordão, Nos confins de um arquivo em sombra imerso È desumana e vil destruição De tudo, que há de belo no universo. Que seja Sol, ainda que a desoras, E volte à rua, em vida transviada Num esbanjar de lágrimas sonoras. Se grato for, acaso ao que lhe fiz, Noite de lua, plena madrugada, Venha tocar à porta do Juiz. Música: Dilermano Reis_abismo-rosas
  • 6. O juiz Arthur Moura, sem perder o ponto, deu a sentença no mesmo tom: "Para que eu não carregue remorso no coração, Determino que seja entregue ao seu dono, Desde logo, O malfadado violão! “ Recebo a Petição escrita em verso E, despachando-a sem autuação, Verbero o ato vil, rude e perverso, Que prende, no cartório, um violão. Emudecer a prima e o bordão, Nos confins de um arquivo em sombra imerso È desumana e vil destruição De tudo, que há de belo no universo. Que seja Sol, ainda que a desoras, E volte à rua, em vida transviada Num esbanjar de lágrimas sonoras. Se grato for, acaso ao que lhe fiz, Noite de lua, plena madrugada, Venha tocar à porta do Juiz. Música: Dilermano Reis_abismo-rosas