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Domingo, 4 de setembro de 2011                                                                            O GLOBO                                                                                    O PAÍS       ●
                                                                                                                                                                                                                      17



Padre expulso do país pela ditadura tenta voltar
Italiano busca há quase uma década reaver visto de permanência para retornar a paróquia em Pernambuco
                                                           D.A.Press
                                                                                  Letícia Lins                a agroindústria açucareira do         independência do povo”, reduzi-        — Esses padres subversi-
                                                                             leticia.lins@oglobo.com.br       estado, considerada área de ten-      do “à condição de pedinte e de-     vos precisam ser observados
                                                                                                              são social pelos órgãos oficiais.     samparado dos seus direitos”.       — disse na época.
                                                                       ● RECIFE. Expulso do Brasil em            Em plena ditadura no Brasil, o        Tido como subversivo por            A expulsão envolveu uma ba-
                                                                       1980 — em um polêmico pro-             padre foi incluído na Lei de Se-      usineiros e donos de engenho,       talha jurídica, com ordens e con-
                                                                       cesso que contribuiu para agra-        gurança Nacional e atingido pelo      foi criticado na Assembleia Le-     traordens, que mobilizou advo-
                                                                       var ainda mais o conflito entre        então recém-promulgado Estatu-        gislativa pelo então deputado es-   gados da CNBB e chegou ao Su-
                                                                       Igreja e Estado —, o padre italia-     to do Estrangeiro, por ter se re-     tadual Severino Cavalcanti (PDS)    premo Tribunal Federal, que de-
                                                                       no Vito Miracapillo tenta inutil-      cusado a atender pedido da pre-       — o mesmo que mais tarde se         cidiu pela expulsão do sacerdo-
                                                                       mente, há quase uma década,            feitura para que celebrasse mis-      tornaria presidente da Câmara       te. O decreto também mobilizou
                                                                       reaver o visto de permanência          sa comemorativa da Indepen-           dos Deputados e renunciaria         o clero no Nordeste, que promo-
                                                                       no país, onde pretende retomar         dência do Brasil, em 7 de setem-      com o escândalo do mensalinho,      veu em Ribeirão uma missa de
                                                                       o trabalho pastoral interrompi-        bro de 1980 — alegando que o          acusado de obter propina.           desagravo ao italiano que termi-
                                                                       do durante o regime militar.           Brasil, sob ditadura, não era in-        Severino invocou o Estatuto      nou em pancadaria. Donos de
                                                                          O padre quer voltar ao muni-        dependente. Num ofício ao pre-        do Estrangeiro pela primeira        engenhos, fornecedores de cana
                                                                       cípio de Ribeirão, a 87 quilôme-       feito de Ribeirão, Salomão Cor-       vez no país, quando fez um          e usineiros exibiram armas na
                                                                       tros de Recife, do qual foi páro-      reia Brasil (PDS), o padre justifi-   apelo ao então ministro da          igreja e usaram o mastro de uma
                                                                       co. E residir na Zona da Mata de       cou a recusa, entre outros moti-      Justiça, Ibrahim Abi Ackel, pa-     bandeira do Brasil para dissol-
PADRE VITO: expulso porque não quis rezar missa pela Independência     Pernambuco, onde se concentra          vos, devido “à não efetivação da      ra que expulsasse o padre:          ver a multidão de fiéis. ■


Até hoje,
constrangimento
ao vir ao Brasil
Severino: ‘Não me
arrependo, ele
merecia punição’
●  RECIFE. O decreto de expulsão,
assinado pelo então presidente
João Baptista Figueiredo, foi re-
vogado em 1993 pelo presidente
Itamar Franco. Mas isso não li-
vrou o sacerdote de constrangi-
mentos quando vem ao Brasil e
precisa passar pelo visto da Po-
lícia Federal. Nunca deram baixa
do decreto de expulsão na PF.
Os agentes lhe perguntam os
motivos da expulsão, fazem in-
dagações e ratificam para ele to-
mar cuidado. Só pode ficar três
meses, como turista.
   Hoje com 64 anos, o padre
não entende por que o gover-
no cria tantas dificuldades pa-
ra ele, mas concede asilo a Ce-
sare Battisti, condenado à pri-
são perpétua na Itália.
   — São dois casos muito dife-
rentes, mas não consigo ver co-
mo ele (o ativista) conseguiu lo-
go a solução do caso. Realmente
não entendo essa situação —
afirmou ele por telefone, de An-
dria, onde reside atualmente.
   Na próxima semana, seus ad-
vogados, Pedro Eurico de Barros
e Albézio Farias, vão a Brasília
encaminhar a solicitação do pa-
dre diretamente ao ministro da
Justiça, José Eduardo Cardozo.
Caso o impasse permaneça, vão
apelar às cortes superiores.
   Miracapillo acha estranho não
terem dado baixa do decreto de
expulsão na PF. Lembra que o
Brasil mudou, que o próprio Es-
tatuto do Estrangeiro foi altera-
do e que os exilados voltaram.
   — É o último exilado — ironi-
za Pedro Eurico, que reclama
dos entraves burocráticos e da
falta de interesse do governo.
   Os dois advogados ressal-
tam que não vão pedir novo
visto de permanência, mas que
o anterior seja revalidado.
   — Houve revogação do de-
creto de expulsão, então, que se
devolvam a ele as condições an-
teriores, o status quo que tinha
— diz Farias.
   A reação foi liderada na época
pelo Sindicato dos Cultivadores
de Cana. Hoje, o seu presidente,
Gerson Carneiro Leão, afirma
não temer mais o padre:
   — Junto de outras coisas que
aconteceram no Brasil, como o
MST, ele pode ser considerado
um pinto (algo insignificante). É
bem-vindo hoje. Na época, éra-
mos aliados do governo militar,
e ele insuflava os trabalhadores
nos canaviais; gostava dos po-
bres e era tido como incendiá-
rio. Mas a mentalidade hoje é
outra. Podem vir dez Vito Mira-
capillos. A gente tinha medo do
governo Lula e ele foi o melhor
presidente para nossa categoria.
Por que ter medo desse padre?
   Responsável pela confusão
que terminou em expulsão, o
hoje prefeito de João Alfredo,
Severino Cavalcanti (PP), tam-
bém não se opõe ao seu retorno.
Mas diz que não se arrepende:
   — Já se passaram muitos
anos, ele deve ter refletido mui-
to sobre a atitude que tomou,
desvalorizando o Brasil. É bom
que venha agora para ver como
mudou o país que tanto criticou.
Não me arrependo do pronun-
ciamento, nem de ter pedido a
expulsão, porque ele merecia
punição diante da tentativa de
desestabilizar o governo. ■

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Matéria_O_Globo_Padre

  • 1. Domingo, 4 de setembro de 2011 O GLOBO O PAÍS ● 17 Padre expulso do país pela ditadura tenta voltar Italiano busca há quase uma década reaver visto de permanência para retornar a paróquia em Pernambuco D.A.Press Letícia Lins a agroindústria açucareira do independência do povo”, reduzi- — Esses padres subversi- leticia.lins@oglobo.com.br estado, considerada área de ten- do “à condição de pedinte e de- vos precisam ser observados são social pelos órgãos oficiais. samparado dos seus direitos”. — disse na época. ● RECIFE. Expulso do Brasil em Em plena ditadura no Brasil, o Tido como subversivo por A expulsão envolveu uma ba- 1980 — em um polêmico pro- padre foi incluído na Lei de Se- usineiros e donos de engenho, talha jurídica, com ordens e con- cesso que contribuiu para agra- gurança Nacional e atingido pelo foi criticado na Assembleia Le- traordens, que mobilizou advo- var ainda mais o conflito entre então recém-promulgado Estatu- gislativa pelo então deputado es- gados da CNBB e chegou ao Su- Igreja e Estado —, o padre italia- to do Estrangeiro, por ter se re- tadual Severino Cavalcanti (PDS) premo Tribunal Federal, que de- no Vito Miracapillo tenta inutil- cusado a atender pedido da pre- — o mesmo que mais tarde se cidiu pela expulsão do sacerdo- mente, há quase uma década, feitura para que celebrasse mis- tornaria presidente da Câmara te. O decreto também mobilizou reaver o visto de permanência sa comemorativa da Indepen- dos Deputados e renunciaria o clero no Nordeste, que promo- no país, onde pretende retomar dência do Brasil, em 7 de setem- com o escândalo do mensalinho, veu em Ribeirão uma missa de o trabalho pastoral interrompi- bro de 1980 — alegando que o acusado de obter propina. desagravo ao italiano que termi- do durante o regime militar. Brasil, sob ditadura, não era in- Severino invocou o Estatuto nou em pancadaria. Donos de O padre quer voltar ao muni- dependente. Num ofício ao pre- do Estrangeiro pela primeira engenhos, fornecedores de cana cípio de Ribeirão, a 87 quilôme- feito de Ribeirão, Salomão Cor- vez no país, quando fez um e usineiros exibiram armas na tros de Recife, do qual foi páro- reia Brasil (PDS), o padre justifi- apelo ao então ministro da igreja e usaram o mastro de uma co. E residir na Zona da Mata de cou a recusa, entre outros moti- Justiça, Ibrahim Abi Ackel, pa- bandeira do Brasil para dissol- PADRE VITO: expulso porque não quis rezar missa pela Independência Pernambuco, onde se concentra vos, devido “à não efetivação da ra que expulsasse o padre: ver a multidão de fiéis. ■ Até hoje, constrangimento ao vir ao Brasil Severino: ‘Não me arrependo, ele merecia punição’ ● RECIFE. O decreto de expulsão, assinado pelo então presidente João Baptista Figueiredo, foi re- vogado em 1993 pelo presidente Itamar Franco. Mas isso não li- vrou o sacerdote de constrangi- mentos quando vem ao Brasil e precisa passar pelo visto da Po- lícia Federal. Nunca deram baixa do decreto de expulsão na PF. Os agentes lhe perguntam os motivos da expulsão, fazem in- dagações e ratificam para ele to- mar cuidado. Só pode ficar três meses, como turista. Hoje com 64 anos, o padre não entende por que o gover- no cria tantas dificuldades pa- ra ele, mas concede asilo a Ce- sare Battisti, condenado à pri- são perpétua na Itália. — São dois casos muito dife- rentes, mas não consigo ver co- mo ele (o ativista) conseguiu lo- go a solução do caso. Realmente não entendo essa situação — afirmou ele por telefone, de An- dria, onde reside atualmente. Na próxima semana, seus ad- vogados, Pedro Eurico de Barros e Albézio Farias, vão a Brasília encaminhar a solicitação do pa- dre diretamente ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Caso o impasse permaneça, vão apelar às cortes superiores. Miracapillo acha estranho não terem dado baixa do decreto de expulsão na PF. Lembra que o Brasil mudou, que o próprio Es- tatuto do Estrangeiro foi altera- do e que os exilados voltaram. — É o último exilado — ironi- za Pedro Eurico, que reclama dos entraves burocráticos e da falta de interesse do governo. Os dois advogados ressal- tam que não vão pedir novo visto de permanência, mas que o anterior seja revalidado. — Houve revogação do de- creto de expulsão, então, que se devolvam a ele as condições an- teriores, o status quo que tinha — diz Farias. A reação foi liderada na época pelo Sindicato dos Cultivadores de Cana. Hoje, o seu presidente, Gerson Carneiro Leão, afirma não temer mais o padre: — Junto de outras coisas que aconteceram no Brasil, como o MST, ele pode ser considerado um pinto (algo insignificante). É bem-vindo hoje. Na época, éra- mos aliados do governo militar, e ele insuflava os trabalhadores nos canaviais; gostava dos po- bres e era tido como incendiá- rio. Mas a mentalidade hoje é outra. Podem vir dez Vito Mira- capillos. A gente tinha medo do governo Lula e ele foi o melhor presidente para nossa categoria. Por que ter medo desse padre? Responsável pela confusão que terminou em expulsão, o hoje prefeito de João Alfredo, Severino Cavalcanti (PP), tam- bém não se opõe ao seu retorno. Mas diz que não se arrepende: — Já se passaram muitos anos, ele deve ter refletido mui- to sobre a atitude que tomou, desvalorizando o Brasil. É bom que venha agora para ver como mudou o país que tanto criticou. Não me arrependo do pronun- ciamento, nem de ter pedido a expulsão, porque ele merecia punição diante da tentativa de desestabilizar o governo. ■